É lamentável o estado a que chegou a imprensa em Portugal. Jornais centenários correm um risco real de desaparecer, com títulos emblemáticos, como o Jornal de Notícias, a sofrer mais um golpe brutal com o despedimento anunciado de 200 funcionários.
Supostas peças do “quarto poder”, os principais órgãos de comunicação social do país são cada vez menos poderosos. Mas a situação crítica ainda tem margem para piorar e não se vislumbra qualquer sinal que prenuncie uma inversão da actual tendência de queda de vendas e de circulação.
Nada disto é assim tão surpreendente. Quando olhamos para os jornais, o que vemos? Salvo poucas (e honrosas) excepções, aquilo que o vulgo chama palha e mais palha. “Notícias” que apenas fazem eco da propaganda política, meras transcrições de discursos que, na melhor das hipóteses, são vazios e irrelevantes, quando não puramente desonestos. Por vezes, “notícias” com tons de press release de agências de comunicação. Sobre a crise política, jornais de referência titulam agora, por exemplo, que “Costa está “magoado” e questiona se hoje procuradora e Presidente “fariam o mesmo””. O primeiro-ministro coloca-se agora habilmente no papel de vítima, acolhida pela imprensa, quando na verdade apenas aproveitou o famigerado “parágrafo” para se demitir e abandonar o barco depois de o ter levado ao fundo. E a imprensa mainstream, em vez de chamar António Costa à pedra pelo lastro de destruição deixado, vê “valor-notícia” nos seus alegados sentimentos e colabora nestas tácticas de manipulação. Valerá a pena pagar por este material jornalístico?
Já a entrevista de Costa à CNN, na segunda-feira, dispensa grandes comentários. Quando uma das questões colocadas ao principal responsável pelo estado do país é “sabe quem faz anos amanhã?” (referindo-se a Marcelo Rebelo de Sousa), sabemos que o circo está montado e os palhaços somos nós. Bem que podiam ter trocado o excelso jornalista Nuno Santos pelo apresentador do ‘Alta Definição’, Daniel Oliveira, já que a tónica da conversa se coadunou muito mais com este último programa do que com uma entrevista séria e incisiva ao primeiro-ministro cessante.
Com mais de quatro milhões de portugueses que seriam pobres sem apoios sociais, a imprensa embarca no jogo do “fáctico poder” e põe-nos a discutir minudências, enquanto somos levados para o abismo, qual Orquestra do Titanic. O debate público resume-se ao superficial e acessório, como as sondagens e o “carisma” dos líderes ou a sua falta, em vez de se centrar nas políticas de cada partido, nas suas propostas e visões para o país.
Nesta perspectiva, se a classe jornalística atravessa um momento difícil, parece-me evidente que os seus profissionais também fizeram a cama na qual agora se deitam – algo que ficou, aliás, bem patente na semana passada. Descendo mais um degrau na sua credibilidade, vários jornalistas consideraram de interesse público os ‘desabafos’ de Facebook do director de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes. O médico que, recorde-se, veio a público no âmbito da investigação da TVI sobre a alegada cunha presidencial no tratamento milionário das gémeas luso-brasileiras, e assegurou que a situação não tinha sido “normal”.
No entanto, talvez procurando descredibilizar o seu testemunho, vários jornalistas – um triste ramalhete onde se inclui a directora da Visão, Mafalda Anjos, Rita Marrafa de Carvalho ou Fernando Esteves (que já não escrevia no “insuspeito” Polígrafo desde Janeiro passado, onde supostamente é de novo director) – divulgaram publicações feitas pelo neuropediatra na sua página pessoal, onde o médico lançava críticas inflamadas (mas legítimas numa sociedade democrática) ao Presidente da República, a António Costa e o director-executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo.
É consternador ver outros jornalistas, numa espécie de tentativa de assassinato de carácter, a difundir as opiniões políticas de um médico que denunciou uma situação irregular e grave que envolve o Supremo Magistrado da Nação. Mas é este o calibre dos profissionais que hoje fazem a ‘nata’ da classe.
Domesticados e acomodados, pouco mais fazem do que reproduzir comunicados e narrativas oficiais sem qualquer contraditório, desde a covid-19 até às alterações climáticas e pregações woke, e ainda fazem tábula rasa do direito à liberdade de expressão, tentando desacreditar um delator que – escândalo dos escândalos – não simpatiza com o actual Governo e atreve-se a criticá-lo de uma forma menos “polida”, sem medir palavras.
Enfim, diria que a catástrofe que se tem abatido sobre a imprensa mainstream é indissociável da crise de regime em que nos encontramos. É, em simultâneo, causa e sintoma da falência das instituições. E é esta convergência de factores que torna urgente uma reflexão profunda e, em última análise, uma mudança estrutural no modo como se faz jornalismo.
Mesmo neste cenário negro, mantenho a esperança de que o jornalismo português consiga renascer das cinzas, pela mão de uns poucos que ainda são dignos de serem chamados “jornalistas”.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Nas sociedades modernas, a diabetes mellitus (tipo II) é já uma verdadeira epidemia; ‘sintoma’ do nosso estilo de vida moderno, muito assente em hábitos alimentares prejudiciais à saúde e um sedentarismo endémico. Tão prevalente, esta doença é erradamente vista como uma sentença – uma vez diagnosticada, a única via possível, de acordo com a “Medicina Convencional”, parece ser o seu controlo através de medicação e injecções de insulina. Contudo, para Manuel Pinto Coelho, nada poderia estar mais longe da verdade, e explica-nos porquê no seu mais recente livro Como viver sem diabetes, editado pela Oficina do Livro.
Com mais de 50 anos de prática clínica (como já aqui referimos numa outra recensão do mesmo autor), Manuel Pinto Coelho tem-se notabilizado por apregoar uma mensagem fundamental que de tão simples deveria ser seguida com naturalidade: precisamos de aprender a olhar para as causas das doenças, e a preveni-las através das nossas escolhas diárias, em vez de camuflá-las com medicamentos (a abordagem mais usual e convencional). E se esta visão se aplica à generalidade das possíveis afecções ou doenças, aplica-se também, naturalmente, à diabetes tipo II.
Como se salienta neste livro, à escala global 537 milhões de pessoas padecem desta condição; um número que se prevê duplicar até 2050. Em Portugal, “a doença mata quase uma dúzia de pessoas por dia” (pág. 29). Apesar destas assombrosas estatísticas, a boa notícia que nos traz Manuel Pinto Coelho é que através de uma alimentação adequada, exercício físico regular, um sono reparador e algumas ferramentas adicionais – como suplementos alimentares adequados e jejum intermitente – é possível evitar, ou até mesmo curar, a diabetes.
Isto porque, como o médico sublinha, a diabetes é sobretudo uma doença “nutricional”, uma “filha indesejada do ‘desenvolvimento’” (pág. 35), que se instala quando o corpo se torna resistente à insulina – uma hormona segregada pelo pâncreas para “controlar o armazenamento de glicose dentro das células adiposas” (pág. 46).
Manuel Pinto Coelho explica também em detalhe a “cura” por si sugerida: quais os alimentos a privilegiar, como fazer o jejum, e indica-nos um conjunto de suplementos nutricionais com “provas dadas” que poderão ser benéficos para quem se defronta com a doença, ou àqueles que se encontram em risco. Entre os suplementos naturais que mostraram resultados promissores em estudos científicos no controlo da glicemia, destaca-se a berberina, extraída através de uma planta (pág. 100).
Além disto, embora por si só não seja suficiente, o médico sublinha a importância de controlar a qualidade e a quantidade dos hidratos de carbono ingeridos, nomeadamente o açúcar. Nesse sentido, fala-nos de 147 potenciais malefícios do açúcar; uma lista que assusta de tão comprida.
Sobre este aspecto, devemos ter presente que o açúcar se “esconde”, com frequência, por trás de um sem-número de designações. Por isso, nas idas ao supermercado, recomenda-se atenção aos rótulos de modo a identificar estas outras formas que o açúcar pode tomar; e nas quais se contam, entre outras, a glucose, a frutose, a lactose, a dextrose e a maltodextrina.
Ainda assim, o melhor é que não seja necessário olhar a rótulos, privilegiando-se uma dieta à base de alimentos integrais, que não veem em embalagens. Até porque, infelizmente, nem os adoçantes comuns como o Aspartame e o Acessulfame K, são uma alternativa aconselhável ao açúcar: não são úteis no controlo do peso, e ainda “agravam o risco de cancro” (pág. 161).
Manuel Pinto Coelho enfatiza a obesidade como o maior factor de risco para a diabetes mellitus, e mostra como esta doença, por sua vez, pode depois desencadear uma série de outras maleitas. Como estratégia de prevenção, explica também ao leitor como pode, através de análises ao sangue, perceber se está a desenvolver um quadro inflamatório ou de resistência à insulina, antes de chegar ao ponto de adoecer.
Quanto à “cura” que a Medicina Tradicional tem para oferecer aos diabéticos, o médico mostra-se crítico: a insulina não resolve a questão, podendo até ser mais uma fonte de problemas. No seu entender, não são os doentes quem beneficia com esta abordagem, mas quem dela retira dividendos financeiros. E sustenta a tese com alguns dados, adiantando que “o mercado mundial da insulina humana deverá atingir os 29,9 mil milhões de dólares norte-americanos até 2025” (pág. 131).
Escrito com base em evidências científicas, Como viver sem diabetes apresenta-se como um guia de leitura aprazível mas sobretudo de uma extrema utilidade para quem sofre desta doença ou para quem está em risco de a desenvolver ou para quem a quer evitar. Ou seja, potencialmente para todos. Afinal, quem pode recusar a possibilidade de uma cura natural, barata, e livre de efeitos adversos para um flagelo que assola tantas pessoas em todo o Mundo?
As universidades devem ser lugares livres, proporcionando um ambiente favorável ao debate aberto, ao pensamento crítico e à discussão de ideias, independentemente – ou apesar – das ideologias de cada um. Não devem nunca, e por nenhum motivo, converter-se em locais de pregação de correntes ideológicas, onde se alimentam dogmas, ou servir de instrumento para a expurgação ou reescrita do passado.
Comparando com outros países, com os Estados Unidos à cabeça, a Academia em Portugal parece estar a manter-se imune às pressões de certos grupos que gostariam de a transformar num espaço subordinado às imposições do movimento woke. Mas, como se visto em diversas situações, os acólitos do wokismo não desistem de tentar impregnar as nossas universidades com a sua ‘mundivisão’.
Isto a propósito da iniciativa de um grupo de alunos da Faculdade de Direito de Lisboa da Universidade Clássica que consideraram inaceitável a existência, naquele estabelecimento de ensino, de uma sala-museu “dedicada” a Marcello Caetano, constituída em 2006.
A questão foi debatida na Reunião Geral de Alunos, sujeita a votação, e terá sido até alvo de uma “discussão acesa”. E se a obsessão woke com a toponímia e o encerramento de museus pode tornar-se exasperante, deve deixar-nos optimistas que os novos ‘justiceiros sociais’, na tentativa de recontarem a História a seu gosto, tenham encontrado oposição.
Mas olhemos para os argumentos dos alunos indignados com o espaço museológico em honra do sucessor de Salazar, mas que continua a ser considerado um dos pais do moderno Direito Administrativo, de onde foram ‘beber’ jurisconsultos como Jorge Miranda, Diogo Freitas do Amaral, Fausto de Quadros e até, hélas, Marcelo Rebelo de Sousa. Dizem eles, os alunos indignados, que “não pode haver lugar a celebrações acríticas do regime fascista e das suas figuras” e que “a sala ignora toda a outra faceta de Marcello Caetano, que perpetuou a ditadura, a censura, a repressão e o colonialismo durante o tempo que esteve no poder”.
Ora, ao contestarem “celebrações acríticas”, estão os alunos a defender, como alternativa, uma “celebração crítica”? O conceito soa algo paradoxal, mas parece que sim. Um dos activistas, João Moreira da Silva, que escreveu um artigo de opinião no Público intitulado “Ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito”, queixara-se de que nem uma menção havia sido feita acerca dos males perpetrados pela mão do (no seu entender) facínora Marcello Caetano.
Só que, sejamos claros, João Moreira da Silva & Companhia não fizeram todo este alarido apenas para pedir a introdução de uma ‘nota de rodapé’ dizendo que o antigo líder do Estado Novo, embora um destacado jurista, foi, enfim, um homem branco, opressor, tóxico, colonialista, autoritário, etc.. Assim, entende-se que a ideia de uma ‘celebração crítica’, mesmo se vingasse, não bastaria para os satisfazer. Eles querem, efectivamente, que o núcleo museológico seja encerrado.
E querem-no porque não gostam de quem foi nem do que representa Marcello Caetano; e estão no seu direito. Mas recorrem a argumentos engenhosos para sustentar a sua tese, dizendo que “os homens não são apenas aquilo que escrevem, mas também o que fazem nas suas vidas”. Por esta ordem de ideias, resultará que só alguém com um historial impoluto e imaculado pode ser relembrado pelas suas virtudes – mas, é claro, tal pessoa não existe.
Se quisermos apagar das nossas referências históricas todos os homens (e até algumas mulheres) com passado pouco ‘honesto’ à luz dos olhos do presente, então podemos começar a lista pelo marquês de Pombal, e mais a sua estátua, que aliás foi erigida pelo Estado Novo. Podemos fazer isto, mas será apenas uma estupidez.
It goes without saying, mas uma figura histórica não tem de ser consensual para ser celebrada ou homenageada; nem de agradar a gregos e a troianos, sendo que tal, é, em todo o caso, extremamente difícil. E, convenhamos, se existe alguma ideia consensual e generalizada sobre Marcello Caetano na sociedade portuguesa, ela não abona de todo a seu favor.
Também é absurdo defender que uma homenagem seja acompanhada por um apontamento condenatório, ao estilo ‘fulano destacou-se por X, mas foi pródigo em malfeitorias, nomeadamente Y e Z’. É ilógico, sobretudo no caso em apreço: Marcello Caetano não é propriamente um desconhecido dos portugueses, e presume-se que quem chega agora à universidade não precisa que lhe expliquem qual foi o seu papel durante a ditadura.
Marcello Caetano (1906-1980)
Esta cruzada persecutória do passado, protagonizada pelos militantes woke, é exaustiva e assume mesmo contornos reminiscentes de um culto religioso – conseguindo, no entanto, a proeza de ser ainda pior, como sublinha o intelectual francês Jean-François Braunstein em A religião woke, editado em Setembro pela Guerra & Paz. Pior, porque é mais implacável, ao não admitir qualquer perdão nem salvação aos “pecadores”. Mas, tal como uma religião, assenta em crenças e é movida a emoções, não se deixando, por isso, contrariar pela racionalidade.
No livro, Braunstein salienta o facto de o wokismo ter germinado nas universidades norte-americanas. Algo verdadeiramente espantoso, se pensarmos na academia como um reduto da ciência contra preceitos de fé e o obscurantismo. Mas se, nos Estados Unidos, alguns académicos foram responsáveis por impulsionar este maldito movimento, espero que, por cá, outros tenham a coragem de lhe fazer frente.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Em todo o caso, mostra-se evidente que esta retirada foi estratégica, devido à polémica que traria para campanha eleitoral das próximas legislativas, porque a essência manter-se-á. As intenções do Executivo socialista – tituladas como foram pelo sempre amistoso Público – parecem, à primeira vista, muito aceitáveis e até benévolas. Mas o problema surge quando começamos a desmontá-las e a raciocinar sobre as implicações na sua implementação. E na prática, no reino do palpável, despindo-se-lhe o invólucro angelical, percebemos que se trata de uma medida tenebrosa por tão antidemocrática.
No Código Penal em vigor, o artigo que versa sobre a “Discriminação e incitamento ao ódio e à violência” já estipula uma pena de prisão de até oito anos para actos discriminatórios com base na “raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”. Mas, com esta proposta de lei, a lista de ofensas criminalizáveis passaria também a incluir a discriminação por “convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou a pretexto de uma culpa colectiva baseada em qualquer um destes factores”.
Com critérios tão nebulosos e ambíguos, a pergunta impõe-se: de que modo planearia o Governo fazer cumprir esta medida? Seria aberta uma caixa de Pandora, até porque quem fosse processado por atentar contra “convicções políticas e ideológicas” de uma determinada pessoa ou grupo, também poderia queixar-se de estar a ser discriminado (por o processo judicial ter a intenção de o castigar, ‘discriminando-o’ da sociedade) pelas suas próprias “convicções políticas ou ideológicas”.
Havia ainda um outro aspecto igualmente escabroso: na linha do proposto, quem incorresse nestes “crimes”, poderá ser punido com a interdição de servidores informáticos, sem data limite, para o resto da vida. Ou seja, poderia ver-se privado de usar as plataformas digitais tradicionais com ‘pena perpétua’. Orwelliano quanto baste.
Mas havia mais. O Público revelava, na notícia da madrugada de ontem, que “o texto inicialmente redigido pela Presidência do Conselho de Ministros e ao qual o PS propôs pequenas alterações aumenta o leque das pessoas que podem ser acusadas de discriminação porque já não abrange apenas as actividades de propaganda organizada, mas sim todas as actividades de propaganda em geral.”
E o jornal fornecia ainda exemplos mais concretos de como esta proposta de lei se poderá aplicar, dizendo que “não poderão ser transmitidas imagens e sons, assim como citações num artigo sobre declarações num comício de um partido discriminando outro”.
Resumindo: critérios adicionais, e extremamente duvidosos, que permitem punir criminalmente alguém; visando potencialmente mais pessoas. Um golpe grotesco contra o direito à liberdade de expressão, com a conivência habitual da nossa imprensa mainstream. Note-se: a notícia do Público até soava muitíssimo bem; qualquer um concordaria. Alguém estará a favor de uma “discriminação por convicções políticas”?
O problema é saber o que é, agora, discriminação. Agora, há uma enorme facilidade para classificar qualquer coisa como discurso de ódio, e feito isto, não se sabe bem por quem, logo se condiciona a liberdade de expressão e a censura de opiniões alheias. E isto deve fazer-nos olhar para a questão com muita cautela. Por estarem em causa linhas tão ténues, a censura e o condicionamento da liberdade de expressão são matérias sobre as quais é difícil atribuir a alguém em concreto o papel de polícia do discurso. E entregar esse papel a um Governo ou mesmo a um tribunal com um Código Penal feito por um Governo é assunto delicado numa democracia. Por via das dúvidas, será sempre mais prudente garantir que cada um possa dizer o que se lhe aprouver, correndo o risco de se ofender alguns (e até ser processado se ultrapassar limites a analisar em concreto), do que lesar um direito tão elementar como o da liberdade de expressão.
Vivemos tempos assaz perigosos, porque se mascaram intenções vis e perversas através de uma alegada preocupação com o “bem comum”. A censura continua a escalar a uma velocidade alarmante, sempre justificada pelo combate à intolerância e ao discurso de ódio – uma manobra que não passa de uma tentativa de cercear direitos e liberdades.
O mais lamentável é ver autoproclamados democratas, da esquerda à direita, aplaudirem ou assentirem com esta medida, porque “o discurso de ódio é mau e urge combatê-lo”. Os mais cínicos, destilam, eles próprios, ódio nas suas redes. Os sonsos, fecham os olhos, quando não se divertem, com insultos e ataques lançados àqueles com quem antipatizam. É o ódio do bem, a par com a hipocrisia desmesurada.
Por isso, nunca poderemos contar com a oposição de uma maioria que diz prezar a liberdade de expressão; um grupo no qual se incluem proeminentes jornalistas, políticos, comentadores, e que se estende aos demais cidadãos. Porquanto, eles mesmos apelam ao silenciamento de outras vozes, enquanto se banham na sua sinalização de virtude. Regozijam-se com a ideia de ver amordaçados os “odiosos” cujo único delito, amiúde, é destoar das convenções politicamente correctas. Projectam no outro uma pulsão ditatorial que, na verdade, está dentro de si. Entusiasmam-se com a prospectiva de ver enclausurados os seus concidadãos por um simples tweet, não compreendendo os distópicos contornos de tal punição.
Para eles, a liberdade de expressão deveria estar, na verdade, sujeita a vários condicionalismos. Liberdade de expressão, sim, mas com muitas cláusulas.
Por isso, mesmo que agora o PS tenha deixado cair uma parte das suas propostas para instituir normas orwellianas, é necessário continuar alerta e relembrar: uma liberdade que quer condicionar previamente disparate, e até a injúria ou a mentira, não é liberdade alguma. É censura.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A Argentina está no centro da agenda mediática por causa de Javier Milei, o novo (excêntrico) presidente. Com a sua eleição neste domingo, a imprensa mainstream nacional mostrou-se mais comedida se comparamos com o retrato que lhe fizera quando candidato à primeira volta (algo que não agradou a alguma esquerda), mas vimos, ainda assim, uma tentativa de o colar à extrema-direita e de o apresentar como um perigo para aquele país sul-americano. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Donald Trump ou Bolsonaro, nas redes sociais e nos jornais portugueses muitos reciclaram o fantasma do “fascismo” que se abateria sobre os argentinos com o resultado da eleição.
Ora, este receio é um déjà vu; vimos levantar-se medos similares por diversas vezes no passado até se mostraram falsos. Muitas críticas poderemos apontar àqueles ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, mas hoje é mais do que claro que nunca houve qualquer fundamento sólido para os receios da imposição de regimes autoritários e repressivos, com usurpação do poder. E, ainda assim, hoje há quem insista muito num mito exasperante de que alegados “fascistas” chegarão ao poder e quando tal suceder será o fim dos tempos.
Agora que Milei surge como uma realidade política, porque foi mesmo eleito Presidente da Argentina, ecoam vozes de ele vir a ser ‘pior’ do que Trump e Bolsonaro. E juntos! E anunciam que pior que um pavoroso fascista, é virmos assim a ter um fascista elevado ao quadrado…
Vejamos como Milei surge no contexto político da Argentina, e como se posicionam os seus críticos. Então, por um lado, temos um país enterrado numa crise económica e social, com taxa de inflação acima dos 140% e cerca de 40% do povo vive abaixo da linha da pobreza, mas afinal será com a vitória de um assumido anarco-capitalista liberal que os argentinos está condenados? Ou seja, com o lastro de destruição deixado por políticos de esquerda – embora, já sabemos, “não era esquerda de verdade” –, há quem consiga pintar um monstro sobre quem ainda não governou.
Não querendo defender os Governos de Trump, de Bolsonaro e, mais recentemente, de Georgia Meloni, é um facto que todos eles contrariaram a tese de que estas figuras de direita são o diabo em forma humana, o horror e desgraça das populações. Aliás, convém recordar que durante a psicose pandémica, vários políticos proeminentes da dita “extrema-direita” estiveram entre a minoria de vozes a insurgir-se contra medidas anti-covid que passaram por restrições de liberdades individuais e mesmo pela suspensão de direitos constitucionais.
Mas os exemplos que desmontam esta oca narrativa do “fascismo” não acabam aqui.
Ainda antes da pandemia, temia-se, entre outros cenários, que o destravado antecessor de Joe Biden começasse uma Terceira Guerra Mundial. Não deixa de ser irónico que, afinal, tenha sido com a Administração Biden – sempre vendido como sendo a todos os títulos melhor do que Trump –, que se iniciaram duas terríveis guerras ainda sem fim à vista. Contudo, incapazes de dar a mão à palmatória e não se deixando demover pelos factos, muitos ainda não alteraram em nada as suas ideias iniciais acerca de ambos os presidentes.
Quanto ao Brasil, aqueles que dizem defender a liberdade artística e de expressão não se indignaram com a censura levada a cabo pelo Governo de Lula da Silva, e que inclui o silenciamento, por meios legais, de comediantes adeptos de humor negro, como Leo Lins. Talvez porque a liberdade que tanto preconizam apenas se aplica a certas ideias e pensamentos, sendo por isso muito condicional.
É certo que não ser um temeroso fascista não basta para que um político mereça a nossa aprovação, mas aqueles que catalogam qualquer posição à direita do ‘nosso’ PSD como fascista deveriam repensar a sua argumentação – porque é enganosa, incoerente, e já roça mesmo a infantilidade.
Seria mais proveitoso discutirem-se os evidentes sinais que indiciam uma democracia frágil, e tentar combatê-los. Sinais que, nos últimos tempos, crescem de forma alarmante com os partidos supostamente moderados, cujos Governos somos levados a apoiar precisamente pela sua moderação. Como se, nas suas mãos, as liberdades estivessem eternamente asseguradas, e só houvesse necessidade de despertar quando surge o papão da ‘extrema-direita’.
As políticas “moderadas” trouxeram-nos ao ponto onde nos encontramos, e dizê-lo não serve para fazer apologia de políticas “imoderadas”, mas para apelar a um espírito crítico independente de rótulos superficiais e de facciosismo ideológico.
Condenar um acto perpetrado por um político do lado adversário, e assobiar para o lado perante igual acto do nosso campo político, demonstra um tribalismo e um fanatismo que, na verdade, contamina o debate e corrói a democracia. Deixamos de falar em políticas e propostas concretas, e passamos só a trocar galhardetes clubísticos, recorrendo aos epítetos habituais como armas de arremesso.
Posto isto, não sei se Javier Milei logrará algo de bom para a Argentina – tenho até sérias dúvidas, mesmo fazendo votos para que esta mudança radical acabe bem. Mas gostava, confesso, de ver algum decoro por parte de quem olha para um país a braços com uma inflação acima dos 140% e apenas consegue indignar-se com a hipotética ameaça da “extrema-direita”.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Pode dizer-se que o Jornalismo e a Literatura lhe está no sangue e no ar que respira: filho da premiada escritora e jornalista Helena Marques, e do jornalista Rui Camacho, e irmão de Paulo Camacho (antigo pivot da SIC), e de Pedro Camacho, que foi director da Lusa e da Visão. Fazendo assim jus ao provérbio “filho de peixe sabe nadar”, Francisco Camacho também teve uma auspiciosa carreira como jornalista, passando por cargos de chefia n’O Independente, Grande Reportagem, Sábado e jornal I, do qual foi cofundador. Mas em 2010 trocou os jornais pelos livros e tornou-se editor no grupo LeYa –o que não surpreende, já que a sua paixão sempre foram as letras. Como confessa, só enveredou pelo jornalismo porque era foi a única forma que encontrou de ser pago para contar histórias. E é isso que continua agora fazer, através dos romances. Vai agora noseu terceiro romance, depois de um interregno de 10 anos. A pretexto de O monte do silêncio, escrito num estilo de thriller psicológico, o PÁGINA UM fala com Francisco Camacho numa entrevista onde inevitavelmente, se aborda o seu passado jornalístico e a sua visão sobre o estado actual da comunicação social portuguesa.
O monte do silêncio é o teu terceiro romance e chega com uma década de distância desde o último; um intervalo ainda maior do que os sete anos que separam a publicação dos teus dois primeiros livros. Foi por falta de tempo ou de inspiração?
Sim; eu larguei o jornalismo em 2010, e quando tive o convite para ser editor na LeYa, já tinha publicado o Niassa em 2007. E em 2010 já estava com vontade de escrever outro livro. E na altura pensei: agora que vou trabalhar no mundo dos livros, vou-me sentir mais estimulado para escrever o próximo.
E não foi assim?
Aconteceu-me o contrário. A verdade é que eu também não sou aquele autor que tem uma necessidade absolutamente compulsiva de escrever livros. Gosto de viver, sobretudo, e se possível, nos intervalos, escrevo.
Mas já chegaste a dizer que sempre quiseste ser escritor e que só foste para jornalismo porque era uma profissão em que eras pago para escrever.
Sim, mas é impossível, na verdade, porque há muito pouca gente que vive da escrita em Portugal; se é que há alguém que vive. Mas, nessa altura em que comecei a trabalhar como editor, estava tão rodeado de livros e de vozes de autores, que se tornou muito mais difícil escrever o segundo livro, A Última Canção da Noite. Acabei por escrevê-lo em 2013, ou seja, três anos depois de começar na edição. E, depois, este hiato gigantesco de 10 anos também se deve um bocado a isso; porque, às tantas, estás tão dentro das vozes dos autores que editas, que tens mais dificuldade em encontrar a tua própria voz. Por outro lado, há uma coisa muito mais prosaica: estás o dia todo agarrado ao computador a ler manuscritos, e a última coisa que te apetece quando chegas a casa, que é o tempo que tens para escrever os teus próprios livros, é sentares-te ao computador a escrever mais ainda. Portanto, isto demorou algum tempo, mas fui fazendo esse trabalho vagaroso de escrever o terceiro romance.
Para o Niassa, utilizaste muita da tua bagagem e experiência jornalísticas. Depois, o segundo livro já foi menos inspirado em histórias verídicas. Este, que conta uma história mais “mundana” sobre um jovem atormentado, é o mais ficcionado dos três?
Eu fiz três exercícios diferentes, mas todos muito conscientes. O primeiro é nitidamente um livro muito inspirado em reportagens que eu tinha feito em África, nomeadamente uma em particular, e é escrito na primeira pessoa. Com o segundo, quis fazer um romance na terceira pessoa; submeter-me a esse teste. E de todos, talvez seja o mais ficcionado, no sentido em que é menos assente na minha experiência de vida. Este, é um pouco um livro que acumula uma série de vivências que eu fui tendo desde muito novo, mas que evidentemente, muitas dessas experiências são ficcionadas. Mas acho que é o que tem mais de mim; não tem nada de jornalismo… Quer dizer, tem sempre, porque na verdade, há algumas passagens que eu só saberia escrever pela experiência que tive em termos jornalísticos. Nomeadamente, uma parte sobre um bairro muito pobre em Lisboa, Marvila, vem de uma reportagem que eu fiz para a Grande Reportagem. E essa veracidade que eu acho que consigo transmitir, vem do facto de eu ter estado lá. Portanto, o jornalismo está sempre presente; acho que vai estando cada vez menos, mas está sempre. Eu sou de um tempo em que… Esta frase até me custa dizer, porque acho que o jornalismo se transformou muito. Mas nos anos 1990, se eras jornalista e tinhas apetência para ser repórter, ias mesmo aos sítios; não havia essa coisa de fazer jornalismo de secretária. Havia os que eram repórteres, e os que não eram. Aqueles que iam atrás da notícia, e que no limite, não precisavam de sair da redação. Mas havia também o estímulo das chefias para perceber quem eram os repórteres e os tipos que eram bons para ir para o terreno e trazer histórias. E eu apanhei ainda muito isso. Acho que foi sempre aquilo em que fui melhor. Tive cargos de chefia ainda muito novo, e nessa altura passei a sair menos da redacção. Mas até então, fiz imensas reportagens e estive em sítios incríveis. Nem era preciso ir muito longe de Lisboa. Esse exemplo do bairro de Marvila fez-me conhecer uma realidade que eu achava que era impossível existir.
Este é o livro que tem mais de ti, mas não no sentido de ser autobiográfico?
Eu acho que todos os romances são um bocado autobiográficos; uns mais descaradamente que outros. Agora, há este estilo da autoficção, que está muito em voga. Mas há no livro coisas que eu trouxe ao de cima que têm um bocadinho a ver com a minha experiência, sim, como ex-adolescente, ex-muitas coisas; têm muito a ver com o meu passado. Há uma coisa engraçada sobre este livro, que é explorar muito os contrastes da sociedade portuguesa. Acho que isso é uma coisa muito relevante neste livro. Explora muito os contrastes entre as pessoas com muito poder económico, e as pessoas que não têm poder económico nenhum; as que têm a sorte de ter uma família boa, e as pessoas que têm a sorte ou o azar de terem nascido numa família disfuncional. E muitas vezes isso não tem nada a ver com o facto de teres nascido na classe alta ou na classe menos alta.
Uma das coisas que me ocorreu foi a clivagem que por vezes existe entre as aparências e o que realmente se passa na esfera privada, porque esta família é abastada, mas guarda muitos “podres” e segredos… Isso foi algo em que pensaste?
Isso é daquelas coisas em que tenho mais a resposta pronta. Eu tive a sorte de ter tido uns pais espectaculares, portanto, esse aspecto da “família disfuncional” talvez seja o menos autobiográfico. Eu sou filho de um casal de namorados até ao fim da vida, e foram uns pais fabulosos. Desse ponto de vista, o livro não tem nada a ver comigo. Mas cresci rodeado de muita gente que não teve a vida mais equilibrada, porque nasceu em famílias muito disfuncionais, e isso sempre me interessou muito: encontras estas pessoas em todas as classes sociais. E, às vezes, até acho que nas classes ditas mais privilegiadas, isto ainda tem um impacto maior, porque as coisas parecem fazer menos sentido. Se és filho de alguém que está desempregado, ou que se sente explorado no trabalho, ao fim de 20 ou 30 anos de profissão, tens uma capacidade maior de compreender eventuais comportamentos menos aceitáveis. Mas, de facto, pessoas que não tratam bem os filhos encontram-se em todas as classes sociais. Neste caso, do livro, ele não é filho; é uma mistura estranha entre sobrinho e enteado. Mas sempre me fascinou o facto de não haver nenhuma correspondência entre pessoas ou famílias financeiramente prósperas, e a felicidade e o equilíbrio. Portanto, esse falso arquétipo cai por terra. Da mesma maneira, conheço pessoas filhas de gente muito pobre que foram criadas num equilíbrio fantástico. E isto é uma coisa que está muito à vista em Portugal, só quem não quer é que não vê. Nós somos um país de contrastes sociais gigantescos. Tem uma coisa boa; se tu fores para a América do Sul, o México ou o Brasil, as classes sociais não se tocam, e aqui tocam-se. Em Portugal, estes mundos diferentes tocam-se com alguma facilidade e regularidade, e o mesmo não acontece na América Latina, onde as pessoas vivem em condomínios com metralhadoras à porta. E eu acho isso muito interessante em Portugal.
E esses contrastes e “podres” de famílias mais prósperas, foi algo que o teu trabalho como jornalista te permitiu conhecer de forma mais profunda? Porque um jornalista pode ter acesso a segredos ou dados que não estão, por vezes, tão ao alcance da população em geral…
Não; eu acho que há aqui uma parte que tem a ver com os contrastes que vi na minha adolescência. Porque eu mudei de casa muitas vezes, e ainda que nunca tenha saído do distrito de Lisboa, lidei com realidades muito diferentes entre os meus 12, 13 e os meus 18, 19 anos. É engraçado, porque eu vivi na Linha – onde hoje vivo –, mas depois fui viver para uma aldeia ao pé de Sintra, e depois fui para um sítio menos simpático de Lisboa. São apenas quatro ou cinco anos, mas são anos muito importantes na tua vida, e para mim foi muito impactante. De repente, eu estava confrontado com realidades completamente diferentes. E o narrador diz isso, aliás, é a parte em que eu mais me identifico com ele, quando diz que andou sempre com um pé em cada realidade, e que está grato porque cresceu muito por causa disso. E eu também acho que cresci muito com isso; hoje, tenho uma grande facilidade em estar confortável em qualquer ambiente. Esses quatro, cinco anos da minha adolescência forçaram-me a viver em realidades muito diferentes, e acho que essas realidades estão muito espelhadas no livro. Quando falas do jornalismo, na questão dos segredos e dos podres, acho que não. Esses “podres” que estão reflectidos no romance, de uma classe privilegiada que parece sistematicamente impune e que não é “trazida à pedra” pelos seus erros, pecados e perversões… Aí, basta ler os jornais; sou eu como um cidadão, que observa a realidade portuguesa. E eu acho que isso é uma das coisas que mais tem destruído uma certa crença neste país. Nós somos da geração do Sócrates, que nunca mais é condenado. E este pequeno, grande exemplo é muito importante para uma certa moral colectiva que fica abalada. E é isto que está reflectido no romance, saber que há pessoas que andam por aí e continuam a ter uma vida absolutamente normal e que, no limite, para as gerações mais recentes, em que depois se começa a esbater a questão do Sócrates… E é como se o crime compensasse. Porque não sermos golpistas ou vivermos de esquemas menos claros? Se isso não nos traz grandes adversidades…
Também há um tema que já estava presente nos romances anteriores, que é o dos desaparecimentos e um clima de mistério. Este livro é, aliás, uma espécie de thriller psicológico, com a morte de uma personagem no centro do enredo. Tens uma predileção por este estilo literário?
Pois, isto é um bocado um fetiche meu, a coisa dos desaparecimentos; acho apaixonante. Desde miúdo que leio livros e vejo séries e filmes sobre desaparecimentos, e acho uma coisa incrível: como é que alguém de repente se “desmaterializa” e aquela presença desaparece… E sim, é algo que está nos três livros. Costuma-se dizer que os autores têm as suas marcas. Tenho a certeza que nos próximos dois ou três vai haver alguém desaparecido nos meus livros, não consigo escapar isso; é mesmo uma paixão que eu tenho. E o tema da pedofilia está também presente no livro porque eu como jornalista fiz também várias coisas sobre pedofilia, e foi uma coisa que me impressionou sempre muito. Quando se fala, por exemplo, da mãe do Rui Pedro ou os pais da Maddie, eu costumo dizer que não deve haver tortura maior, mais do que morrer um filho é desaparecer um filho; porque nunca fazes o luto, nunca tens um corpo do qual te possas despedir. E essa expectativa do reaparecimento, que eu acho que nunca desaparece, deve ser a pior tortura que o ser humano pode experimentar. E isso também está no livro.
Foste jornalista durante muitos anos e até assumiste vários cargos de chefia, mas como disseste, a tua ambição sempre passou sobretudo pela produção literária, que requer maior sensibilidade e uma vertente mais artística. Assim sendo, e se nunca te interessaste realmente por notícias, alguma vez te sentiste como um “peixe fora d’água” no jornalismo?
Sim, sim, completamente. É uma excelente pergunta, de facto; senti-me muitas vezes “peixe fora d’água”. Nomeadamente porque em alguns colegas meus sentia um grande entusiasmo pelas notícias, pela agenda, e pelo dia-a-dia, que eu não conseguia sentir. Porque aquilo que sempre mais me entusiasmou no jornalismo foi a possibilidade, dizendo de uma maneira simplista, de “ver, ouvir e escrever”.
As reportagens?
Sim, as reportagens. Eu acho que, pessoas como eu – e eu sei porque a minha mulher é igual, e também é escritora e era jornalista – fomos parar jornalismo, porque era a profissão que pagava para contarmos histórias. Ainda bem que há pessoas que vibram com notícias e que estão interessadas em perseguir aquela notícia ou história; e no fundo, acho que é isso que tem mantido o jornalismo vivo. Mas actualmente, acho que já pouco se lê reportagens. Há alguns meios de comunicação que ainda apostam nisso, e gosto, por exemplo, do Observador. Penso que fazem isso bem; é um jornal que eu gosto muito do ponto de vista do tratamento da informação, mas não gosto tanto do ponto de vista da Opinião. Acho que aí, é até lamentável. O trabalho que os jornalistas fazem no Observador é muito bom, mas na Opinião acho mau mesmo.
É muito ideológico?
Eu não tenho nada contra o ideológico, até prefiro um jornal que se assuma de uma maneira ou de outra do que um jornal que não o faça. Aliás, é uma tradição em Inglaterra, Espanha, França ou Itália os jornais assumirem-se como de direita ou de esquerda, e acho muito bem que o façam. Mas a meu ver, a melhor direita portuguesa não quer escrever no Observador. Não estou a dizer que sou de esquerda ou direita, mas sim que a direita que eu acho que faz falta, e que de alguma forma deixou de ter representatividade no Parlamento, não se revê na Opinião do Observador. Portanto, isto não é apenas o ponto de vista de alguém que é de esquerda, que até sou. Seja como for, o Observador faz jornalismo muito bom, e tem feito por manter a reportagem viva, e também na questão dos podcasts… Aí, tem sido um grande bastião do jornalismo, sem dúvida. Mas tudo isto desapareceu um bocadinho, porque a reportagem é uma coisa que requer dinheiro e investimento. O Público, com certeza que também o faz. Mas também me entristece ver, por exemplo, casos como o Diário de Notícias; como é que eles hoje vão fazer reportagens? As coisas mudaram drasticamente em 10 ou 15 anos.
E como é que vês essa mudança no jornalismo, desde que saíste?
Vejo com alguma tristeza, mas não sou só eu. Eu estive lá e fiz parte desse mundo, mas sinto que as pessoas que nunca foram jornalistas e sempre leram jornais, sentem algum desencanto com isso.
Pois, o jornalismo está realmente em crise, numa situação muito frágil…
Está completamente em crise. Deixou de ser um negócio altamente atraente, como nos anos 90. Eu tive a sorte de fazer parte de projectos muito interessantes, mas enfim, a vida é o que é.
Francisco Camacho com a mulher, Dulce Garcia, também escritora e antiga jornalista.
Sim, e alguns desses projectos, como o Jornal I, do qual foste também cofundador, têm vindo a decair bastante nos últimos anos. É particularmente triste para ti, como alguém que ajudou a lançar o jornal?
Sim, causa-me alguma tristeza. O jornalismo requer investimento, e quando não há esse investimento, é impossível fazer jornalismo bem. As redacções estão depauperadas, não há nenhum investimento em qualidade. E eu percebo que não haja; não estou a dizer que se devia fazer as coisas de outra maneira, eu não sei qual é o segredo. É um facto, e só estou a constatá-lo. O jornalismo era um negócio muito atraente para alguns investidores, e deixou de o ser. Portanto, dá-me a ideia que hoje, as pessoas que têm jornais, ou têm um projecto político, ou têm projectos que eu não consigo classificar quais são; mas têm sempre uma agenda qualquer. E antigamente não, era como teres uma padaria ou uma fábrica de cortiça; se dá dinheiro, dá dinheiro, e dava, sendo um jornalismo livre na mesma, sem necessidade de grandes interferências da administração. Claro que os próprios directores dos jornais tinham um poder que já não têm hoje; podiam bater o pé às administrações, porque os resultados eram bons.
Nós no PÁGINA UM somos muito críticos do jornalismo actual, e é por esse motivo que existimos… Qual dirias ser o principal problema que o jornalismo enfrenta?
Eu acho que a origem dos problemas é falta de dinheiro. Porque assim não conseguem contratar bons profissionais, ou pelo menos, os melhores profissionais. Acho que há muita carolice nos jovens jornalistas, ainda bem que existe; portanto, muita gente que está no jornalismo está por convicção.
Mas a falta de dinheiro também se deve à queda na procura de jornais…
Eu quando, por vezes, sei de jornalistas que estão agora nos 20 e tal ou 30 anos e que recebem o mesmo que uma empregada doméstica, a única coisa que eu posso achar é que eles estão lá por convicção e porque adoram o que fazem. Mas, mais tarde ou mais cedo, quando essas pessoas tiverem filhos e outras responsabilidades, é inevitável que deixem o jornalismo. E quem é que vai sobrar para fazer jornalismo? Isso preocupa-me.
E neste momento, não vês uma saída para esta questão? Uma luz ao fundo do túnel?
Não, não vejo uma saída; porque também me custa um bocadinho estar com um discurso que é utópico, de dizer que devia ser assim ou assado. No fim do dia, tem de haver público que financie, e isso significa haver investidores e publicidade a pagar os jornais. Quando isso acontecer, é evidente que um órgão de comunicação estará mais próspero, fluente e mais poderoso, nesse sentido. Mas quando se tem as notícias de graça, e inúmeras fontes a que recorrer sem ter de se pagar um centavo, acho complicado dar a volta. Claro que tenho as minhas utopias, como toda a gente. Posso dizer “não, eu acredito que as pessoas estão dispostas a pagar por jornalismo de altíssima qualidade”, mas não sei se é exactamente assim.
Ainda continuas com um olhar atento e jornalístico em relação à actualidade? Ou passados estes anos todos, já despiste um pouco essa pele?
Eu acho que no meu livro se percebe que ainda sou um jornalista. Quando digo coisas como a epidemia de droga que houve nos anos 80 e 90 está esquecida, e que as pessoas têm dificuldade em recordar isso. A quantidade de famílias que ficaram altamente marcadas por essa questão, e que já não se ouve falar disso, parece que isso desapareceu. É como se daqui a 20 anos se deixasse de falar da covid, e esse assunto desaparecesse.
Parece que hoje “corre-se” de uns assuntos para os outros, e perde-se, por vezes, a continuidade de alguns temas importantes.
Exactamente. Quando no livro falo, por exemplo, dos imigrantes, não falo na Costa Vicentina, mas qualquer pessoa minimamente atenta percebe que estou a falar na Costa Vicentina. Isso também é jornalismo, de alguma forma; está em mim. Não me vejo a escrever um livro completamente desligado da realidade, e isso tem a ver com o meu lado jornalístico.
E, ainda para mais, cresceste numa família de jornalistas [risos].
[risos] Sim, venho de uma família de jornalistas: o meu irmão, o meu pai, a minha mãe…
Falavam muito de notícias em casa?
Zero. Aliás, houve uma altura em que o meu irmão Pedro era director da Visão, eu era editor executivo da Sábado, e o meu irmão Paulo era pivô da SIC, e nós nunca falávamos de jornalismo em casa. A minha mãe já estava reformada… Mas não, nunca falávamos. Quando vejo uma entrevista do Ricardo Costa a dizer que não fala com o irmão sobre política, acredito que seja mesmo assim, porque eu percebo isso. Tem de haver uns certos limites.
Mas eu imaginaria um ambiente um bocado frenético, numa família de jornalistas [risos].
Quer dizer, nós falávamos de actualidade, tínhamos discussões em casa. Por exemplo, a minha mãe sempre foi muito simpatizante de Israel e da causa judaica. E lembro-me dela ser confrontada por nós sobre o que Israel estava a fazer aos palestinianos, e enfim, nem tínhamos chegado ao extremo de hoje. E havia ali uma certa tensão.
Tinham visões diferentes?
Tínhamos, sim. Portanto, falávamos da actualidade, mas não falávamos do funcionamento dos sítios onde trabalhávamos. Quando o meu irmão Pedro era director na Visão, e eu estava na Sábado, era impensável eu estar a trocar cromos com ele sobre qual seria a história de capa, ou algo do género; ainda por cima numa altura em que as news magazines vendiam imenso… Isso não, nunca aconteceu.
Ser editor, apesar de tudo, é um trabalho mais tranquilo do que ser jornalista?
Não, é diferente. Eu como editor, trabalho 24 horas por dia. Ou seja, tenho sempre a cabeça nos livros que eu quero fazer. 24 horas será exagero, porque também tenho de dormir, e não sonho com isto [risos]. Mas é um trabalho mentalmente mais absorvente. Não tenho é aquela coisa que eu acho que me fartei, que é estar agarrado à agenda não sei quantas horas por dia. E isso é uma coisa que eu não quero voltar a fazer; só se tiver de ser. Na verdade, eu tive uma experiência de um jornal diário, que foi o I, mas eu sempre trabalhei mais em imprensa semanal, ou até mesmo mensal, na Grande Reportagem.
Não tens saudades de ter de estar sempre em cima dos acontecimentos?
Não; tu como jornalista tens de estar sempre em cima dos acontecimentos que te atraem, e dos outros todos. Tens de estar em cima de tudo, e isso é uma coisa que, enfim, não me apetece muito.
Daqui para a frente, podemos contar com livros teus com maior regularidade, ou é impossível de prever? [risos]
Eu quero. Tenho tido um feedback fabuloso deste livro, que não tem muito a ver com o impacto no mercado, mas tem a ver com aquilo que as pessoas me dizem. Mas também tenho a capacidade de perceber que há 10 anos, quando lancei A última canção da noite, não havia redes sociais. Portanto, a comunicação é completamente diferente. Agora recebes tudo “em carne viva”, e pessoas que não conheces de lado nenhum mandam-te mensagens, “whatsapps”, e coisas através do Instagram e do Facebook a dizer que adoraram o livro. Eu tento também filtrar isso, mas é evidente que tem impacto. O meu principal objectivo neste livro parece cumprido. Isto pode parecer um objectivo um bocadinho modesto, mas na verdade, o que eu quis foi que as pessoas se agarrassem ao livro e não o largassem. Quis envolver o leitor. E tenho ouvido muitas opiniões, umas pessoas gostam menos e outras gostam mais, mas todas me dizem mais ou menos o mesmo: “comecei a ler aquilo num dia, e dormi menos para ler o teu livro”…
Esse é o melhor feedback, para ti?
É, porque tem a ver com os meus objectivos. Não tive a pretensão de escrever um livro em que as pessoas começassem a pensar, por exemplo, no seu papel no mundo. Eu quis foi que as pessoas se mantivessem fortemente ligadas ao livro enquanto o estivessem a ler. E isso para mim é muito bom. Até porque eu acho que nós em Portugal temos aqui um problema complicado com o mainstream, com o “meio”; e acho que isso acontece também com a Música, com o Cinema. As coisas são muito radicalizadas e concentradas em dois lados – há uma literatura intelectualizada, um bocado de nicho, e depois há um lado, nessas várias manifestações artísticas, que é carimbada como sendo comercial, ou “light”, o que queiramos chamar. E há problema com o mainstream, com aquilo que os ingleses e os americanos chamam quality fiction, em que um texto tem de ser irrepreensível do ponto de vista formal, mas sem grandes pretensões literárias. Depois, no fim, até pode ser considerado literariamente uma coisa bem feita, mas não existe essa pretensão a priori. E à minha modesta escala, quero contribuir para que isso deixe de ser assim, e que as pessoas se sintam entusiasmadas a ler um livro porque estão agarradas à história e não a um discurso. Eu não pretendi discursar para as massas, mas sim escrever uma boa história, e acho que terei conseguido o meu objectivo.
Sentias que havia uma falta deste género de livros?
Não posso dizer que tenha feito isto de uma forma consciente para colmatar uma falta. O que eu acho é que isso falta em Portugal. Tenho pena que o Francisco José Viegas não escreva mais, ou o Miguel Sousa Tavares. O João Pinto Coelho escreve bastante e gosto imenso dele, o João Tordo também escreve muito bem.
Temos muitos escritores de qualidade…
Temos qualidade, mas estas pessoas que estão aqui neste “meio” que refiro não me parecem muito bem-ditas. Há muito nicho, acho que a literatura em Portugal está muito metida em pequenos enclaves. Ou seja, tens pessoas que escrevem belissimamente e que cada livro revoluciona quase a linguagem, mas eu acho que antes de chegarmos a isso temos de fazer outras coisas. Uma vez, um editor espanhol disse uma coisa interessante, que não sei se é certa ou errada, mas que me fez pensar. Ele disse que em Espanha, tinham escritores que cada vez que escreviam um livro, vendiam imenso, porque estavam a contar histórias às pessoas; e que parecia que nós, escritores portugueses, estávamos no exercício permanente de nos desligarmos das pessoas, e de fazer qualquer coisa que não chega ao cidadão comum. E para mim, uma das grandes funções da literatura – nem queria usar esta palavra porque às vezes parece uma coisa pretensiosa –, é chegar às pessoas. Independentemente de ser um professor universitário ou uma cabeleireira, não interessa, porque todas as pessoas estão abertas a ler uma boa história. E acho que há muita gente em Portugal a escrever para uma elite que ainda por cima é uma que não é exactamente palpável, nem se percebe bem quem é essa elite.
Colocam-se numa espécie de pedestal?
Sim, e é tudo difícil… “Epá, gostei imenso do livro do não sei quantos, mas aquilo custou-me imenso a ler”. Acho bem que essas pessoas continuem a existir, porque, no limite, vão abrindo um certo caminho, mas é como se nós quiséssemos ir directamente da primária para o mestrado sem passar pelo secundário. E eu estou bem no secundário.
Não tens pressa de chegar ao mestrado? [risos]
Não tenho pressa nem quero chegar lá. Acho que é importante contarmos boas histórias, e um bom romance é uma narrativa, é contar uma história, e não um discurso. São coisas diferentes, e há lugar para tudo, eu sei. Uma vez, no Público, há uns anos, classificaram-me como um “narrador”. E eu fiquei todo contente, porque é mesmo isso que eu sou, gosto de contar histórias. Agora, não confundamos; quando dizem que o meu livro é um policial… Quem o ler, vai perceber que é muito mais do que um policial. Hoje, diz-se um “thriller”, mas acho que é muito mais do que isso. A questão da intriga sinuosa é apenas o motor para que as pessoas avancem no livro. Há ali um assassinato no início, mas se formos a ver, é o que menos importa para a história [risos]. É um estratagema para que as pessoas se mantenham agarradas à história. É engraçado, porque não era um livro do qual eu estava absolutamente seguro que resultasse, mas é engraçado ver a reação das pessoas que, de facto, se sentem muito compensadas, e não dão o seu tempo como perdido. E isso é muito bom.
Durante a construção da sede nacional da Polícia Judiciária, um prédio nas imediações começou a colapsar e, em vez de se responsabilizar o empreiteiro, a Câmara Municipal de Lisboa tomou a posse administrativa. Os anos passaram e a autarquia de Carlos Moedas decidiu demolir parcialmente o edifício, com carácter urgente e, portanto, usando um ajuste directo. O erário público desfaz-se de mais de 800 mil euros. A Câmara de Lisboa só inseriu o contrato no Portal Base vários meses depois de a empreitada ter sido concluída, e sem caderno de encargos.
O calvário começou em 2020 e vai custar ao erário público – ou, melhor dizendo, aos cofres da Câmara Municipal – mais de 830 mil euros. Ou em 2012, se quisermos ser mais rigorosos. Nesse ano, a autarquia de Lisboa aprovou um projecto para a construção da sede nacional da Polícia Judiciária, mas as obras orçadas em 87 milhões de euros, executadas pela Opway, infernizaram a vida dos vizinhos.
A empreitada, finalizada em 2014, implicou uma escavação profunda e afectou a estabilidade de um prédio nas imediações, no número 26 da Rua General Garcia Rosado, localizado na freguesia de Arroios. Nunca mais se conseguiu recuperar o prédio, que foi parcialmente demolido por iniciativa da Câmara de Lisboa.
Edifício parcialmente demolido, fotografado na quarta-feira, na Rua General Garcia Rosado, em Lisboa.
Os efeitos fizeram-se sentir logo no início dos trabalhos da sede da Polícia Judiciária, com as queixas dos moradores a sucederem-se. Mas o desastre anunciado só culminou, em pleno, em Fevereiro de 2020, com a Protecção Civil a evacuar o edifício por razões de segurança – o imóvel predial estava em risco de colapso, e os mais de 30 moradores foram forçados a abandonar as suas casas.
Depois de um longo processo, levado até aos tribunais, a Câmara Municipal de Lisboa assumiu, em Julho do ano passado, a posse administrativa do edifício e procedeu à sua demolição parcial – apesar de a sua intenção ter sido, inicialmente, a destruição total.
Na altura, os residentes deslocados afirmaram-se “destroçados” com a decisão. No entanto, o custo dessa decisão, que com IVA, será de 833.053 euros, só esta semana foi divulgado no Portal Base, vários meses depois do fim da empreitada. Erroneamente, a autarquia indicou ainda que a celebração do contrato, com a Metalcário, datava de 13 de Outubro deste ano.
O PÁGINA UM esteve no local na manhã de quarta-feira e verificou que, além das estruturas de contenção já colocadas, há estruturas metálicas sobre o lado esquerdo do edifício. A vereadora com pelouro das Obras Municipais, Filipa Roseta, afirmou, em Abril passado, que a obra já estava concluída, e pelo que se observou às 10h da manhã, é o número 20 da mesma rua que agora está a ser intervencionado.
Questionada pelo PÁGINA UM, a autarquia informou que foi colocada “uma cobertura sobre o imóvel para evitar a sua deterioração”, mas que os proprietários já recuperaram a posse do edifício. O município adiantou ainda que “o custo das obras coercivas é imputado aos proprietários – ainda que esse custo possa ser assumido por entidades como uma seguradora com base em decisões judiciais sobre casos específicos”, explicando que “acautelou o reembolso pelas obras coercivas realizadas, e de forma a evitar que as frações que compõem o edifício sejam alienadas sem haver pagamento do valor, requereu o registo do ónus de inalienabilidade no valor estimado da intervenção realizada, sendo o valor repartido pelas frações autónomas”.
Os moradores, que incluem crianças, idosos e pessoas que, em alguns casos, ainda estão a pagar as casas, tiveram a possibilidade de obter apoio municipal para o seu realojamento, mas, de acordo com a autarquia, só um dos proprietários manifestou essa necessidade, estando essa ajuda ainda a ser prestada.
O contrato foi publicado no dia 13 de Novembro, celebrado entre o Município de Lisboa e a Metalcário, no valor de 677.279 euros, chegando o valor a atingir os 833 mil euros com IVA, e o prazo de execução é de 262 dias, mas não se sabe mais nada, uma vez que o caderno de encargos não foi sequer disponibilizado no Portal Base.
N. D. – Notícia actualizada no dia 17/11/2023 às 13:03 horas, com informações entretanto enviadas pela Câmara Municipal de Lisboa.
Tempos difíceis criam homens fortes; homens fortes criam tempos fáceis; tempos fáceis criam homens fracos; e homens fracos criam tempos difíceis – há quem conceba a existência deste ciclo perpétuo como um aspecto incontornável da vida.
Mesmo sabendo que a realidade é sempre demasiado complexa para se resumir a rótulos ou frases pré-fabricadas, considero que este paradigma é aplicável a muitas situações e momentos históricos. E o que vivemos, os tempos mais recentes, são disso um exemplo.
Se tivesse de situar a fase em que nos encontramos, diria que nos estamos na parte que cruza os “tempos fáceis” com “homens fracos”, adivinhando-se – e desenhando-se já –, por isso, tempos desafiantes. Tempos fáceis construídos pela geração que corresponde aos nossos avós, os “velhos” de agora.
Uma geração que viveu privações, guerras, e pobreza, foi a mesma que nos legou um mundo com substanciais avanços científicos e sociais e melhorias notáveis na qualidade de vida. Os jovens e crianças de hoje têm um mundo de possibilidades e oportunidades que os seus antepassados (não muito longínquos) não tiveram; muitas vezes, à distância de um clique, como se costuma dizer.
Ao mesmo tempo, as camadas mais jovens, que tudo têm e tiveram “de bandeja” – e ainda bem –, parecem evidenciar, paradoxalmente, sinais gritantes de desorientação, insatisfação, falta de sentido e uma expectativa de que tudo lhes é devido, como e quando querem.
Aqui, não se pretende generalizar nem dramatizar, sendo certo que todas as gerações têm as suas especificidades, e vêm sempre com qualidades e “defeitos” conforme a época em que se inserem. Mas este artigo surge como uma reflexão acerca de uma notícia do Expresso, dando conta de uma crescente infantilização dos jovens no ensino superior – notada (e lamentada) pelos docentes –, e acompanhada de uma hiper-protecção por parte dos pais.
Como alguém que nasceu na década de 1990, e que passou pelo ensino universitário em anos recentes, a minha experiência corrobora este artigo. É visível, nas universidades, remessas de alunos que parecem ter apenas um lema: “exigir, exigir, exigir”. A tolerância à frustração é nula, ou quase inexistente. A mais pequena adversidade serve de motivo para um protesto musculado ou para uma reivindicação. Receber um “não” de um professor, mais do que uma vez, é suficiente para enfurecer os alunos e levá-los a desfazerem-se em queixas aos coordenadores.
Os alunos têm uma enorme dificuldade em manter-se concentrados, em tolerar uma aula mais teórica e expositiva. Alguns, choram se obtém nota menos boa, não obstante o seu esforço não ter merecido uma classificação melhor – e isto, mesmo no meio de um clima de facilitismo, onde os docentes tendem a “puxar” as notas para cima. Os professores têm de ceder às exigências dos jovens, corresponder às suas vontades e caprichos. As matérias, têm de lhes ser todas facultadas conforme acharem melhor, a “papinha” tem de estar toda feita.
De facto, o que se denota não é um espírito aguerrido ou contestatário dito “saudável”, de alguém que se rebela contra uma injustiça ou luta por causas ajustadas e pertinentes. Não. Aquilo que vemos é mesmo o que vulgarmente se denomina de “meninos mimados”, que fazem birras desproporcionais e creem não ter quaisquer deveres correspondentes aos seus direitos, que não toleram a mais pequena contrariedade ou obstáculo. É natural – é a geração que se habituou a ter tudo antes de sequer precisar de dizer “ai”.
Este paradigma está nos antípodas do experimentado pelos que hoje são idosos. Foi proporcionado por pais que, felizmente, alcançaram maior estabilidade e prosperidade, e quiseram, como é lógico, dar aos seus filhos tanto quanto possível. Não existem culpas a ser apontadas: houve uma confluência de circunstâncias e de mudanças sociais por trás da juventude actual.
Uma juventude com excelentes qualidades, mas que parte com uma certa desvantagem por ter crescido numa bolha de facilidades, fomentando a ilusão de que o mundo gira em seu redor. São também, amiúde, estes jovens que, por falta de sérias preocupações, se indignam, nas redes sociais, com as “causas da moda” – sejam as alterações climáticas provocadas pelo metano das vacas, o flagelo do misgendering (errar-se nos pronomes de alguém), ou a luta incessante contra o patriarcado, sem se aperceberem que, provavelmente, pertencem à geração mais afortunada a pisar a Terra desde que o Mundo é Mundo.
A este propósito, numa entrevista, uma comentadora canadiana mostrava-se complacente com estes jovens, tão abençoados como atormentados, dizendo que acha mais difícil esta ausência de sentido para a vida do que ter de se enfrentar guerras e fome, como foi o caso dos nossos avós. Se é mais difícil, não sei, mas também estou solidária com todos os jovens “infantilizados”, que cresceram com muito mais facilidades do que dificuldades – um grupo no qual até me incluo, em larga medida.
Mesmo com receio dos tempos potencialmente difíceis ao virar da esquina, e que terão de ser, aliás, enfrentados e resolvidos pelos mais jovens, estou, naturalmente, a torcer por eles; e por todos nós, que somos o futuro.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Nos dias que correm, não faltam homenagens, odes e aplausos a mulheres feministas que, no passado ou no presente, se destacaram pela sua luta em prol dos “direitos das mulheres”. Há filmes e séries sobre as sufragistas e líderes de movimentos femininos retratadas como heroínas.
Para uma boa parte das pessoas é um dado adquirido e inquestionável que o movimento feminista – geralmente dividido em três fases –, corresponde ao “lado certo” da História, e que as mulheres a batalhar pela ‘libertação’ feminina são as boas da fita. Eis o resultado da propaganda: revela-se apenas o lado “conveniente” da história, e varre-se para debaixo do tapete outros factos, outros posicionamentos, que têm também a sua legitimidade. Mas a verdade é que o movimento feminista nem sempre gozou de um apoio unânime entre as mulheres, tendo sido até alvo, em vários momentos, de uma energética oposição.
Actualmente, parece estar a desenhar-se, por parte de algumas mulheres, uma tendência, crescente, de rejeição e questionamento sobre certos pressupostos feministas, mas a cultura mainstream continua a ostracizar por completo ideias “diferentes”, logo ditas “antifeministas”. E a diabolizar as mulheres que as trazem para cima da mesa.
Este fenómeno não é, contudo, recente. No passado, já houve mulheres que torceram o nariz à propaganda feminista que prometia trazer consigo a “derradeira salvação”, convencendo as mulheres (ocidentais) que eram oprimidas, dizendo-lhes que a felicidade passava por se libertarem das amarras da maternidade e do trabalho doméstico – que algumas feministas tinham até a ousadia de comparar ao trabalho escravo!
Essas mulheres viram o outro braço de quem lhe acenava com a cenoura da “libertação”. Viram que essa cenoura, na verdade, era como uma espécie de maçã envenenada que parecia apetecível e luzidia, mas poderia ser letal. Viram, de facto, que o feminismo foi, em grande medida, um “Cavalo de Tróia” para incutir aos poucos hábitos e ideias perversas – como a propaganda LGBT que assistimos hoje, cada vez mais agressiva –, e um instrumento para nivelar homens e mulheres de forma a serem mais fáceis de controlar e de “tributar”, educados para serem como hamsters reféns do trabalho e esvaziados do seu poder e influência no seio da família, já que a educação das crianças ficaria a cargo do Estado.
Em resumo, era a fórmula perfeita para criar uma população facilmente manobrada, fragmentando e destruindo a família. E, já agora, vale a pena deixar a nota: o movimento feminista, sempre vendido como uma pedra no sapato do “patriarcado”, foi na verdade financiado e apoiado também por alguns dos homens mais poderosos do mundo, como os membros da família Rockerfeller.
Uma das mulheres que alcançou maior atenção mediática pelo seu activismo contra o movimento feminista foi Phyllis Schlafly (1924-2016), uma advogada norte-americana conhecida por criar uma enorme onda de contestação à Equal Rights Amendment (ERA) nos anos 1970.
Esta emenda queria, supostamente, tornar inconstitucional a discriminação com base no sexo, mas Schlafly contrapunha que, na verdade, poderia retirar às mulheres privilégios como o direito a serem financeiramente sustentadas pelos maridos e o costume de ficarem com a custódia dos filhos em caso de divórcio, ou de não poderem ser convocadas em caso de guerra.
Phyllis Schlafly (1924-2016)
A activista lançou, na altura, o movimento STOP ERA, com a sigla STOP a significar Stop Taking Away our Privileges [Parem de roubar os nossos privilégios], e conseguiu mesmo impedir que a emenda fosse ratificada. No fundo, Schlafly viu para lá do slogan muito agradável ao ouvido, mas que muitas vezes não passa de uma forma de manipulação dos “direitos iguais entre os sexos”.
Aqui chegados, com várias décadas de feminismo em cima, é fácil, aos mais atentos, ver quais foram os verdadeiros intentos do movimento. Quando hoje vemos mulheres a serem silenciadas porque se insurgem contra a possibilidade de serem reduzidas a “pessoas com útero”, ou porque explicam que as “pessoas que menstruam” são mulheres, é difícil não acreditar que o feminismo foi apenas o “prefácio” da ideologia de género, ao afirmar taxativamente que “não existem diferenças entre os dois sexos”.
Mas existem diferenças entre os sexos, e não são poucas. Homens e mulheres são muito diferentes, e ainda bem. A sociedade deve tirar partido dessas diferenças, que os tornam complementares, em vez de tentar aplaná-las de uma forma perversa, reprimindo a sua natureza. E, claro, reconhecer que ambos têm certas tendências naturais distintas não é o mesmo que dizer que as mulheres vão gostar todas de bonecas e os homens de jogar à bola. Só que o principal motivo pelo qual o movimento feminista é nocivo para as mulheres é mesmo esse: diz-lhes que são iguais aos homens e não tem em conta a sua singularidade.
Podemos apontar vários efeitos colaterais do feminismo – elencar e aprofundar cada um deles daria para escrever um livro –, como a banalização da pílula anticoncepcional, que acarreta uma lista infindável de consequências físicas indesejáveis, e a impossibilidade de as mulheres ficarem em casa a cuidar dos filhos se assim o desejarem, porque hoje, à excepção de umas poucas privilegiadas, a maior parte das mães não pode prescindir de um ordenado.
É, portanto, em defesa das mulheres que se torna imperativo, várias gerações após o início do feminismo, apontar os seus malefícios e as suas falácias. A degeneração parece estar a atingir agora o seu auge, mas foi chegando em pézinhos de lã, sempre travestida de boas intenções, dentro de uma caixinha de eufemismos, mentiras e frases bonitas. Por terem percebido onde iria desembocar a ladainha da “libertação das mulheres”, e terem visto para lá da propaganda, mulheres como Phyllis Schlafly merecem ser relembradas.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Uma das melhores formas de descrever este livro, de forma simples, é dizer que é um “abraço” de 190 páginas. Por outras palavras, é um relato de esperança e humanidade e um testemunho de como os milagres acontecem nos cenários mais catastróficos e apocalípticos; de que quando o mundo parece desabar, há sempre quem se dedique a ajudar e a fazer de um desastre algo mais suportável.
Em Um dia de cada vez, Nelson Olim, que tem no seu currículo várias missões de ajuda humanitária como médico cirurgião, partilha com o leitor algumas dessas histórias – são onze no total –, que certamente não deixarão indiferente quem as lê.
Actualmente, Nelson Olim é Conselheiro Regional de Trauma para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Fez parte do Comité Internacional da Cruz Vermelha em Genebra, e foi Conselheiro Regional da Rede de Equipas Médicas de Emergência da OMS no Médio Oriente e Coordenador de Trauma da OMS para Gaza. Já esteve em missões em várias zonas assoladas por conflito e desastres, como Gaza, Kosovo, Somália, Iémen, Iraque, Sudão e o Afeganistão.
O livro começa por remontar à altura em que o autor trabalhava no INEM e atravessava Lisboa a toda a brida, mas rapidamente somos transportados para outros cenários e países longínquos. Em Um dia de cada vez, ficamos a conhecer a experiência de Nelson Olim em Banda Aceh, na Indonésia, no rescaldo do tsunami de 2004. Uma viagem que optou por fazer, adiando umas férias planeadas com a mulher num destino paradisíaco. Conhecemos, também, a tribo “Murley” que com a qual se cruzou no Sudão do Sol e que fez o seu estômago “contrair”, ou a história sobre o “cerco” a que foi sujeito no Iémen.
É particularmente interessante perceber os contratempos, as peripécias e até alguns sustos – enfim, os “bastidores” – envolvidos nestas missões humanitárias. Ou é o tempo que não está de feição para viajar de avião, ou são aterragens inesperadas, ou é uma mulher que entra em trabalho de parto em pleno aeroporto de Frankfurt, durante o trajecto de regresso a Portugal da sua equipa de médicos em missão, obrigando o autor a fazer, inesperadamente, o papel de cirurgião de serviço (neste caso, o obstetra) numa casa-de-banho. O inusitado e o cómico insistem em “dar o ar da sua graça”, não importa qual seja o contexto ou situação, e na vida de um cirurgião especializado em Medicina de Emergência, a imprevisibilidade é a norma.
Enquanto se descrevem as histórias, vamos imaginando os cenários e sentindo as emoções inerentes a cada situação. Consternação, quando lemos sobre uma mãe que perdeu o bebé de quatro meses por engasgamento, que Nelson Olim e um colega não conseguiram salvar. Uma ansiedade expectante, com as cirurgias delicadas que fez, batalhando contra o tempo, para tentar que a morte não fosse o destino do seu paciente. Comoção, quando o “milagre” acontece pela medicina e uma vida é salva, contra todas as probabilidades.
Embora se fale, por vezes, de situações que tipicamente fazem o coração acelerar e onde nos assola a curiosidade por descobrir o que vem a seguir, este livro revela-se aconchegante; porventura, devido ao amor e ao altruísmo envolvidos nestas histórias, e que passam para o leitor. Amor esse que a historiadora Raquel Varela, que assina o prefácio, sublinha e bem, quando salienta que o ofício escolhido pelo autor só pode dever-se a um prazer em cuidar dos outros – e à ocitocina, hormona do amor – mais do que à necessidade de adrenalina que o autor alega ter.
Não seria favor nem exagero apelidar médicos como Nelson Olim, que efectivamente salvam vidas – muitas vezes em condições, no mínimo, pouco favoráveis, e até arriscando a própria pele – como “super-heróis” da vida real. E se, por isso, o autor teria razões ter um ego inflamado, a verdade é que o oposto se verifica. E é isso que torna esta leitura ainda mais especial: a maneira despretensiosa e humilde como as histórias nos são contadas, sem vestígios de egocentrismo, megalomania ou “síndrome de salvador”.
O autor, aliás, destaca um conselho de um cirurgião israelita, chamado “Dr. Best”, que no início da sua carreira o orientou num estágio no Rambam Medical Center, em Haifa: “O ego de um bom cirurgião deve ser assim pequeno, tão pequeno que caiba no bolso de trás das calças”. E é visível que o médico acatou a “deixa”.
Escrito num tom simples e despojado, o livro deve o seu título ao propósito do médico de lutar contra a morte, que ameaça os seus pacientes, “um dia de cada vez”.
Um dia de cada vez é uma leitura muitíssimo recomendável: uma obra sobre humanidade e a Humanidade, sem lamechismos ou lugares-comuns. Para os mais sensíveis, recomenda-se apenas “passar à frente” alguns parágrafos ocasionais em que o autor entra em maior detalhe sobre algumas das operações que efectuou.