Depois de ver o Chega a apresentar um projecto de lei para revogar o controverso artigo que previa o estabelecimento da Censura por fact-checking, o Partido Socialista correu a propor retirar apenas os cinco pontos mais polémicos. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social defende, entretanto, o expurgo completo do polémico artigo 6º daquela lei. Mas também está contra a possibilidade, proposta pelo partido de André Ventura, de se encontrar um regime de excepção para políticos e jornalistas que lhes permitam transmitir “fake news” sem penalidades.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) defende, num parecer legislativo ontem divulgado, a revogação do controverso artigo 6º da Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital, uma lei aprovada em Abril do ano passado pela Assembleia da República que previa a possibilidade de o Estado orientar a “censura” de conteúdos por si considerados “desinformação”.
Este diploma, em vigor desde Julho de 2021, estabeleceu, entre outras normas, que o “Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos [fact checkers] por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.
Estas entidades teriam a incumbência de classificar a suposta “desinformação”, que a lei definia como “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”
Contudo, se aplicada sem critério, e com intervenção estatal, este normativo significaria a reintrodução da Censura em Portugal.
Em resposta a um pedido da Assembleia da República face a uma proposta de alteração desta lei do partido Chega –, a ERC reitera algumas das posições que já manifestara em 2021, até porque então se passou a prever que o regulador dos media passasse também a receber queixas fora da esfera da comunicação social.
O regulador critica sobretudo o modelo escolhido pela Assembleia da República de, para a constituição de plataformas de verificação de factos, se “apoiar apenas estruturas que sejam extensões de órgãos de comunicação social”, porquanto tal solução seria sempre “redutora e discriminatória”, até porque seria sempre desejável uma postura de “independência e imparcialidade”.
A ERC defende que, a existirem fact checkers com essa função, faria mais sentido “integrar académicos, jornalistas, investigadores independentes, sem quaisquer ligações a órgãos de comunicação social pré-existentes”.
Independentemente dessas considerações, o regulador mostra-se bastante mais favorável à simples revogação de todos os seis pontos do artigo 6º perante todas as “perplexidades e reservas” que foram recebendo desde a entrada em vigor da lei. Tantas que, na verdade, este artigo nunca foi aplicado.
Apesar desta posição, a ERC manifesta-se, por outro lado, contra o projecto de lei do Chega em acrescentar uma excepção num outro artigo, o 5º, para os partidos políticos e os órgãos de comunicação social.
Além de admitir que o actual artigo 5º levanta “sérias dúvidas” quanto à sua constitucionalidade por se prever, em condições especiais (ainda nem sequer definidas), a “interrupção intencional de acesso à Internet (…) ou a limitação da disseminação de informação ou de outros conteúdos” em caso de divulgação de conteúdos falsos, a ERC diz que abrir excepções aos partidos e aos media consagraria “uma solução que parece violadora dos princípios da igualdade e da não discriminação”.
Como argumento, o regulador diz que a solução nunca deveria passar por aceitar que políticos e jornalistas pudessem, sem penalidade, praticar “comportamentos qualificados como desinformação” que estariam “vedados a todas as restantes pessoas ou entidades”.
Recorde-se que esta será a segunda vez que a Carta dos Direitos Humanos na Era Digital está em debate para a exclusão do famigerado artigo 6º. Apesar de aprovado por unanimidade em 8 de Abril do ano passado, ainda nesse mês a Iniciativa Liberal e o CDS quiseram revogar o tal artigo controverso, mas então sem sucesso.
Curiosamente, no mês passado, 10 dias após o projecto de lei do Chega ter dado entrada no Parlamento, 76 deputados socialistas propuseram também uma alteração profunda no artigo 6º. Não chega a ser a revogação total, mas expurga os pontos mais polémicos, mantendo somente o princípio de que “o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.
Como o Partido Socialista está em maioria na Assembleia da República, com a aprovação da sua proposta, mesmo que venha a ser chumbado o projeto do Chega, na prática esvazia-se toda a polémica da Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital.
As posições que tem assumido, nos últimos anos, fizeram de Manuel Pinto Coelho uma das figuras mais polémicas da classe médica em Portugal, por vezes em confronto com a própria Ordem dos Médicos. Entre as práticas mais controversas que defendeu, e que mais causaram celeuma, estão a exposição solar sem protector e a ingestão de água do mar. A pretexto do seu mais recente livro, Seja um super-humano, o PÁGINA UM entrevistou-o na sua clínica, ou “casa”, como lhe chama, onde, fiel à irreverência, explicou as suas teses e não poupou críticas ao método convencional da Medicina e sobretudo à Organização Mundial de Saúde e gestão da pandemia.
Seja um super-humano! é o seu 10º livro, e aponta 50 hábitos que pretende mudar a saúde das pessoas. Marca também os seus 50 anos de prática clínica. Estamos perante um balanço de vida?
Eu sei da responsabilidade que tenho. Quer as pessoas gostem ou não de mim, sabem que 50 anos de prática, seja ela clínica ou não, ensinam muito. O empirismo, a experiência e a prática é sempre o que mais importa em qualquer tipo de matéria. Claro que a teoria é importante, mas nós sabemos que o que é verdade hoje, amanhã já não o é, enquanto que aquilo que a prática nos ensina é sempre verdade. Não “passa de moda”, ao contrário da teoria. Como tal, eu percebo que as pessoas possam ter um interesse acrescido em ver como é que pensa o médico que anda, há meio século, a ver pacientes à sua frente.
Manuel Pinto Coelho fotografado na semana passada na sua clínica em Lisboa.
E o que é que mudou, e o que é que se manteve, na sua forma de pensar, desde que começou a sua carreira?
Estive muitos anos na sombra do conhecimento que tenho agora. O que mudou foi, essencialmente, o facto de eu hoje tentar ir à causa dos problemas e das doenças, em vez de apenas tratar as suas consequências. Durante muito tempo, eu fiz isso, na esteira daquilo que aprendi na faculdade. O nosso programa académico ensinou-nos a ver as coisas de determinada maneira, e eu fi-lo durante anos a fio de uma forma quase acrítica. A certa altura, passei a fazê-lo de maneira diferente. Isso abriu-me muitas portas e trouxe-me muitas alegrias. Não há dinheiro que pague vermos as pessoas felizes e contentes por nossa intersecção. O acto de dar, dá 10-0 ao de receber. E eu comecei a perceber isso. Como tal, hoje sinto, que as respostas que a “casa” [Clínica Dr. Manuel Pinto Coelho] oferece, com esta forma integrada de ajudar as pessoas, tem-me dado alegrias que antes não conseguia obter quando, ao longo dos meses, passava meia-dúzia de receitas.
Como reagiu então quando percebeu que aquilo em que acreditava, afinal não era bem assim…
Não é que aquilo em que acreditava fosse errado. Eu fiz medicina hospitalar, serviço de urgência, durante muitos anos. Comecei ainda antes do 25 de Abril. Fui médico de centro de saúde durante 35 anos e sou reformado da Função Pública desde 2009. Por isso, eu sei qual é a prática clínica tradicional, que a larga maioria dos meus colegas segue. Mas o inesperado problema de saúde do meu filho [que sofria de esclerose lateral amiotrófica, e que acabou por morrer aos 49 anos, em Dezembro passado, 12 anos após ser diagnosticado] ajudou-me a procurar outras formas de ajudar, em primeiro lugar, quem eu tinha em casa. E que ajudou-me também a perceber uma coisa que é inacreditável eu nunca ter reparado: Hipócrates, pai da medicina, ensinou-nos a todos, há quase 2.500 anos, que o alimento é o nosso principal remédio, que temos dentro de nós tudo quanto precisamos. E também que, não conhecendo o alimento, fica mais difícil tratar as doenças. Aliás, todas as nossas doenças começam no intestino. Com o juramento de Hipócrates, pomos o homem nos píncaros. E, depois, não seguimos o seu conselho.
E porque é que acha que isso acontece?
Porque não é o brócolo e a couve que paga os cursos de medicina. O paradigma actual seguido pela classe médica é um comprimido para cada maleita; foi instituído por decreto. Mas, voltando atrás: em 1895, Louis Pasteur, o dono da teoria do germe, morreu. Esta teoria defende que a Medicina deve tentar barrar a entrada do germe no nosso organismo. Bateu-se toda uma vida e, ganhando o braço de ferro, teve vários opositores, nomeadamente Claude Bernard e Antoine Béchamp, que o contradisseram, e defenderam que a Medicina se devia “virar” para o hospedeiro e a homeostase.
O 10º livro de Manuel Pinto Coelho foi publicado no mês passado pela Oficina do Livro, do Grupo Leya.
Refere-se à teoria do terreno, ou terrain theory?
Sim. Eles perderam; e Pasteur ganhou, abrindo as portas à indústria do tratamento. Só que, as pessoas não sabem da existência de um papelinho que ele deixou na mesa de cabeceira, no seu leito de morte, dizendo que se enganara, e que realmente o micróbio não era nada e o terreno era tudo. Portanto, pouco antes de morrer, ele negou uma vida inteira em que tentou provar a teoria do germe. Mas foi essa teoria que ficou, para posteridade. Em 1910, o ensino médico privilegiava realmente o corpo e o terreno, através das chamadas terapêuticas não-convencionais. Depois, com o Flexner Report entendeu-se que essa prática médica não fazia sentido e instituiu, na linha do Pasteur, o modelo que ainda hoje está vigente. E é assim que hoje se ensina Medicina: o médico espera que a pessoa fique doente para a poder ajudar. Não se trata de Saúde nos programas académicos das faculdades da Medicina; trata-se da doença. Não há cadeiras de Nutrição nas Faculdades de Medicina; só agora apareceu a Nova Medical School com uma cadeira de Ciências da Nutrição. Uma pedrada no charco, porque não existia. Quando uma pessoa vai ao médico, não lhe passa pela cabeça sair de lá sem uma receita. Se sair do médico sem uma receita, diz que o médico o enganou, não percebendo que devia era pôr em ordem o seu estilo de vida, de forma a nunca mais lá voltar.
Diria que essa é uma forma de fazer Medicina que beneficia a indústria farmacêutica…
Pois. Quando as potências do dinheiro assumem o controlo da saúde, é um desastre. E é o que está a acontecer agora. Quem gere a saúde, e tomou as rédeas da Organização Mundial da Saúde (OMS) são puros homens de negócios com conflitos de interesses e sem qualquer preparação médica. Nos anos de 1970, as quotizações dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) representavam 80% do budget da OMS. Isso mudou. Em 2016, já 80% do budget provinha de donativos privados. Temos em curso um “golpe de estado” e ninguém abre os olhos; estamos a assistir, impávidos e serenos, à criação de uma organização sem qualquer matriz de saúde, que determina como é que devemos conduzir os nossos problemas ligados à Saúde, seja com a covid-19 ou com o que for.
Os países estão a perder a sua soberania em matéria de Saúde Pública?
Sim. Se a OMS fosse um órgão democrático, democraticamente eleito, tudo bem, mas não. É agora o dinheiro que está a mandar e a assumir o controlo da Saúde. As potências do dinheiro estão a assumir o controlo da Saúde. Veja-se aquilo que se está a passar com a aliança entre o World Economic Forum, da figura inacreditável do Klaus Schwab, e o poder do dinheiro da OMS.
Que saída propõe então?
Sou uma pessoa optimista por natureza, e tenho esperança. Ou não fosse eu do Sporting, e não fosse o verde a cor da esperança [risos]. Mas tenho que dizer que a situação actual é preocupante. Como dizia Robert Malone, a covid-19 é uma questão de poder e de dinheiro. Claramente. Eu sinto isso, no meu dia-a-dia. Mas não irei calar-me. Não me calo. E ninguém me pode instituir um processo disciplinar por isto que eu estou a dizer. Podem gostar ou não gostar, concordar ou discordar, mas, caramba, acho que só na Coreia do Norte é que há pensamento único. Era o que faltava que num país democrático as pessoas não pudessem dizer de sua justiça, desde que o façam de maneira educada e civilizada.
No ano passado, a obra O segredo do sistema imunitário contou com o apoio de Cristiano Ronaldo.
Pelo que foi assistindo nos últimos anos, comportámo-nos como um país plenamente democrático?
Não. Não. Não agimos como um país 100% democrático. Basta ver as linhas editoriais dos principais órgãos de comunicação. Aquilo é democracia? Quantas pessoas é que vimos na comunicação social a dizer que o terreno é mais importante que a semente? Não chamaram cientistas ou investigadores de Saúde para discutirem esta questão. Nem um. Quem aparece são virologistas e epidemiologistas, sempre na perspectiva da semente: é as vacinas, são as máscaras, é o confinamento, é o distanciamento social. No meu livro O segredo do sistema imunitário [lançado em Março de 2021], o Cristiano Ronaldo diz, na chamada de capa, que considera a expressão “vacina natural” uma expressão feliz, e que o livro revela claramente a importância do sistema imunitário. O que ele disse não teve praticamente eco nenhum. O melhor jogador de futebol do Mundo de todos os tempos, melhor marcador, a dizer uma coisa destas e falou-se pouco nisso.
Mas “arranjar” essa “vacina natural” não dá o mesmo lucro que as vacinas que as farmacêuticas vendem…
As pessoas deviam saber que, por exemplo, o arroz tem mais de 50 mil genes, mais genes do que nós temos no nosso corpo, e que podemos modificar a expressão dos genes com os alimentos. Não me parece que haja algo mais interessante do que o facto de podermos modificar os genes com que nascemos, através do alimento, do ar que respiramos, de um sono reparador, da quelação dos metais pesados que temos dentro de nós… A importância gigante do exercício físico, e do intestino. Temos 10 triliões de células, mas temos 100 triliões de micróbios dentro do nosso intestino, que nos pesam dois quilogramas. É a microbiota, que hoje tem a figura de órgão. Porque é que não se fala mais sobre isto? Muita da Medicina está ligada à doença, não está ligada à saúde. Nos meus livros estão as referências bibliográficas, para quem queira consultar; está lá tudo. Se há colegas que não concordam com o que eu digo, muito bem, escrevam, tal como eu escrevo. Dêem referências bibliográficas para suportar as suas teses, como eu dou para suportar as minhas.
Tem-se dito muito às pessoas para confiarem na Ciência, como se fosse uma questão de fé, um dogma. Qual a sua opinião sobre o estado actual da Ciência e seu papel sociedade?
Maria Angell, ex-directora e antiga editora-chefe da New England Journal of Medicine, que é uma das publicações mais importantes no mundo médico, escreveu isto num editorial em 2000: “a distinção entre Governo, indústria, Ciência, e Medicina está enevoada, está confusa. O resultado são doses maciças de desinformação que custam bem caro ao consumidor”. Dizia ela que “na indústria da Ciência, a indústria usa a Ciência para aumentar a procura pelos seus produtos, de modo a realizar mais dinheiro”. É exactamente isto. O actual secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, disse num noticiário da TVI que a evidência científica de hoje é o erro rectificado de amanhã. Disse muito bem. Não se pode acreditar cegamente. O Richard Horton, que foi editor-chefe da Lancet, disse que metade dos trabalhos científicos são falsos. Portanto, Ciência muito bem, mas vamos com calma.
Não se pode perder o espírito crítico?
As pessoas não podem aceitar, de uma maneira quase acrítica, aquilo que ouvem nos jornais e nas televisões, nos noticiários. Não faz sentido. Não se fala em conflitos de interesses, que têm muitas das pessoas que escrevem. O apelo que faço é que as pessoas pensem. O Edgar Morin tinha uma frase fantástica: muitos dos nossos problemas resultam da ausência de pensamento, mais do que problemas económicos, ambientais, sociais ou culturais. Há um défice de pensamento; as pessoas não pensam. É inacreditável o que se está a passar. Este totalitarismo global crescente é preocupante. Eu considero que isto da covid-19 é só uma escaramuça [risos], porque o que verdadeiramente me preocupa é haver meia dúzia homens de negócios a mandarem em nós, e nos destinos de cada país. Isto é grave. O Prémio Nobel da Medicina em 1993, Richard Roberts, denunciou como funcionam as grandes farmacêuticas dentro do sistema capitalista, acusando-as de preferirem os benefícios económicos à saúde e detendo o progresso científico na cura completa das doenças, porque a cura não é tão rentável quanto a doença. Temos que dar mais voz a estas pessoas. A apetência da investigação científica só se faz para as áreas lucrativas; nunca para as áreas que não dão lucro.
Ou seja, quer dizer que os hábitos que, por exemplo, recomenda no seu último livro, não são mais divulgados porque não dá lucro às farmacêuticas…
Ninguém investigou, por exemplo, os benefícios de três hábitos que considero serem os mais importantes de todos os que menciono no livro: a meditação, o exercício e a leitura. Por exemplo, a biblioterapia era uma prática corrente na civilização grega, romana e egípcia. Neste momento, temos dois técnicos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a pesquisar os benefícios incríveis que a leitura tem no tratamento de doenças. Porque é que ninguém fala disso? Porque é que ninguém explora a importância gigante que a meditação tem no tratamento de doenças e a ajudar as pessoas a chegarem novas a velhas? Independentemente do seu grau de cultura, as pessoas não são burras; elas entendem, têm sensibilidade, e percebem que, na realidade, há qualquer coisa que não está bem contada. Não é preciso ser agricultor ou lavrador para se perceber que o solo importa bem mais do que a semente que lá cai. Não interessa saber, por exemplo, porque é que há pessoas que vão abaixo e outras que não vão? E porque é que nas famílias, há um ou dois resistentes que nunca apanham covid-19?
Manuel Pinto Coelho com o norte-americano Robert Malone.
Fala-se nisso como se fosse um mistério…
Não é mistério nenhum. Para as pessoas que não percebem nada disto, é misterioso. Há que dizer porque é que essas pessoas não vão a baixo, e é porque têm um sistema imunitário que as protege de todas as investidas. Se tivermos, dentro das ameias do nosso castelo, um exército suficientemente robusto e forte, esse exército protege-nos de tudo. Não é só a covid-19 que não se apanha, derrota-se qualquer inimigo que lhe bata à porta. Mas isto não é discutido, nem investigado. Uma das formas de termos um sistema imunitário capaz é termos uma alimentação correcta.
Já existem mais médicos, em Portugal, a preconizar a alimentação e o estilo de vida como factores importantes na saúde, ou ainda são poucos?
Caramba, caramba, se existem. A Leonor Rodrigues Lopes, por exemplo, que também é doutorada, professora universitária e neuroradiologista, com quem eu tenho a sorte de trabalhar, filha do grande Ernâni Lopes [antigo ministro das Finanças, falecido em 2010], e outros, variadíssimos médicos que trabalham aqui, e que percebem.
Então este movimento, se assim lhe podemos chamar, está a crescer?
Sim, cada vez mais médicos vêem o problema desta maneira. Não faz sentido fazer o juramento de Hipócrates e depois não ligar nenhuma àquilo que ele ensinava. Cada vez mais colegas meus estão a perceber que uma alimentação pode modificar o seu genoma. Em 2004, nasceu a epigenética, que nos ensina a perceber que é possível modificar a expressão dos genes com que nós nascemos. Uma pessoa, hoje, já não é vítima dos genes que herdou quando o espermatozóide fecundou o óvulo da mãe. Eu falo muito na vitamina D, e dá-me imenso prazer poder dizer que fui a primeira pessoa em Portugal a falar das suas vantagens. Em Novembro de 2015, no meu livro Chegar novo a velho chamei a atenção que o Sol fazia muito mais bem do que mal. E se eu fui atacado na altura! Quando hoje é uma evidência que o Sol faz mais bem que mal, com as cautelas devidas. Com níveis elevados de vitamina D, eu costumo dizer, por paródia, que as pessoas podem andar a beijar na boca os “covidosos” e as “covidosas” todas lá da rua, que mesmo assim, podem apanhar o vírus, mas o vírus não as apanha a elas. Se, juntamente com isto, se fizer a evicção dos alimentos que aumentam a permeabilidade do intestino, e que o inflamam, terão, com certeza, muito menos probabilidade de ficar doentes. Costumo até dizer que, para essas pessoas verem uma bata branca têm que ir à Netflix [risos]. Isto, os homens de negócios não vão dizer. O Lair Ribeiro, que já devia ter ganho o Prémio Nobel há muito tempo, dizia que aos grandes grupos farmacêuticos não lhes interessa duas coisas: curar e matar. Na realidade, interessa-lhes é manter a pessoa em banho-maria, tornar a situação crónica. Recuso-me a aceitar este sistema como normal, porque não é, e não dá saúde a ninguém.
Como tem visto a actuação do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, particularmente em relação aos colegas que, nos dois últimos anos, expressaram uma opinião diferente?
Tenho uma opinião, mas não a vou divulgar porque tenho um processo que deu entrada no Tribunal Administrativo em Outubro de 2017, contra o actual bastonário, contra o Conselho Nacional, e contra o Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Como tal, não me é permitido fazer qualquer tipo de comentário. E, se o meu advogado estivesse aqui, diria: “apoiado“!
Manuel Pinto Coelho nas instalações da Leya a autografar a sua última obra.
[risos] Mas, como é que lidou com as críticas, e com as acusações, de que defende ideias pseudocientíficas ou que carecem de comprovação científica? Afectaram-no de alguma forma?
Não, porque conheço alguns pensamentos de gente válida como, por exemplo, do grande Karl Popper, que disse que o crescimento do conhecimento depende inteiramente do desacordo. Também me lembro que Fernando Pessoa recomendou: “segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas, o resto é sombra de árvores alheias”. Tenho esta cultura, sei o pensamento destas grandes figuras. E tenho a minha prática clínica. Enquanto eu tiver resultados e as pessoas nos procurarem, esses comentários são sombras de árvores alheias; não me interessa perseguir nem perder tempo com eles. Não me interessa nada [risos].
Aprecia ser polémico?
Enquanto eu estiver na plena posse das minhas capacidades intelectuais e físicas, sentir esta garra dentro de mim, e perceber os resultados da nossa conduta nas pessoas, que é para quem eu vivo, ninguém me vai calar. Ninguém. E quando passarem o risco, aí há os tribunais. Os advogados também precisam de ganhar a vida [risos]. A minha folha de serviços da Ordem dos Médicos está imaculada, não tem uma única sanção. Queixas, há muitas, mas depois eu respondo.
Imaginava que, um dia, poderia vir a ser considerado irreverente entre a classe médica?
Tenho seis filhos, sete netos, 50 anos de prática clínica. Estou como aquele ditado hindu: o coração, quando está em paz, vê uma festa em todas as aldeias. Estou cada vez menos belicoso, e menos conflituoso. Se calhar há 20 anos atrás picava-me mais com o que ouvia; hoje em dia já não. Até porque vejo que, cada vez mais, as pessoas percebem que se deve abordar primeiro a saúde, e só depois a doença.
Uma coisa é saber, em teoria, que as actividades humanas causam prejuízos nos ecossistemas aquáticos; outra é quantificar os prejuízos. Além disso, nem tudo o que vem do Homem é mau, ou pode sempre ser mau. Uma recente meta-análise internacional quantificou esses impactes negativos, mas também, paradoxalmente, alguns positivos. O estudo tem um “dedo” de uma instituição portuguesa: a Universidade de Coimbra.
Já se sabia que a descarga de esgotos, a agricultura e a urbanização estavam entre os factores de degradação das funções dos ecossistemas ribeirinhos – como a capacidade de autodepuração, a decomposição de matéria vegetal e o desenvolvimento de organismos aquáticos, muitos dos quais utéis ou relevantes para as actividades humanas.
Mas um recente estudo internacional veio agora relevar quais são os “factores de stress” mais importantes para a degradação dos ecossistemas aquáticos de água doce, e que os estão a tornar “cadeias alimentares simplificadas e menos produtivas”.
Com base numa meta-análise sustentada em 125 artigos científicos, o estudo foi publicado em meados do mês passado na revista cientifica Global Change Biology – e que conta com a participação da investigadora Verónica Ferreira, da Universidade de Coimbra –, tendo hierarquizado, de forma quantitativa, os três principais factores de degradação: efluentes de águas residuais, agricultura e uso do solo urbano.
Para a bióloga Verónica Ferreira, que é investigadora do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), a redução na capacidade de autodepuração dos rios e ribeiros mostra-se “especialmente preocupante”, apontando as “altas concentrações de nutrientes na água [causadas pela poluição orgânica e química, sobretudo por nitratos], que são muitas vezes responsáveis por blooms de algas nocivos”.
Atendendo à importância dos rios e dos ribeiros na biodiversidade mundial, designadamente no fornecimento de água potável, na proteção contra cheias e na irrigação de áreas agrícolas, os autores do estudo alertaram para a necessidade de “medidas urgentes” nos principais “factores de stress”. Apelam também à realização de “mais estudos sobre os efeitos de múltiplos ‘factores de stress’ na multifuncionalidade dos ecossistemas, de modo a compreender-se melhor o peso do impacto humano”.
Apesar dos efeitos nocivos da acção humana no funcionamento dos rios e ribeiros, Verónica Ferreira salienta que “é importante considerar o contexto regional dos rios e ribeiros”, exemplificando com “os efeitos de efluentes de estações de tratamento de águas residuais [ETAR] na produção primária que são mais fortes a latitudes mais baixas do que a latitudes mais elevadas, considerando o intervalo 35ºN – 53ºN.”
A investigadora acrescenta ser “também necessário considerar várias funções ecossistémicas na avaliação do funcionamento de rios e ribeiros, já que um dado impacte humano pode ter efeitos em algumas funções, mas não em outras”.
Com efeito, o estudo identificou, em simultâneo, alguns efeitos positivos das actividades humanas. A decomposição de matéria vegetal é um exemplo: embora inibida pela descarga de águas residuais, esta funcionalidade foi, por outro lado, estimulada em 57% pelas elevadas concentrações de nutrientes na água, um efeito supostamente negativo da acção humana.
A revista Global Change Biology tem como editor-chefe e fundador o fisiologista Stephen P. Long, que desde 2012 lidera o projecto Realizing Increased Photosynthetic Efficiency (R.I.P.E), um projecto de investigação financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates que tem como objectivo maximizar a produção alimentar mundial, potencializando a fotossíntese das plantas através da sua modificação genética.
NANA EKVTIMISHVILI (tradução: Maria do Carmo Figueira)
Editora (Edição)
Dom Quixote (Março de 2022)
Cotação
16/20
Recensão
A premiada realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili fez o seu debut como escritora em 2015 com Onde as pêras caem, e foi uma aposta ganha: publicado em inglês no ano passado, o seu (ainda) único romance foi nomeado para o International Booker Prize.
Dos seus filmes, destacam-se In Bloom, selecionado para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição dos Óscares de 2014, e My Happy Family, exibido no Sundance Film Festival de 2017.
Onde as pêras caem é uma homenagem aos pequenos super-heróis da vida real, aqueles dos quais ninguém fala, que lutam diariamente pela sobrevivência em circunstâncias adversas. Por outras palavras, é a história de órfãos e crianças com deficiências mentais que são abandonados à sua sorte pelas respectivas famílias num colégio interno conhecido como a “Escola dos Idiotas”. O pano de fundo é o início da década de 1990, após a dissolução da União Soviética, na rua de Kerch, em Tiblissi, capital da Geórgia.
Nesta obra ficcional, a heroína é Lela, apresentada com traços heróicos: destemida, aguerrida e com uma personalidade vincada. O seu espírito rebelde e independente é, no entanto, contrabalançado por um lado bondoso e altruísta que, devido à sua “capa” protectora, não é logo perceptível a um mero estranho.
Os vilões da história são adultos: os pais que viraram as costas aos filhos, e lhes alimentam falsas esperanças de um dia os irem buscar, ou os “educadores”, como Vano, professor de História do colégio, e às mãos de quem as meninas sofrem abusos sexuais constantes. Já com dezoito anos, Lela vai, ao longo dos dias, congeminando o assassinato de Vano, que a violou repetidas vezes durante a sua infância.
Para além de motivada pelo desejo de vingança, Lela faz o papel de irmã mais velha e assume a missão de proteger o seu amigo Irakli, acalentando o sonho de o ver partir para uma nova vida fora das paredes do orfanato. Ika, como os colegas lhe chamam, é um menino que espera, há anos, que a mãe o venha buscar num “próximo fim de semana” que nunca chega.
A chance de deixar aquela instituição putrefacta, e de sentir pela primeira vez o calor de um lar e o aconchego de uma família parece estar ao alcance de Irakli quando um casal americano envia uma representante à Escola para adoptar um dos residentes. Porém, quando finalmente surge a oportunidade de Irakli começar do zero, dá-se uma reviravolta.
Escrito sem sentimentalismos, Onde as pêras caem é um retrato fiel e verossímil de um mundo à margem, mas que todos sabemos que existe. Nomeia, dá voz e corpo a estes anónimos que, tal como tantos outros, podemos não conhecer mas que andam por aí, num qualquer “edíficio-escola” nas periferias das cidades; e de quem ouvimos falar, de vez em quando, na televisão ou nos jornais. Talvez por isso, as personagens nos pareçam estranhamente familiares e as descrições tristemente reais.
Todos nós, de resto, já nos teremos cruzado com vítimas de abusos e de abandono que, porventura, engrossam os relatórios de instituições de solidariedade social. Ou com as que, omissas dessas listas, vivem as suas vidas como as personagens deste romance: relegadas ao esquecimento depois de serem “saqueadas” pelos seus carrascos, a não ser que alguém como Ekvtimishvili se lembre de escrever sobre eles.
Onde as pêras caem é, enfim, sobre crianças especiais com vidas marcantes que, aqui, neste romance, como na vida real, vale a pena conhecer para evitar que ainda existam em próximas gerações.
A pandemia da covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia foram dois autênticos “terramotos” na vida do Velho Continente, com a União Europeia a assumir um protagonismo nunca anteriormente visto sobre os países-membros e os seus cidadãos. Conseguirá a democracia sobreviver neste processo?
Num debate organizado pela Cidadania XXI, na passada terça-feira, o advogado José Luís da Cruz Vilaça e a jurista Maria Vieira da Silva discutiram (e discordaram) sobre a actuação da União Europeia (UE) na salvaguarda das liberdades e garantias dos cidadãos. As decisões tomadas durante a pandemia, como a criação do certificado digital, estiveram “sob escrutínio”.
Especializada em Direito da UE, Maria Vieira da Silva lançou duras críticas à Comissão Europeia e ao Conselho Europeu, e a algumas das suas últimas directivas, comparando mesmo muitas das decisões das instituições comunitárias com as do Partido Comunista Chinês. “Não reconheço a actual UE e é doloroso dizê-lo”, afirmou a jurista, acrescentando que “quando falamos em democracia falamos em separação de poderes, e na UE já não existe essa separação”.
Debate colocou em confronto as opiniões de José Luís da Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva, em debate moderado por Carlos Gomes.
Considerando ainda que no seio da UE apenas já se usa a “liberdade como um slogan”, e que se vende os “direitos fundamentais como meras mercadorias a empresas privadas” – citando o exemplo do Facebook –, Maria Vieira da Silva questionou “onde fica a liberdade de expressão” aludindo, como exemplo, à Lei dos Serviços Digitais.
Recorde-se que esta legislação delega aos proprietários das redes sociais a capacidade de determinar os conteúdos que podem ou não ser publicados. Ou seja, é uma “autoridade extra-judicial, que tem a tarefa de estabelecer o que é falso ou verdadeiro, legal ou ilegal”, destacou Maria Vieira da Silva.
Posição distinta neste debate teve José Luís da Cruz Vilaça, advogado e antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE, que disse não ter “uma visão apocalíptica do estado de direito“ na principal instituição do Velho Continente. “Não existe um problema sistémico de proteção dos direitos”, defendeu, tendo destacado a importância do Tribunal de Justiça da UE na definição jurisprudencial dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus.
No que diz respeito à polémica regulamentação do espaço digital, José Luís da Cruz Vilaça disse que “o problema tem sido o de conciliar os vários direitos fundamentais”, podendo, neste processo, “haver direitos que entrem em confronto“, como a liberdade de expressão e a segurança dos utilizadores. O advogado ressaltou ainda que se “devem aplicar aos meios digitais os mesmos princípios que se aplicam fora desses meios“.
Neste debate houve, também, espaço para questionar a integridade da UE, aspecto em que Maria Vieira da Silva acusou a instituição de se deixar corromper pela influência do lobbying: “existem cerca de 30 mil lobistas activos em Bruxelas que exercem mais influência sobre as instituições comunitárias do que todos os eurodeputados”. Para esta jurista, a “UE foi concebida segundo os direitos democráticos, mas foi privada da capacidade de lhes dar resposta”.
As decisões da UE em reacção à invasão da Ucrânia pela Rússia também estiveram em discussão, merecendo, de igual modo, a reprovação de Maria Vieira da Silva. “Achei escandaloso o facto de a Comissão Europeia suspender os canais russos, só porque Van der Leyen achou que manipulam a verdade dos factos”, considerou.
Defendendo a liberdade de expressão como necessária às sociedades democráticas e o artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais, a jurista manifestou ainda preocupação com “o risco de deitarmos fora os valores ocidentais”.
Por sua vez, José Luís da Cruz Vilaça optou por fazer a apologia de que ”somos todos mais fortes com a UE”, defendendo que essa “cidadania [comunitária] acrescenta muitos mais direitos do que deveres às cidadanias nacionais”. O antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE admitiu, porém, que “a guerra veio alterar um pouco” o panorama jurídico europeu.
Num ponto houve consenso. Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva posicionaram-se contra o silenciamento mediático daqueles que, por criticarem a gestão da pandemia, foram rotulados com o epíteto de “negacionistas”. Nesse aspecto, o advogado considerou “lamentável que nem todas as pessoas possam exprimir-se da mesma forma”.
Aproveitando o lançamento em Portugal do romance Onde as pêras caem, pela Dom Quixote, o PÁGINA UM conversou com a premiada argumentista e realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili. A realidade da Geórgia, após o desmembramento da União Soviética, marca a literatura deste país onde, tal como na Ucrânia, continuam a confluir conflitos de difícil resolução e elevada imprevisibilidade.
Onde as pêras caem conta a história de órfãos e crianças com necessidades especiais que vivem numa residência em Tbilisi. Sei que cresceu perto de uma dessas instituições. Inspirou-se naquelas crianças para criar personagens como a protagonista Lela?
Sim. Enquanto eu escrevia, imaginava visualmente algumas personagens, tinha-as em frente aos meus olhos, e depois mudei ou inventei alguns nomes. A Lela, por exemplo, é uma espécie de “híbrido”, inspirada em várias crianças que conheci e, talvez, também em algumas partes de mim, como o meu lado rebelde ou anárquico. É uma mistura… Mas não consigo fazer uma divisão entre o que foi baseado na realidade e o que imaginei, porque na escrita há sempre uma conjugação das duas coisas.
Lela então é um pouco de si…
O romance foi escrito sobretudo na perspectiva de Lela, por isso, apesar de [eu] estar presente como autora, acho que não há espaço para mim, apenas para estas crianças. Eu queria, acima de tudo, manter-me fiel à personagem de Lela.
Sabendo da sua experiência de argumentista e realizadora de cinema, quando eu estava a ler este seu romance consegui facilmente imaginar esta história a desenrolar-se num ecrã. Gostaria de ver este romance a ser adaptado a filme?
Eu nunca tornaria este romance num filme. Se alguém quisesse fazê-lo, eu não recusaria, mas não sinto necessidade de vê-lo num ecrã. O trabalho e o esforço que investi no livro, e a forma como me expressei nele, não foi com esse objectivo em mente. Por isso, não preciso de o ver no cinema.
Este romance aborda a maldade humana, retratando os abusos de crianças vulneráveis às mãos daqueles que as deveriam proteger. Como escritora, é fácil para si distanciar-se e compreender as personagens mais cruéis? Ou, como todos nós, também as julga?
Eu tento apenas descrever as situações, e abster-me do papel de julgar. No entanto, mesmo que não queira julgar, há um lado na História que o torna difícil. Eu queria mostrar este “mundo” sem tomar um partido, e sem a dicotomia do que é bom e do que é mau. Tentei apenas dar espaço a estas crianças e deixá-las serem como são. Acho que a única parte em que fui incapaz de não julgar é a da violência sexual e do assédio contra a Lela, porque é um crime hediondo contra uma jovem. Quando se trata de abusos em relação a crianças pequenas, só o podemos ver como algo mau, não existe meio-termo. E, nesse caso, é muito difícil compreender ou ter compaixão por quem faz algo assim.
Este foi o seu romance de estreia, e tem algumas similitudes com o seu filme In bloom (2013): ambos retratam a juventude de raparigas no início dos anos 90, na Geórgia, após o desmembramento da União Soviética. Este tema é, obviamente, muito próximo, certo? Cresceu nesse ambiente…
Algumas pessoas na Geórgia queixam-se de os artistas locais, escritores ou realizadores georgianos, como eu, abordarem frequentemente os anos 90 nas suas obras, e cingirem-se muito a este período temporal. O meu próximo livro também vai ser sobre uma família nos anos 90, e é um bocado por razões autobiográficas. Eu nasci em 1978, e foi na parte final do século XX que comecei a desenvolver-me como mulher e a decidir a minha vida. Portanto, essa foi um período extremamente importante a nível pessoal, e eu tenho muita coisa para contar sobre esta época. Além disso, “transportar-me” para essa época ajuda bastante a colocar-me na pele de uma criança e a contar a sua história, porque me lembro bem da minha infância e da minha perspectiva do mundo nessa altura.
Sei que está a escrever um novo romance, mas sobre a sua outra paixão – haverá também um novo filme de Nana Ekvtimishvili no horizonte?
Neste momento, para além do livro, estou a trabalhar em vários guiões, alguns em alemão e outros em georgiano. Quando os meus dois filhos estiverem mais crescidos, terei então mais disponibilidade para me dedicar inteiramente ao trabalho, e para terminar os meus projectos. No caso dos filmes, é preciso mais tempo e também financiamento.
Vive agora em Berlim, mas o seu país tem vivido nos últimos anos em sucessivos conflitos entre a “herança soviética” e o Bloco Ocidental. Enquanto as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abcásia parecem querer recuperar o Bloco Soviético, o resto da Geórgia assume a intenção de se juntar à União Europeia e à NATO. Como é que se posiciona no meio deste braço-de-ferro?
Para mim, não há qualquer dúvida de que a Geórgia pertence à Europa e ao mundo civilizado, moderno, liberal e democrático. E não é assim apenas porque eu quero que seja, mas porque, de facto, a História, o estilo de vida e a cultura dos georgianos são muito parecidos com os dos europeus dos outros países. Até mesmo a literatura é muito impregnada por valores liberais. A Rússia tenta incutir ao povo georgiano a ideia de que há pessoas, no meu país, que não se querem aproximar do bloco ocidental e que preferem fazer parte da Federação Russa. Na Geórgia, nós temos, por exemplo, canais de televisão que fazem propaganda pró-Putin, e apenas repetem o que ele diz. Mas, na verdade, o estado da Geórgia moderno identifica-se muito com a Europa.
Nana Ekvtimishvili e Maria Afonso Peixoto, jornalista do PÁGINA UM, na passada quinta-feira na Livraria Bucholz, em Lisboa.
Tenciona regressar um dia à Geórgia, para aí viver?
Sim. Na verdade, a minha ideia nunca foi deixar a Geórgia de forma definitiva. Eu mudei-me para a Alemanha para estudar, e conheci lá o meu marido, que é alemão, e com quem tenho filhos. Mesmo depois de terminar os meus estudos, ainda voltei à Geórgia com o meu companheiro e vivemos lá durante dez anos. Tenciono lá voltar, gostava de dar aos meus filhos a oportunidade de estudarem numa escola georgiana. A não ser que o país perca a independência e seja ocupado pelos russos. Nesse caso, que, infelizmente, considero ser uma possibilidade, não fará sentido regressar. Teremos que esperar e ver o que acontece agora com a Ucrânia.
Mudando de tema, e para terminar a conversa num tom mais leve. Falemos sobre descontração [risos]. O cinema e a leitura são formas que as pessoas têm de se distraírem, mas para si também são um trabalho. Consegue relaxar a ler e a assistir a um filme, sem estar a fazê-lo como escritora e realizadora?
Eu sou uma leitora voraz e uma cinéfila. Adoro literatura e cinema. Não quero ser o tipo de pessoa, de cineasta, que se senta a ver um filme, e depois o vê a pensar em como o teria feito enquanto realizadora; ou de uma romancista que pega num livro de outro e se questiona sobre como é que o teria escrito. Aí, quando vejo um filme ou leio um livro, é a minha vez de relaxar e apenas assistir, ou de ler, é o meu momento de lazer, e gosto de aproveitar para desfrutar.
Aos 43 anos, já tem uma carreira consolidada. O seu filme In bloom foi escolhido para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição de 2023 dos Óscares, e entretanto Onde as pêras caem foi nomeado para o International Booker Prize no ano passado. Profissionalmente, há alguma coisa que ambicione muito conquistar?
Eu não me movo por “conquistas”, apenas por executar e concluir os trabalhos que empreendo. Não tenho grandes desejos ou ambições. A vida é demasiado curta, e tenho receio de definir metas demasiado altas. Sempre fui assim. Nunca fui uma pessoa muito ambiciosa. Há, contudo, uma parte de mim que é obstinada quando começa um projecto, e que não descansa enquanto não o termina. Quando tenho uma ideia para um trabalho, agarro-a e empenho-me. Sou muito dedicada naquilo que faço; seja um livro ou um filme. Assim continuarei: a seguir o que sinto e à minha voz. Veremos aonde me leva.
Espermagedão: a fertilidade masculina em queda livre
Autor
NIELS CHRISTIAN GEELMUYDEN (tradução: Maria de Fátima Carmo)
Editora (Editora)
Casa das Letras (Abril de 2022)
Cotação
17/20
Recensão
Espermagedão – um termo inusitado, mas que nos traz à mente o Armagedão, a derradeira batalha bíblica entre as forças do Bem e do Mal.
Não é mero acaso: o objectivo do título é precisamente causar impacto, pois o livro constitui um alerta sobre o qual o subtítulo logo nos elucida: “a fertilidade masculina em queda livre”. Batalha final ou não, o que o autor nos diz é, inegavelmente, estarmos na iminência de uma hecatombe: a qualidade do esperma no mundo ocidental caiu 60% em menos de 40 anos. Associada a este problema está, também, uma dramática redução nos níveis de testosterona.
Niels Christian Geelmuyden, um conhecido ensaísta norueguês, tem sido também um dos poucos jornalistas a fazer soar os alarmes sobre esta crise que assombra o sexo masculino. Neste livro, Geelmuyden faz eco de estudos científicos e de opiniões de especialistas em reprodução e fertilidade.
Aos que pensam que não precisam de se preocupar porque não planeiam ter filhos, o autor faz uma advertência: a incapacidade de gerar bebés não é a única consequência negativa que advém de uma fraca reserva de espermatozoides, ou de gametas masculinos “pouco nadadores”. Geelmuyden indica outros efeitos perniciosos, como seja uma maior susceptibilidade a doenças como o cancro, nomeadamente dos testículos.
E, como se tudo isto não fosse suficientemente apocalíptico, o norueguês alerta que similares problemas já se encontram no mundo selvagem, com diversas “bizarrices”: peixes-machos a pôr ovos, répteis com pénis mais curtos e incremento da homossexualidade e a bissexualidade no reino animal.
Quanto a possíveis causas que expliquem este boom de infertilidade, existem muitas. Dir-se-ia até, demasiadas, como expõe Geelmuyden. No livro ocupam quatro vezes mais páginas do que as que nos oferecem soluções, o que pode não ser muito tranquilizar para os leitores.
Aparentemente, os “gatilhos” que tornam os homens inférteis (e também as mulheres) estão por todo o lado: poluentes, pesticidas, água da torneira, sedentarismo, organismos geneticamente modificados, flúor, soja, etc., etc., etc.
Espermagedão faz-nos, assim, dar conta de que, no mundo actual, estamos mergulhados num ambiente pouco amigável, ou mesmo hostil, à homeostase e à fecundidade dos nossos corpos.
Na quarta parte, em que se pretende responder à pergunta sobre o que podemos fazer, encontramos conselhos variados. Alguns, lembram-nos a sabedoria ancestral das nossas avós, como “comer fruta e legumes” e “dormir o suficiente”; outros, espelham os hábitos do típico millenial do século XXI, como, por exemplo, a recomendação de “não guardar o telemóvel no bolso”; e, finalmente, temos aqueles que não nos deixam esquecer que estamos na era da tecnologia, como a congelação de amostras de esperma e a procriação medicamente assistida.
Já bem no final do livro, “entramos” numa espécie de filme louco de ficção científica com soluções mais radicais. Por exemplo, fica-se a saber que, já em 2016, investigadores espanhóis anunciaram ter produzido esperma humano a partir de células da pele. Em simultâneo, o livro fala-nos de cientistas e especialistas em bioética, como Henry T. Greely, que anunciam que “daqui a vinte ou quarenta anos, o sexo para fins de reprodução terá quase deixado de existir”.
Geelmuyden levanta, por isso, uma série de questões pertinentes também do ponto de vista ético: “Onde nos conduzirá tudo isto, no longo prazo? O que nos espera? Será um admirável mundo novo ou uma barbárie tecnológica de contornos estranhos? Poderemos adivinhar os desígnios do despotismo dos manipuladores biológicos vestidos de branco? O poderio mundial será transferido para os laboratórios?”
Um dos principais méritos de Espermagedão, e que torna urgente a sua leitura, reside na necessidade de percebermos que um problema é real para que o possamos resolver. Em suma, só podemos derrotar o “papão” da infertilidade se soubermos que ele anda por aí à solta. Se, alheios à sua existência, o ignorarmos, a Humanidade, como a conhecemos, corre um sério risco de desaparecer.
Mais de um terço da actual população portuguesa ainda não era nascida quando a primeira mulher, assumiu a chefia de um Governo democrático. Foi apenas por 100 dias, num Executivo de iniciativa presidencial, mas constitui ainda hoje um marco indelével na História de Portugal, talvez a merecer sucessoras. O Museu da Presidência da República mostra, até finais de Agosto, “retratos” da vida singular de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa exposição evocativa que deve ser visitada não apenas por quem a quiser ver, mas sobretudo para todos aqueles que a devem ver: todos os portugueses.
“Não foi Presidente da República, mas é quase como se tivesse sido”. Exageros à parte, embora pudesse mesmo ter sido, foi com estas as palavras, em “testemunho suspeito”, como confessou, que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou na sexta-feira passada uma exposição no Museu da Presidência da República dedicada à única mulher portuguesa que ocupou a função de primeira-ministra: Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004).
Foi no dia 1 de Agosto de 1979 que Maria de Lourdes Pintasilgo fez História ao tomar posse como a primeira mulher a ocupar o máximo cargo governativo, mas essa foi, na verdade, uma marca indelével da sua vida. “Em que é que não foi a primeira?”, indagou Maria Antónia Pinto Matos, directora do Museu da Presidência, no discurso de inauguração.
De facto, mesmo tendo sido primeira-ministra num Governo de iniciativa presidencial durante cerca de uma centena de dias – ou seja, Ramalho Eanes, então presidente da República, nomeou-a por sua iniciativa, após a demissão de Mário Soares, até às eleições legislativas de 2 de Dezembro de 1979, que viriam a ser ganhas por Sá Carneiro –, Maria de Lourdes Pintasilgo esteve sempre um passo à frente do seu tempo.
Embora liderando um Governo de gestão, durante o seu mandato ainda se criou o Número de Contribuinte Fiscal, se reforçou a criação de diversas Instituições de Solidariedade Social, se implementou o Serviço Nacional de Saúde e ainda se estabeleceu a escolaridade obrigatória.
Licenciada em Engenharia Químico-Industrial aos 23 anos, pelo Instituto Superior Técnico – num tempo em que mulheres eram uma raridade em curso de Engenharia –, trabalhou como investigadora na Junta de Energia Nuclear e, mais tarde na CUF.
Mas foi como “católica progressista”, com a sua “intervenção social em causas sociais, ambientais e das mulheres, [que] continuam actuais”, conforme salientou a directora do Museu da Presidência, que Maria de Lourdes Pintasilgo mais se destacou.
Durante o Estado Novo, ainda recusou ser deputada na Assembleia Nacional – de partido único –, mas aceitou ser procuradora da Câmara Corporativa, uma espécie de órgão consultivo, mas sem pendor político.
Com boas relações pessoais com Marcelo Caetano – antes da queda do regime com o 25 de Abril – nos primeiros anos da década de 70 ainda foi consultora na Secretaria de Estado do Trabalho e Previdência e presidiu ao Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social.
Chegou a integrar a delegação portuguesa à Assembleia Geral das Nações Unidas, proferindo, entre 1971 e 1972, diversas intervenções, entre as quais sobre o direito dos povos à auto-determinação, a condição feminina e a liberdade religiosa.
Com a democracia, surgiu a sua experiência governamental. Antes das primeiras eleições legislativas da III República, esteve nos diversos Governos Provisórios. No primeiro assumiu o cargo de secretária de Estado da Segurança Social. No segundo e terceiro foi ministra dos Assuntos Sociais.
Em 1975, já com Portugal a ser governado por um Governo Constitucional, Maria de Lourdes Pintasilgo foi membro do Conselho de Imprensa, e também passou a ocupar a presidência da Comissão da Condição Feminina.
Mas outros voos se seguiram. Em Agosto de 1975 foi nomeada embaixadora junto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), onde permaneceu até ser chamada por Ramalho Eanes para chefiar o executivo em 1979. Foi, aliás, também a primeira portuguesa a ocupar essas funções.
Ainda na década de 80 tentou mesmo chegar à Presidência da República, concorrendo às eleições de 1986, as mais concorridas de sempre e ganhas apenas à segunda volta por Mário Soares. Sem máquinas partidárias de apoio, recolheu na primeira volta apenas 7,36% dos votos, ficando atrás de Mário Soares, Freitas do Amaral e Salgado Zenha.
Embora tenha apoiado a criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma força partidária apadrinhada por Ramalho Eanes – que chegou a 45 deputados nas eleições de 1985 –, aproximar-se-ia posteriormente ao Partido Socialista, chegando a ser eleita eurodeputada independente nas eleições para o Parlamento Europeu em 1987 e 1989.
E é para todos estes e muitos outros tempos da antiga primeira-ministra que a exposição “Maria de Lourdes Pintasilgo – Mulher de um Tempo Novo” transporta os visitantes. Nos expositores, há um pouco de tudo: artefactos, objectos, livros, fotografias e documentos, que se unem para (re)contar a sua história.
Dividida em dois pólos, no primeiro estão também incluídas as “memórias” das eleições presidenciais que viria a disputar em 1986. Aí estão expostos, por exemplo, além de material da campanha, parte dos seus apontamentos, escritos à mão.
O segundo pólo, por outro lado, é mais pessoal e intimista. Ali vislumbra-se a sua infância nos brinquedos com que cresceu, nas fotografias de família, na sua colecção de Santas Anas. Descobre-se aí a mulher, a militante feminista, a cristã que trouxe o Graal – um movimento internacional de mulheres cristãs que começou na Alemanha – para Portugal, e a sua obra.
Nesta exposição, as várias dimensões de Maria de Lourdes Pintasilgo não cabem em rótulos simplistas. Pelo contrário, desafiam-nos, o que é evidente, desde logo, na aparente contradição entre a sua vincada fé católica e o feminismo que defendia, ou a sua tendência política à esquerda.
Mas há muitos aspectos que a exposição não mostra, mas que apenas se pode intuir, ou saber, por aquilo que contam os que a conheceram. Durante a cerimónia de abertura, Marcelo Rebelo de Sousa frisou a ausência de “tiques populistas” em Maria de Lourdes Pintasilgo, acrescentando que “não era plástica”.
Admitindo ter “saudades das conversas intermináveis” que mantiveram, o presidente da República defendeu ser “um grande dever cívico recordar Maria de Lourdes Pintasilgo”, que “vivia a vida com uma intensidade ilimitada”.
Para conhecer a vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo, o PÁGINA UM recomenda o documentário de Graça Castanheira, que pode ser visualizado na RTP Arquivos.
Fotos: Pedro Matias / Museu da Presidência
Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo
EXPOSIÇÃO | 14 mai. – 31 ago. ’22 | Viveiros do Jardim da Cascata do Palácio de Belém | Exposição permanente do Museu da Presidência da República | Horário: 10h-13h | 14h-17h, todos os dias, com exceção de segunda-feira e da manhã do terceiro domingo de cada mês | Entrada livre
Em Espermagedão, remetendo para o apocalíptico Armagedão, o jornalista e escritor norueguês Niels Christian Geelmuyden releva uma “epidemia silenciosa” que ameaça a espécie humana: a infertilidade masculina. Pouco falada na comunicação social, por um certo pudor masculino, esta condição não aflige apenas os homens – o mesmo fenómeno está a ser detectado em machos de espécies de peixes, insectos, répteis e mamíferos. Em conversa com o PÁGINA UM, por video-conferência, Geelmuyden aponta causas e soluções, antes que seja demasiado tarde.
O tema da infertilidade masculina não é muito falado nos media. Qual foi a sua motivação, como jornalista, para pesquisar este tema?
Este foi o meu 38º livro, e esta temática já a tinha abordado superficialmente em três deles. Já escrevi sobre alimentação, sobre o que beber, e por isso decidi terminar esta série abordando a infertilidade porque é, de facto, um problema grave. Há casais jovens que hoje não estão a conseguir engravidar. E é verdade: os media mainstream nãoabordam este problema com frequência. Acredito que seja por causa da velha ideia de que se um casal não consegue engravidar, a culpa é da mulher. Quase todas as pessoas ainda acreditam nisso, embora em dois terços dos casos se deva ao homem. Claro que as mulheres também sofrem de infertilidade: a endometriose, por exemplo. Mas o principal problema parece ser que a abundância de espermatozoides está em queda. Não só nos humanos, mas também em peixes, pássaros e insectos.
Na Noruega, fala-se mais sobre este assunto?
Não, mesmo aqui é muito difícil chamar a atenção das pessoas para esta questão. Mesmo depois do meu livro, até os meus amigos receiam mais que o problema esteja no excesso populacional, que a população mundial vá “explodir”, e que vamos ser muitos milhares de milhões. Mas não vai ser assim. Será o oposto. Eu não acho que os seres humanos vão desaparecer; acredito que haja uma solução. Mas, até lá, o sistema de segurança social que conhecemos vai acabar, não vai haver dinheiro quando chegarmos a uma situação em que 60% das pessoas tenham mais de 60 anos.
Niels Christian Geelmuyden
Geralmente, quando se falam de ameaças próximas para a Humanidade destaca-se a sobrepopulação e também cada vez mais as alterações climáticas. Mas nunca se refere a infertilidade…
Sim. Eu acredito daqui a uns anos, as pessoas se interessem. Já existem países onde a fertilidade é tão reduzida que existe mesmo o risco de populações desaparecerem, se continuarmos assim.
Na Europa, a taxa média de fertilidade é de 1,61 filhos por cada mulher. Já estamos abaixo do nível de reposição demográfica
E deveria ser de 2,2. Na Coreia do Sul já só é de 0,80. Na China, o banco de esperma de Shangai tem de rejeitar 90% das doações porque não é fértil. Mas eu falo disso às pessoas, e elas até dizem: “boa!, que boas notícias, vamos ser menos, vai haver mais espaço na praia, vai ser mais fácil” [risos]. Mas acho que não estão a pensar bem. Não reconhecem que este é um enorme problema.
Continua a propagar-se a ideia de que o mundo é demasiado populoso; que somos muitos. Mas a incidência de infertilidade também é um indicativo de uma saúde mais débil das pessoas, certo?
Sim, é verdade. Há duas coisas que nem sempre se compreende: uma, é que o esperma é um espelho da saúde dos homens. Portanto, se um homem tem uma baixa contagem de espermatozóides, significa que terá uma menor esperança média de vida e uma maior susceptibilidade a doenças crónicas. Terá ainda uma maior probabilidade de desenvolver cancro e outras doenças. E, atenção, esta realidade não atinge só os seres humanos, mas todas as espécies na Terra. Em Inglaterra, descobriram certos peixes-machos já estão a pôr ovos. Não é um bom sinal. E isso poderá significar que o plástico ingerido pelos peixes é “estrogénico”, que os microplásticos têm um efeito “efeminizante”. Na Dinamarca, seis em cada 10 rapazes desenvolvem seios. E alguns, até com leite. É mesmo assustador.
Mas se a fertilidade é um espelho da saúde, é importante que as pessoas tenham atenção a esse aspecto, independentemente de quererem ou não ter filhos, certo?
Sim, eu digo sempre duas coisas para chamar a atenção. A nossa fertilidade reflecte o nosso estado de saúde, e, por outro lado, não somos apenas nós [humanos] que estamos mais inférteis. Os cães, por exemplo, também estão. A qualidade do esperma dos cães está a diminuir tão depressa como o dos humanos. E eles não usam telemóveis nem têm tatuagens [risos]. Escrever este livro foi como desvendar um crime. Algo está a tornar milhões de pessoas inférteis e descobrir o que é, foi o meu principal objectivo com este livro. Perceber o que está a causar tanta miséria e a destruir às pessoas o sonho de serem pais.
Espermagedão, publicado originalmente em 2019, foi editado em Abril deste ano em Portugal pela Casa das Letras.
No seu livro chega a comparar o processo de escrita com a descoberta do criminoso em Um crime no Expresso Oriente, da Agatha Christie. Sem querer entrar em teorias da conspiração, acha que o silêncio sobre esta crise é inocente?
Eu não acredito que isto seja uma conspiração, não acho que o Bill Gates nos queira “eliminar” da Terra. Eu acredito que é o nosso estilo de vida moderno que nos está a pôr doentes. Se víssemos a forma como os porcos e os frangos são criados convencionalmente, os químicos no salmão de cativeiro… bom, deixaríamos de os comer. Eu escrevi um livro sobre esse tema em 2013, que vendeu quase 30 mil cópias na Noruega. A partir daí, mudei a minha vida. Sou tão estúpido que tive que escrever um livro primeiro para mudar. [risos]
Em Espermagedão indica vários factores que podem ter desencadeado a crise da fertilidade masculina, como a proliferação do plástico, mas menciona outros. Quais são, realmente, as causas mais perigosas?
Eu sou apenas um jornalista, por isso oiço os grandes especialistas desta área. Um deles é o Richard Sharpe, professor inglês da Universidade de Edimburgo. Ele indica os quatro motivos principais: a alimentação, o nosso estilo de vida, os medicamentos e as toxinas ambientais.
Parece ser difícil evitar tudo isso, porque estamos rodeados por “maus alimentos”. Tudo é muito processado…
Há luz ao fundo do túnel, no final do meu livro digo qual é.
Não lhe vou perguntar em concreto que “luz” é essa, para que os leitores possam descobrir isso no seu livro, mas, em todo o caso, que pode um homem fazer para melhorar a sua fertilidade?
Se um homem souber que tem esperma de má qualidade, ele consegue duplicar a contagem de espermatozóides através de uma alimentação biológica. E não é só porque os alimentos biológicos têm menos pesticidas, mas também por serem muito mais nutritivos. Possuem mais vitaminas, minerais e antioxidantes; e menos metais pesados e microplásticos.
Recentemente, foi anunciado que em breve se iniciam testes em humanos para uma pílula masculina. Considera isso preocupante, uma vez que os homens já estão cada vez menos férteis?
Eu já tenho 61 anos, já tenho dois filhos e não deverei ter mais. Portanto, não é por mim que eu escrevi este livro, mas pelos mais jovens. E o problema não é só eles estarem menos férteis. Na Noruega, e também no resto da Europa, muitos jovens já precisam de usar viagra. Precisam de comprimidos para terem erecções e possuem menos testosterona. Por exemplo, eu devo ter, provavelmente, metade da testosterona que o meu pai tinha na minha idade. Está a diminuir de geração para geração.
Recentemente, um conhecido apresentador norte-americano, Tucker Carlson, falou desse problema no seu programa e foi ridicularizado. Ele recomendou que os homens bronzeassem os testículos para aumentarem os níveis de testosterona [risos]. Ouviu falar disso?
Há coisas que me têm escapado porque ultimamente tenho estado muito ocupado com o meu novo livro, completamente diferente dos outros. E quando se está a trabalhar num novo livro, recolhemo-nos na nossa “concha”. Entreguei-o esta manhã.
Niels Christian Geelmuyden
E pode dizer-nos de que trata o livro?
É um livro muito especial. Basicamente, imagino-me a falar com personalidades que já morreram há bastante tempo, como Edvard Munch e Picasso. Tudo com base no que eles escreveram ou disseram em vida.
Há uma questão que lhe gostava de colocar, que é incontornável nos tempos que correm: a pandemia da covid-19 e as vacinas. Suscitou-se algum debate sobre eventuais efeitos na fertilidade. Houve muitas mulheres a reportarem irregularidades menstruais. Tem já uma opinião formada sobre este assunto?
Eu tenho muitas opiniões sobre as vacinas. De acordo com alguns estudos que tenho lido, a própria covid-19 pode afectar a fertilidade. Pessoalmente, não tomei a vacina, porque recebi um transplante renal da minha mulher há 13 anos, e tenho de tomar medicamentação. E por isso, a vacina não funciona da mesma forma. Mas segundo sei, a covid-19 é pior para a fertilidade masculina do que as vacinas.
Está optimista em relação ao “futuro” da fertilidade masculina?
Sim, desde que as pessoas tomem consciência do problema. Nós temos a capacidade de resolvê-lo muito depressa. O problema é haver bastante dinheiro envolvido na indústria alimentar e farmacêutica. Muitos medicamentos foram comercializados sem se avaliar os impactos na fertilidade. O paracetamol, por exemplo, é um dos medicamentos que mais afecta o sistema hormonal, e as pessoas não sabem disso.
A “Big Pharma” às vezes coloca o lucro à frente da saúde das pessoas…
E manipulam os estudos, controlam a Food and Drug Administration (FDA) e os governos.
É algo difícil de combater…
Pelo menos, eu estou a tentar, e espero que as pessoas em Portugal leiam o livro, e acreditem. Mas, claro, é deprimente escrever este livro durante um ano e ver que a maior parte das pessoas não quer saber do assunto [risos].
No ano passado, a cientista Shanna Swan lançou, também, um livro [Count Down] sobre a diminuição da fertilidade masculina.
Sim, eu estava expectante que ela conseguisse mudar o rumo das coisas, porque é uma especialista. Mas não aconteceu nada. Ela integrou o grupo de investigadores de um grande estudo em 2017 que relatou que, desde 1973, a contagem de espermatozóides caiu 60% nas populações do Ocidente.
Hoje em dia, há cada vez mais casais que não conseguem ter filhos naturalmente, mas os nossos pais e avós não pareciam ter dificuldades em engravidar.
Pelo contário. Até tinham medo de se sentarem na sanita e poderem engravidar [risos]. Hoje, as pessoas também estão a querer ter filhos mais tarde. E vivem agora sobretudo em cidades, não precisam tanto das crianças, para as ajudar em trabalhos, como quando se vivia no campo. Depois, temos a guerra na Ucrânia, o clima. As pessoas sentem receio de trazer crianças a este mundo. Portanto, há todos esses aspectos, para além da fertilidade.
“Anna Karénina partiu. Estou à espera que volte” – é o que Liev Tolstói terá dito ao seu editor, durante um inquietante período em que a inspiração do escritor russo escasseava. N’O perfume das flores à noite, Leïla Slimani fala-nos sobre como o bloqueio criativo de Tolstói lhe serve de consolo nos momentos em que a autora é assombrada pelo temido writers block. Confidencia-nos os sacrifícios a que obrigam a sua arte. Tece engenhosos argumentos para nos provar que a felicidade não está destinada aos fazem da escrita a sua vida.
Leïla Slimani, que tem dupla nacionalidade – nasceu em Marrocos, mas rumou a Paris com 17 anos para estudar Ciências Políticas e Estudos Mediáticos –, estreou-se como romancista em 2014, com a obra No jardim do ogre, sendo-lhe logo atribuído o Prémio marroquino La Mamounia. Foi, porém, com o seu segundo romance, Canção Doce, que conseguiu prestígio internacional, com o prémio literário francês Prix Goncourt de 2016. O país dos outros, publicado no ano passado, foi igualmente bem recebido pelos leitores e pela crítica, e valeu-lhe o Grand Prix de l’Héroine Madame Figaro.
Neste ensaio auto-reflexivo somos engolidos para a intimidade de Slimani, que nos conduz pelos periclitantes caminhos de um romancista. Vislumbramos um universo literário permeado pela solidão e pelo isolamento. A autora não se pinta, contudo, como uma vítima. Pelo contrário. As suas palavras não evidenciam sinais de autocomiseração, mas de resignação. Uma anuência ao que, frequentemente, se chama os ossos do ofício.
O seu desejo de clausura leva-a a aceitar um convite inusitado para passar uma noite, só e trancada, no Punta della Dogana, um museu de arte em Veneza. E é aí que se desenrolam muitos dos pensamentos que partilha com o leitor. Pelo meio, evoca outros autores, como Virginia Woolf, Haruki Murakami e Emily Dickinson.
Descobrimos os seus medos e fobias, os seus anseios, as suas idiossincrasias. Desde o receio que a acompanha quando sai de casa, porque o perigo espreita em cada esquina, às injustiças de que o seu pai foi vítima. A inadequação que sente por ser fruto de duas culturas tão diferentes, e não se sentir verdadeiramente parte de nenhuma.
Ao longo das suas 135 páginas, este ensaio concretiza, sobretudo, a ideia de que a arte é parida a partir do sofrimento. O seguinte trecho evidencia-o bem: “(…) Não acredito que alguém escreva em busca de consolo. Não penso que os meus romances logrem a superação do sentimento de injustiça que vivi. Pelo contrário, um escritor está doentiamente preso às suas dores, aos seus pesadelos. Nada seria mais terrível do que curar-se deles.”
Aos desabafos e divagações da romancista, juntam-se memórias da sua infância e juventude. Os seus relatos transportam-nos para a adolescência rebelde que viveu na capital marroquina, Rabat. Percebemos que os seus traços eremitas já vêm consigo desde que era criança. Compreendemos, também, como a concepção da mulher como um ser inferior ao homem na cultura misógina em que cresceu, a moldou e contribuiu para que hoje se assuma feminista.
A história e a autoanálise da autora permite ao leitor uma reflexão. É difícil não vermos um bocadinho de nós em Leïla Slimani. A natureza complexa e paradoxal do ser humano é algo que, inevitavelmente, nos une.
Para além de escritora, Slimani já foi jornalista, e em 2017 somou outra conquista profissional: foi nomeada representante pessoal do presidente Francês, Emmanuel Macron, como embaixadora para a Francofonia.
Leïla Slimani será, decerto, uma mais-valia como diplomata. E terá sido, com certeza, também uma excelente jornalista. Contudo, o seu novo livro demonstra o seguinte: faça o que fizer, jamais deve deixar de articular palavras. O Mundo perderia uma brilhante escritora.