A empatia é, sem dúvida alguma, um valor humano extremamente nobre e valioso. É ela que nos faz “calçar” os sapatos do outro, sentir compaixão pelo sofrimento alheio e, em última instância, ter vontade de ajudar aqueles que precisam. E, verdade seja dita: ninguém passa pela vida incólume e sem necessitar, em diversos momentos, do conforto de uma mão estendida. Razão ainda maior para que todos sejamos empáticos com outros problemas que não os nossos, e tenhamos bondade para querer para atenuar o sofrimento colectivo – dentro daquilo que esteja ao nosso alcance, evidentemente.
Porém, tal como tudo, por muito louvável que possa ser um sentimento ou um valor, jamais deverá ser levado a um extremo que resulte na perda de bom senso e até na loucura.
Este é precisamente o motivo pelo qual, por muita empatia que possamos ter por um sem-abrigo, não nos vamos endividar para lhe proporcionar uma casa. Nem sequer dar-lhe toda a comida que temos na despensa – ou, fazer sacrifícios que nos prejudiquem e coloquem a nossa família numa situação vulnerável, apenas para que nada falta ao sem-abrigo.
De igual modo, ninguém no seu perfeito juízo irá ceder a sua casa a alguém que durma na rua para substituir um sem-abrigo por outro. Nem tão pouco, manter-se em sua casa mas lotá-la com todas as pessoas necessitadas com que se vai cruzando pelas ruas – certamente que a esmagadora maioria não o faz, nem tal coisa lhe passaria pela cabeça.
E porquê? Porque não é sensato! Tentar colmatar sofrimento com mais sofrimento não é ser empático; é ser simplesmente louco. Ou seja: levada ao seu cúmulo, a “empatia” far-nos-ia cometer as maiores loucuras para salvar o mundo inteiro! Mas nós não somos super-homens nem super-mulheres – somos apenas seres humanos.
A maior parte das pessoas nem sequer emprestará dinheiro a um amigo em dificuldades, ou irá emprestar torcendo muito o nariz! E estão erradas? Não! Porque na realidade, todos nós, no fundo, temos perfeita consciência – por muito virtuosos e ‘bonzinhos’ que nos queiramos achar – que aquilo que podemos dar a outrém tem limites; e é insano extravasar esses limites, encetando determinados esforços e sacrifícios por alguém quando tem de ser o próprio a fazê-los.
E todos sabemos que, embora a ajuda e a cooperação sejam sempre necessárias na vida, nunca se podem substituir aos esforços que cada um tem envidar por si próprio.
Deste modo, se é verdade que um bom coração saberá quando estender a mão, uma boa cabeça saberá quando não o fazer. E um coração sem cabeça não faz um corpo.
É este o problema fundamental a que assistimos hoje no mundo Ocidental; a doença que o está a destruir: a instrumentalização da empatia e do nosso lado mais generoso para nos levar ao suicídio. Esta tem sido a dialéctica dominante – ainda mais perversa e diabólica, porque nos manobra e manipula dizendo-nos que só assim seremos “boas pessoas” – na praça pública; imposta pela imprensa, governo, União Europeia, e demais organizações supranacionais. Vimo-lo com a covid-19, mas está a acontecer, às claras, com muitas outras ‘crises’.
Os interesses concertados querem que o Ocidente se mate (não tão metaforicamente quanto isso), para ser comido de cebolada pelos “coitadinhos”. E como? Através da aceitação desta imigração massiva e descontrolada, de ajudas financeiras astronómicas para países que sofrem ou que estão em guerra, ou outras psicopatias que os nossos ‘overlords’ em Bruxelas nos queiram impôr do alto da sua torre de marfim. Tudo isto, enquanto os europeus definham, dia após dia, e caminham alegremente para o precipício, incautos e de olhos vendados. E com a deterioração da qualidade de vida e da segurança a ocorrer a uma velocidade estonteante.
Felizmente, parece haver cada vez mais gente a acordar – veremos se a tempo de evitar o suicídio do Ocidente!
Maria Afonso Peixoto
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O autor deste livro, Marc Brackett, é um verdadeiro especialista em emoções, tendo publicado já 125 artigos académicos sobre a ‘matéria’. Mas só se tornou um ‘mestre’ da inteligência emocional depois de ter conseguido ultrapassar os seus próprios traumas, que incluíram crescer numa família disfuncional e ter sofrido de bullying na escola e abusos sexuais em criança. Em virtude destas experiências, a sua vida parecia um inferno porque vivia refém do seu tumulto interno, que o acometia de raiva e frustração e o atirava para uma espiral de descontrolo.
O ponto de viragem deu-se quando o seu tio lhe colocou uma simples, mas poderosa questão: “o que estás a sentir?”. Foi a partir daí que, de certa forma, Marc sentiu que tinha permissão para entrar, finalmente, em contacto com o furacão de emoções que tinha dentro de si. E marcou o início de uma longa jornada de aprendizagem sobre o que é isto de sentir, e como se pode navegar os sentimentos da forma mais saudável possível.
Veio então a tornar-se investigador e formador na área, e é fundador e director do Centro para a Inteligência Emocional e Yale, além de professor no Centro de Estudos Infantis da mesma universidade. Criou também o método “RULER”: a abordagem baseada em evidências científicas que ensina aos leitores neste Permissão para sentir. Na sigla que lhe dá nome, o primeiro “R” é para reconhecer, “U” é para compreender [‘understand’, em inglês], “L” é para classificar [‘label’], “E” é para expressar, e o último “R” para regular.
O objectivo deste método? Dar competências para uma boa compreensão e gestão das emoções.
Neste âmbito, desenvolveu o Mood meter, que serve para nos ajudar a identificar e a ‘medir’ as nossas emoções, através de um quadro com inúmeros estados de espíritos, divididos em quatro cores que correspondem a quatro grandes tipos de emoções. Num quadro com dois eixos, os estados emocionais estão organizados com base em dois grandes parâmetros: o grau de energia (que pode ser alto ou baixo) e o de prazer (também alto ou baixo).
O autor ensina também variadas estratégias de regulação emocional – como o “monólogo interior” ou o “reenquadramento cognitivo”.
As recomendações contidas neste livro são de um carácter muito prático e acessível, que qualquer pessoa pode aplicar independentemente do seu conhecimento sobre a “arte” da inteligência emocional.
A título de exemplo, um dos insights mais curiosos partilhados por Marc Brackett é que, ao contrário do que se possa pensar, não são só as emoções “negativas” que precisam de ser reguladas, mas também as “positivas”.
Sobretudo num mundo em que tudo parece desenrolar-se a uma velocidade estonteante, em que os distúrbios do foro mental como a depressão e a ansiedade atingem proporções epidémicas – até mesmo entre a população juvenil –, este livro é da maior utilidade.
Marc Brackett consegue cumprir eficazmente a missão a que se propõe: ajudar os leitores a tornarem-se, eles próprios, autênticos “cientistas das emoções”, conferindo-lhes instrumentos para reconhecer e lidar com aquilo que sentem de um modo construtivo. Com esse propósito, além dos múltiplos recursos que ‘oferece’ nesta obra, providencia também uma extensíssima bibliografia.
O silencioso flagelo que é a violência obstétrica ganhou mediatismo com a pandemia da covid-19 – uma altura em que a Direcção-Geral da Saúde emitiu recomendações que violaram grosseiramente os direitos das grávidas, sem qualquer fundamento científico e até em contracorrente com a Organização Mundial da Saúde. Além de ter sido vedado às grávidas o direito a um acompanhante, tiveram ainda de suportar o trabalho de parto de máscara, e muitas foram até separadas dos seus bebés. Mas ainda hoje a DGS emite orientações sobre procedimentos no parto que configuram violência obstétrica. Contudo, como explica a advogada e activista Mia Negrão, as grávidas já há muito que eram sujeitas a protocolos e intervenções desadequadas, tendo, em alguns casos, sofrido danos físicos ou emocionais permanentes. A autora do livro O meu parto, as minhas regras e fundadora do projecto Nascer com Direitos pretende devolver a todas as futuras mães a possibilidade de fazer escolhas informadas para que a gravidez, o parto, e o pós- parto sejam menos traumáticos e medicalizados, e mais humanos e respeitados.
Como advogada e activista, fundou o projecto Nascer com Direitos e lança agora o livro O meu parto, as minhas regras, que pretende consciencializar as mulheres para os seus direitos na gravidez e no parto. Porque é importante falar sobre isto?
Em primeiro lugar, porque a violência obstétrica existe, e as mulheres estão muito pouco informadas. Estamos em 2024 e já se fala de violência obstétrica noutros países, como a Venezuela, desde 2007, e nós só começámos a falar sobre isto mais ou menos em 2020; portanto, estamos com algum atraso. As mulheres vão para os hospitais sem saberem quais são os direitos que têm na gravidez e no parto, e até depois no pós-parto, pelo menos durante o tempo em que estão internadas, naqueles dois a três dias após o parto ou cesariana. E, no fundo, isto é importante porque quando as pessoas não conhecem os seus direitos, também não sabem que opções têm, e acabam por fazer aquilo que está protocolado pelos hospitais e pelos profissionais de saúde sem questionarem. E, depois, quando sentem as consequências disso, nomeadamente para a própria saúde ou para a saúde dos bebés, é que percebem que foram vítimas de violência obstétrica ou de violência neonatal e que, afinal, tinham direitos e que esses direitos não foram respeitados.
O termo violência obstétrica é, provavelmente, ainda desconhecido por muitas pessoas. Também é algo polémico entre os profissionais de saúde. Como é que se pode definir a violência obstétrica?
A violência obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres. Na lei venezuelana de 2007, eles conceptualizam a violência obstétrica – e foi a primeira lei a conceptualizá-la –, e dizem que é feita por profissionais de saúde. Ou seja, é a apropriação dos corpos e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde. Não concordo que seja só por profissionais de saúde, na medida em que temos entidades de saúde que também praticam violência obstétrica, porque são elas que emitem as recomendações, orientações, etc., e que muitas vezes já estão a limitar os direitos das grávidas, e até dos bebés, e já estão a protocolar situações que não deviam estar protocoladas, nomeadamente, tudo aquilo que tem a ver com intervir em gravidezes ou partos de grávidas de baixo risco, como acontece hoje. Ainda agora, há dois ou três dias, foi actualizada uma orientação da Direcção-Geral da Saúde [DGS], em que continuam a recomendar, por exemplo, a episiotomia [corte cirúrgico no períneo], a canalização da veia, ou outras coisas para as quais não há evidência de que haja benefícios em gravidezes de baixo risco. Obviamente, o que devíamos fazer era uma aferição do risco à partida, para podermos distinguir uma grávida de risco e uma grávida de baixo risco. E as grávidas de risco, de facto, podem ter de ter algumas intervenções. Mas não sei até que ponto devem estar protocoladas porque, na verdade, mesmo nas grávidas de risco, há muitos aspectos em que o risco pode ser diferente. Por exemplo, uma pode precisar de um antibiótico, e outra precisar só de uma vigilância mais apertada. Portanto, protocolar estas coisas nem sempre é boa ideia.
Até porque, como refere no livro, uma primeira intervenção que até não seria de facto necessária, muitas vezes dá azo a uma “cascata de intervenções” – e é algo que pode começar com uma coisa aparentemente tão simples como confinar a grávida à cama, certo?
Sim, e é uma coisa muito comum nos hospitais em Portugal. Aliás, eu ainda há pouco tempo contava esta história: tenho uma amiga que estava grávida e quando fui ter com ela estava com outra amiga que já tinha tido um bebé no hospital onde ela também ia ter o bebé. E eu disse que nesse hospital há muita violência obstétrica, e que eu conheço bem, e a outra rapariga disse que tinha adorado o parto e que foi maravilhoso, foi muito respeitada, e foi tudo como ela quis… E eu perguntei-lhe em que posição é que tinha parido – que escolheu para parir – e ela ficou a olhar para mim sem perceber muito bem a pergunta, e lá disse que tinha sido numa posição “normal”, ou seja, deitada. Na verdade, ela nem sequer conhecia outras opções. Portanto, como é que ela acha que a vontade dela foi respeitada? O que aconteceu foi que afunilaram todas as opções e levaram-na a acreditar que aquela era a única opção que ela tinha. E, como ela não tinha outras ideias, conhecimento, nem qualquer tipo de informação, achou que aquilo era o normal. Ela não sabe que a experiência de parto dela podia ter sido muito melhor se ela tivesse mais informação, porque depois, claro, fizeram uma episiotomia, e o bebé foi tirado com ventosas, etc., mas “correu tudo bem”. Ela teve uma experiência positiva, e ainda bem, porque há muitas experiências com violência obstétrica que são positivas na mesma; a violência obstétrica é objectiva, mas a experiência de parto é subjectiva. Portanto, ela teve uma experiência boa, mas houve violência obstétrica, porque ninguém a informou de nada. Basicamente, obrigaram-na àquilo; só que ela não se sentiu obrigada, porque como ela não conhecia outras opções, e foi jogando o jogo deles.
E porque é que acha que as normas não são actualizadas de forma a corresponderem às evidências científicas actuais? Porque é que as nossas autoridades de saúde não alteram os protocolos?
Porque nós estamos muito atrasados relativamente às evidências científicas. É muito difícil actualizarmos profissionais mais antigos, que estão habituados a fazer as coisas de uma certa forma, porque aprenderam daquela forma. Os jovens que estão agora a acabar o curso de medicina ou de especialidade já vêm com outras ideias e já querem mudar um bocadinho as coisas. Mas, efectivamente, continuamos a ter muitos médicos que ainda fazem as coisas à maneira antiga. Portanto, ou nós temos uma renovação de gerações, ou então é muito difícil que estas gerações mais antigas de profissionais de saúde consigam actualizar-se, porque eles não sabem fazer as coisas de outra forma. Aprenderam assim, e acham que é assim que está correcto. É muito difícil, por exemplo, dizermos a um obstetra que não deve fazer episiotomia, porque não basta não fazer episiotomia. E o que eles dizem é que ela é necessária, e que sempre que fazem é por necessidade. E eu acredito que eles acreditam nisso! Porque se eles não mudarem toda a assistência ao parto, aquela episiotomia, para eles, vai ser necessária, efetivamente, porque eles não conhecem estratégias. Se têm mulheres sempre a parir em posição sempre litotómica – ou seja, deitadas – é óbvio que eles vão achar que a episiotomia é necessária, porque não sabem que há uma alternativa – que é terem as mulheres em liberdade, a parir na posição em que elas escolhem, e darem informação a estas grávidas para elas saberem que podem escolher e que têm direitos.
Os jovens que estão agora a formar-se já se actualizam mais, procuram as evidências científicas, e já vivem num mundo também mais digital, onde podemos encontrar mais facilmente essas evidências. Para eles, é mais fácil alterarem as práticas; até porque já temos vários obstetras no Instagram, no YouTube e noutras plataformas, a informar sobre um parto respeitado – aquilo a que se chama o parto humanizado – e uma boa assistência ao parto baseada em evidências. Portanto, fazendo esses cursos e tendo acesso a essa informação, eles mais facilmente transpõem isso para a sua prática clínica. Pelo contrário, os profissionais mais antigos têm muito mais dificuldade, por um lado, em encontrar esta informação, e depois em aplicá-la, porque é muito difícil mudarmos os protocolos que aplicámos a vida toda e que achamos que têm sucesso porque as pessoas dizem que estão satisfeitas. Só que agora temos cada vez mais grávidas a conhecer os seus direitos, e que estão insatisfeitas e reivindicam e dizem que não querem assim. E esses médicos, depois, não ficam muito contentes com isto. E também por isso há tantas cesarianas.
Aliás, salienta que este é um problema sistémico e não individual, já que os profissionais de saúde não têm consciência de estarem a praticar violência obstétrica porque estão a fazer aquilo que acreditam ser o correcto. Também será assim com o consentimento informado, que crítica no livro, dizendo que não devia resumir-se a assinar um papel? Como é que acha que deveria funcionar o consentimento informado no parto?
Não sou eu que acho; isto consta em legislação nacional, internacional e em convenções – o consentimento informado é um direito humano. O consentimento informado parte da premissa de que temos direito a não ser sujeitos a tratamentos indesejados. E indesejados abrange tudo, independentemente de aquilo me salvar a vida ou não – se eu não quiser aquele tratamento, eu tenho direito a recusá-lo. O que acontece é que, para haver consentimento informado na área da saúde, a pessoa precisa de ter informação para tomar decisões, e, logicamente, uma pessoa não tem de saber tudo sobre aquela área de especialidade – neste caso, obstetrícia. E a questão aqui é: onde é que a pessoa vai buscar informação, se os profissionais de saúde se recusam a dar informação, como acontece, muitas vezes, ao longo da gravidez? Quando a grávida quer falar sobre o parto na consulta, os médicos dizem-lhe que ainda é muito cedo, que ainda faltam muitas semanas, e mais tarde falarão sobre isso. E depois, nunca querem falar. Isto acontece imenso. Portanto, não há informação. As grávidas muitas vezes vão até buscar informação à Internet, e não se sabe se as fontes são fidedignas, e se aquilo é aplicável àquele caso, porque as grávidas são todas diferentes. E às tantas, como os profissionais de saúde não querem dar informação isenta e cientificamente válida, há aqui uma colisão, porque as grávidas também não têm a certeza daquilo que leram. Muitas vezes, têm planos de parto em que não sabem muito bem o que aquilo significa, mas como têm medo, escrevem que não querem um determinado procedimento, e depois isto é um grande problema. Portanto, cabe aos profissionais de saúde dar informação às grávidas para elas poderem decidir se querem ou não aquelas intervenções.
Além disso, é necessário que haja espaço e tempo para que elas possam decidir o que querem, porque se chegarem ao pé de uma grávida no momento do parto e perguntarem-lhe se quer fazer um procedimento, a grávida não tem tempo para pensar e está a sentir-se pressionada. O modelo ideal é que o médico lhe dê informação com tempo e espaço para ela decidir. E claro que a informação que tem a ver com o parto deve ser dada durante a gravidez, já que nós sabemos que o parto terá de acontecer; se não for um parto, será uma cesariana. E é preciso prestar esclarecimentos: se a grávida sentir que não dispõe de toda a informação para decidir, e precisa de saber mais, o profissional de saúde tem de esclarecer a grávida, e de respeitar, depois, a decisão dela. Se ela não quiser uma intervenção, ela não lhe pode ser feita. O que acontece nos hospitais em Portugal é que dão-nos um formulário de consentimento informado quando entramos na maternidade e dizem que é obrigatório assinarmos para nos poderem internar. E a grávida assina o papel, que às vezes até está em branco e só apontam depois o que é que fizeram, como ventosas, cesariana, ou seja o que for. Mas aí, a grávida já assinou, e muitas vezes nem sequer leu porque estava com contracções e assinou sem saber sequer o que está a assinar. Aquilo que lhe disseram é que é necessário para ela ficar internada. Ora, isto não é consentimento informado de forma alguma.
Também refere no livro um inquérito da The Lancet, de 2021, em que Portugal surge mal posicionado, entre 12 países europeus, na qualidade dos cuidados maternos e neonatais durante a pandemia. Este é, de facto, um problema maior em Portugal do que noutros países?
Sim; esse inquérito é o espelho daquilo que se passa em Portugal. Neste momento, estamos no pódio dos piores, embora a Ordem dos Médicos e os próprios médicos queiram continuar a dizer que somos dos melhores países em termos de competências a nível obstétrico. E somos, tecnicamente; temos profissionais muito bons, mas que estão a ser mal utilizados porque utilizam-nos em partos de grávidas de baixo risco. Em partos de alto risco é óptimo termos obstetras tão qualificados – porque os temos –, mas não precisamos deles nos partos em que não é necessário sequer ter obstetras. E o problema é que isto leva à medicalização e à instrumentalização do parto; e temos ainda uma taxa altíssima de partos instrumentados e de episiotomias. Nesse inquérito da Lancet, aparecemos como os piores também a nível do consentimento informado – as mulheres não são envolvidas nas escolhas, tudo lhes é imposto. Ou seja, apresentam-lhes as intervenções como obrigatórias, e normalmente é isso que fazem. Até porque as grávidas, quando apresentam um plano de parto, há sempre quem lhes diga que, se o querem dessa maneira, têm de procurar outro hospital, porque naquele não fazem assim; e que ali é obrigatório fazer isto ou aquilo. E não é assim. Em Saúde, nada é obrigatório; nós é que decidimos, o corpo é nosso. Mas em Portugal ainda temos muito esta ideia das intervenções obrigatórias. Só que as grávidas têm estado cada vez mais informadas e, portanto, a recusar cada vez mais procedimentos que sabem não serem necessários; ou que, pelo menos, à partida não são necessários. E isto tem criado algum backlash por parte dos profissionais de saúde, porque as grávidas estão a fazer exigências às quais eles não conseguem dar resposta nos hospitais que temos hoje. E está a ser difícil porque temos um desencontro de gerações. A geração que está agora a ter bebés é a geração dos millennials, e a geração que está a prestar apoio ao parto é muito mais velha, são os boomers. Portanto, nós temos informação e queremos fazer uso dela, mas depois quando chegamos aos hospitais, eles dizem que não vão fazer assim, porque não sabem sequer fazê-lo.
E esta iliteracia que ainda existe sobre estas matérias, não começa desde logo na pouca informação que existe sobre a saúde feminina e o ciclo menstrual? Porque o conhecimento sobre os ciclos, por exemplo, é importante até para datar a gravidez de forma rigorosa. Se for mal datada, pode criar ansiedade e a grávida e os profissionais de saúde podem achar, por exemplo, que já se ultrapassou as 41 semanas de gravidez, e querer induzir o parto, quando não é esse o caso, e não haveria realmente necessidade de intervir.
Sim, sobre o ciclo menstrual e tudo o resto. Agora, as coisas já estão a mudar um bocadinho, até porque a Patrícia Lemos, por exemplo, escreveu um livro infanto-juvenil sobre o período, e esta informação já tem chegado mais às camadas mais jovens… Mas, de facto, ainda vivemos numa sociedade extremamente católica, em que nos incutem este nojo do nosso próprio corpo. O nosso corpo acaba por ser para o desfrute alheio, para outras pessoas; primeiro, para servir de cabide, porque temos de ser bonitas e usar roupas bonitas, justinhas, mas também não demasiado, porque senão, enfim, vamos para o inferno e coisas assim do género. E, depois, incutem-nos muito esta coisa de não nos podermos tocar, não podermos olhar para o sangue menstrual, não podermos cozinhar quando estamos menstruadas… Enfim, é tanta coisa. E o que é facto é que quando eu comecei nesta área, há quase uma década, lembro-me de as grávidas dizerem, muitas vezes, que não queriam ter um parto vaginal, ou que tiveram um parto vaginal e sabiam que as coisas depois nunca mais voltam a ser iguais no sexo. Porque, supostamente, ficam com a vagina muito larga; diziam elas que é porque a vagina dilata até 10 centímetros. E eu explicava-lhes que não é assim, é o colo do útero que dilata, mas a vagina até pode dilatar mais, e não é por aí. Mas isto para dizer que as mulheres não sabem a distinção entre vagina, colo do útero, útero. Então, quando alguém diz que uma grávida está com uma dilatação de cinco ou seis centímetros, elas não sabem, na verdade, o que é que está a dilatar. Elas nunca tocaram, nunca viram o colo do útero nem sabem para que serve. Então, é sempre esta coisa de só os médicos é que veem e que tocam, e nós estamos completamente na ignorância.
Claro que se nós, desde miúdas, aprendemos que é nojento tocar no corpo, e que o sangue menstrual é nojento; e só podemos aprender as coisas que lemos naquele caderninho da marca de tampões que na altura era a mais utilizada, e que dizia que o ciclo menstrual é assim: ovulamos no dia 14 e depois vamos menstruar no dia 28… Isto não é conhecimento absolutamente nenhum. Eu cresci nos anos 90, e ainda me lembro de querer imenso saber como é que funcionava o ciclo menstrual, e de ir ver às revistas para tentar perceber, e dizerem sempre que ovulamos no dia 14. E eu pensava, como é que isto pode ser assim? Será que somos todas assim tão certinhas? E então, quando há um atraso, é uma coisa anormal, é um problema de saúde? Até que depois vim a descobrir que isto não é verdade, não é assim que funciona; o corpo não é propriamente um relógio que está todo cronometradinho, a ovular e a menstruar como se fossemos todas iguais. Mas sim, eu abordei a questão da data prevista de parto porque as pessoas ainda confiam muito nesta sabedoria de que nós ovulamos todas no 14º dia do ciclo. E eu tenho uma amiga que engravidou e ovulou por volta do 46º dia do ciclo, porque teve um ciclo muito mais longo devido a uma questão de saúde. E os profissionais de saúde olharam para ela com imenso desdém, disseram que era impossível. E ela sabia que estava certa, mas, por causa disto, toda a gravidez dela foi mal datada porque os médicos não acreditaram no que ela disse. Ela sabia exactamente quando é que tinha ovulado e engravidado, mas os médicos fizeram tábula rasa disso, fizeram as contas deles, depois acertaram pela ecografia, e mesmo pela ecografia aquilo não batia certo com as contas dela. E isto no final da gravidez é um problema, porque há um protocolo de indução – que não acontece só em Portugal – às 41 semanas e, portanto, quando chegou a essa altura – nas contas dos médicos –, na verdade ainda não eram 41 semanas. E depois há muita pressão. Portanto, é importante sabermos também que não existe um deadline, e atingir as 41 semanas não significa que o bebé fique logo em maior risco. Até porque, de facto, eu diria que na maioria das vezes a gravidez não está bem datada.
Refere também que a violência obstétrica pode mesmo tornar o parto numa experiência traumática para as mulheres. Ao longo destes anos em que prestou apoio, viu muitos casos desses?
Sim, a maioria tem stress pós-traumático; sonha ou tem pesadelos com a situação, e revive muito estas situações também nos aniversários dos filhos, porque apesar de ser o dia do nascimento do filho, também é o aniversário de uma experiência absolutamente traumática. Eu tenho clientes em que os danos que têm são, muitas vezes, até mais psicológicos do que físicos. Porque os físicos, podem ser, por exemplo, questões relacionadas com a episiotomia, ou até neurológicas, mas há muitos mais casos de danos psicológicos. Temos mulheres que não conseguem conectar-se com os seus próprios filhos, nem criar uma ligação com eles; ou mulheres que desistem de amamentar porque sentem que aquele filho não é delas. Tenho até clientes que acham que o filho foi trocado na maternidade, que não pode ser delas, têm mesmo dúvidas e pedem o processo clínico porque querem ter a certeza de que é impossível ter havido trocas. Ou seja, há aqui um corte naquilo que é a fisiologia e a biologia tão natural no parto, no pós-parto e na amamentação. E quando isto é cortado, depois, tem efeitos nocivos não só para a saúde mental da mãe, mas também para os bebés. Porque são bebés que, depois, não têm uma mãe responsiva, não têm contacto de pele com pele 24 horas por dia, porque as mães não sentem que é o filho delas; ou têm uma mãe que não os amamenta porque simplesmente não consegue sentir essa ligação. E temos bebés que são desmamados precocemente ou que nunca mamaram sequer, e isto é um problema de saúde pública, porque sabemos que os bebés que não são amamentados terão, no futuro, um maior risco de obesidade, de diabetes, de doenças autoimunes, de asma, etc. E na primeira infância também, portanto, é efectivamente um problema de saúde pública. Por isso, devíamos proteger muito mais a gravidez, o parto, o puerpério e amamentação – e ainda não o fazemos em Portugal.
Durante a pandemia, inclusivamente, foram aplicadas medidas que incluíram a proibição de as grávidas poderem ter um acompanhante, a separação das mães dos seus bebés e o uso obrigatório de máscara durante o trabalho de parto. E estas orientações da Direção-Geral de Saúde não tiveram qualquer base científica. Foi um período em que os direitos das grávidas foram violados de forma mais intensa que o normal?
Eu não diria que foram violados de uma forma mais intensa. O que eu diria é que efectivamente estes direitos já não eram respeitados, mas com a pandemia houve maior visibilidade para estas situações. Se antes havia pessoas que não reclamavam porque tendiam a relativizar e a desvalorizar as situações, durante a pandemia, como tudo isto foi noticiado e as regras estavam em todo o lado, as pessoas começaram a questionar-se e a pensar que aquilo não fazia sentido nenhum – quer dizer, uma grávida não podia ter acompanhante durante o parto, mas assim que saísse, iria estar com ele, e tinha estado com ele também antes de entrar no hospital! Depois, o facto de não poderem amamentar o bebé e não poder estar com ele também não fazia sentido absolutamente nenhum. Até porque a evidência que tínhamos – e a Organização Mundial da Saúde [OMS] foi peremptória nisto –, desde o início, era que os benefícios da amamentação ultrapassavam aquilo que pudessem ser os riscos da covid-19. Aliás, já se tinha percebido que os bebés, à partida, nem sequer eram afectados, ou particularmente afectados; não eram um grupo de risco. Portanto, a amamentação prevalecia e seria sempre mais importante o contacto pele com pele com a mãe; e isto é uma questão de saúde pública, repito. E enquanto a OMS esteve muito bem nisto, e fez vídeos a promover a amamentação e o alojamento conjunto, a verdade é que a maioria das pessoas não tem acesso a esta informação. A informação a que tinham acesso era aquela que estava nos media, e os media passavam a informação dada pela DGS. Portanto, na pandemia, todo o país ficou a acreditar que as mães não podiam ver os seus bebés, nem amamentar – isto é problemático, é violência obstétrica, e também violência neonatal, feita pela DGS. Podem dizer que a DGS é composta por profissionais de saúde, e é, mas não exclusivamente.
Mas, acho que naquela altura, como houve mais mediatismo relativamente àquilo que estava a acontecer nos hospitais, os casais também começaram a revoltar-se mais e começaram a procurar saber se havia alguma lei que os protegesse e a questionar-se sobre quais eram os seus direitos. E começaram a fazer imensas reclamações. Foi, de facto, uma altura muito boa para as pessoas perceberem que têm direitos; também se fizeram algumas reportagens sobre isto. E foi bom porque as outras pessoas, que ainda não estavam grávidas, e que agora eventualmente estão a engravidar ou a pensar em ter bebé, já estão mais informadas e já sabem que têm direito a ter três acompanhantes, e têm uma série de direitos que efectivamente não foram cumpridos durante a pandemia, e continuam a não ser em muitos hospitais. Ou, quando são, é de uma forma muito difícil.
E todas essas regras sem nexo, e até prejudiciais para as mulheres e para os próprios bebés, acabam por ter uma impunidade; não houve, nem há ainda, consequências para as autoridades de saúde por essas práticas?
Depende do que as pessoas fazem. Muitas vezes, as pessoas não reclamam; quando dizem que reclamam, é porque reclamaram na caixinha de comentários do Instagram de alguém que falou sobre o assunto. Para elas, isso já é reclamar porque já tiraram aquilo do peito, mas isso não é reclamar, efectivamente. Depois, há pessoas que só reclamam a alguém no hospital, mas isto também não é uma reclamação – a reclamação tem de ser formalizada. Eu até lancei um guia prático porque percebi que as pessoas não sabem como fazer reclamações, nem a quem dirigir as reclamações, nem o que devem dizer, ou como é que a reclamação deve estar estruturada. Então, lancei esse guia para as pessoas conseguirem orientar-se e poderem reclamar sozinhas, porque não é preciso advogados para fazer as reclamações todas. Mas, de facto, as pessoas ainda reclamam pouco. Quando me chegam, muitas vezes, é porque percebem que querem reclamar, e não querem fazê-lo sozinhas porque têm medo de eventuais represálias, e querem perceber qual é a melhor forma de o fazer, e também se judicialmente podem ter algum ganho ou vantagem; se é possível ganharem aquele caso. E, efectivamente, nem sempre é possível. Nem sempre temos casos assim tão fortes que seja possível levar para tribunal.
Ainda assim, é útil reclamar, porque tanto a Entidade Reguladora da Saúde [ERS] como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde acabam por guardar registos. E depois, por exemplo, a ERS faz um relatório trimestral, se não estou em erro, em que colocam lá todas as reclamações que são feitas, ou as mais importantes; e também já temos lá reclamações por violência obstétrica, embora não seja a própria ERS a classificá-la dessa forma. São as pessoas que classificam como violência obstétrica; e isto é bom porque, por um lado, notifica-se os próprios serviços de bloco de partos e obstetrícia do que correu mal e do porquê de aquela grávida ter ficado insatisfeita, e do que podem melhorar na equipa – se eles quiserem ter essa discussão em equipa, porque podem não querer. Mas as administrações hospitalares também ficam a perceber o que se passa no bloco de partos, por exemplo; e a ERS tem uma noção de quantas queixas existem pelos mesmos motivos naquele hospital, ou em todos os hospitais do país. Portanto, as queixas muitas vezes têm resultado – podem é não ter o resultado mais imediato. E, claro, depois, tudo o que seja judicial, que é a parte de receber indemnizações, e de fazer a queixa-crime, etc., aí já é tudo muito mais lento. Mas mesmo muito, muito mais lento.
Tendo em conta que vivemos numa altura em que se fala muito de feminismo e dos direitos das mulheres, parece-lhe que este tema é suficientemente falado ou, pelo contrário, ainda se discute pouco, nomeadamente em círculos feministas?
Penso que agora já começa a ser abordado, finalmente. Até 2021, nem por isso, principalmente em Portugal. E desde que temos o Observatório de Violência Obstétrica, que veio fazer imenso pelo movimento, temos cada vez mais associações feministas a referirem a violência obstétrica, e temos mais eventos sobre isso. Neste momento, penso que já não há nenhuma associação feminista em Portugal que não saiba o que é violência obstétrica, e que não a inclua também em todo o tipo de violência de género ou contra as mulheres. Penso que já está mais do que estabelecido que, efectivamente, isto é violência institucional de género, e os movimentos feministas falam cada vez mais sobre isto. Alguns, se calhar, não têm ainda tanta noção do que é, mas estão a começar a apalpar terreno e a tentar perceber; até porque isto veio dar nome àquilo que muitas mulheres já sentiam, e sabiam que tinham passado por isto, mas sem terem ainda um nome para o qualificar. Eu lembro-me que quando se começou a falar mais sobre isto, e quando surgiu o Observatório de Violência Obstétrica, até nas primeiras manifestações que foram feitas, havia mulheres já com filhos da minha idade – na casa dos 30 – a dizer que passaram por tudo aquilo, mas que na altura não sabiam que tinha um nome. E que ainda hoje têm dores da episiotomia que foi feita, ou ainda têm pesadelos… Portanto, isto fica para sempre; não é por não falarmos nisto que as coisas desaparecem. Simplesmente, não tínhamos um nome para este tipo de violência, e ainda bem que agora temos, e temos pessoas que se identificam c om isto. E há até apoiantes do Observatório de Violência Obstétrica que são mulheres que já passaram pela menopausa, mas que sabem que foram vítimas, e só agora é que perceberam qual era o nome para aquele tipo de violência que sofreram já há 30 ou há 40 anos.
As fotografias de Mia Negrão são da autoria da fotógrafa Sónia Brito
Depois do famigerado logotipo, a polémica desta semana foi o lançamento do livro Identidade e Família, promovido pelo Movimento Acção Ética e apresentado esta segunda-feira pelo ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Todo este alvoroço serviu, entre outras coisas, para evidenciar as incoerências, contradições e acrobacias argumentativas de muitos críticos para quem, pelos vistos, só as opções de vida alinhadas com a agenda LGBT merecem ser promovidas e celebradas.
Tendo lido o livro, creio que poderá ser sumarizado, em poucas palavras, como um comovente tributo à família. Em particular, sim, à dita família tradicional ou natural. Quem alega não saber o que isso é, deverá ter as suas dúvidas dissipadas se tentar formar uma família biológica sem o recurso à ciência moderna. Muito provavelmente, não vai conseguir. Contudo, ao que parece, nos mui interessantes tempos que correm, os esclarecidos são aqueles que negam a biologia, e os “chalupas” são aqueles que aceitam os seus pressupostos.
A este respeito, as críticas à ideologia de género plasmadas no livro foram usadas para afirmar que esta obra se baseia no ódio e no preconceito. Não é o caso; pelo contrário. É, sim, uma obra assente no amor, que celebra e defende uma instituição que é a célula-base da sociedade, e que, por isso, se reveste da maior importância. Como seria de esperar, porém, serviu de fermento para o azedume e a hostilidade arraigadas contra aquilo que jornais de referência como o Expresso apelidam de direita ultraconservadora.
O elogio e a promoção dos laços familiares tradicionais constituem hoje um discurso extremista, reacionário, fascista; enfim, perigoso ao ponto de representar um retrocesso civilizacional até à Idade da Pedra. Por outro lado, os mesmos epítetos não foram aplicados à meia dúzia de activistas – assim os denomina a imprensa mainstream – que protestaram à porta da livraria Buchholz durante a apresentação do livro, de bandeiras LGBT em punho e entoando as palavras de ordem “Morte aos Fascistas”. Estes terríveis fascistas a quem se desejava a morte, seriam, claro, todos aqueles que subscrevem o conteúdo do livro – tanto os que se encontravam dentro da livraria, e os outros.
Vimos diversas críticas e reacções indignadas em relação ao livro. Alguns, querem convencer-nos de que a família é uma instituição ultrapassada, démodé, como se se tratasse de uma tendência sazonal que agora devemos descartar. Pretender que uma aspiração tão natural e visceral como a formação de família é algo datado é tão absurdo como dizer que necessidades básicas como comer e dormir também já estão gastas.
Muitos, dizem que a família natural não existe, e que qualquer conjunto de espécimes humanas e não-humanas pode configurar uma família, e que afirmar o contrário é retrógrado e bafiento. Eis o que já cheira a bafio: esta tentativa incessante de desfigurar a família e aniquilar os valores tradicionais. Uma intenção que não é de agora, mas que tem ganhado terreno através de uma profusão de ideias que levam ao extremo aquilo que o liberalismo tem de pior, resultando num individualismo e hedonismo doentios em que o homem e o seu desejo são a medida de todas as coisas.
Há quem considere disparatado o desígnio da obra, e troce de alegações de que há uma guerra aberta contra a família. Ironicamente, a urticária generalizada que o livro causou comprova, precisamente, a sua pertinência e necessidade. Afinal, por que carga de água este livro seria tão polémico, se não existisse uma aversão e desejo de repressão dos valores tradicionais e à dita família natural?
Os militantes woke asseguram-nos sempre, aliás, que não há razões para temer a defesa dos direitos da comunidade LGBT porque estes em nada prejudicam os demais membros da sociedade. Aplicando o mesmo raciocínio, porque se sentem tão incomodados com a mesma liberdade de todos os não-membros da comunidade LGBT para fazer apologia do seu modus vivendi? Parece que, afinal, só acham válido celebrar as suas próprias escolhas e estilos de vida – as pessoas conservadoras e tradicionais não têm direito a exibir orgulho pelas suas opções. Ensinar ideologia de género nas escolas não é doutrinar, dizem-nos, numa espécie de gaslighting. Mas é quem o diz, que agora entrou num pranto pela disseminação de ideias diferentes das suas, vistas como perigosas e prejudiciais.
Embora uma certa “direita” – ou, talvez, que se identifica como direita –, tentando pôr água na fervura, tenha logo vindo acautelar que o livro não tem como co-autores apenas pessoas de uma ala mais conservadora ou religiosa, este tipo de argumentos é ceder à ‘cultura de cancelamento’ vigente. O fundamental é admitir que, sim, o livro apresenta opiniões bastante zelosas dos laços familiares tradicionais, e que essas posições são mais do que legítimas e não devem ser censuradas ou conspurcadas do debate público.
Foi também divertido ver alguns críticos da obra a lembrar que hoje há muitas famílias monoparentais, fragmentadas, refeitas, e todos os obstáculos financeiros ou sociais que as famílias enfrentam. Mais uma vez, esta observação só reafirma a importância de se proteger e fomentar uma cultura mais amiga das famílias e propícia à criação de vínculos familiares fortes. O cenário actual em que se revela cada vez mais difícil manter uma família coesa é resultado, precisamente, da perda de valores que este livro tenta denunciar.
Por fim, são dignos de louvor todos os nomes que contribuíram para o livro, e que tiveram a coragem de se expor nestes tempos sombrios em que contrariar as convenções politicamente correctas torna o herege alvo de apedrejamento público. Ficou comprovadíssimo que estas iniciativas são necessárias e urgentes, como pão para a boca.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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O resultado das eleições de 10 de Março não deixou ninguém indiferente. O grande vencedor das eleições foi o Chega, que, para além de ter passado de 12 para 50 mandatos, contribuiu para uma surpreendente redução da abstenção. Pessoas que nunca tinham sequer votado, ou que não votavam há muito, sentiram-se mobilizadas pelo partido de André Ventura. Nestes casos, contam-se muitos jovens, que, saturados com a situação do país, depositaram no Chega a sua fé numa mudança.
Agora, o futuro afigura-se imprevisível, mas se há efeito que devia brotar destes resultados eleitorais, é este: o travar de um discurso que insiste numa visão maniqueísta e simplista, onde os eleitores do Chega são perigosos fascistas, reacionários, ou estúpidos. No contexto actual, a ideia de que quase 1.200.000 portugueses votaram no Chega porque são antidemocráticos é demasiado curta, preguiçosa, e ignora a heterogeneidade deste universo de votantes.
Por vezes, vemos também uma postura elitista e sobranceira que pretende diminuir os eleitores do Chega, e a sua inteligência, apelidando-os de ignorantes e boçais. Os arautos da inclusão terão, afinal, algum preconceito para com as camadas menos letradas da população?
Muitos consideram ingénuo acreditar que o Chega será a mudança que diz ser para o país, e de facto, até agora, temos poucos motivos para crer que o partido de André Ventura terá qualidades superiores aos partidos que nos têm governado. Contudo, aplicando-se o mesmo raciocínio, não deveria chamar-se com o mesmo fervor de incautos aos milhões de portugueses que continuam a votar no Partido Socialista [PS], depois de anos a fio de fraca governação?
É até muito mais lógico confiar o voto a quem ainda não tem “cadastro”, do que a um partido, ou a um “bloco central” que, de forma reiterada, já deu provas de que não o merece. E, embora tenha perdido muitos dos votos obtidos em 2022 – cerca de meio milhão -, o PS nem sequer foi fortemente penalizado nestas eleições. A sua desvantagem em relação à Aliança Democrática foi tão exígua que, se o PSD não tivesse concorrido em coligação com o CDS-PP, provavelmente Pedro Nuno Santos seria dado como vencedor – pelo menos, pondo de parte o assinalável crescimento da direita. Ora, como é que os eleitores socialistas podem merecer a complacência daqueles que condenam quem dá um voto de confiança a quem nunca governou?
Quase duas semanas depois das eleições, há alguns efeitos visíveis. Há quem se mostre agora mais disposto a tentar compreender o ponto de vista de quem pensa, e vota, num sentido diferente, e a dialogar e a criar pontes. Outros, infelizmente, parecem agarrar-se com o mesmo – ou ainda mais – afinco a uma visão dicotómica do mundo, em que de um lado estão os bons, e do outro os maus.
Para estes últimos, não deveria ser difícil perceber os motivos que levaram ao crescimento do Chega, que são mais que muitos, e até legítimos, por muito que lhes seja confortável enterrar a cabeça na sua ideologia e recusarem-se a ver óbvio. É evidente que os eleitores do Chega não são criaturas temíveis e medonhas, que devemos enxotar a todo o custo. Muitos, talvez a maior parte, são pessoas normais, insatisfeitas (e quem pode estar satisfeito?), que viram neste partido uma possibilidade de inversão de rumo. Se viram bem, é discutível. Mas, então, que se discuta, e se debata, com mais abertura e respeito mútuos, e menos chavões e epítetos ocos.
Também é pertinente reflectir sobre a vitória do Chega dada pelos emigrantes, e que nada tem de paradoxal, incoerente ou hipócrita, sabendo nós que estes portugueses foram obrigados a emigrar, precisamente, devido às políticas do centrão. É, pois, natural que tenham batido com o pé, votando no partido que se diz antissistema. Além disso, a forma lamentável como o Partido Socialista tem (des)tratado os emigrantes teria de ter consequências. O contrário é que seria de estranhar.
Finalmente, se queremos combater esta cultura de trincheiras, é preciso reprovar a atitude antidemocrática e deplorável de um outro vencedor destas eleições: o Livre. Rui Tavares, arrolando os argumentos mais mirabolantes, tentou fazer tábula rasa do voto de mais de um milhão de portugueses, conspurcando o partido de André Ventura como se este não contasse para nada. Mostrou a essência do seu partido: um lobo em pele de cordeiro, porventura o mais perigoso à esquerda, de tão cínico e dissimulado.
Sempre debitando palavras vãs e evocando a defesa da democracia, esta esquerda dita “moderada”, “fresca” e “cosmopolita”, revelou-se o seu oposto. Engendrando uma bizarra e sinistra teoria ao melhor estilo democrático, numa espécie de “vamos a eleições até que a esquerda consiga maioria para governar”, Rui Tavares comprovou que de democrático, tem pouco, e de divisivo, tem muito.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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Prematuramente falecido aos 54 anos, em 1998, Francisco Lucas Pires é hoje um dos históricos do CDS-PP, a par de Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira. Mas deixou sobretudo um legado de intelectual, visionário, percursor da direita liberal em Portugal que o advogado e escritor Nuno Gonçalo Poças quis perpetuar através de uma biografia. Para esta extensa biografia do antigo presidente do CDS-PP, que se destacou também como eurodeputado, o seu biógrafo acompanha a vida de Lucas Pires desde que o político conimbricense veio ao mundo, em 1944, até à data da sua morte. Com este O Príncipe da Democracia, Nuno Gonçalo Poças pretende ressuscitar o pensamento e ideais de Lucas Pires para o debate público.
Francisco Lucas Pires foi presidente do CDS-PP e teve um papel importante na direita portuguesa, mas não é um nome tão sonante como Sá Carneiro ou Adelino Amaro da Costa, por exemplo. Ainda assim, a sua relevância política é comparável?
Eu não tenho bem a certeza das razões pelas quais ele não é tão lembrado como o Sá Carneiro ou o Adelino Amaro da Costa. Consigo imaginar… As pessoas quase que ainda se lembram mais do Adelino Amaro da Costa do que do Freitas do Amaral, por causa da questão da morte; acho que tem mais a ver com isso. E o Lucas Pires também não foi assim tão recordado pelo CDS porque saiu do partido. Portanto, acho que isso também pesou um bocadinho. Mas, de qualquer das formas, diria que o legado político e partidário, e até mais mediático, do Lucas Pires não é comparável ao de Sá Carneiro, de Mário Soares, de Freitas do Amaral ou até o do Álvaro Cunhal; porque foram as figuras de destaque num período, não de transição, mas de afirmação da democracia. Por isso, apesar de tudo, Lucas Pires foi, politicamente, uma figura mais secundária, e só se tornou uma figura de primeira linha quando se tornou presidente do CDS, pela própria inevitabilidade da posição que tinha. Contudo, intelectualmente, filosoficamente e ideologicamente, acho que ele foi, para o campo da direita democrática, muito mais importante do que qualquer um dos outros.
Era um política que valia sobretudo pelas suas ideias?
Sobretudo por causa daquilo que pensava e escrevia, e da maneira como o transmitia. Mas se hoje olharmos para aquilo que foi o programa político da coligação PàF em 2015, do PSD em 2011, e do CDS em 2011, em 2009, em 2005, e em 2001-2, quando o Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, que tinha um programa mais liberal, e até para o programa da Aliança Democrática [AD] em 2024, não é muito diferente daquilo que era o programa do Grupo Ofir de 1985 – a matriz está lá toda. Depois, há uma série de propostas em concreto que são adaptadas aos tempos, mas a matriz ideológica vem sobretudo dali. E acho que o grande mérito dele é esse, e por isso é que também acho que é importante recuperá-lo. Para quem quiser perceber qual é o campo da direita democrática, ideologicamente e politicamente, e sobretudo numa altura em que a direita se voltou a abrir mais à direita, digamos assim, acho que é importante recuperar a ”fonte” disto tudo. Obviamente que não foi o Lucas Pires que inventou o liberalismo, mas…
Nuno Gonçalo Poças
Se fosse vivo, acha que ele poderia identificar-se com um partido como a Iniciativa Liberal?
Acho que não.
Porque apesar de ser da direita liberal, tinha ideias mais conservadoras?
Sim; e antes de mais, o Lucas Pires era católico e tinha uma presença cristã muito forte na vida dele. Acho muito difícil colar um rótulo ao Lucas Pires; é mais fácil dizer que era uma pessoa de direita, e que era liberal, mas isso é uma simplificação muito grande daquilo que era o pensamento dele. Porque acima de tudo, acho que foi um actor político intelectual mais do que a maioria dos políticos foram. A maioria dos políticos que tivemos foram mais intérpretes do que actores, e ele foi um actor e um criador.
Lucas Pires já defendia, por exemplo, a criação de um Tribunal Constitucional.
Sim, ele defendia a criação do Tribunal Constitucional já antes do 25 de Abril. E ele tem também um texto interessante sobre o poder local e a maneira como as autarquias se organizam.
Onde até critica o Partido Socialista?
Sim, e aquilo é um texto de 1976 que continua actualíssimo, porque não mudou rigorosamente nada. Todas as críticas que ele fazia naquela altura continuam actuais. E esse pensamento parte de uma base liberal no sentido em que, para o Lucas Pires, toda a base do pensamento é o homem enquanto centro da actividade política.
A tal antropocracia que defendia?
Exactamente; a ideia da soberania do Homem antes da soberania do Estado. Por exemplo, em relação a essa questão do poder local, [ele] parte desse princípio da soberania do Homem e da maneira como as próprias cidades e comunidades são organizadas, e de que o homem é o centro do poder político. E, ao mesmo tempo, parte de uma matriz quase social-cristã daquilo que ele acha que deve ser a organização de uma sociedade. Portanto, há aqui uma mistura de influências e também um lado criativo que o leva a apresentar propostas, na maioria das vezes, antes do tempo; antes delas sequer chegarem a ser equacionadas ou implementadas. E estamos a falar de coisas com 10, 20 ou 30 anos de antecipação, e que a maioria delas continua muito actual. Acho, por exemplo, que não teria havido a revisão constitucional de 1982 sem ele; não teria havido o fim do Conselho da Revolução e o regresso dos militares aos quartéis sem o seu papel e sem a força do pensamento dele; e não teria havido a revisão constitucional de 1989, com o fim da irreversibilidade das nacionalizações e a liberalização do sector económico. Portugal também não teria aderido à moeda única sem o papel que ele teve. Talvez tivesse aderido à Comunidade Europeia porque foi uma coisa um bocadinho mais consensual, mas ainda assim, o papel dele foi bastante importante. Em 1974-75, ele era das poucas pessoas que, de facto, entendia que Portugal já estava num bloco europeu e que Portugal devia ser um país europeu. E nessa altura, o país ainda não estava propriamente aí; uma boa parte das pessoas achava que Portugal devia estar sob a esfera da União Soviética, e outra parte do país – talvez uma minoria mais ruidosa – achava que Portugal devia estar na rota do Terceiro Mundo, quase.
Era um europeísta convicto, e nesse aspecto, até se distanciou de uma direita mais nacionalista?
Ou de uma direita mais soberanista, que apareceu quase por oposição a ele. Ou seja, se calhar, há uma inversão de termos. Mas acho que o europeísmo dele também partia exactamente desse princípio da soberania do Homem e não da soberania do Estado. E no fundo, ele achava que a construção de uma democracia europeia não podia ser uma democracia com um cariz tecnocrático, e que o Parlamento Europeu devia ter muito mais relevância, muito mais força e mais competências; muito mais poder decisão do que tinha, e até ainda do que tem hoje, precisamente com base nessa lógica – o Parlamento Europeu era, de facto, quem representava o povo europeu directamente, e não os governos representados proporcionalmente no Conselho Europeu.
Acha que ele veria com bons olhos a União Europeia actual? Corresponde ao modelo que ele defendia?
Acho que não. Isto é um bocadinho contrafactual e tentar-me pôr na cabeça de uma pessoa que morreu há 25 anos, e já aconteceram imensas coisas que ele não viu. Mas, tendo em conta aquilo que ele pensava e que deixou escrito nos últimos anos, acho que ele não teria deixado de ser um europeísta.
Ele defendia uma União Cultural da Europa, certo?
Sim, e percebia que a Europa podia ser um mercado único, mas não podia ser só um mercado único.
Era apologista de um Estado federal da Europa?
Não era bem um Estado federal. Acho que, mesmo aqui, reduzir o Francisco Lucas Pires a um federalista também é um bocadinho redutor; porque a visão dele para a Europa é uma visão absolutamente criativa e inovadora, que foge a essa disputa dos soberanistas e dos federalistas. Ele percebia que conseguia afirmar uma espécie de nacionalismo através de uma federação de Estados, numa lógica em que Portugal estaria muito mais representado no espaço europeu, no Parlamento Europeu, do que não estando lá. Ou seja, num mundo em processo de avanço da globalização e de grandes blocos políticos, económicos e até militares, ele percebia que a grande força da Europa dos portugueses só podia ser veiculada dessa maneira. E há algumas coisas interessantes. Por exemplo, aquilo que ele dizia relativamente à necessidade de a Europa ter um poder militar por ela própria e não ficar dependente da NATO, e da importância que isso tinha relativamente àquilo que a Rússia podia vir a sentir à medida que a NATO se ia alargando a Leste – é uma coisa muito interessante, e não é um texto, foi um relato oral que ele fez para uma rádio em 1995. 30 anos depois, estamos exactamente aí.
E ele começa a divergir do CDS, e sai do partido, em 1991, em colisão com Manuel Monteiro, que tinha uma visão muito mais eurocéptica?
Ele sai do CDS ainda antes de Manuel Monteiro ser presidente. Ele percebe que o CDS, para continuar a existir naquela altura, tinha de passar a ser outra coisa completamente diferente. Portanto, percebendo que o rumo do CDS só podia ser esse e que ele não se identificaria com ele, resolve sair. E depois, Manuel Monteiro foi eleito presidente e apostou numa política um bocadinho mais soberanista, contra o Tratado de Maastricht, que até acaba por ter sucesso eleitoral. Porque em 1995 o CDS recupera muitos deputados que tinha perdido em 1987 e 1991.
Quando Lucas Pires esteve à frente do CDS, entre 1983 e 1985, as eleições legislativas não lhe correram muito bem.
Sim, em 1985. Mas depois foi candidato às eleições europeias em 1987 e teve um bom resultado. Houve eleições legislativas e europeias no mesmo dia e o CDS, com ele, faz uma campanha quase unipessoal, e para as europeias consegue 16 ou 17%, e nas legislativas, no mesmo dia, tem só 4%. Houve claramente uma divergência eleitoral muito grande. E em 1987, como dizia José Miguel Júdice, ele era visto quase como o político do século seguinte. Era a pessoa mais fresca, que trazia mais novidade e mais adaptada ao tempo e àquilo que o futuro aparentava ser.
E também sofreu um bocado precisamente por ter esse lado visionário, foi mais incompreendido?
Eu acho que isto é uma coisa muito triste de se dizer, mas em política, normalmente, quem tem razão antes do tempo não ganha nada com isso. Mais vale não ter razão do que ter razão antes do tempo. Mas isso também é o que o distingue, porque o Lucas Pires não foi só um político – foi um político e um intelectual ao mesmo tempo. E não houve muitos. E ele conseguiu sê-lo, ainda por cima, à escala Europeia. Acho que a grande dificuldade dele tem um bocadinho a ver com isso… O Jacinto Lucas Pires [filho de Francisco Lucas Pires] disse-me que ele sofreu sempre um bocadinho porque na política foi sempre visto como um intelectual, e no campo académico mais intelectual, foi sempre visto como um político. E as pessoas em Portugal tendem a deixar estas coisas mais estanques, divididas em caixotes – um académico é um académico, não vai para os jornais dar entrevistas e para as ruas distribuir panfletos, ou discursar para o Parlamento e coisas do género. E na política é exactamente a mesma coisa; parte-se do princípio que um político não está a reflectir sobre o futuro e sobre a organização do Estado, porque, no fundo, está a resolver problemas do quotidiano. Nós criámos um bocado essa imagem e acho que também se percebe isso à medida que se acompanha o percurso dele e o percurso do país: criámos a perspectiva do político como uma espécie de intérprete, de um executante, um director-geral.
Um burocrata?
Sim; um tecnocrata, um burocrata, um director-geral que é eleito em vez de ser nomeado ou escolhido por concurso. E que é uma coisa um bocado estranha. Quando se fala da profissionalização da política, acho que é um conceito mais difícil de se materializar… Quer dizer, o Lucas Pires fez política desde 1976, ininterruptamente, até 1998. E podia-se considerar, nesse sentido, que seria um profissional da política, embora não tivesse feito só política; foi jurisconsulto e continuou a dar aulas, etc. Mas a profissionalização da política não tem tanto a ver com o tempo que se dedica à actividade política em si; tem a ver, sobretudo com a forma como ela é exercida. E acho que, nesse aspecto, ele nunca foi um profissional da política. Tal como também foi um líder que nunca teve um ”ismo” atrás dele – o ”pirismo” nunca existiu. Embora houvesse piristas, talvez; pessoas que lhe eram muito leais e que o seguiam com muita dedicação. Mas o pirismo enquanto doutrina, quase como o cavaquismo, o suarismo, ou o passismo, acho que nunca existiu. Porque o Lucas Pires tinha essa condição de personalidade; no fundo, era alguém que prezava a liberdade acima de qualquer outra coisa, e isso incluía necessariamente a liberdade dos outros e o respeito pela opinião dos outros. E esse tipo de personalidade torna muito difícil que uma pessoa seja líder de um movimento seguidista.
No livro até se diz que ele tinha um “tique do contraditório”.
Sim, e há uma expressão engraçada que ele tem sobre isso; dizia que a política e a vida, no fundo, era quase como ter uma laranja na mão, uma coisa esférica, e aquilo vai-se rodando e o propósito é mesmo esse: ficar a olhar para uma coisa, rodá-la e perceber que ela pode ser vista de vários prismas, de várias maneiras. E não há uma maneira absolutamente mais certa do que a outra. E ele conseguiu afirmar as suas ideias e, ao mesmo tempo, ter essa noção de que a opinião do outro era importante. Era por isso, também, que ele tinha o hábito de ler os jornais do Avante ao Diabo; e de tentar perceber a perspectiva dos outros, até como fórmula para enriquecer as suas próprias ideias e, depois, tentar responder a isso.
Era alguém que fazia pontes e era até amigo próximo de comunistas, como Vital Moreira, e de pessoas que tinham visões muito diferentes...
Sim, mas acho que isso até na faculdade já se notava muito.
Conseguia não ser ostracizado pelas esquerdas?
Sim. Aliás, se fizermos um balanço, até acho que, durante muito tempo, talvez a esquerda o tenha admirado mais, embora tenha discordado sempre dele. E a direita, embora tenha concordado mais com ele – embora nem sempre – o admirava menos. Porque – e talvez esta expressão não seja a mais correcta – ele era menos fiável, no sentido em que não era um chefe de claques. E as pessoas na política gostam muito disso – de sentir que aquela pessoa é um chefe de claques, e não é alguém que está lá para fazer perguntas, para interrogar e fazer ver o outro lado. E é uma qualidade que eu aprecio particularmente – se alguém está com mais de 20 pessoas à mesa, e disser A, e toda a gente a seguir também disser A, eu provavelmente faria o mesmo: teria necessidade de dizer ”então e se fosse B?”. E ele tinha essa capacidade, mas, politicamente, eu percebo que isto possa não ser uma grande vantagem comparativa.
Mas ele nunca se importou com isso, não tinha uma ambição tão grande de ser um político profissional, como disse, e de ter cargos de maior destaque?
Eu acho que ele teve essa ambição. Aliás, acho que ele foi talvez o único presidente do CDS que teve a real ambição e perspectiva de liderar o maior partido à direita. Talvez tenha sido mesmo o primeiro presidente do CDS que quis ser primeiro-ministro e não vice-primeiro-ministro – mas exactamente por causa da necessidade de afirmação das suas ideias; por acreditar que aquilo em que tinha pensado, as propostas que tinha e as ideias que tinha desenvolvido com outras pessoas, deviam ser implementadas. E, na verdade, muitas foram. Embora não tenha sido, obviamente, apenas mérito dele porque houve muito mais pessoas envolvidas nos processos.
E foi também coordenador da primeira AD.
Sim, embora esse lugar tenha sido um bocadinho vazio de conteúdo; foi quase oferecido para o manter dentro sem lhe dar demasiado gás – para usar uma expressão mais corriqueira.
Mas, de qualquer maneira, as suas ideias foram fazendo caminho?
Eu acho que fizeram sempre; embora muitas delas, ainda não. Em boa parte, acho que o legado político-ideológico do Lucas Pires ainda está por cumprir – ao nível das estruturas do Estado, mas também ao nível das estruturas mentais do próprio país, ou da comunidade portuguesa. Há uma série de coisas que estão por cumprir.
E quais é que destacaria?
Há uma expressão engraçada, que não sei se é bem dele, mas que acho que fica muito clara em 1985, quando ele se candidata contra o Cavaco Silva. Ele parte do princípio, em quase tudo – mesmo naquilo que é mais discutível – que para o ser-humano ser o mais livre possível, isso traz necessariamente uma responsabilidade acrescida. Portanto, que as pessoas são directamente responsáveis pelos seus actos, escolhas e decisões; e não é o Estado que decide, escolhe e pensa em função delas. Não é o Estado que decide aquilo que as pessoas devem ou não fazer, ou ambicionar. E acho que a vitória do Cavaco em 1985 foi muito por causa disso – porque ofereceu uma visão alternativa a essa, que fazia quase um intermédio entre aquilo que era a visão mais estatista do PS – porque o PS na altura também tinha virado muito à esquerda com Almeida Santos – e do PCP, com a visão mais liberal do CDS. Portanto, aquilo que o Cavaco garantia é que o país podia sofrer uma mudança suave. E esse discurso até voltou um bocadinho, recentemente. Acho que o Cavaco corresponde muito mais àquilo a que eu chamo as pequenas ambições do português médio, e o Lucas Pires estava noutro patamar: aquilo que queria dar às pessoas era total liberdade e total responsabilidade. E acho que continuamos ainda nesse ponto; não somos um país com especial apreço pela liberdade e por assumir a nossa própria responsabilidade. É sempre mais fácil ter o Estado, o burocrata, alguém a decidir aquilo que é melhor para nós, para depois, nós podermo-nos queixar de outra pessoa, e não de nós próprios. Por isso é que digo que, em termos estruturais, da mentalidade colectiva, isso continua por mudar. Tal como também continua por mudar outra coisa de que ele falava: a necessidade de uma revolução cultural para acabar com a “mendicidade rica“, que era a cultura do compadrio e das cunhas. Como vemos, as coisas continuam exactamente na mesma. Mas acho que nunca chegámos aí, também porque o país, e o Estado, nunca fez alterações políticas institucionais que permitissem fazer com que esse espírito de liberdade fosse mais comum do que é.
Ele também criticava a importância excessiva que se dava aos líderes, e não àquilo que efectivamente se queria para o país.
Sim, a pergunta do quê, e não do quem. E nós estamos sempre a perguntar pelo quem. Acho que isso ainda hoje é muito evidente. Continuamos sempre a ver quem é o candidato mais simpático…
Ou o mais carismático…
Sim, o mais carismático, aquele que está melhor nos debates, ou aquele que está pior… No fundo, não há uma discussão séria sobre aquilo que os candidatos, ou os políticos, defendem.
Olha-se mais para a embalagem, não tanto para o conteúdo.
Exactamente; discute-se o rótulo mais do que o produto, como dizia Lucas Pires.
E como surgiu este título? Porque é que Lucas Pires foi o príncipe da democracia?
O título surgiu num brainstorming. Eu tinha uma lista muito grande de títulos e não estava especialmente contente com nenhum, e acho que este faz muito sentido e adapta-se muito bem. Primeiro – se quisermos ser um bocadinho mais redutores –, porque o príncipe não governa; e ele, na verdade, nunca governou. Mas se pensarmos naquilo que é a figura de um príncipe, no sentido da elegância, da elevação, da capacidade de unir, de representar – acho que ele foi tudo isso. E da democracia, porque foi na democracia que ele viveu e foi para isso que, essencialmente, contribuiu. E acho que é “O“ príncipe e não “Um“ príncipe, precisamente por causa daquilo que eu estava a dizer no início: em Portugal, em 50 anos, não houve ninguém, excepto ele, que tenha conseguido ser simultaneamente actor, intérprete, e criador da maneira como ele foi. Nesse aspecto, acho que foi um político absolutamente singular.
Lucas Pires faleceu com apenas 53 anos, em 1998. Acredita que se tivesse vivido mais tempo, teria conseguido materializar mais aquela que era a sua visão, ou o país nunca estaria preparado para as suas ideias?
Eu acho que continua a não estar. Mas em termos mais práticos… Um antigo secretário-geral do Partido Popular Europeu que eu também entrevistei, diz que se ele não tivesse morrido naquela altura, teria sido provavelmente, o primeiro, e até agora único, presidente português do Parlamento Europeu. Além disso, eu não ponho de parte a hipótese de ele poder ter sido, pelo menos, candidato a Presidente da República; e talvez até tivesse tido sucesso.
Acha que ele poderia ter sido Presidente da República?
Acho que podia ter essa ambição, e era um lugar em que talvez até encaixasse melhor.
Ele defendia, aliás, que o Presidente da República deveria ter um papel mais decisivo.
Sim, e no meio de tudo aquilo que era o pensamento dele, o Presidente da República encaixava quase como uma espécie de representação do espírito do país e daquilo que achava que o país devia ser. O Presidente da República não tem de ter um programa político eleitoral, no sentido em que não tem de pôr em prática propostas políticas concretas, de resolução de pequenos problemas ou de transformações estruturais do Estado e da sociedade; mas deve ter um programa político lato sensu. Tem de ter uma visão do Estado e da sociedade e deve corporizá-la.
Nuno Gonçalo Poças, ao centro, na sessão de lançamento da biografia de Lucas Pires. Ao seu lado direito, Martinho Lucas Pires e Francisco Camacho (editor da Oficina do Livro); e ao seu lado esquerdo, os políticos Francisco Assis e Paulo Rangel.
Não tem de estar tão agarrado àquilo que são as ideias de um partido.
E nem ter de estar agarrado à espuma dos dias – tem de perceber que tipo de país é que gostava de ter, e no fundo, exercer a sua função nesse sentido. Obviamente, o Presidente da República é uma figura de pontes e de elaboração de consensos, mas também pode ser o contrário. Por isso é que é importante que tenha uma posição política, porque não é neutro; não é a Rainha de Inglaterra.
No livro, refere que o responsável de marketing da Margaret Thatcher chegou a dizer que achava Lucas Pires demasiado inteligente para liderar a direita em Portugal. Era demasiado inteligente para ser líder da direita, mas poderia almejar ser Presidente da República?
Se Lucas Pires tivesse mesmo sido Presidente da República, isso teria muito a ver com as dinâmicas eleitorais presidenciais dos anos, em concreto, em que houve eleições: 2001 e 2006. E também não dou por garantido que ele fosse eleito, mas acho que podia ser candidato a Presidente da República. Mas eu percebo o argumento: por causa da barba e por ser demasiado inteligente, não podia liderar a direita em Portugal. Percebo, porque para ter sucesso na política – não só no sentido da ambição pessoal, mas também a nível da implementação de políticas –, acho que é preciso ser inteligente, mas talvez não ajude ser muito inteligente.
Pois, ser-se um intelectual pode não ser uma vantagem. Talvez seja mais útil ser-se “esperto“.
Sim, mais hábil, como agora se diz, não é?
Pois. Como intelectual, deixou um legado de ideias e propostas, que ficaram por concretizar.
Sim, acho que esse talvez seja o legado mais importante de Lucas Pires. Hoje, 25 anos depois de ter morrido, e quase 80 anos depois de ter nascido, para mim o mais interessante é pegar nisto e perceber que praticamente tudo aquilo que ele escreveu nos últimos 60 anos continua actual.
Algumas coisas talvez até mais actuais agora do que antes.
Sim, algumas até mais actuais do que na altura em que ele escreveu.
Ele já falava, por exemplo, no envelhecimento da população portuguesa…
Exacto. E também introduziu a questão do direito constitucional europeu, que foi uma coisa que só se discutiu quase 20 anos depois, e mesmo assim não foi uma discussão muito profunda. Em Portugal, foi absolutamente a primeira a pessoa a escrever sobre direito constitucional europeu; e na Europa, se não foi a primeira, foi das primeiras. Quase tudo aquilo que ele trouxe foi novo, e em 2024 é absolutamente actual. É quase como se fosse um futurista na política; alguém que tem um pensamento absolutamente contemporâneo, e que consegue compreender o seu tempo. Mas lá está: para alguém ter sucesso na política, é preciso compreender o seu tempo, e para alguém ser Francisco Lucas Pires, é preciso compreender o seu tempo e para onde se caminhará consoante as decisões que sejam tomadas. E acho que isso é aquilo que o distingue de todos os outros. De resto, era uma pessoa muito apreciada por quase toda a gente.
Não era alguém que semeasse ódios?
Não, mas como morreu precocemente, as pessoas têm muita dificuldade em criticar quem já cá não está. Mas ele teve os seus conflitos partidários, e, tal como também dizia, o CDS não é um clube de escoteiros. Portanto, essas coisas fazem parte, e ele teve as suas zangas e conflitos; é normal. Mas, feito um balanço, creio que toda a gente reconhece que o lugar dele é inquestionável. Também por isso é que resolvi escrever o livro – acho que é importante recuperá-lo nesta fase da nossa vida colectiva, e quase obrigar as pessoas a olhar para isto e perceber que, se calhar, há uma série de coisas que podíamos ter feito de outra maneira e não fizemos. No final dos anos 1990, antes de morrer, ele diz que, pela maneira como as coisas estavam a nível europeu e português, muito provavelmente daqui uns tempos nós estaríamos a queixar-nos por não termos feito as reformas necessárias para entrarmos na moeda única, e que estaríamos a queixar-nos do Banco Central Europeu [BCE] em vez de nos queixarmos de nós próprios por causa daquilo que não fizemos. Acho que isso é muito evidente e, de facto, essas coisas aconteceram. Portugal continua a fazer exactamente a mesma coisa que ele sempre apontou. Nós preferimos sempre escudarmo-nos nos outros, pelas nossas próprias falhas; continuamos a não fazer aquilo que é preciso fazer para sermos um país com mais sucesso, e apontamos sempre a responsabilidade por essas falhas a terceiros: à crise financeira internacional, aos mercados, ao BCE, à Comissão Europeia, às agências de rating, aos imigrantes, ou seja ao que for. E não somos capazes de perceber que, se as coisas não resultaram, foi por responsabilidade nossa, porque nós não fizemos esse trabalho. Porque há outros países que fazem.
Há uma desresponsabilização crónica na sociedade portuguesa?
Sim; por isso é que o princípio dele é sempre este: o Homem é o centro da vida colectiva, da actividade política, e é mais do que o Estado. O Estado é uma construção filosófica, e só existe depois do Homem. O Estado existe porque o Homem pensou nele enquanto mecanismo de organização colectiva. E, seguindo esta lógica, não faz sentido que seja o Estado a decidir como vai ser a vida das pessoas, precisamente porque o Estado não é uma entidade abstracta; são outras pessoas. São burocratas, tecnocratas, etc., a decidir por terceiros aquilo que é melhor para a vida das pessoas.
Em Portugal, o Estado ainda tem muito peso.
Sim, nós estamos em 2024 e continuamos a discutir exactamente isso. Esse talvez seja o grande ponto da campanha eleitoral de 2024: é estatismo contra a contra o não estatismo, digamos assim.
Por falar na campanha eleitoral para estas legislativas, e é uma questão meramente especulativa, mas tendo em conta aquilo que já sabe sobre Lucas Pires, acredita que se ele fosse vivo, seria um dos apoiantes desta nova AD? Tendo ele sido um inconformado, talvez esta AD ainda não materialize o fundamental das suas ideias…
Talvez não, mas eu acho que ele sempre compreendeu também em que ponto é que o país estava, e qual era a direita possível. Penso que ele não era um liberal no sentido mais libertário, precisamente por causa da influência cristã na vida dele; tinha uma perspectiva mais liberal-conservadora do que liberal-liberal. Por outro lado, não era de todo um autoritário; era um cosmopolita, um europeísta, e não era estatista. Portanto, em 2024 – digo eu, mas é uma opinião muito pessoal –, não faça uma manchete a dizer que Lucas Pires votaria na AD, porque não sei se é verdade, mas acho que fosse talvez o campo mais natural; e até porque a AD representa um campo de maior amplitude ideológica, cabe lá muita gente. E nós vimos isso ao longo da campanha: a AD vai de Rui Rio, que dizia que o PSD é um partido de centro-esquerda, a Adolfo Mesquita Nunes – essas pessoas estão todas no mesmo sítio. Portanto, tem uma amplitude ideológica grande o suficiente para eu achar que ele podia lá caber. Mas acho muito arriscado responder a isso [risos].
E como foi o processo de escrita do livro?
Foi uma viagem muito gira. Eu tinha alguma admiração por ele, já conhecia os trabalhos do Grupo de Ofir… Demorei dois anos e meio a escrever, porque também tenho de trabalhar. Mas falei com muita gente e conheci a família dele. E no final, a sensação que eu tenho, é de ter ganhado, talvez não um amigo, mas pelo menos um professor, um mestre-escola; aprendi imenso com ele, directamente: a ouvir aquilo que dizia, a ler aquilo que escrevia. Durante este período todo, houve uma fase em que eu simplesmente deixei de trabalhar porque já não suportava ouvir a voz dele, aquilo já me cansava, de tão absorvido que estava. Mas depois reequilibrei-me. Porque no início começa-se com muito entusiasmo, sempre a recolher informação, e ganha-se um fascínio muito grande. É quase como os casamentos, mas há que saber sobreviver a isso, e criar uma relação um bocadinho mais estável. Às vezes, quase que me é natural tratá-lo por Francisco, como se tivesse andado na escola com ele.
Mas não por Chico? [risos]
Não, não chega a tanto. Acho que só as pessoas que estiveram com ele em Coimbra, e que o conhecem na fase de adolescente ou jovem adulto, é que o tratam por Chico Lucas Pires; como o José Miguel Júdice, ou alguns amigos mais antigos como o Vital Moreira, o Luís Cunha, e a irmã também o trata por Chico às vezes, mas é muito raro. A maior parte das pessoas trata-o por Francisco, e nos casos de maior formalidade, por Lucas Pires. Mas isso é muito giro de observar. Já não sei quantas pessoas entrevistei ao todo, mas foi muito giro perceber as dinâmicas pessoais entre os que o rodeavam. Algo comum que percebi é que toda a gente o admirava muito; alguns sentiam quase um fascínio, e outros menos, também por causa da questão política, nomeadamente aqueles que estavam em campos opostos. Também foi giro entrar na dinâmica familiar. Ele tem quatro filhos, e entrevistei os quatro, para além da mulher e da irmã.
No campo da direita, pelo menos, não houve nenhum outro líder em Portugal como Lucas Pires?
Eu acho mesmo que não. Daqui a 50 anos, se alguém quiser olhar para trás e ver quem foram as pessoas realmente importantes da democracia, acho que são o Soares e o Cavaco. O Cavaco governou 10 anos, foi primeiro-ministro no período de maior transformação e crescimento da economia nos primeiros 50 anos de democracia, e o Soares foi o responsável pela afirmação da democracia do tipo ocidental e não soviético. Portanto, são, talvez, as duas grandes figuras. Depois, há uma série de figuras secundárias, que foram importantes em alguns momentos, e nas quais se inclui, por exemplo, Sá Carneiro. Sá Carneiro foi importante na afirmação de uma alternativa ao poder do PS e do fim da tutela militar. O Freitas do Amaral também teve uma importância em todos estes momentos. Mas, o Lucas Pires tem outra coisa a favor dele: foi, de longe, o mais criativo. E não me admirava que, daqui a 50 anos, se voltasse a pegar nisto, percebesse que a maioria das coisas que ele dizia continuariam actuais.
Seja qual for o resultado das eleições legislativas de 10 de Março, o fim deste período pré-eleitoral só poderá fazer-nos respirar de alívio. Depois do sufrágio, dificilmente poderemos cair num cenário mais deprimente do que aquele que temos vivido por estes dias.
Tem sido penoso ver como a desonestidade assaltou o ‘combate’ político e tomou a democracia como refém, sem pejo nem vergonha. Este jogo do “vale tudo” em que a política portuguesa se tornou só nos pode entristecer e fazer questionar sobre como chegámos a este ponto. Não há margem para dúvidas: batemos mesmo no fundo.
Desde logo, assistimos a um desfile de “debates” – já bastante criticados – entre os partidos com assento parlamentar, que de pouco servem, para além de ocas acusações mútuas e ‘soundbites’ com fartura. Depois, vimos, nos principais órgãos de comunicação, jornalistas e comentadores cativos a avaliar a ‘performance’ dos candidatos, dizendo de sua justiça sobre quem ganhou ou quem perdeu. Quem ganhou, será sempre discutível, mas quem perdeu, é claro: todos nós, eleitores.
Há quem argumente que mais vale ter debates de 25 minutos do que não ter qualquer debate, e mostram-se optimistas com o elevado número de espectadores, referindo que poderá indiciar um maior interesse e envolvimento dos cidadãos com a política. Discordo. Já nas últimas legislativas tivemos este modelo de “debates”, bastante bem-sucedido a nível de audiências, mas que nem por isso se reflectiu numa redução significativa da abstenção.
Muitos assistem a estes ‘duelos’ como se fosse uma espécie de concurso ou reality show. Tornou-se um espéctaculo e mero entretenimento, parecendo apenas interessar ver quem “arrasa” o adversário – e não necessariamente quem apresenta melhores argumentos ou ou mostra maior credibilidade nas propostas.
Para nós, espectadores, e não eleitores, só faltavam entregarem-nos pipocas para o deleite ser completo; não interessa já a política na sua essência pura e dura, mas sim a dopamina gerada por ver quem atiça mais o oponente, atira as maiores ‘larachas’ ou levanta mais a voz ou interrompe com mais frequência. Posto isto, tenho dúvidas de que a generalidade das pessoas fique mais esclarecida depois de um debate deste tipo.
Também é condenável que alguns candidatos tenham conseguido mais tempo de antena do que outros. Queimaram os já escassos minutos de que dispunham com acusações e gritaria, e assim, foi-lhes concedido pelos jornalistas tempo extra. O mínimo que se exige, neste modelo já de si absurdo, é que, pelo menos, as regras sejam iguais para todos. O candidato perdeu tempo com miudezas? Paciência; se ficar alguma coisa por dizer, a responsabilidade é sua.
No final de tudo isto, o balanço só pode ser negro. Decerto que a maioria dos portugueses sabe de cor que Rui Tavares tem os filhos numa escola privada, que a Mariana Mortágua tem uma avó que entrou em “sobressalto” com a Lei Cristas, e que Luís Montenegro, na ‘visão’ de Inês Sousa Real, é um ‘machista’ porque a interrompeu (os candidatos masculinos que interromperam os seus oponentes serão machistas também por isso?), mas quantos terão assimilado, pelo menos, uma mão cheia de medidas, para cada partido?
E se os líderes dos partidos com representação parlamentar merecem avaliações, seria também pertinente atribuir também notas aos jornalistas moderadores – alguns, puseram questões de pouco interesse público, e contribuem sobremaneira para que os debates, já mauzinhos, fossem ainda piores.
No meio disto, fomos ainda brindados com as presenças de líderes partidários nos programas da manhã e da tarde das televisões, mostrando uma empatia e simpatia que tresanda a artificial, numa tentativa de assacar mais uns votos ao eleitorado mais velho. Uma tristeza.
Igualmente tristes são os argumentos esgrimidos, da esquerda à direita, tanto nos debates como nos pós-debates, que quase se resumem, em muitos casos, a slogans vazios e chavões, ou ainda a uma disputa sobre quem é o mais extremista.
Pedro Costa, presidente da junta de freguesia de Ourique e filho de António Costa, ainda esta semana, acusou Luís Montenegro de um ter discurso de extrema-direita. E porquê? Porque o líder social-democrata disse – espantem-se – , que embora os imigrantes sejam necessários e bem-vindos, Portugal deve continuar a ser português. Acaso diria Pedro Costa o mesmo do presidente de Angola, se João Lourenço defendesse que Angola deve continuar a ser angolana? E de Xi Jinping, se dissesse o mesmo da China? É grave que se desça tão baixo, e que se passe, de forma tão flagrante, um atestado de estupidez a todos nós.
Já os nossos ‘entertainers’ de serviço, como Ricardo Araújo Pereira, ocupam-se com as declarações de Gonçalo da Câmara Pereira. O líder do Partido Popular Monárquico serviu de arma de arremesso da ‘esquerda’ para disparar contra à direita, que usou e abusou deste fait divers. Um líder partidário que não tomará sequer parte do Governo, não deveria encimar a nossa lista de preocupações. Mas muitos mordem o ‘isco’ e despendem tempo a cogitar sobre o presidente do PPM, em vez de dedicar atenção àquilo que fará, de facto, diferença nas suas vidas.
Nesta cacofonia nos media tradicionais salva-se, e surpreendentemente, a internet. Com todos os seus defeitos, é graças às plataformas digitais que podemos ter acesso a entrevistas mais demoradas, vídeos mais elucidativos, e aos próprios programas dos partidos políticos.
A este respeito, o PÁGINA UM, aliás, destaca-se por ter sido o único jornal a conceder espaço e voz iguais a todos. Ao contrário de todos os outros órgãos de comunicação social, não contribuímos para um simulacro de democracia que, qual jogo viciado, ao dar palco aos mesmos de sempre, faz com que nada mude. A imprensa tem, por isso, muitas culpas no cartório, quando à deterioração da democracia. Ainda assim, depois, cinicamente mostram-se apreensivos com a ascenção de forças extremistas e antidemocráticas.
Se tivéssemos apenas os media convencionais para nos esclarecer neste período eleitoral, estávamos desgraçados.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
O ainda ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, parecia ser uma das maçãs menos ‘podres’ deste Governo e deste Partido Socialista. Conciliador e diplomático, sempre aparentou, pelo menos, respeitar as classes profissionais sob sua tutela; contrastando, por exemplo, com as figuras do ministro da Educação, João Costa, e da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, que, se não ‘desprezam’ os ‘seus’ professores e os ‘seus’ agricultores, então disfarçam muito bem.
Infelizmente, José Luís Carneiro manchou essa imagem, e é agora protagonista de uma guerra (aberta) entre as forças de segurança e o Governo. Depois das supostas baixas médicas ‘fraudulentas’ apresentadas por alguns polícias, que levaram ao cancelamento do jogo Sporting-Famalicão no sábado, o ministro da Administração Interna tornou-se mais papista que o Papa.
Para além de lhes dar um valente ‘raspanete’, acusou as forças de segurança de “insubordinação” e anunciou a abertura de um inquérito pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI). Contudo, antes de o ministro se pronunciar publicamente no domingo, já o Governo havia qualificado a situação como uma “insubordinação gravíssima”.
Esta resposta do Governo – uma óbvia demonstração de força e autoridade – foi aplaudida; sobretudo, depois de o presidente do Sindicato Nacional da Polícia (SINAPOL), Armando Ferreira, ter dito, na SIC Notícias, que as legislativas de 10 de Março poderiam estar em risco se as forças de segurança repetissem o feito. Vozes preocupadas se levantaram, com alguns a verem neste alerta uma ameaça de “golpe de estado” e uma insurreição.
Toda esta tensão começou (e escalou bastante) em Novembro passado, sobretudo depois de o Governo ter aprovado um suplemento de missão às carreiras da Polícia Judiciária, discriminando a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana. Agora, embora se valide o descontentamento das polícias, diz-se que os seus protestos têm de manter-se dentro da legalidade. Ou, por outras palavras: ‘podem espernear à vontade, desde que não incomodem’. Ou seja, desde que as manifestações de descontentamento sejam inócuas e não sirvam para nada – tal como, de resto, têm sido quase todas, nesta encenação de democracia.
Temos o direito a descer à Avenida da Liberdade ao sábado à tarde, de cartaz em punho; tudo o resto é ‘extravasar’ os limites da legalidade.
Porventura, o mesmo não está garantido para o caso do nosso (ainda) primeiro-ministro. Depois destes últimos oito anos de governação, António Costa só poderá ficar para a História como um líder que deixou o país de joelhos e escorraçou a democracia.
A revolta e a contestação que se inflamam e alastram a várias classes profissionais são prova de que os protestos das forças de segurança não são a ameaça à democracia que nos deveria preocupar. Se há alguém que tem faltado ao país, e que por isso poderia ser acusado de ‘insubordinação’, é este Governo socialista. Pois se é verdade que as forças de segurança devem estar ao serviço da Nação, não é menos verdade que o chefe de Governo foi eleito para servir e defender o povo. E, nesta tarefa, falhou reiteradamente.
Concorde-se ou não com os protestos da polícia, há um crédito a ser-lhes dado: fizeram tremer o poder, ao contrário de outras formas de luta inúteis, que muitas vezes prejudicam mais os cidadãos do que os governantes. As polícias atingiram o poder onde dói, pondo seriamente em causa a autoridade do Governo. Mostraram, assim, que o seu poder é frágil e pode ruir como um castelo de cartas, num ápice e pela acção de apenas uma dúzia de pessoas.
Entretanto, alguns agentes da Unidade Especial de Polícia que também apresentaram baixa médica no fim-de-semana (porém, sem o mesmo desfecho do jogo Sporting-Famalicão) já começaram a sofrer represálias, e correm agora o risco de não terem os seus contratos renovados.
A reacção do primeiro-ministro e do ministro da Administração Interna não só expôs a sua prepotência, como evidenciou uma falha de julgamento e de entendimento da História. Indiferentes à revolta que se avoluma, optaram por ter mão firme, quando deviam ter-se redimido. Em vez disso, atiraram mais achas para a fogueira, esquecendo-se que quem semeia ventos, colhe tempestades.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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Já vai na quarta edição e é o livro do momento, mas deveria ser o ‘livro de sempre’. As causas do atraso português, escrito por Nuno Palma, economista e professor na Universidade de Manchester, merecia lançar o país numa discussão assaz pertinente: porque é que Portugal não sai da cepa torta? Porque divergiu da Europa Ocidental, e parece não haver meio de acertar o passo, estando até a ser ultrapassado pelos países do antigo Bloco de Leste? Sendo obra de divulgação histórica e científica, o livro choca de frente com muitas ideias e ‘mitos’. Em entrevista ao PÁGINA UM, Nuno Palma falou sobre algumas das ideias mais polémicas, como a considerável recuperação económica durante o Estado Novo e a “maldição” do ouro no Brasil no século XVIII, que equipara aos fundos europeus. E, claro, aborda, de forma desassombrada, os impostos, o Estado, a corrupção, a censura à imprensa pelos reguladores, e até os principais problemas da ‘direita’ portuguesa. Quase nada fica por dizer, e o que diz é para fazer (uma merecida) ‘mossa’, nem que seja nas consciências.
Em As causas do atraso português defende que “não podemos deixar a memória colectiva nas mãos dos que nos têm falhado”. Este livro constitui uma tentativa de resgatar essa memória colectiva, ‘desfazendo’ muitos mitos sobre o atraso de Portugal em relação ao resto da Europa Ocidental?
O meu livro tem o objectivo de fazer divulgação científica de certas matérias; algumas delas que já eram conhecidas dos especialistas das diferentes épocas, porque têm sido publicadas em revistas científicas internacionais. Mas a natureza desses estudos é foco numa época específica, e numa pergunta específica. E o que eu tento fazer no livro é um esforço de síntese, em que, no fundo, as diferentes peças do puzzle são reunidas de forma a dar uma imagem completa da história de Portugal nos últimos séculos, até ao presente. E de quais as origens históricas de o país ser tão atrasado; porque não era tão atrasado, em termos relativos, em séculos anteriores. E o país, a certa altura, perdeu um comboio de desenvolvimento, e eu explico quais foram as causas históricas.
Relativamente à questão dos mitos: num país que se torna tão atrasado, os diferentes regimes tentam construir narrativas para explicar quais os motivos do atraso, e muitas dessas narrativas têm motivações políticas. E, normalmente, tentam desresponsabilizar quem está no poder, arranjando bodes expiatórios. Isso acontece claramente no presente. Para este regime, que temos vivido nas últimas décadas, o principal bode expiatório é o regime imediatamente anterior. O Estado Novo é o culpado por tudo o que está mal no país. E essa é uma opção, do meu ponto de vista, preguiçosa, porque tenta desresponsabilizar várias gerações de eleitores e de políticos que, nas últimas décadas, têm governado o país, e que nos têm falhado. E, como tal, precisam de arranjar desculpas para o seu falhanço, e a forma mais fácil de o fazer é dizer “a culpa é dos que vieram antes de nós, eles é que deixaram isto tudo mal”. E se o Estado Novo é efectivamente culpado num plano político, por ser um regime que oprimia a liberdade, na minha ótica – e toda a evidência científica que nós temos o sugere –, não foi, de todo, um regime responsável por atrasar o país; pelo contrário. Em termos económicos, foi o regime no qual se deu a grande recuperação do país relativamente à Europa; que não foi “completa”, nem podia ter sido, mas foi uma grande recuperação parcial. Portanto, pôr a culpa do atraso no regime que foi responsável pela grande recuperação é bizarro e tem uma motivação óbvia. Assim, o que eu tento fazer é livrar a História da propaganda; é despolitizar a História. É isso que eu tento fazer neste livro, com base na investigação científica e nos dados concretos que existem.
Falou do Estado Novo, e de como, ao contrário do que se diz, este regime não foi responsável pela divergência do país no contexto europeu. Na sociedade portuguesa, seja na Academia ou mesmo nos comentadores convidados para os órgãos de comunicação social, acha que a ideologia é muitas vezes um entrave a uma análise rigorosa dos factos?
Todos nós temos, de alguma forma, as nossas ideologias. Isso é natural. Uma ideologia tem a ver com a forma como nós interpretamos o mundo, e até mesmo a evidência científica rigorosa que exista. Uma coisa são os factos, e outra coisa é, depois, a interpretação que damos aos factos. Agora, há casos em que a ideologia toma completa precedência sobre os factos, e são dadas opiniões e são defendidas posições que não têm qualquer base factual. Há outros casos em que há uma forma transparente, em que há uma interpretação com base nos factos rigorosos que, em princípio, são largamente independentes da ideologia, mas que, depois, pode ir além dos factos em si. Ou seja, eu posso interpretar, por exemplo, factos sobre as desigualdades. Digamos que um país é muito desigual, e isso é um facto, que pode medir-se com índices como o Índice de Gini. Podemos medir se um país é mais ou menos desigual nos rendimentos ou na riqueza ou em várias outras dimensões. Mas, depois, o que é que nós devemos fazer quanto a isso? E se isso é um problema, como resolver esse problema? Nem sempre há uma resposta científica absoluta, até porque às vezes há trade-offs, entre termos uma sociedade mais rica, mas mais desigual, ou uma em que, em média, as pessoas são mais pobres, mas há mais igualdade. Nem sempre estes trade-offs existem, mas em certas circunstâncias podem ocorrer. E, portanto, aí entra a ideologia; dás mais valor à igualdade, sendo todos pobres, ou dás mais valor a uma sociedade mais rica, em média, mas mais desigual? E as pessoas podem ter, e é legítimo que tenham, preferências, e a democracia também serve para que nós colectivamente, façamos uma escolha sobre essas matérias.
Agora, no caso dos comentadores, sobretudo em Portugal, dá-se uma situação algo estranha e que não é normal noutros países, especialmente noutros países ocidentais ricos e mais desenvolvidos, e que é os comentadores serem eles próprios políticos, ou quererem ser políticos. A maior parte deles. E, portanto, eles estão a defender interesses e lobbies que normalmente não declaram. Quando alguém vai falar nos meios de comunicação social, aparece denominado como “comentador”, quando deveria aparecer “militante do Partido X ou Y”, porque é isso que eles são e é esse o papel que estão a fazer. Toda esta cultura dos comentadores – o próprio Presidente da República é presidente por ter sido comentador – é uma coisa, a meu ver bizarra. Eu próprio tenho muitas vezes convites para ir à Televisão, e em 90% dos casos rejeito. Não me interessa ir “mandar umas bocas”, ou uns soundbites para a Televisão; não é uma discussão séria sobre os assuntos. E, portanto, acho que toda essa cultura também reflecte o baixo capital humano da população portuguesa, que nem sempre é capaz de separar o trigo do joio e de perceber que aquelas pessoas não são comentadores independentes, nem estão a fazer uma análise independente da sociedade. Na esmagadora maioria dos casos, estão a defender interesses específicos, sendo pagos para isso directa ou indirectamente, ou consideram que a sua própria progressão política ou sucesso financeiro depende do sucesso com que passem a sua mensagem.
Em relação à Academia, depende muito das áreas. Em certas áreas das ciências sociais, na minha óptica, o que se faz não é Ciência, é ideologia disfarçada. Em Economia também existe, por vezes, isso, mas em muito menor grau, e há muitas pessoas que estão a fazer um trabalho sério e objectivo. No meu caso pessoal, por exemplo, é ao contrário o que eu tenho descoberto em termos científicos tem, de alguma forma, moldado a minha ideologia, se entenderes “ideologia” como uma compreensão sobre quais as políticas públicas certas para desenvolver uma sociedade. Ao longo dos anos, mudei de ideias sobre certas coisas, por compreender melhor o processo de desenvolvimento económico e o processo histórico de desenvolvimento. E na minha óptica, é assim que deve ser. Mas reconheço que é verdade que, na maior parte das chamadas “Ciências Sociais” e “Humanidades”, especialmente fora da Economia, a ideologia cega é completamente dominante em relação à evidência científica. E a meu ver, as pessoas não estão lá para fazer Ciência, nem para compreender melhor, e de forma objectiva, a sociedade, mas para defender interesses políticos e tentar empurrar a sua agenda ideológica, que normalmente é bastante à esquerda. E, portanto, diria que o trabalho supostamente científico que fazem tem muito pouca qualidade.
Aponta, como um factor central do nosso atraso, a denominada “Maldição dos Recursos”, e que remonta à descoberta do ouro no Brasil. Argumenta que, para Portugal, a descoberta do ouro teve efeitos mais nefastos do que benéficos, resultando, por exemplo, na desindustrialização do país. Em que consiste este fenómeno, que ‘transforma’ uma enorme abundância em algo tão pernicioso?
Talvez ajude começarmos com um exemplo contemporâneo: a Venezuela. Vamos imaginar uma Venezuela que não tinha petróleo: estaria hoje melhor ou pior do que está? Um momento de reflexão leva-nos facilmente à conclusão que a Venezuela está muito pior do que teria estado sem petróleo. E este fenómeno da maldição dos recursos está bem estudado na Economia do Desenvolvimento – existem outros casos para além da Venezuela –, e tem uma dimensão económica e uma dimensão política. A dimensão económica tem a ver com estes países que concentram recursos naturais ou dinheiro, em grandes quantidades, através de uma fonte específica. Isso distorce o sistema produtivo das suas economias, levando a que seja muito mais fácil para estes países importar bens, e muito mais difícil exportá-los. Portanto, torna-se uma economia menos competitiva; o que se chama o sector transacionável – das exportações – torna-se menos competitivo. Os economistas falam disto em termos de os bens transacionáveis e os não transacionáveis; dá-se uma subida de preço relativo dos bens não transacionáveis, como por exemplo o imobiliário, relativamente aos bens transacionáveis, como é o caso do sector exportador da economia. Portanto, isto é um mecanismo bem estudado, e é um dos dois principais mecanismos da “maldição dos recursos”, que tem a ver com a transformação da economia. E, depois, há um mecanismo político que, a meu ver, talvez seja ainda mais importante, que tem a ver com a captura do Estado por interesses: torna-se mais fácil, neste tipo de economias, certas elites políticas tomarem conta do Estado, usando-o a seu favor para se manterem no poder. Portanto, são sociedades em que os ‘freios e contrafreios’ – os checks and balances anglo-saxónicos – se tornam menos relevantes, e quem manda no Estado pode utilizar esses recursos adicionais para pagar a clientelas para se manter no poder.
Esse mecanismo, que é absolutamente evidente na Venezuela, nas últimas décadas, é condicional à sociedade que recebe esses fundos; a forma como opera na Venezuela, na Nigéria, ou em Angola, não é igual à forma como opera na Noruega, por exemplo, que também teve muitos fundos de petróleo. Porque a Noruega tinha instituições políticas fortes e capital humano, e os níveis de literacia, inclusive a literacia económica e política da população, é suficiente para a Noruega conseguir utilizar bem os fundos do petróleo, investindo num fundo soberano, não gastando tudo de uma vez, e investindo o dinheiro de forma diversificada. Ou seja: há sempre uma condicionalidade na forma como fundos desta natureza destroem, ou não, uma sociedade.
No caso de Portugal, no final do século XVII, havia ainda um sistema político que, para a época, até não estava atrasado. Mas claro que, como qualquer sistema político da altura, era ainda muito menos desenvolvido do que o que veio a acontecer nos séculos seguintes. Mas existiam checks and balances; eu mostro no meu livro que nas décadas finais do século XVII, a indústria portuguesa das manufacturas estava-se a desenvolver, e também o sistema político tinha estes freios e contrafreios, existiam parlamentos, as cortes reuniam e tinham poder, o Rei não podia pôr e dispor, ou fazer o que queria. E tudo isto vai desaparecer no século XVIII, porque todas estas receitas do ouro do Brasil vão distorcer a Economia e o sistema político, fazendo com que, nomeadamente, o Rei não precisasse de negociar e tivesse acesso directo a dinheiro de impostos. Não só o quinto, que é um dos impostos mais conhecidos; houve outros. A própria base da Economia cresceu durante algum tempo, em termos líquidos; isto é sempre um efeito líquido. Foi possível ter a Indústria a ser destruída, mas ao mesmo tempo, em termos líquidos, estava a entrar mais dinheiro, portanto no curto ou médio prazo a Economia até estava aparentemente a enriquecer, havendo mais rendimento por pessoa. Mas, a prazo, isto levou à concentração do poder e ao aparecimento do absolutismo, e foi isso que “estendeu o tapete” para alguém como o Marquês de Pombal aparecer, e que, eu argumento, foi talvez o pior político da nossa História, e o mais directamente responsável pelo atraso profundo do país em termos educativos nos séculos seguintes.
Então, na sua opinião, não deveríamos ter uma estátua do Marquês de Pombal numa praça de Lisboa [risos].
Em geral, eu sou contra deitar estátuas abaixo, pelo menos de uma forma pouco reflectida, como muitas vezes se faz. Mas reconheço que houve casos históricos em que se deitaram estátuas abaixo com legitimidade. Aconteceu, por exemplo, no caso das revoluções que acabaram com o comunismo na Europa Central e do Leste; atiraram-se muitas estátuas abaixo de forma espontânea. A seguir ao 25 de Abril também se acabou com estátuas que havia, pelo menos havia uma, de Salazar, e mudou-se o nome da ponte Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril. Parece-me legítimo em certos contextos. Neste caso, ter numa rotunda com uma importância tão simbólica para o país uma estátua do político mais directamente responsável pelo nosso atraso, e que mais mal nos fez, parece-me, de facto, despropositado.
Referiu que as receitas e os recursos de um país não bastam para explicar um eventual atraso, e que é preciso ter em conta também a qualidade das suas instituições e a capacidade de gerir os recursos. Se Portugal sofreu, nos últimos séculos, uma certa “corrosão” das suas instituições, os fundos europeus – dos quais é muito crítico – funcionam agora como uma espécie de novo ouro do Brasil?
Eu não quero fazer uma analogia absolutamente directa, porque a Economia e o sistema político hoje são muito diferentes do que eram no século XVIII; mas a analogia é simplesmente sugestiva. Tal como o ouro do Brasil não desenvolveu a economia portuguesa, e teve exactamente o efeito contrário ao que se poderia esperar; foi dinheiro “caído do céu”, digamos, de forma um pouco simplista… E é o que está a acontecer agora com os fundos europeus. Supostamente, o objectivo dos fundos é fazer o país convergir com a média europeia; mas Portugal está a receber estes fundos há quatro décadas, e nessas quatro décadas, não convergiu. Tem estado até a divergir, já há algumas décadas. Portanto, quando é que nós dizemos “se calhar, é melhor mudar a estratégia”? Porque esta estratégia claramente não está a resultar. E não digo só que não está a resultar: está até a ter o efeito contrário ao desejado. Esta política de ajudas europeias é uma das causas que está a impedir a convergência. E está a impedi-la, exactamente pelo mesmo tipo de mecanismos que o ouro do Brasil atrasou a economia no século XVIII, e que depois foi uma maldição que, aliás, continuou a ter efeitos indirectos nos séculos seguintes.
Os fundos europeus distorcem o sistema produtivo da economia portuguesa, transformando e “inchando” o sector não transacionável. Portanto, têm um efeito negativo na competitividade externa da economia, por um lado, e por outro lado, ajudam quem está no poder a manter-se no poder, a ter dinheiro para distribuir às suas clientelas e para pôr pensos rápidos em várias partes da economia. Dinheiro que devia sair do Orçamento do Estado, mas que o Orçamento do Estado não teria capacidade de pagar porque a Economia não tem a capacidade produtiva para pagar, porque as políticas públicas são más e muitas são feitas, de facto, para avançar certas agendas políticas e não para desenvolver a sociedade. Por isso, têm efeitos muito negativos na Economia e prejudicam as pessoas e, em particular, os jovens, que praticamente não têm voz em Portugal. Porque o apoio ao partido dominante do regime vem de uma população muito envelhecida, e as estatísticas mostram-no de forma absolutamente clara. E, portanto, quem está a ser mais prejudicado não tem voz mas, depois, as consequências disso na população não se sentem de forma tão aguda como se iriam sentir, porque o Estado tem dinheiro para ir pondo pensos rápidos e dar “aspirinas” que escondem os sintomas da doença e as consequências das más escolhas que estão a ser feitas. Assim, como o povo não sente na pele, suficientemente, as más decisões que são tomadas, as coisas vão andando, e vão votando nos mesmos. A abstenção é muito alta, cerca de 50% nas legislativas, e portanto, um partido pode ter maioria absoluta com cerca de um quarto da população, apenas, a votar nesse partido.
E esse dinheiro muitas vezes acaba por ser canalizado de forma duvidosa. No livro dá alguns exemplos dessa má utilização, que inclui a construção de estádios que ficam vazios, ou a imensa rede de estradas do país. No PÁGINA UM, fazemos um escrutino diário aos contratos públicos e conseguimos ver, precisamente, casos de má gestão, despesismo ou favoritismo, através de um recurso frequente a ajustes directos, que sempre dão menos trabalho do que os concursos públicos…
E não é só dar mais trabalho. Abrir concursos também implica alguma meritocracia a quem são dados os projectos, quando o objectivo é exactamente o contrário: é “pagar” apoios e “premiar” pessoas de confiança política. E em alguns casos, pode ser mesmo corrupção. Se houver concursos, não pode ser, tão facilmente, assim. Isso acontece não só nesses ajustes directos, mas também no caso das contratações. Foi o caso da CReSAP [Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública]; a CReSAP é uma boa ideia do ponto de vista teórico, mas depois transformou-se numa coisa a fingir. A CReSAP, o MENAC [Mecanismo Nacional Anticorrupção]… É tudo a fingir. Estas instituições existem no papel, na lei, mas depois são completamente subvertidas e transformadas numa coisa só para inglês ver. Ou para União Europeia ver [risos].
Falemos agora no Portugal do pós 25 de Abril. Argumenta que a revolução criou um ambiente hostil à iniciativa privada e à concorrência, e tornou a direita muito ‘tímida’, com medo de se posicionar, devido ao preconceito que se entranhou. Compara até com o caso da Espanha, que teve uma transição mais negociada e, portanto, não sofreu tanto esses “efeitos colaterais”. Se não tivéssemos feito um corte tão radical com o regime anterior, considera que o país teria evoluído mais?
Sim, genericamente, mas tenho de fazer uma ressalva: também é preciso reconhecer que a direita em Portugal muitas vezes também não é uma direita muito liberal. Ou seja, é uma direita que frequentemente confunde liberalizar com privatizar, o que não é a mesma coisa. Porque, por exemplo, uma empresa pública que seja privatizada, e passe de ser um monopólio público para ser um monopólio privado, isso não é necessariamente bom para os consumidores. É preciso é promover a concorrência, porque a livre concorrência é que, em última análise, vai beneficiar os consumidores. E esta concorrência, já agora, e falo disto no contexto do PÁGINA UM, às vezes implica não deixar haver censura. Porque parece-me absolutamente claro, em Portugal, que uma entidade como Entidade Reguladora para a Comunicação Social [ERC], na prática, muitas vezes é isso que faz. Noutros países da Europa, desconheço entidades equivalentes que estejam a fazer o mesmo tipo de papel que a ERC tenta fazer em Portugal, que, muitas vezes, é censurar. A ERC não serve para garantir concorrência no mercado – isto é competência da Autoridade da Concorrência – nem para garantir acesso a conteúdos digitais, que é da ANACOM. Logo, tudo indica que o real propósito da ERC é a promoção da falta de concorrência. Serve para manter as rendas protegendo os meios de comunicação tradicionais, muitos dos quais têm, a meu ver, baixa qualidade mas se consideram como “de referência”. Certas entidades, nos moldes actuais, como a ERC e até a LUSA, são, na minha óptica, antidemocráticas, e não deviam existir; pelo menos, não nos moldes em que existem. Porque estão a fazer um papel de Ministério da Verdade, querendo determinar o que é ou deixa de ser “desinformação”, e isso parece-me uma coisa bastante antidemocrática.
Mas, para concluir a questão anterior, eu acho efectivamente que se Portugal tivesse tido uma transição negociada, ou se Marcello Caetano tivesse conseguido fazer uma transição para a democracia; se o próprio regime tivesse sido capaz de se reformar, as coisas teriam acontecido de forma diferente. Talvez se Marcello Caetano tivesse acabando com a ditadura e com a polícia política, e convocando eleições livres… Hoje seria um herói; não teria de se ter exilado no Brasil, porque nunca mais pôde voltar ao país. Claro, tinha de ter acabado com a guerra, porque não era possível continuar com aquela guerra num contexto democrático, de certeza. Até porque já durava há muito tempo, e não havia solução à vista. Mas não sei se essa transição seria possível politicamente, e não é por acaso que ele não a fez; portanto, isto são contrafactuais difíceis de avaliar, podíamos estar aqui uma hora inteira só a falar disto. Mas o ponto é: se a transição tivesse sido negociada, como foi em Espanha, ou se o próprio regime tivesse conseguido reformar-se e transitar para uma democracia, parece-me que a História do país, nas décadas seguintes, teria sido muito diferente. A natureza da revolução que existiu, que foi uma revolução a sério, apesar de com pouco sangue; foi um corte radical. E por ter sido um corte radical – como disse e bem, não sei se usei essa palavra no livro, mas foi bem escolhida – criou um ‘preconceito’ contra a direita. Criou a ideia de que a direita não quer desenvolver o país, e que o quer atrasar, portanto, em Portugal há preconceito contra ser-se de direita. Quando devia ser evidente para qualquer pessoa que a direita e a esquerda em si – que até são termos que eu nem gosto muito de usar, são um bocado limitados, mas enfim, para simplificar -, nenhuma delas é moralmente superior à outra, nem nenhuma é naturalmente mais a favor do desenvolvimento económico do que a outra, ao contrário do que tanta gente pensa em Portugal – país onde a esquerda considera ser moralmente superior. Esquerda e direita têm, isso sim, diferentes estratégias de como desenvolver uma sociedade. E, normalmente, digamos assim, a esquerda é mais “romântica”, acha que as intenções vão muito longe. A direita é tendencialmente mais cínica, ou realista, em relação à natureza humana.
Mais pragmática?
Mais pragmática e tenta julgar as políticas pelos seus resultados, e não pelas suas intenções, porque nós sabemos o que é que está cheio de boas intenções…
[risos] No livro defende que a verdadeira dicotomia está no quanto um regime é favorável ou desfavorável à concorrência, e que tanto a esquerda como a direita, muitas vezes, são desfavoráveis à concorrência. A direita supostamente é mais ‘amiga’ da concorrência, mas acaba por fomentar a criação de monopólios ou oligopólios. Nesse sentido, a nossa direita pós 25 de Abril é muito corporativa?
Sim, antes de mais, é uma direita envergonhada, como estávamos a dizer. Muitas vezes, não quer assumir as suas posições de forma clara. Certamente não quer dizer que é de direita, e isto é sistemático nos líderes do chamado “centro”; no máximo, diz-se “centro-direita”, mas às vezes nem isso. Muitas vezes, o partido que em Portugal é de centro-direita, o PSD, vemos constantemente os seus líderes dizerem que é um partido de esquerda. Aconteceu com Sá Carneiro, recentemente Balsemão disse o mesmo… E isto não é normal, a nível europeu. No actual Parlamento, que agora acabou, só há um partido que se assume como sendo de direita, e é um partido, a meu ver, bastante populista e um bocado extremista em certas coisas, que é o Chega. Por aí se vê logo que é uma situação anormal a nível europeu, entre os oito partidos no Parlamento, apenas haver um que se diz de direita; não conheço casos equivalentes na Europa. Aliás, na verdade, conheço: existe o efeito “espelho” disto, que é em vários países da Europa do Leste, não haver ‘esquerda’. Ou seja, países que tiveram longas ditaduras numa direcção, muitas vezes são atirados para a direcção contrária em termos políticos e culturais. Na Polónia, por exemplo, a oposição é entre o que seria o PSD e o Chega locais, com as devidas diferenças; o ponto é que há uma direita moderada contra uma direita radical. Portanto, nestes países não existem partidos comunistas, ou “bloquistas”, com peso relevante, porque eles foram ‘vacinados’ contra essas loucuras. E Portugal é um país onde, culturalmente, as pessoas não estão bem informadas, vivem no seu contexto e ouviram as histórias familiares, por aí fora… Muitas vezes deixam-se influenciar por esses exércitos de comentadores e por essas elites todas, a meu ver um bocado patéticas, na maior parte dos casos. Portanto, gerou-se um ambiente cultural que, 50 anos depois do 25 de Abril, continua muito vivo, e que romantiza excessivamente a intervenção do Estado. Aliás, por isso é que as taxas de vacinação em Portugal eram tão altas durante a covid; resulta dessa grande confiança que a população portuguesa tem no Estado, que claramente não acontece da mesma forma na Europa do Leste, em que há uma muito maior desconfiança em relação às boas intenções do Estado. Em Portugal, as pessoas confiam muito no Estado, e a meu ver, confiam demasiado. Até porque existe uma certa contradição em confiarem no Estado mas não nos políticos.
O nosso Partido Socialista, por vezes, é criticado pela ‘esquerda’, e acusado de ser, na verdade, de centro ou de direita. No seu entender, Portugal é um país mais à esquerda ou à direita? Ou é difícil encaixá-lo num dos rótulos?
Não, sem qualquer dúvida que o regime é à esquerda, e até a direita é bastante à esquerda. Mas, em cima disso, a direita também é bastante corporativa. É este o ponto; é muito contrária à concorrência. E isto não é uma questão de opinião, eu gostaria de ser absolutamente claro: o meu livro cita estudos científicos que medem os níveis de concorrência na economia portuguesa, e os níveis são baixos. Em certos sectores, são bastante baixos até. E as pessoas conseguem ver isso, nos preços dos bens e serviços. Os preços em Portugal são bastante altos relativamente à qualidade dos produtos e aos salários das pessoas, que não só são baixos em termos nominais, como também em termos reais. O que é que esses salários conseguem comprar? Eu posso dar exemplos quanto à baixa concorrência de vários sectores da nossa economia, mas hesito um bocadinho, porque senão parece que só estou a pôr ênfase num ou noutro em específico, quando na verdade isto é bastante transversal – apesar de também ser verdade que há áreas em que a concorrência funciona melhor que outras. As elites rentistas vivem dessa baixa concorrência, que prejudica a população como um todo. Quem beneficia dessas rendas tem um grande incentivo a manter essas rendas intocadas, para que as coisas fiquem como estão. Portanto, há um grande incentivo para fazer lobbying, inclusivamente através da proximidade ao poder politico, enquanto a população paga esse custo. E embora o custo colectivo seja enorme, o custo individual, para cada pessoa, é relativamente pequeno. Portanto, a situação acaba por se ir arrastando durante anos e décadas, infelizmente.
E para criar riqueza já afirmou que não é suficiente baixar impostos, como a direita, sobretudo a mais liberal, costuma a defender. Acredita que a solução passa mais por empreender reformas e discutir como se pode aumentar o ‘bolo’, e não apenas por reduzir a carga fiscal?
Exactamente, porque isso é pôr a carroça à frente dos bois. Faz-me muita impressão como em Portugal se fala tanto de distribuição, e tão pouco de criação de riqueza. Porque se houver criação de riqueza, cresce o bolo, e depois já haverá mais para distribuir, mais fatias para todos. Não precisam de estar todos a lutar por uma fatia um bocadinho maior que a do vizinho. Todos a lutar também destrói o bolo [risos]. Em vez de falarmos tanto de distribuição, vamos falar de criação de riqueza. Quais são as políticas que podem fomentar a criação de riqueza? Muitas vezes, o problema é que as políticas que podem tornar o bolo maior, vão dar fatias mais pequenas a certas pessoas que estão a comer fatias muito maiores do que deviam. E lá está, essas pessoas têm todo o incentivo para fazer lobby, para que tudo se mantenha igual.
Mas sobre os impostos, eu sou bastante crítico em relação ao ênfase que se dá a essa questão, em Portugal. Genericamente, a ‘direita’, e a Iniciativa Liberal… O liberalismo não é uma ideologia de esquerda ou de direita na maior parte dos países europeus. Aliás, o liberalismo é considerado uma ideologia centrista, centro-esquerda, mais ou menos; tanto que, no Parlamento Europeu, senta-se ao centro-esquerda. Enquanto no Parlamento português, senta-se quase à extrema-direita, em termos físicos. Mais uma vez, isto tem a ver com a conversa que estávamos a ter. Mas isto para dizer: esta ênfase nos impostos, do PSD e da IL, pode valer votos, há pessoas que estão cansadas de pagar tantos impostos, e eu compreendo isso.
Sobretudo tendo em conta a pobre qualidade dos serviços que recebem por eles…
Exactamente, é isso que eu tenho sempre dito. A carga fiscal em Portugal está a níveis normais em termos europeus, e em percentagem do PIB [produto interno bruto]. Há uma medida alternativa que é o “esforço fiscal”, mas é um bocadinho obscura. Lá está; num contexto de maior crescimento económico, o esforço fiscal português não seria assim tão alto. Essa é que é a discussão importante. Porque, para já, quando se fala em baixar impostos, nem sempre é explicado como é que isso vai ser feito na prática. Parece que, por magia, pode-se baixar impostos e o crescimento que isso vai gerar, sem fazer reformas fundamentais, vai ser suficiente para compensar a perda de receitas. E isso não tem qualquer credibilidade. Portanto, a Iniciativa Liberal tem uma postura anticientífica quando argumenta isso. A Curva de Laffer, como os economistas lhe chamam, tem a ver com a possibilidade de estarmos para além de um ponto em que, ao descer os impostos, na verdade as receitas fiscais sobem ou ficam inalteradas; porque as pessoas fazem mais esforço, trabalham mais, etc. Empiricamente, não há qualquer possibilidade de isso poder acontecer num país como Portugal. Portanto, eles têm que dizer claramente, em troca da descida de impostos, quais são os cortes ou as reformas que vão fazer, que de forma credível, gerem um crescimento que compense essa perda de receitas fiscais. E se são reformas, então essa é que é a discussão fundamental, e a dos impostos é secundária; ainda que acabar com a burocracia e confusão das taxas e taxinhas fosse sem dúvida positivo. Ou então, têm que assumir que vão aumentar o défice, ou a dívida, ainda mais, para as gerações futuras. E eles não fazem isso. Portanto, parecem-me pouco sérias as propostas que normalmente são feitas à ‘direita’. E mais uma vez, estou a simplificar com o termo ‘direita’, a referir-me ao PSD e à IL. Porque o Chega, em termos económicos, tudo o que diz é pouco sério, portanto, nem vale a pena falar disso.
Mas, portanto, parece-me que há um grande equívoco. Aquilo que tem de se falar não é descidas de impostos, embora eu acredite que isso valha votos. Enquanto outros temas muito mais importantes para a sociedade portuguesa se calhar não valem tantos votos, e é o caso da reforma dos tribunais e da Justiça, que é absolutamente essencial… Mas a maior parte das pessoas não tem um conctacto muito directo com a Justiça, por isso não estão tão conscientes do profundo atraso em que o país está nestas matérias. Eu aconselho sempre às pessoas a lerem Nuno Garoupa, e tudo o que ele diz e escreve sobre estas matérias – a ineficiência da justiça portuguesa é uma causa absolutamente essencial do atraso no país. Mas os partidos políticos não falam com seriedade destas matérias, até porque, lá está, não valem tantos votos a curto e médio prazo. Os partidos políticos estão sempre muito focados em tentar ganhar as próximas eleições, ou em ganhar mais deputados. Portanto, têm uma grande miopia em relação às políticas que possam fazer desenvolver o país a prazo. Preferem alimentar as suas clientelas e arranjar tachos [risos]. E não digo que, nalguns casos, também não possam acreditar realmente que as políticas que defendem possam desenvolver o país, mas em muitos casos estão enganados. Objectivamente, em matéria de impostos, as receitas que Portugal tem está a níveis normais em termos europeus. Mas depois, se virmos o que os cidadãos recebem em troca dessa receita pública, efectivamente a qualidade dos serviços públicos tem-se estado a deteriorar muito. A qualidade da escola não era má em termos pré-universitários; em termos universitários, sempre foi má. Portugal é um país desastroso em termos universitários, embora haja, evidentemente, excepções. É evidente que há exceções, mas em termos médios, estatísticos, Portugal continua a ser um desastre. No ensino pré-universitário, o país até não estava a fazer uma evolução má, agora já tem estado outra vez a piorar. Mais uma vez: isto não são opiniões minhas. Há estudos científicos internacionais que eu cito no livro, que mostram isto através de estatísticas comparadas. Recentemente, as estatísticas dos testes PISA mostraram o mesmo.
Em relação ao Serviço Nacional de Saúde, efectivamente não funciona bem. Há milhares e milhares de pessoas sem médico de família. Por exemplo, aqui no Reino Unido, ir ao dentista faz parte do Serviço Nacional de Saúde, e em Portugal não faz. Está a começar agora, mas de uma forma muito ineficiente. Mais uma vez, tudo é anunciado e prometido, tudo existe no papel, mas nada existe na realidade, nada sai das gavetas. Como os pacotes anticorrupção, que já foram uma data deles, mas a sua aplicação efectiva, é esperar para ver. Até anunciarem o próximo daqui a uns anos. Tudo serve para fazer capas de jornais, é tudo a fingir. Em suma, o problema está no que os cidadãos recebem em troca dos impostos que pagam. Eu até reconheço que são altos, e as taxas marginais são bastante altas. Em relação ao Reino Unido, não só são mais altas as taxas de IRS, no escalão mais alto, mas também o nível de rendimento a partir do qual se começam a aplicar as taxas mais altas, é muito inferior em Portugal. Portanto, o Estado é mais pesado nos impostos em Portugal, sem dúvida, mas isso resulta da falta de capacidade da Economia criar crescimento. Os governos têm de arranjar maneira de conseguir arranjar receitas fiscais e, portanto, vão aumentando os impostos, vão inventando taxas e taxinhas. Mexer nos IVAs, nos indirectos, nos directos, o IRC… Tudo isso são formas de continuar a alimentar a máquina do Estado; em grande parte, altamente ineficiente, que não dá às pessoas o que elas precisam, mas que compra clientelas políticas e vai aguentando o barco para quem está no poder.
Tem sido uma pescadinha de rabo na boca [risos]. Achei curioso que diga no livro que Portugal tem uma Constituição “terceiro-mundista”, que cria expectativas irrealistas na população em relação ao Estado, por prometer demasiado. Face a esta cultura, e ao acentuado envelhecimento do país, não consegue ver uma luz ao fundo do túnel, num futuro próximo?
O meu conselho, em Portugal, para os jovens, é: votem com os pés. Saiam do país se querem um futuro melhor para vocês. Portugal não vos vai dar um futuro decente. Aproveitem o facto de serem cidadãos da União Europeia, que vos dá oportunidades diferentes. Eu sei que implica uma certa coragem sair; não é fácil, tanto em termos familiares como financeiros, também. Há custos. Mas em Portugal, o único elevador social que me parece que está a funcionar neste momento, é o dos tachos dos partidos políticos. As pessoas muitas vezes vão para a política, não como um acto cívico, que é o que a política devia ser – uma profissão nobre -, mas como forma de elevador social. Mas aqui também há uma selecção negativa: as pessoas que não têm escrúpulos, por não os terem, são as que muitas vezes têm sucesso na política. Especialmente em certos partidos, mas repare-se que até o partido supostamente do mérito, que era a Iniciativa Liberal, as figuras tristes que tem feito, com perseguições por delito de opinião, a quem não segue cegamente o líder, como Carla Castro, e foi corrida dos lugares elegíveis das listas, de uma forma muito antiliberal, por um partido que de liberal só tem o nome. Isto não é para atacar um partido em particular, mas o que eu estou a dizer é que o contexto explica muito do país.
Em Portugal, muitas vezes, a tal direita está convencida de que a fonte de todos os problemas é o Partido Socialista. Mas o Partido Socialista reflecte também o que é o país, tal como a direita, incluindo a Iniciativa Liberal – e é por isso que digo isto – também reflete o que é o país. Reflectem forças mais fundamentais que muitas vezes tomam precedência sobre qualquer ideologia, por isso, a natureza profundamente iliberal da sociedade portuguesa, sente-se até na própria Iniciativa Liberal [risos]. Mas isto não tem saída, o país está bloqueado e não há desbloqueios à vista. Jovens, se tiverem coragem de o fazer, saiam do país, porque vão ter uma vida melhor assim. Para as pessoas mais velhas, o meu conselho é: se querem a vossa família, os vossos jovens ao pé de vocês, têm de reflectir sobre a forma como votam. Pensar melhor nas pessoas que põem no poder, porque se não exigem mais dos políticos e se não exigem escolhas melhores e políticas públicas melhores, Portugal vai tornar-se um país absolutamente lamentável, envelhecido e triste.
Muitos jornalistas e activistas ‘antifascistas’ parecem ter sido subitamente assaltados por um aguçado espírito crítico em relação à imprensa mainstream. E quem é o responsável por este milagroso despertar do torpor em que estavam mergulhados? O Chega.
Por estes dias, temos assistido a uma indignação galopante contra alguns canais de media, acusados de indirectamente ‘levar ao colo’ o partido de André Ventura já que lhe dedicaram uma desmesurada atenção e espaço. Mesmo que, confesso, não seja eu uma telespectadora suficientemente assídua para confirmar a justeza deste argumento, até dou de barato que haja razão. De qualquer modo, esse aspecto não me parece ser relevante para uma discussão séria.
O ponto a salientar é outro, e bastante simples: aqueles que não disseram uma palavra sobre a vergonhosa cobertura mediática feita em torno da pandemia, agora já põem em causa os critérios daquilo que se revela ou não como uma notícia. De repente, parece que os críticos perceberam como o gatekeeping, a selecção das matérias tratadas pelos media, pode ser duvidosa e obscura.
Por isso, é legítimo perguntar: em que mundo têm vivido estas pessoas para não se terem apercebido de que 70% ou 80% – estou a especular nos números, mas entendam a ordem de grandeza – daquilo que sai nos media serve para encher chouriços e esvaziar cabeças?
Acordaram agora para a realidade do ‘soundbite’ e do fútil? E o que se segue para estes novos combatentes do populismo noticioso: vão aderir às tais “teorias da conspiração” propaladas pelos supostos “chalupas” de que, afinal, sempre é verdade que os media estão comprados, que é tudo propaganda? Há quem lhe chame ironia do destino.
A hipocrisia destes novos ‘questionadores’ é gritante. Recordemos, por exemplo, o período da pandemia. Muitos revoltados com a miserável e nada isenta cobertura jornalística, lançaram ataques ferozes sobre a imprensa – alguns até físicos, como aconteceu nos Estados Unidos e no Reino Unido, com protestos junto das instalações de canais como a CNN e a BBC. Os próprios media, nacionais e internacionais, claro, retribuíam os ‘mimos’, acusando estes grupos de atentarem contra a democracia e de serem de “extrema-direita” ou anti-sistema.
Em Portugal, o conhecido cantor de hip-hop ‘Estraca’ lançou, em Dezembro de 2021, “Jornalixo”, que denunciava a podridão e corrupção dos órgãos de comunicação social. Tornou-se ‘viral’ nas redes sociais, mas o rapper foi ridicularizado por muitos daqueles que agora vociferam contra os media.
Há ainda um exemplo paradigmático e particularmente revelador da duplicidade de critérios de quem hoje culpa a comunicação social pelo crescimento (mediático) do Chega. Donald Trump, inegavelmente detestado por muitos jornalistas, foi sempre alvo de um escrutínio feroz e desigual em comparação com os candidatos do Partido Democrata. O tratamento que recebia era, sem qualquer dúvida, tendencioso e negativo.
Nesse contexto, o ex-presidente norte-americano chegou a dizer que “os media são o inimigo do povo”. Esta entrada a pé juntos fez os supostos defensores da democracia rasgar as vestes. Os ‘antipopulistas’, contudo, pouco se importavam que se deitasse para o lixo a isenção e o rigor jornalísticos quando o protagonista das notícias era Trump. Valia tudo, até mentir ou distorcer os factos para denegrir a sua imagem. Na altura, essa cobertura mediática afagava o seu viés ideológico.
Agora, dá-se um plot twist. Os acríticos foram picados pelo bichinho do espírito crítico e já aprenderam a desconfiar dos media. Estamos perto de ver essas pessoas, que aplaudem a comunicação social quando se ‘porta bem’ – e promove os actores políticos que lhes agradam – e a condenam quando, aos seus olhos, se ‘porta mal’, dizerem que os media são o inimigo do povo. Só agora, porque o Chega continua a subir nas sondagens. Santa hipocrisia. Santa paciência.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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