Autor: Mariana Santos Martins

  • Nostradamus, Nosferatu e Noel

    Nostradamus, Nosferatu e Noel


    Os anos sucedem-se e assim mais um se vai findar, o que sempre acontece para as barrigas cheias ou para as barrigas vazias, por entre ventos frios no hemisfério norte ou brisa morna no hemisfério sul, porque assim todos concordaram.

    No fio dos últimos dias do ano, Nostradamus escrevia em enigmas para acertar na hora que o relógio apontava, pelo menos duas vezes em cada dia. Vibrava com a antecipação da tragédia e, com o aproximar da meia noite derradeira, vários discípulos imaginários do império dos rios sem dono começavam a rabear para apostar as fichas na leitura dos seus vaticínios.

    brown and blue desk globe in library

    Desde pequenino que ensaiava seus poemas por entre o bafio de salas fechadas, ele próprio então desconhecedor de seu poder transcendente. Bem que cantarolava o que se avizinhava para as aranhas debaixo da cadeira mas elas não ouviam. E que teriam sentido as pobres, de pernas esmagadas e vida sumida por entre as suas teias envoltas no pano húmido que a avó foi buscar, para prontamente limpar aquela inaceitável invasão?

    Terão porventura pensado, “o menino bem avisou”? Nostradamus duvida que tenham tido sequer tempo. Zás! E morreram.

    Quando, anos mais tarde, em corredores frios de pedra, Michel (era este o primeiro nome do jovem) aprendeu as artes da medicina, já seu coração ia recheado de pensamento, astrologia e literatura. Que alquimia aquela!

    brass-colored analog clock

    Tão notável era que se notabilizou pelo protocolo contra a peste, que assolou um então não tão velho continente, mandando remover os mortos abandonados pelo pânico, limpar os doentes e dar-lhes vitamina C. Autêntica magia, hoje sabemos que completamente desacreditada pela sienciah (como a astrologia).

    Mas eis que Nosferatu se cruza com o nosso profeta e, em silêncio, rouba a vida da pobre mulher de Michel, sem sequer poupar a vida a seu filho. Zás! E morreram. (Mas foi coincidência.)

    Nosferatu era um esquálido rapaz, que sempre fazia questão de rejeitar todos os cookies dos sítios de internet que utilizava. Lia muito, por isso via mal ao longe, e suas unhacas compridas afastavam potenciais senhorios pelo que era um problema conseguir casa para arrendar.

    Atraído pelo cheiro de carne humana, Nosferatu não resistiu aos encantos exalados pela esposa de Nostradamus e lá lhe sorveu a vida e espalhou pragas em redor. Fontes próximas deste anorético demónio, que também acompanhavam de perto as campanhas do senhor doutor, asseguram que, não tivesse este episódio histórico acontecido – se acaso tivesse ele conseguido um T2 em Olivais Sul – e na verdade Nostradamus não se confrontaria com o verdadeiro alcance do seu poder de divinação, ao sofrer a viuvez antecipada pelo esfaimado rapazote.

    Isto só prova a importância de um bom agente imobiliário. Como muitas outras coisas na vida.

    Já em Portugal, um operador de telemarketing chamado Noel, lê esta nossa saga, de barriga cheia de sonhos pela quadra natalícia, maravilhado com a suma importância desta crónica na sua vida íntima, flagelada que é nos últimos anos por ter seu nome de baptismo em constante confusão com um acrónimo que mata qualquer reputação: No Observed Adverse Effect Level (NOAEL).

    Muito transtorno profissional e social acometia Noel todo este tempo, por esta confusão. Pois está bom de ver, que toda a gente sabe, que não há nada mais arrepiante do que não causarmos efeito algum. Ora, imaginem o que sentiria ele, se caminhasse na praia e, olhando para trás, não visse as suas pegadas?

    Teria sido o mar? O vento? Nosferatu deslizando numa última e fatal travessura de quebrar o espírito?

    Malogrado o dia em que se lembrou Nostradamus de prever que Noel, de todas as pessoas do mundo, seria a nova encarnação de praga bem mais contínua e silenciosa: a da impotência e ausência. A invisibilidade e nulidade, de viver a vida sem deixar pegadas, sem causar efeito, sem sequer matar as aranhas debaixo da cadeira da sala bafienta.

    Pois será que foi profecia, ou o dito causou o acontecido?

    Há quem sinta que é melhor nem ler, nem ver, sob risco de o fazer verdade. E a verdade não é para todos, e todos sabem disso.

    Os anos passam, mais um passará e outros sempre virão, para quem esteja e para quem não esteja também.

    Ditoso o leprosário onde se movem os incautos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manifesto do tacho, da panela e da máquina de escrever (ou porque a liberdade também em Portugal feneceu)

    Manifesto do tacho, da panela e da máquina de escrever (ou porque a liberdade também em Portugal feneceu)


    Alegadamente, quis o acaso e a virtude de quem se preocupa, que me fosse feito ouvir as queixas de um petiz de barba grisalha que padecia terrivelmente de infecção respiratória, dessas que assolam o jardim à beira-mar plantado, conhecido pelos seus vastos prados desflorestados, mas alegre clima ameno temperado entre o esgoto não assumido no Mediterrâneo, esse cemitério aquático de quem foge do jugo imperialista ocidental, e o feroz Atlântico, conhecido pela sua aliança transnacional (trans é bom, é o que está a dar).

    Acontece que neste jardim, cauda sudoeste do jardim da Eurásia – conhecida pelos seus dois furiosos ministérios da verdade que se digladiam recentemente em prados amarelos e céus azuis –, o Inverno é sempre uma novidade própria de quem vive os dias, e não os meses ou as estações (nem tenho comboio em horário útil!), a prevenir as noites e esquecendo os vindouros tempos, descendentes e guerras urgentes.

    painting of man walking down a road holding umbrella

    Assim sendo, temos então o atol sanitário do costume, potenciado por energias violentas de quem passou três anos a lavar os legumes com lixívia, a açaimar as pessoas em trapo descartável e a sinalizar, com devida documentação azul fotografada, o selo no braço de quem recebeu a inoculação de Soma.

    Este petiz sofria, porventura sentia, a panela no peito, a fervilhar o testo em cada respiração, e, para seu horror, viu-se forçado a dirigir-se às urgências médicas da divina ciência do serviço nacional de saúde do jardim lusitano. Ora toda a gente sabe (it is known) que à conta de 127 negacionistas do ministério da verdade português, o serviço nacional de saúde morreu, visto que estes endemoninhados esbilros de Satanás influenciados por uma extrema-direita em ascensão, se recusam a admitir que homens são mulheres e o seu contrário também, defendem algo tão arcaico e pré-histórico como o sistema imunitário, não escondem o rosto com o hijab azul de polímero do bem, insistem enfim, em existir e ainda por cima em liberdade!

    Vai daí que o petiz o que faz? No seu compreensível transtorno de sofrimento animal, proclama abertamente mandados de prisão imediata para estes vis não conformados! Para o bem comum. E dele também (e já agora, nem que seja por prazer vingativo de verificar que a Soma não o safou e ainda por cima não tem ele estatuto para a Soma de melhor qualidade que garante protecção alargada a todas bichezas que por aí andam).

    white and black face mask

    Quis o acaso e o masoquismo desta alma que vos escreve, e se preocupa com os destinos sanitários da nação, que fosse ainda confirmado o devido estatuto do petiz no seio do serviço público, entregue à causa pública, à luta de “todes” aqueles que por bem prestem culto à mesma igreja. Pois, se não é um ser humano, eleito em assembleia de freguesia por reputada facção canhota, alegadamente sujeito a deslocações penosas de duzentos e cinquenta mil metros para se sacrificar por todos nós, cabeças de gado, terraplanistas e consumidores iletrados que devem confiar no ministério, a ter direito a reclamar a privação de liberdade dos untermensch, que insistem em poluir o ambiente interior e exterior (e já agora, podiam ao menos garantir que a ida às urgências até matava dois coelhos de uma só cajadada – analogia carnívora pelo qual a autora se penitencia, mas soava bonito assim – e fazia mais análises de diagnóstico clínico, etc.), não sei quem possa ter esse direito!

    Petiz sacrificado! Que luta por causas! Que vive pelos outros! Deve ser protegido! (Já causas entre a Soma e a maleita não! Não há! Escusam de vir com essa conversa!)

    Como esperam que se encha o tacho de onde se come, se se tem panela quando se inspira a boa luta?!

    Entre 2019 e 2020 foi essencial ter uma gestão sanitária e da coisa pública. Essencial!

    (Sinto que faço o mesmo balanço de passagem de ano há três anos, deve ser a maldição do “Groundhog Day”)

    group of people standing in front of brown wooden table

    Porque não alterar a constituição?! Porque não garantir que cada pessoa essencial faz aquilo que lhe mandam, movem-se para onde mandam, comem o que mandam, sobem os camiões para onde lhes mandam? E os não essenciais, bem, esses, os petizes já lhes deram demasiadas oportunidades, não é? São uma cambada! E não se preocupam com o planeta! No meio desta urgência! Isto é como uma guerra!

    (Não, não, não. Não é verdade. Não nos esconderemos como um qualquer animal.)

    O dia a dia continua, o excesso de mortalidade está gritado aos sete ventos. Aumentou mais este ano do que nos anos anteriores. Assim como os graus de temperatura e os rios atmosféricos.

    (Há lugares para nos escondermos?)

    Primeiro, o ideal é congelar contas bancárias de protestantes contra a verdade.

    Talvez instaurar o modelo chinês de créditos sociais, basicamente como a famosa app do StayAway Covid, em que, assim a modos que se alguém tossir num raio de uns metros em espaço público, o nosso telefone inteligente fica vermelhinho de raiva para nos avisar da necessidade de fugir para longe.

    Bem, mas não igual ao chinês, o chinês é mau. O nosso seria bom claro.

    people wearing mask and jackets

    Que dizer? A voz até se embarga e até me falham as palavras. Declarar o que quer que seja com sentimentos e não com reflexões é sempre perigoso, excepção feita à mestria bocagiana de proclamar amor ou sátira com a mesma doçura, talvez.

    Esta nação de poetas, cabrões dos vindouros. Primeiro, fechar o mundo. Lockdown. Depois, reconstruir melhor. Reset. Podemos manter-nos a polir latão no Titanic ou ocupar o nosso lugar essencial na cadeia produtiva de emancipação e transhumanismo. E quem diga o contrário é tolo. Houve um vírus, ainda há, muitos! E podem vir muitos, muitos mais! E por culpa nossa o planeta está a morrer! Está a cozinhar lentamente! Temos de priorizar! Corram! – seguem-se gritos – A economia depois vê-se! Vai tudo ficar bem! E quem procrastinar a pagar a senha de almoço na escola dos miúdos, o pai Estado fica-lhes com a guarda! – mais gritos – Toda a gente sabe que, mais a mais, os miúdos devem beneficiar de três meses de aulas de Cidadania sobre identidade de género! Até porque dentro de cada um de nós existe uma outra alma, que pode ficar com as mangas do casaco curtas no pescoço, há que libertar as almas. O heróico paranóico hara-kiri!…

    Entretém-te filho, entretém-te
    Não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer
    Mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt’e-quer
    Messe gigantesca, vem-te bem, vem-te vindo, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho
    VIM no Politeama, VIM no Águia D’ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho
    Vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão
    Olha os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora
    Olha a Música no Coração da Indira Gandi
    Olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d’olho
    O respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
    Nós somos um povo de respeitinho muito lindo
    Saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
    Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde
    Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo
    O teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos
    Como o Astro, não é filho?
    O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
    Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar
    Para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho?
    Pois claro!
    Estás aí a olhar para mim
    Estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto
    Pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus zodíacos:
    Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?
    Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
    A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
    Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
    Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
    A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó
    Tu és Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro
    Tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho?
    Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!
    Entretém-te filho, entretém-te!
    Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva,
    E salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho? 

    FMI, de José Mário Branco

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eu não conto histórias, eu ouço

    Eu não conto histórias, eu ouço


    E pergunto-me porquê, em silêncio (e por vezes falo alto, mantenho a criança viva, não resisto a esse prazer, de atirar pedras ao charco).

    É como mergulhar na água. Fundo. A sensação de asfixia. A privação de oxigénio no cérebro que se governa no mínimo, confuso pelo som denso que se abate nos tímpanos e aperta com força, luz estranha e fria que entra nos olhos, ar líquido que jorra nariz acima.

    Que difícil que é pensar, que difícil que é saber. Quanto mais proclamar.

    (Quem proclama são os psicopatas.)

    Procurar as histórias exige caminho e é penoso. Exige mergulhos. Mas o mais difícil não é isso. O mais difícil é mantermos o papel de observador intensamente. O mais difícil é ter uma opinião e ter o seu contrário também.

    (Podemos ser ambos.)

    Certamente que Adolf Hitler era um carinhoso dono para seus cães. (Preferem a menção da sua namorada ou dos seus animais domésticos?) Aliás, até era vegetariano. Mas ninguém quer ver a humanidade do monstro ou do psicopata, até porque mergulhando e gerindo o cérebro nos mínimos com os sentidos confusos pela agressão, é importante engavetar e priorizar.

    (São sempre patriotas os psicopatas?)

    E vende-se a ideia de que boa que é a pátria. Esse “grande substantivo abstracto” como li o António dizer (o Lobo Antunes). Que medo mete a pátria, que a qualquer momento timonada por psicopatas nos manda para a guerra e para a fome. (Golo!)

    Festejemos as poucas alegrias que nos pode dar a bandeira, que a “bucha é dura, mais dura é a razão que a sustém” (como disse o Torga, e depois o Zeca também).

    O pai dá e o pai tira.

    Certamente que urge salvar o planeta. Desde sempre. Que maçada a nossa existência e acima de tudo a existência dos outros. E acima de tudo a diferença. E a indiferença também. Que confronto, que agressão aos sentidos (e o cérebro a ficar sem ar).

    O ar já esteve tão sujo que, ainda mais com a fome, as pessoas tinham síncopes no meio da rua (foi há pouco tempo). Andavam descalças (e era proibido) mas afinal se pelo menos não estiver frio na verdade isso até faz bem à coluna (ai, as ironias dos paradigmas). Agora está o ar mais limpo, mas não chega, e continuam as crianças a colarem-se às paredes com palavras de ordem.

    Constrói, destrói, constrói de novo. O papel do arquitecto é conduzir a água para fora, porque entrar, ela vai entrar sempre.

    (Tenho pensamentos que se intrometem enquanto tento rever as histórias que ouvi.)

    person holding burger bun with vegetables and meat

    Um homem de ar macilento e pescoço esguio explica-me que a sua qualidade de vida aumentou e a sua saúde melhorou desde que se tornou vegan. Fico feliz por ele.

    Outro homem com ar robusto e pele curtida do sol troça dele e, enquanto leva o guisado à boca, explica que vegetal não puxa carroça. Rio-me. De facto não consigo imaginar que puxe. Imagino até que por entre a honra de respeitar cada animal ao ponto de não o matar não seja fácil conciliar isso com as necessidades do corpo, embora evidentemente seja possível.

    Conciliar o transcendente com o terreno não é fácil (e o cérebro sem ar debaixo de água), é um exercício de uma vida inteira (para alguns nem é para uma vida só), mas é, acima de tudo, o caminho de cada um.

    (O individualista ou o colectivista.)

    toddler's standing in front of beige concrete stair

    O individualista defende de pedra e cal a sua liberdade, a sua livre iniciativa, a sua independência e autonomia (a pedra ergue, a cal queima). A democracia parece ser o sistema perfeito para conciliar e proteger o individualismo (será? Ou não tivemos uma ideia melhor até agora?)

    O colectivista defende o bem comum, o enxame, o formigueiro, a estrutura massiva e maciça a progredir num só corpo, numa só mente, ninguém fica para trás (tirando os danos colaterais, isso acontece, é a vida, não é?)

    Pelos vistos, os malvados individualistas querem continuar a comer guisado com vacas poluidoras em flatulência excessiva, das quais temos muita pena do sofrimento e morte delas mas, ao mesmo tempo, mais vale elas não serem tantas porque… O planeta é finito. (E alguém disse que éramos oito mil milhões na última contagem de cabeças de gado! Melhor explicar aos miúdos que se colem às paredes e que não tenham filhos!)

    Pelos vistos também, os malvados colectivistas querem obrigar-nos a todos a comer alface e farinha de larvas, mas é pelo bem do planeta, e porque coitadinhos dos animais. E a acção de cada um importa! (Curioso, parecem um individualista neste ponto…)

    brown grasshopper on persons hand

    E como disse o Herman neste momento “eu, é mais bolos.”

    A mãe cria e a mãe morre.

    Eu quero saber porque é que se está a morrer mais no mundo. Agradecia que permitissem cavar essa verdade em vez de cavar o buraco entre especulações. Eu não quero contar histórias, quero ouvir.

    Alguém informe por favor os Tribunais e todos os Jornalistas, que nós os comuns não queremos ideologias, só gostávamos que, para variar, por entre a dureza da bucha, nos dissessem a verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Constituição Portuguesa, ou um caranguejo arrota uma pérola na maré vaza

    A Constituição Portuguesa, ou um caranguejo arrota uma pérola na maré vaza


    A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Respiramos nuvens e deixamos o Atlântico para trás.

    Há muito tempo para pensar, se por acaso temos de sair do nosso ninho habitual rumo a outros mundos. Cada casa, cada casario, cada vila, cada cidade. Cruzamos essas vidas todas na distância e reparamos que nada realmente importa, e tudo importa tanto. Pois o dia continua a nascer e a morrer no horizonte, enquanto destinos são influenciados por directivas, resoluções, leis, normas e tiranias várias, de gatos, ratos e porcos gorduchos sentados a fartas mesas, comendo alarvemente enquanto tricotam fio para nos asfixiar em teia.

    brown house near body of water

    Mas nós, nós lá continuamos todos, cada um a tentar comprar a saca de pão diária, a tentar ser a sua melhor versão, a cismar se a sua herança real será a mais serena e amorosa para seus descendentes.

    Andamos todos ao mesmo. E no caminho frio, vencendo montes, rumo à serra, pensando se a neve cá chega para nos fossilizar os anseios, tento espreitar cada encosta, e imaginar que vida de outra pessoa (serás tu?) atravesso ali, se lhe (se te) apetece tanto gritar a ti, como a mim, devorar as árvores num trago, e em duas passadas galgar montanhas e ultrapassar tudo.

    Um planeta de titãs. De tanto nos quererem convencer que a chave de salvar o planeta está algures no nosso bolso, certamente que nos insuflam as pernas para sermos titãs, a dar passadas entre montanhas como quem faz um corta-mato simples por caminhos de cabras.

    Por esse caminho espreitam brotos de eucalipto a encarrapitarem-se por troncos negros de árvores mortas. Sempre nasce alguma coisa. Somos tão importantes para a Mãe Natureza que lá vemos todas as nossas pegadas a ser apagadas com relativa facilidade.

    Mais tempo, menos tempo, falar com a geologia seria, aí sim, ver tempo a sério. Tempo que nos deixa a tiritar de frio nas nossas manias e talvez a neve chegue, mas, por enquanto, os gatos espreguiçam-se no sol de São Martinho.

    O nosso caminho é tão pequeno que eu ainda tenho de explicar às avós da família porque é que agora não se põe pó de talco no rabinho dos seus netos.

    Então, agora que já todas estas gerações pensam que aquilo é cheirinho de bebé, afinal os senhores da Ciência, que só estavam a vender coisas boas e práticas (e até inoculações), alegadamente deixaram que fosse parar amianto aos simpáticos recipientes com um sorridente bebé desenhado?

    (Sim, aquele amianto que esteve tanto tempo nos cobertos das escolas, telhas partidas a deitar veneno em pulmões de crianças e seus gritos de brincadeiras, mas só o tempo o mostra, o veneno, quero eu dizer, muito tempo.)

    greyscale photography of powder

    Ainda por cima, de vez em quando, lá se fala baixinho que as fraldas – tão práticas que até podemos deitar fora – também têm veneno que fica ali encostado horas a fio, a marinar, durante mais de dois anos, a envenenar-nos os filhos. Enquanto se sussurra que trabalhadoras das fábricas destas fraldas aparecem, por vezes, a avisar que têm de usar equipamento especial para trabalhar, e que várias colegas adoeciam só de manusear o que ali se fabrica.

    Mas vai tudo ficar bem.

    Cada um mede a pegada com a lente que (mais) lhe convém. Até porque o frio sempre vem e, enquanto nos cruzamos pelo caminho, sobra pouca força para engolir as árvores com tantas queixas; e se nos dói as costas de quebrar o corpo ao meio na luta pela saca de pão, quem é que tem tempo de se arreliar com tudo isto? (O tempo perguntou ao tempo quando tempo o tempo tem…)

    Como se criam estas crianças para a ditadura?

    brown steel chain

    Como lhes explicamos que talvez possam ficar presas na gaiola, para prevenir, para precaver, para antecipar, porque é melhor para eles? (Eles quem?)

    A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Sinto que se abro a boca para berrar me asfixio, engolir as árvores parece desespero e começo a maquinar planos de sobrevivência.

    Lá voltamos nós, cada um no seu cantinho, a cismar, a pensar se bater chocalhos para espantar demónios adiantará realmente, ou se estaremos apenas a aliviar a consciência sobre a nossa resposta… quando os bebés, já crescidos, nos perguntarem onde estávamos no momento em que o grilhão lhes torneou o tornozelo.

    Sabes tu?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Da culpa e da inocência das árvores

    Da culpa e da inocência das árvores


    Espalhadas pelo mundo existem várias árvores mais velhas que este império, mais velhas até que o anterior e o anterior a esse, em silêncio, a observar.

    A casca da velha árvore fica espessa, nesta contemplação, dura, cansada mas firme.

    Quantas guerras já viu a árvore dos mil anos, e que mesmo assim dá fruto?

    girl in pink jacket and pink pants climbing on brown tree during daytime

    Com dois mil trezentos e oito anos, no Sri Lanka permanece uma figueira de nome Jaya Sri Maha Bodhi. Diz-se ter Buda ali atingido a iluminação, enquanto ela lá estava, simplesmente, a observar. A seus pés morreram pessoas, em massacres, como o de 1985, quando uma milícia separatista tentava reagir contra a perseguição da população Tamil no nordeste do país, olho por olho. Hoje a pátria de Jaya tem uma inflação de 73,7%, e na sequência de protestos desesperados, que chegaram a invadir o palácio presidencial, a vida continua, miserável, restando à figueira assistir.

    No Líbano, um olival que se mistifica como a fonte do ramo de oliveira que a pomba devolveu a Noé, conta já mais de cinco mil anos, embora ninguém arrisque ferir as Irmãs para contabilizar a sua real longevidade.

    Quanto já viram e viveram estas oliveiras ao ponto de estarem inscritas no Antigo Testamento? Enquanto isso, hoje o Líbano é flagelado por um surto de cólera, a população encolhe-se há tanto tempo sem rede eléctrica e, após a explosão em Beirute em 2020, ninguém se incomodou de saber ao certo se aquele povo precisava de nós e quem lhe tinha feito tal maldade.

    O Cipreste de Abarkuh, no Irão, com mais de quatro mil anos, que, reza a lenda, terá sido plantado pelo próprio Zaratustra, sentirá o ruído que ecoa da revolta das mulheres que cortam o cabelo em protesto contra a lei sharia, talvez anunciando o secularismo iraniano que a Pérsia não viu, ou talvez servindo de combustível para pavimentar a estrada americana para leste.

    Um teixo em Fortingall, no Reino Unido, conhecido pelo seu veneno, com mais de quatro mil anos estimados de contemplação, e que foi entretanto murado para sua protecção, suspira certamente pela libertação. Enquanto assim está, Assange apodrece na cadeia, perdido num limbo, esquecido por quem serviu.

    Curioso como um cidadão australiano, de repente, não tem pátria que o defenda. Assistimos que nem árvores imóveis, a tiranos de escalpe na mão, a arfar de regozijo por mais uma opressão enquanto maquinam estratégias que arredondem o gado em direcção ao matadouro em nome de países e muros e campos de girassóis cobertos de neve.

    Venham os discos voadores – e que não saibamos o que é o sabor de sangue e ferro na boca.

    macro shot of brown tree

    Em 1932 iniciaram uma experiência em Tuskegee, no Alabama. Recrutaram centenas de homens afro-americanos que viviam na pobreza, com a promessa de cuidados de saúde gratuitos. O objectivo era, porém, observar o que lhes sucedia em caso de apanharem sífilis que não fosse tratada, muito embora ninguém os informasse desse detalhe. Muitos morreram, provavelmente incontáveis, em troca de uma mão-cheia de nada. Apesar da penicilina estar largamente disponível a partir do final dos anos 40, a sádica experiência durou até 1972. Só se revelou a verdade em 1979. Só foram pedidas desculpas em 1997.

    Nos anos 60 do século XX, alguns cientistas laboravam na teoria do AZT como uma solução para combater alguns cancros, mas a ideia não pegou por falta de eficácia, nem atraiu investimento. Nos anos 80, outros cientistas agarraram a oportunidade da crise do HIV para voltar à carga com este veneno, e utilizaram-no como resposta sem direito a muitas perguntas. De novo, muitos morreram, provavelmente também difíceis de contabilizar, e ainda hoje se tenta raspar a neve destas lápides a ver o que lá está escrito.

    Na mesma época, outros laboriosos cientistas desenvolveram e testaram a tecnologia mRNA. O que queriam ser quando fossem grandes? Os senhores que curariam o cancro.

    man under tree during daytime

    De novo, no cancro não funcionou. Mas recentemente, devem ter ouvido falar, outros agarraram a oportunidade de um vírus respiratório que um morcego a sangrar passou a um pangolim, que depois foi comido numa sopa por um chinês [estou a brincar, mas tomem lá um vídeo todo catita que também foi disseminado em 2020 e as mais recentes correcções).

    As árvores são pilares entre este mundo e outros mundos, entre o que está em baixo, invisível e o que está em cima, inalcançável. No meio podemos nós escavar, ou trepar; nelas temos a certeza de encontrar a raiz das coisas, e do seu fruto, ou sua seiva, poder vir alimento.

    Os outros pilares, os que nós fizemos com grande artifício – a banca, a big pharma, o industrial military complex –, esses, arrasarão todas as árvores pela pura ganância de se manterem a devorar o mundo.

    Que culpa têm as árvores?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um pardalito de louça

    Um pardalito de louça


    Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque a ruga no colarinho da camisa não deixa que te concentres na chama da vela junto ao caixão, e num funeral tão prolongado até o luto fica enjoado com o cheiro de flores e laca do cabelo, não havendo pois espaço para cheiros confortáveis e limpos.

    Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque mesmo que mantenhas essa honraria de domingo no teu modesto lar, começa a ser urgente reveres teu gesto sempre que tenhas que pôr mais moedas no contador e dar à manivela para fazer faísca.

    red lighted candle on dark room

    Também podes ir buscar brasas… O quanto perguntaste à tua avó como se vivia? Até me sento mais direita junto dela enquanto “avó, como fazias?” e por entre um gracejo rouco diz-me ela todos os truques de viver à míngua e construir uma vida, sorrisos, filhos, netos, bisnetos, um telhado sem goteiras e um chão com mais que terra batida.

    Minha querida avó Mila. Esta fica para ti, que me dizias “açúcre” em vez de açúcar, só para me arreliar em pequena.

    Sabes que os gatos têm inveja dos pássaros e, se murmuram miados na varanda ao vê-los passar, é porque se lamentam da sua pesada sorte de serem os caçadores e não a caça.

    white and brown cat on green grass during daytime

    Rainhas, príncipes, princesas, corregedores, presidentes, ministros, senhores assessores. Tudo gatinhos com inveja de pardais, tão preocupados parecem viver com treparem ao topo da árvore para depois nem saberem descer. Quem os vir julga até que alguém precisa deles, aos ares que se dão, às adorações que movem.

    Houve até uma madame que se fartou de fazer bonecos de cera à escala real de cada uma das figuras. Figurões. Figurinos. Fez mal!

    Se era para usar cera espetava-lhes ao menos um pavio no cucuruto para nos alumiar as noites frias de inverno europeu! O que devia ter usado era caco! Vinha aprender umas coisas para os nossos lados e fazia figurinos de loiça destas tão poderosas criaturas, tão preocupadas em mandar. Mas pequeninos, assim, para caberem no louceiro. Umas miniaturas todas catitas a petrificarem estes seres tão importantes que ali ficam a servir de amparo ao pó dos dias, pousadas em filinhas ordenadas na prateleira de vidro para todos nós vermos, a Rainha e a Diana, o Gorbatchev e o Regan, o Biden e o Trump, o Putin e o Schwab…

    snow covered grass plant selective focal photo

    Sabes que a arte de adicionar mais farinha nas pataniscas também se aprende com sorrisos.

    O meu avô Moura um dia chegou mais cedo do trabalho com fome, viu um saquinho de pó branco em cima dos armários e assumiu que seria farinha. Estranhamente, ele bem que vertia o polme na frigideira, mas aquilo sumia-se!… Assim, puff!… como o nosso ganha pão hoje em dia!

    Afinal era potassa. A minha avó tinha pedido que lhe dessem um saquinho para arear os tachos e o meu avô arruinou-lhe a dádiva na frigideira.

    Típico. Assim, txi!… como os senhores dos bancos, e os gatos invejosos e os figurinos de louça (todos alinhados na prateleira, pó bem espanado, reduzidos à sua insignificância).

    No fim do dia, das vidas e das mortes que se coleccionam, se tens ou não asas, importa muito que tenhas abrigo. Os abrigos e as casas não nascem nem brotam do chão. Constroem-se. E constroem-se conforme o terreno em que se querem pôr de pé.

    Podes afundar estacas de madeira até terreno firme, podes compactar pesadamente em pedra líquida, podes até flutuar…

    Mas sempre, sempre a tentar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De quem são os rios?

    De quem são os rios?


    Habituamo-nos a ver que as águas correm e que só temos de saber navegar o barco. Habituamo-nos que as águas sequem e comecem a rarear, ou que venham em bátegas e a turbulência nos impeça de atravessar em segurança. Por instinto gravado nas nossas células, é um hábito acharmos que tudo o que vivemos é natural.

    É relativamente simples separarmos as águas do hoje, caso o barulho pareça por vezes demasiado: existe, hoje, mais que nunca, o mundo real e o mundo irreal.

    man and woman standing on river

    Podemos chamar virtual ao irreal, como se ainda houvesse algo de virtuoso ou potente, como o seu étimo nos conta, mas o facto é que não deixa de ser aquilo que é: irreal, o contrário da realidade.

    Pessoas que aplicariam boas maneiras no trato umas com as outras, de repente perseguem-se por ruas e passeios irreais. Caminham, umas atrás das outras, com agressividade, e tentam rasteirar para que tombem de dentes contra o lancil de cimento (irreal). Proíbe-se o piropo no mundo (real), e vociferam-se discussões entre estranhos nas praças mais públicas deste mundo (irreal).

    Ideias que não passariam de desabafos, suspiros, degraus num caminho, passam a ser uma comunidade, pesada e enorme como um paquiderme enraivecido a bramir a tromba na direcção de quem se atravesse na procissão.

    O decoro perde-se. Jornalistas, homens (hominídeos) de letras, a quem entregamos a vigília da isenção, da transparência e da legitimidade, acham que podem, aparentemente sem ordem do pai tirano (será?), perseguir e borrar a pintura de colegas das artes e cultura. Zurram “zorro!”, levanta-se a condenação pública da multidão, mas como diz a má-língua: embrulha-se o peixe no dia seguinte com essa folha de jornal (mas isso é no mundo real).

    pink leafed tree under the blue sky

    Os que sobram no rio, afogam-se em torvelinhos. Podem falar que não se os ouve. Podem gritar que não se lhes admite. Podem calar, para prevenir. O exemplo fica dado: calem-se todos, cumpram as regras, serão felizes. De quem são os rios, afinal?

    No meio da propaganda há sempre algumas verdades. Propaganda não tem de ser mentira. Tem apenas de ser uma poda eficiente. Um tesourar nas expectativas, um tesourar no movimento. O ser humano está construído à semelhança da restante natureza, no seu crescimento e na sua necessidade de movimento. O sistema cardiovascular, como rios, o cérebro como uma noz, o ar a entrar dentro dos nossos alvéolos pulmonares como um brócolo, braços a estenderem-se como árvores.

    Mas a propaganda decidiu discordar disso, dessa relação absoluta (e real) do ser humano com o seu mundo natural, mesmo que na sua natureza esteja a imposição, a manipulação e a selecção artificial. Será problema antigo, talvez, a desconexão, ainda mais advinda da revolução industrial, entre o homem e a Natureza, não falta prosa e ciência (a antiga) sobre o tema. Não faltam sequer religiões – por alguma razão é muito comum que assentem muitas na ideia da expulsão de um jardim. Meu conhecimento por uma maçã, minha alma por um beijo, meu pecado por meus filhos.

    Mas a propaganda pegou nessa ideia, juntou umas observações, notou outras ideias. E, como provavelmente sempre acontece, alguém reparou que era uma óptima oportunidade de negócio.

    De que forma poderiam branquear manchas de óleo negro, aumentar lucros e criar uma histeria transgeracional? Uma simples ideia, que nem é mentira, basta ser podada como uma verdade conveniente: a pegada ecológica.

    Por exemplo, o conceito da pegada ecológica foi criado pela British Petroleum (BP).

    Essa mesmo.

    A pegada ecológica pode ser uma mera ferramenta de medição de tudo. Um único morcego na Amazónia tem uma pegada ecológica apocalíptica para as populações de mosquitos. (E que jeitinho me fazia um, um morcego, agora aqui, em Aveiro.)

    Num golpe de mestre, que conduziu a narrativa até aos dias de hoje, de repente a poluição atmosférica não era culpa “deles”. Era nossa, porque andávamos de carro (movidos a petróleo) e ainda por cima vivíamos longe do nosso trabalho (alimentado a petróleo).

    brown sand with heart shaped print

    O continente de lixo, que flutua no Oceano Pacífico, não era culpa das frotas pesqueiras industriais (movidas a petróleo), que monopolizaram o mar e largam toneladas de redes de nylon (feitas de petróleo) em cada rota. Era nossa, porque usávamos objectos de plástico (feitos de petróleo).

    O transporte, abate e desrespeito pela vida animal (derivado do petróleo), após uma horrível vida de clausura, abuso e medicação forçada, não era culpa de uma indústria sanguinária que trabalhou sempre para criar excesso de oferta, excesso de procura, excesso de lucro e excesso, excesso, excesso. Era nossa, porque comemos carne, e tivemos filhos, e fizemos férias, e lavámos os dentes com uma escova de plástico colorido.

    E a nossa camarada British Petroleum mudou as cores, para verde e amarelo, apresentou-se de cara lavadinha, de novi-bíblia debaixo do braço, e a frase “já pensou no Jesus das eólicas hoje?” Mostrou-nos a sua calculadora da nossa culpa, mediu-nos a pegada ecológica, e quantos planetas eram necessários só para nós, sozinhos!

    ten birds sits on wire

    Não contentes, como em todos os cultos, outros Golias seguiram o exemplo. Começou até a vir o brinquedo no happy meal e nas nossas escolas, e em breve uma geração, hoje adulta, aprendeu a regurgitar sem contestar, a vestir o molde sem pensar. Sem virar a capa do jornal e ver a quem pertencem os rios. Porque, simplesmente, a terra é assim, foi assim que lhes disseram que a terra era. Plana.

    Mas, como os rios correm para o mar, quem é dono dos rios sabe que eventualmente a água se salga, a ferramenta é novamente usada para cavalgar o empreendedorismo e voluntarismo desta nova geração. Adoráveis e dóceis herbívoros que inovaram a indústria, os produtos, as soluções. Um sem fim de artigos, sistemas, estilos de vida que voltam a reconectar-nos com a Natureza, reduzem a nossa pegada e garantem que salvamos o mundo a tempo!…

    E como sempre, alguém vê uma oportunidade de negócio, antes da terra ficar salgada como Cartágo.

    people walking on sidewalk pathway beside road with vehicles and high-rise buildings during daytime

    Agora, que populações histéricas, sob doses incríveis e nunca antes vistas de flúor, ansiolíticos, PLV e glúten, com o acesso mágico e transcendente ao tão desejado mundo irreal, estão na presença de um embate imenso entre impérios, agitam-se as bandeiras, quando na verdade, e digo-o numa angústia profunda de mãe, o resultado será sempre a tirania. Como em todos os rescaldos de um grande cisma.

    Primeiro aterrorizam. Depois amordaçam. Por fim esfaimam.

    E enquanto estamos nestes debates eternos, com o barquinho no meio do rio, os donos do mundo já têm o livro das revelações escrito, e já falam entre comparsas sobre a inevitabilidade da “restruturação” de tudo isto.

    Agora já é tarde. Sobra enviar estas missivas em garrafas para a água. Esperar que outros náufragos as encontrem. Mesmo que vos calem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Língua de vaca, o pão que o diabo amassou e os “come-nações”

    Língua de vaca, o pão que o diabo amassou e os “come-nações”


    É sempre um espectáculo de variedades incrível observar uma senhora encavalitada em saltos altos e passinhos pequeninos, estilo Betty Boop, embrulhadinha em cor-de-rosa, com uma máscara branca bem demarcada no rosto como um super-herói da Marvel (ainda com isto das máscaras?!), a cantar de galo com uma super-potência que possui muito da dívida soberana do seu país… Os cowboys do deep state mandaram postal aéreo: “Dear Xi, fill in the blanks!

    Para a mente do comum mortal, como eu (e alguns outros), de novo vem a pergunta: “Porquê?”

    pair of brown patent-leather open-toe platform stiletto pumps

    Claramente, os representantes oficiais (não mais lhes chamarei líderes), tal qual deuses, não estarão loucos, mas talvez aborrecidos. Querem entreter os dias e não vão deixar os sérvios darem pontapé de saída neste jogo insano? (Afinal até vão, talvez, tanto dá, há várias casas no tabuleiro de xadrez.)

    Para o corpo do comum mortal, como eu (e alguns outros), de novo vem a noção que só sobrará, com sorte, o pão que o diabo amassou. E é pão negro.

    Há quem diga que este chegou a ser o único pão em Portugal na região alentejana e algarvia, porque era necessário usar mais alfarroba para compensar a falta de cereais. Daí a cor negra, daí o diabo como padeiro do nosso dia-a-dia. Muito diferente de embrulhos cor-de-rosa ou cores vermelhas a esvoaçar no Império de Leste, isso é certo, seja a origem da expressão esta ou outra, sobra pouco de migalhas para sacudir aos passarinhos.

    Espantei-me estes dias, pois de novo, para várias mentes e corpos, há legitimidade em desafios bélicos, de qualquer escala, ainda mais desta. Eu sei que o convencionado para a natureza humana é que nos definimos por oposição. Se somos isto, não somos aquilo, fechem a jaula e ponham o cão e o gato lá dentro, criança ou adulto, menino ou menina (pim!), não existe cinzento!

    rotten green apple

    A banalidade do mal não pode ser verdade, porque o que diz isso de mim e de ti? (E do cão e do gato?) Magia negra certamente estará na origem destas reacções colectivas tão bem orquestradas. E diziam os optimistas que a Internet ia acabar com o conceito de massas – claramente que nunca aprenderam nada sobre pão.

    O facto é que a massificação da comunicação e partilha online tornou-se uma ferramenta, sim, extraordinária; e uma ferramenta também é uma arma. Uma arma poderosíssima de propaganda e colonização como nunca a rádio, a televisão ou o cinema conseguiram criar.

    Mas, se considerarmos como todas essas ferramentas invadiram o nosso quotidiano – e , no caso português, até fizemos sempre questão de subalternar a nossa língua nessa comunicação, com as famosas legendas (e para mim é doloroso ver actores dobrados) –, somos, com efeito, uma mera colónia estadunidense e, como tal, estamos propensos ao belo do consentimento manufacturado do regime de Washington.

    São décadas a ver gente gira na tê-vê, sempre sentados na sala de estar, a debaterem se naquela noite vão comer italiano, mexicano ou chinês. São décadas a ver americanos a comer nações enquanto passam clips de gargalhadas de pessoas mortas na sala de estar. (E eles adoram chinês!)

    Já nós, colónia pobre, podemos sempre ir aos cricos, prendas que a ria de Aveiro dá (não cabem na cova de um dente, “não teremos nada, mas seremos felizes“). Podemos sempre acreditar que, pelo menos, não ouviremos sirenes de bombardeamento aéreo em terras lusas, e que temos maneira de usar o famoso “desenrasque” português para rapar o tacho.

    stack of jigsaw puzzle pieces

    Porém, verdade, verdade é que, enquanto embrulhos cor-de-rosa deixam bombas malcheirosas no quintal vermelho dos outros, pouco importa se o nosso Pai Tirano chega a evitar que a luz suba, e nem para candeias de azeite vamos ter solução no abrigo nocturno.

    A linguagem informa o nosso pensamento, informa estruturas cerebrais e a nossa percepção do Mundo. Isso informa tudo o que produzimos para esse Mundo, desde a resposta dada ao plano maquinado. Um português sabe bem, pela História, pela Diáspora e pela postura – pois “nenhum povo despersonaliza tão magnificamente” – que a arte da diplomacia passa por essa empatia essencial de que simplesmente não pensamos da mesma forma.

    Assim sendo, há várias maneiras de agir e de reagir, mas se não ouvimos ou não queremos conhecer a outra pessoa, certamente que, mesmo inadvertidamente – e que não é o caso de falta de aviso –, vamos desrespeitar.

    Por exemplo, no espaço, para um alemão num escritório, a convenção é que gabinetes privados garantem concentração nas tarefas. Para um americano, portas e paredes, nesse escritório, é um horror onde se escondem conspirações. Não é tarefa fácil projectar algo para manter a harmonia na Torre de Babel, porque as culturas e suas linguagens simplesmente dominam tão profundamente o corpo e a mente que o bem ou mal-estar é espoletado pelas coisas mais inusitadas.

    aerial view of people walking on raod

    O comum mortal como eu (e alguns outros), por oposição a profissionais do duelo (que fazem yeehaa! desde o início do ano), sabem algumas coisinhas cruas e não urdidas para nos apanhar na teia de aranha: para um país existir é convencionado diplomaticamente ser necessário uma declaração de independência reconhecida e não tomada em violação dos princípios básicos das Nações Unidas, reconhecimento do Estado por uma maioria dos países (Taiwan, Palestina ou Kosovo não são muito consensuais neste ponto…), e por fim juntar-se às Nações Unidas (acho sempre este ponto cómico ou como diria Marx, o Groucho, eu não queria pertencer a clubes que me aceitassem como membro).

    Taiwan é, para todos os efeitos, namoradinha da República Popular da China com um estatuto de separação amigável, mas votada a celibato. Assim, a grosso modo.

    Ou seja, por miúdos: se o prato servido à mesa é língua de vaca, o Cowboy não pode dizer que não foi por falta de aviso da China.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Estranho amor dos pombos de falcoaria e dos andróides que sonham com ovelhas eléctricas

    Estranho amor dos pombos de falcoaria e dos andróides que sonham com ovelhas eléctricas


    Actualmente, parece que nem de foguetão se chega a tempo do que se vai passando. Com a qualidade do cálculo matemático deste século, até se aponta para que algo se despenhe na nossa cabeça, e a senhora Miquinhas, a molhar as paredes de casa em Pombal para se prevenir dos incêndios, ainda olha para cima a pensar que vem aí mais um “meteorito” chinês. Por entre as nuvens de fumo, se por enquanto não é outro vírus, pensa a Miquinhas que só lhe faltava mais esta, e que os seguros nem cobrem quedas de aeronaves.

    E de repente até cai um no Índico. Coisas que os títulos não prevêem.

    A space satellite hovering above the coastline

    Bem vistas as coisas, começa a aparentar ser uma apropriação cultural. Isto tudo das tragédias ao virar da esquina é coisa de querer encarnar os filmes apocalípticos de Hollywood, tragédias que cabem em hora e meia de sala e pipocas doces.

    Pena a realidade não caber em hora e meia, guerras que duram meses… até enjoa e tira a vontade de tocar os sinos, ainda mais com ondas de calor a derreterem ferro (toma lá Hollywood!, nesta não pensaste tu!) Mas com jeitinho os Balcãs já tocaram os seus, os falcões a esvoaçarem pelo eixo são uma visão histórica muito interessante para os próximos dias, quiçá meses.

    Curioso esta coisa agora da apropriação cultural. Pelos vistos é a colonização dos genius loci, absolutamente proibido. Tranças no cabelo? Ofensivo. Rastas? Ofensivo. Macramé? Ofensivo. Queimar livros? Isso pode ser, desde que sejam ofensivos segundo os parâmetros de entidades superiores e benevolentes que nos poupam ao fardo da interpretação.

    Nem o Tintim escapa! Esse branquela com a mania de passear pelo mundo a revelar conspirações. Essa bandeira do privilégio! O melhor mesmo é fazer uma fogueira, com fins simbólicos claro, até porque o Canadá pela sua latitude tem de simular umas ondas de calor. Acabamos com essa apropriação de uma só vez que a cultura não pode ser detida!

    brown sand with shadow of person

    Entretanto, as máquinas tentam ganhar consciência, para nos salvar a todos, ou transformar em pilhas, ou ir atrás de um autocrata a leste de outra linha imaginária… mas uma até se abespinhou com um miúdo a jogar xadrez, por isso claramente também não podemos depositar muita fé na inteligência artificial. Isto, quando falta o processo químico de sintetização e excreção, podem bem desistir da etérea ideia da alma. Nenhuma alma se aguenta neste plano de idiossincrasia sem desfrutar do prazer de bolinhos de bacalhau e a sua inevitável digestão.

    Mas o que me preocupa nem é isso.

    O que me preocupa é a facilidade com que por entre todo este barulho não nos ouvimos pensar. Muito menos ouvimos o pensamento dos outros. Muito menos sabemos qual importa na verdade.

    Trocando por miúdos, perdemos a noção do valor da vida e da morte. O valor da memória que nos dá a todos a vida além morte. As pessoas caem-nos dos braços e morrem e ninguém pára tudo. Ninguém fala incessantemente nisto pelas ruas, pelas avenidas, pelas pontes! Por todo o lado, o implícito encolher de ombros desanimado de pombos com as mãos cruzadas atrás das costas e uma perna gangrenada pela cloaca de vida que lhes sobra, de bico afilado atrás da migalha e um xuto no rabo se se demorar muito nas pernas dos gigantes.

    photo of girl laying left hand on white digital robot

    Bem, há quem fale, na verdade. Há quem até diga que há males que vêm por bem. Há quem diga sem pestanejar, sem encher a boca de algodão para as escaras que nos vomita em cima, que isto é o equilíbrio perfeito rumo ao fim das alterações climáticas e do ferro a derreter a 40º. Rumo à Utopia! Se um problema nos incomoda o ideal mesmo é mudarmos as variáveis, as componentes, que diabo!, até mudamos a operação e de certeza que o problema quase se resolve sozinho.

    E isso não tem de significar que interesses obscenos e supra terrenos, paranormais e secretos desejam ferramentas para nos fechar a todos em gaiolas até falecermos de fome. É só o copo meio cheio. Só isso.

    Mas eu vou, à cautela, comprar um square foot de verdejante solo escocês e tornar-me Laird a ver se safo a família da purga da ralé, sugestão da rede.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.