Autor: Mariana Santos Martins

  • Ao semear nuvens, a terra girou ao contrário

    Ao semear nuvens, a terra girou ao contrário


    Numa era em que tudo surge ampliado, em que cada laracha no balcão do café (cimbalino, se faz favor!) ganha ecos de trinado de cabra, cada sugestão de debate é um buraco, uma toca para onde foge um coelho apressado e ninguém estranha que ele esteja impecavelmente vestido.

    Ora são padres de amígdala tolhida, por condicionamento de desenvolvimento sexual, ora é a pedofilia não ser exclusiva da Igreja (a pedofilia é crime porque tem uma vítima, espero que quem divague sobre os contornos patológicos da psique do criminoso não se esqueça disso).

    people sitting on church pew inside church

    Ora são buracos em empresas públicas (e como tapar um buraco sem abrir outro ou deitar entulho lá para dentro e cobrir com florzinhas), ora a TAP não é o único problema, e mais a mais o Estado (essa entidade sobrenatural) não deve meter a unha em propriedade privada sem ver que vai nu e que tem as suas propriedades votadas a um abandono crónico, endémico, à vista de todos há décadas.

    Mergulhar em cada toca parece uma queda vertiginosa (e é), a maioria de nós segue o instinto comovente de escolher um lado e gritar uma opinião conforme tenha mais ou menos tempo para se entrincheirar em conversas de surdos, lendo as “gordas” (esta palavra foi proibida pelo index woke dos loucos anos vinte) e, se sofrerem da mesma maleita que eu, mal sejam apresentados números e gráficos a cabecita começa a entoar uma musiquinha para distrair (que isto de números é abstração das mentes superiores, e mais a mais está claro que eles têm vontade própria e vão enfiar-se em luras ainda mais escuras que não me parecem de todo apelativas em comparação com sentir raios de sol em brisa fria a aquecer-me as costas).

    Eu cá sei somar, subtrair, multiplicar e dividir. Quando a malta se põe a comparar números e a dizer coisas como “triénio” e “spread”, podem estar a falar de gestão danosa à portuguesa, crash financeiro internacional ou efeitos adversos de picas experimentais, que lá começam os Monty Python a cantarolar na minha cabeça, e já não sobra atenção para compilar dados.

    a large number of numbers are arranged in rows

    Isto é a honesta declaração de iliteracia da minha pessoa. A minha única premissa é que não sei. Há toda uma série de engrenagens (sejam as oleadas ou as gripadas) que vejo a movimentarem-se e saltam-me porcas e parafusos se tento meter a chave nelas.

    A mim não me toca (e eu não me toco, mas elas tocam-me a mim, invariavelmente), pois não tenho poder, não tenho costela “activista” e o meu único passatempo de garota é rir-me com as redundâncias, incongruências e artifícios políticos dos diferentes propagandistas (isto é, rir para não chorar).

    Leva-se uma vida inteira a compreender a sabedoria de Caeiro.

    Como a inteligência artificial é bom, e é o que está a dar (inteligência artificial é diferente de consciência artificial, tenham calma), e a propósito de tocas, perguntei ao ChatGPT o que era o “cloud seeding“. Até porque nesse dia olhei para o céu e lá vi rastos de caracóis em forma de nuvem (passou um avião, deu um pum e foi ao ar).

    a laptop computer sitting on top of a wooden table

    Foi no quintal de casa junto ao tanque de lavar roupa nos idos anos noventa (seriam os idos de Março?) que ouvi pela primeira vez um rabujar sobre “lá andam eles a dar cabo disto tudo, são eles que arranjam de mexer onde não devem” (quando é que clonaram a Dolly?). E foi a primeira vez que conheci outra entidade sobrenatural, normalmente plural, que se apresentava como um bando, uma praga de macacos voadores feitos engrenagens a girarem o planeta para onde alguém tinha decidido girar, e nós mareados cá em baixo, a sermos empurrados para onde nos levassem.

    O meu conhecimento não ia muito além das crónicas de encantar da Condessa de Ségur ou as tropelias de Os Cinco da Enid Blyton, mas imediatamente assumi, com instinto comovente, que “eles” eram por certo uma entidade vilânica, que deveria ser chamada à justiça, mas Deus dava nozes a quem não tinha dentes (e à medida que o Eça entrava na minha vida até percebi que com jeitinho “eles” não sabiam sequer o que eram).

    – Mas porque é que mais médicos não se insurgem contra o que se está a passar publicamente?

    – Eu quero trabalhar, minha querida!

    aerial photography of clouds

    Então, o ChatGPT munido do seu vasto conhecimento – pelo menos até há uns anos – e um acesso generalizado a fontes de conhecimento filtrado – o melhor possível segundo critérios de seus criadores –, explicou-me a tecnologia de cloud seeding, do enorme sucesso que a mesma tem garantido em criar pluviosidade em áreas conhecidas pela seca e seus benefícios em agricultura industrial e manipulação do clima.

    Fascinante… (os nossos amigos Emirados até têm um vídeo promocional sobre isso).

    De seguida perguntei se havia efeitos adversos desta tecnologia já medidos ou previstos e, de novo, esta novíssima entidade artificial explicou-me que sim, que havia ainda alguma polémica e vozes críticas, mas ainda nenhum consenso científico sobre se seria técnica nefasta ou não, pelo que certamente que, por agora, se podia empiricamente concluir que estava tudo bem. É só mais uma ferramenta (é um martelo, prega pregos, pregos pregam Pedro).

    O meu cérebro, analfabeto claro, fez logo uma ponte no penhasco (o atrevimento da garota) e perguntou ao robot o que eram então os chemtrails. E o robot rapidamente me apaziguou as ideias e respondeu que embora conseguisse ver o paralelo, a tecnologia de semear nuvens era uma técnica segura e legítima, enfim, uma ferramenta com vários fins para o bem-estar da Humanidade, enquanto a alegada tecnologia de chemtrails (nanopartículas e micropartículas que causam alterações climáticas e mais umas quantas coisas que um coelho me contou) era uma teoria de conspiração.

    white clouds and blue sky

    Até poderia ir à minha vida com esta resposta, até porque sempre desconfiei de coelhos impecavelmente vestidos. Mas que a história está manca está.

    De resto, se a terra girar ao contrário, de certeza que Oz nos informará sobre isso. Até lá, é comer até rebentar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reflexões a banhos e uma lavagem de cultura

    Reflexões a banhos e uma lavagem de cultura


    Rolar o dedo nas redes sociais é um privilégio, e também um alimento, que nos mostra muito. Tantos “alimentos” no feed que quase se assemelham, a certa altura, a uma pia de lavagem, e eu, porca, a fuçar naquilo tudo.

    (Preços que se pagam por deixar de consumir televisão e jornais.)

    Hoje, como quase sempre, lá aparece um gatinho.

    Mas este gatinho é testemunha das brigadas de salvamento de gatinhos. Aparece uma fotografia do bichano, coberto de lama e sujidades várias, ar doente, friorento e triste contra uma janela de carro e chuva lá fora.

    Foi resgatado. E na fotografia em baixo já aparece, seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada contra uma janela de uma casa com jardim e sol lá fora.

    Até aquece a alma.

    Pergunto-me quantas vezes o ser humano, aquele que salvou aquele gatinho, fez o mesmo por outro ser humano, nas mesmas condições.

    Trouxe-o da rua, lavou-o, tratou-o, deixou-o aquecido numa almofada a posar para a foto. A ilustração da humanidade a ser meiga com o seu semelhante, com a mesma intensidade generosa no acto de salvamento de animais indefesos, frágeis, vulneráveis e, regra geral, submissos ou garantidamente domináveis.

    Certamente que o deixa dormir aos pés da cama ou até dentro mesmo. (O bichano.)

    orange Persian cat sleeping

    Será que é o medo em jogo? Afinal de contas, há mais risco em salvar um animal selvagem, de grande porte, e pior ainda se tiver uma ideia de livre arbítrio e não achar muita graça a recolher obrigatório ou à esterilização forçada.

    Pior ainda se o dito animal selvagem, e de maior porte, se lembra de discordar de quem o salvou, se lhe ocorre ter um estilo de vida que comicha com o conforto físico ou até moral do bom samaritano.

    (E lá no Mediterrâneo mais um barco cheio de pessoas, que não são gatinhos, a afogarem-se no atrevimento de ansiar por uma almofada e um sol no jardim de fora da casa. Não têm na verdade uma única bandeira que dê para exibir fervorosamente, têm várias, ou de facto já nenhuma, visto que nenhuma bandeira quer saber de nós nem tampouco nos oferecem uma para nos embrulhar, a não ser para quem morre por um lunático gatarrão que surge seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada [e às vezes nem isso] ou para quem paga bilhete com brinde para a claque do desporto rei.)

    grayscale photo of man and woman holding their hands

    Mais um banho de redes sociais, e surgem outros gatinhos que alguns partilham afincadamente com as notícias que a propaganda do nosso eixo teima em esconder.

    Uma invasão de privacidade, que nos garante o vislumbre do íntimo das decisões dos últimos três anos.

    A ciência (e não a siênssiah) da verdade sobre as máscaras.

    A censura desvairada de tudo e todos os que não sigam o catequismo.

    Enfim. É escolher qual a lavagem.

    bench and dining table near body of water under calm sky

    Na falta de melhor, podemos sempre reler o 007 ou os clássicos infantis, lavados de ofensas a públicos sensíveis. O index de palavras proibidas já vai desde gordo (mas não magro) até a rapazes e raparigas (ah pois, para quem não saiba, neste momento, até o sexo biológico é tabu nos países das maravilhas, até porque todos sabem que a biologia é ciência non grata nesta década.)

    Enquanto isso, procurem comédia, que esta vida são dois dias e, acho eu, o Carnaval foi três.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Deram um dia…

    Deram um dia…


    Há uma enorme responsabilidade em falar de um dia, ainda mais se esse dia foi adoptado por grande parte do Mundo para lembrar uma luta (uma opressão), uma reivindicação (uma morte), enfim, pessoas.

    Quando milhares de operárias, algumas antes mesmo de terem sufrágio, começaram as suas marchas por mais respeito e iguais condições de trabalho, estas nossas bisavós não poderiam imaginar que hoje o dia 8 de Março era engolido por pequenos gestos vazios, uma rosa, um dizer de postal de cartão, uma campanha de marketing.

    persons hand with white manicure

    As nossas bisavós e avós que deixavam a saúde e a vida em chão de fábrica, em tinas industriais de lixívia, em suor, miséria e abuso sexual, não poderiam imaginar que hoje se poria em hipótese suprimir o feminino das palavras, anular o sexo biológico ou existir uma invasão dos espaços seguros das mulheres, desde a casa de banho pública ao acesso a uma bolsa universitária por mérito atlético.

    As nossas mães não poderiam sonhar que em nome da empatia com outros grupos oprimidos, haveria quem achasse legítimo rasurar a maternidade, rebaixar-nos à classificação de “portadoras de útero” ou “pessoas gestantes”.

    Os leitores de sensibilidade (existem, eu também não acreditava) têm estado a rever a matriz que nos educa e concluíram que a mulher já não deve ser protegida, defendida ou exaltada. Supostamente, a bem da igualdade.

    Então assim, na geração em que ainda falta tanto fazer, vemo-nos a braços (mulheres e homens) com mais uma agressão.

    Podemos enumerar as vítimas de violência doméstica, abusos de anos, escravatura, mortes violentas.

    woman in white top wearing eyeglasses

    Podemos enumerar as vítimas de violência obstétrica, mulheres que muitos profissionais de saúde ainda tratam como meros portais de passagem do bebé, (um buraco), corpos serrados a meio para deixar passar outro.

    Podemos enumerar as vítimas de abusos laborais, grávidas e mães que são despedidas por serem consideradas força de trabalho manca, mulheres que são escrutinadas e julgadas pela aparência, que são desconsideradas e assediadas.

    Pelos vistos é preciso ter sorte, dizem.

    Isso não é aqui, ouço também.

    Sabem o que é o “ponto do marido”?

    (É um buraco, é um buraco, é um buraco.)

    three woman holding each other and smiling while taking a photo

    Dia 8 de Março, eu faço uma pausa em silêncio pela luta das nossas bisavós, avós, mães. Mulheres, de onde todos nós viemos.

    Não somos iguais não. Nem tampouco superiores ou inferiores. Somos diferentes.

    Podia falar-vos de correntes feministas, evolução histórica dos diferentes grupos, diferentes lutas, tensões entre as mulheres afro americanas e as mulheres brancas nos Estados Unidos, a união de forças com os grupos LGB (houve quem lhe chamasse ameaça lavanda) e agora o aguar da definição de “mulher” pelo activismo trans.

    Podia até dar-vos uma opinião bem vincada sobre isso, tenho-a na devida medida, o cinzento está lá no meio do arco-íris, mas há um novo ataque às mulheres sim. E as nossas filhas estão de novo em risco porque cometemos erros. Porque pensamos que as conquistas estavam garantidas.

    Não estão.

    woman in blue denim button up jacket and blue denim jeans standing near brown wooden fence

    Se derem uma flor, não escolham a rosa.

    Se assinalarem o dia experimentem fazê-lo a reflectir sobre a diferença entre a mulher e o homem.

    Por isso é que há um dia internacional da mulher.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Crónica de duas Palestinas

    Crónica de duas Palestinas


    Ver a luz fatiada pelos rectângulos da janela a aquecer-me o lado esquerdo do corpo espevita a atenção para a forma como, com enorme facilidade, a moleza se instala em barriga cheia.

    Quero eu dizer, é fácil estar descontraído se o básico, e em nível bom, está suprido. Ainda mais, se acalma o frio, que mais precisamos?

    Amanhã? É longe.

    Hoje? Não é aqui.

    white window blinds on window

    Um e outro comboio descarrila em East Palestine, no Ohio (creio que não foram extraterrestres nem balões). Entretanto, uma Chernobyl deste século (como já lhe chamaram) instala-se na pátria dos neocons.

    Onde está a Greta?

    (E o impacto ambiental que os nossos amigos falcões causaram a sabotar o Nord Stream?)

    Então e a emergência?

    Devem acreditar que as máscaras os vão salvar disto também (não é, Luís Pedro Nunes?).

    Já na Palestina, que creio que todos conhecem, desde sempre, pois consta que mais que um messias de sandálias andou por lá (ó Cristo, vem cá baixo ver isto!), a vibração aumenta, o fogo tudo devora. Um genocídio, um apartheid e uma atrocidade inteira, enorme, incandescente.

    Mas, então, e as bandeiras?

    Onde está a angariação de donativos nas escolas?

    As carrinhas fretadas para ir acudir àquelas famílias?

    Jogos de xadrez que não vemos, ou de mikado que sentimos espetar-se nas costelas, em tamanho real, no tabuleiro do velho e do novo mundo, e sacas de serapilheira espalhadas no chão com mais morcões que batatas e aquele cheiro…

    Sabem? O cheiro da morte preguiçosa.

    Como pó fino branco que cai em tudo. E lembrem-se também de fazer as camas antes de deixarem um trolha sozinho em casa com ferramentas e uma missão aparentemente simples.

    Amanhã é longe. E hoje não é aqui.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • As naves espaciais sabem a algodão doce

    As naves espaciais sabem a algodão doce


    Às vezes sentia coisas com o gosto.

    Lia uma notícia e sentia metal na boca, ferro encostado aos dentes a enferrujar. Outras notícias e a língua cheia de algodão, a iminência de asfixiar.

    Parar um momento e avaliar porque temos a garganta arranhada e a cabeça a latejar, com um paladar que nos sobe pelo nariz, é uma tarefa exigente e, parece hoje, cada vez mais inevitável qualquer que seja a fonte de informação que utilizamos. Para quem sinta o mundo com a língua, obviamente que os esforços são redobrados.

    woman eating coconut meat

    E foi o que primeiro desconfiou. Como assim perder o gosto?

    — É sim. Um dos sintomas, sabe? Perde-se o gosto.

    Ora mas isso acontece tantas vezes…

    (E a mãe compadecia-se do seu estado febril e desalentado à mesa “não tens apetite não é?”

    — É que a comida não sabe a nada…)

    Ou sabe tudo a papel e quem é que quer ter a boca cheia de papel sem ser para guardar segredos?

    Então, ainda com desconfiança, voltou a subir a gola do casaco e cumprimentou com um aceno, agradecendo o gentil aviso. Se perdesse o gosto estava sabido que teria de ir para a fila penitente e deixar o testamento em cima da escrivaninha. Até porque a morte não vem todos os dias mas para cada um só vem uma vez, já diziam as velhas e é verdade.

    girl holding orange fruit in front of yellow wall

    A morte. Já há uns anos que anda vestida de popelina colorida.

    Já para nós, a perda de pessoas às vezes torna-nos de vidro. Certas salas estão cheias de pessoas assim, como cristal vazio, prestes a partir com um encostar mais brusco. E nós de vidro, a deslizar por entre estofados dos sofás e corrimões de madeira carunchosa, cada toque um tilintar.

    Chegou a gola novamente ao queixo para enfrentar o vento e pensou nas pessoas que ficaram em cúpulas para trás. Uma vida passada cheia de bolhas em cada sítio com personagens que viveram tanto tão juntas, em convivência estreita e confinada. Será que existiram ou foram imaginadas? Serão elas hoje de vidro por quem perderam?

    Batendo os pés no tapete de entrada imaginou neve, mas a Primavera à porta, coelhos que põem ovos de chocolate e amêndoas revestidas a açúcar.

    snow covered mountain under blue sky during daytime

    Pelo limiar, antes mesmo de ter coragem de encerrar o mundo de lá de fora, avistou num relance uma nave hesitante. Um disco voador a latejar por entre o céu branco de Fevereiro e a olhar intensamente o quarteirão.

    Um baloiçar da estrutura voadora mais forte e ei-la! A pequena nuvem de fumo a sair do traseiro, fofa como algodão doce.

    E talvez prova que sempre somos nós à procura de casas de gengibre.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Confissões em palcos cheios

    Confissões em palcos cheios


    Eu comecei a dizer “às vezes desobedeço…”, e ele respondia “não é às vezes, é sempre!”

    Eu fazia uma pausa arreliada e respirava fundo, dizendo “…e às vezes respondo torto…”, e ele interrompia “não é às vezes, é sempre!”

    Pensava eu que se não me conheces de lado nenhum, raisparta isto!…

    “Vai em paz e que o senhor te acompanhe.”

    kneeling woman wearing brown dress

    E cismei eu, “não quero companhia, seu ranhoso, a fazer de mim mau diabo!”

    Fui embora e cheguei a casa berrando a minha revolta “o padre era um estúpido! Nunca mais lá volto!” E a minha avó ria-se:

    — Ainda agora chegaste da confissão e já estás a pecar!

    O conjunto de pecados que uma criança inventa para brincar aos adultos é quase tão proporcional ao tamanho do mundo tal qual o vemos. Pequenino. E as portas são todas imensamente largas e altas.

    Dependendo do quanto espigamos, talvez já possamos ver adultos sem nos ficarmos pelas pernas e, talvez, sintamos mais direito a levantar a cabeça e a cometer o pecado da insolência de pedir satisfações das regras arbitrárias que nos impõem.

    Eu não sabia o que os adultos murmuravam baixinho de joelhos. Pensando que estavam a sibilar por entre os lábios como quem chama um gato, limitei-me a imitar.

    As velhinhas no banco encantavam-se com o meu ar compungido e penitente, e gabavam à minha avó a minha dedicação à transcendência em tão tenra idade. Já a minha avó, ciente que eu estava a bichanar gatinhos imaginários, dava-me uma cotovelada e sussurrava “levanta-te estapunho! Que estás a fazer, rapariga?!”

    Foi a primeira vez que reparei que imitar um comportamento sem o compreender a fundo era em si mesmo ilustrativo da minha imaturidade. E se havia coisa que eu estava investida em esconder era essa inocência. Pois essa inocência para mim era o que me mantinha grilhões de dependência, algo absolutamente intolerável para quem sonhava em receber correspondência endereçada a si.

    O meu pai ironizava “hás-de receber estas cartas e veres que são contas para pagar e já não vais querer.”

    — Não, não! Eu quero receber, porque se receber cartas para pagar é porque são coisas minhas que eu conquistei!

    Claro que fui descobrindo que há quem discorde. Ainda hoje em dia me espanto que queiram pôr a unha no que eu paguei com o meu esforço. Como a rapariga da carteira em frente que, depois de cobiçar a minha linda lata de lápis de cor, todos virados com as letrinhas douradas para cima, sussurrou, com a colega do lado, “vamos dizer que não temos lápis e assim ela empresta-nos os dela!”

    — Eu ouvi! E só por causa disso agora não vou emprestar!

    A injustiça a borbulhar-me na voz! Também era facto que não tinha sido eu a conquistar literalmente os lápis, mas eram meus, conquistados pela resiliência de só responder torto às vezes e desobedecer pouco, para que me brindassem o conformismo com o prazer de ter lápis novos a pintar a folha.

    — Olha que depois destes, não há outros! Vê se os estimas!

    “Todos os animais são iguais, mas alguns, são mais iguais do que outros.”

    Depois comecei a descobrir que afinal as injustiças eram permanentes. Actos divinos que não me tocava compreender, diziam. Enfureci-me com o adágio “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. Como assim? Que absurdo! Então um homem tão inteligente, com visão panorâmica em tempo real de tudo o que se passa cá em baixo, e mesmo assim vai dar nozes a um desdentado sem pelo menos poder moer aquilo?! Isso é injusto e não faz sentido!

    brown walnut

    Ao menos fazia um bolinho.

    Em vez disso manda um terramoto zurzir o mundo de quem já vive sem nada ou com muito pouco. Até nos vizinhos, sem unhas, nem dentes e as chamas a deflagrar, rasteiras, as casas a caírem e nada sobra.

    Pomos o coração com quem não podemos acudir. E mesmo que nunca mais tenhamos voltado a uma igreja, rezamos, porque basta bichanar baixinho, um pensamento de fundo, que se tenta permanente, por todas as pessoas que sofrem longe, enquanto a nossa vida continua com visão panorâmica em tempo real.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Escuta, que barulhos fazem ali?

    Escuta, que barulhos fazem ali?


    No silêncio do crepúsculo ou no remanso do lusco-fusco, ouves o som que a tua terra faz?

    Um silvo abafado de comboio na distância. Ventos contínuos de carros na auto-estrada. O sacudir de ferro do camião do lixo e os travões agudos de um autocarro.

    Ou um avião, imenso, pesado, a contrariar a gravidade, devagarinho e tão depressa. Um estertor suave da vidraça na marquise que sente com o corpo da casa o movimento de um mundo de gente a sobrevoar.

    Uma mota apressada a rasgar o frio em fúria?

    trees on top of hill

    Ou o sereno breu, uma toada de cão que ladra lá longe, a pressentir cheiros que o alarmaram. A fazer a quietude mais gorda, mais parada, em terra de um mundo que só gira porque vemos o sol nascer.

    Na cidade descobri as máquinas que não dormem, milhares e milhares de máquinas que pulsam em cada cantinho de cada família. Máquinas de lavar, automóveis, portões de garagem, uma buzina, uma sirene. Um ronronar permanente. Será vida?

    Na aldeia descobri chilreados, insectos que não descortino, zumbidos e o roçagar do próprio planeta a atravessar o vazio. Como movimentos do estômago dentro de mim.

    ClicClic!

    O mundo é feito de ruídos, e se fechamos os olhos eles crescem, tanto quando pedimos que falem mais baixo, para vermos melhor, enquanto procuramos um lugar de estacionamento.

    man and woman standing beside trailway

    ClicClic!

    E então se a televisão estiver ligada, ai o barulho… Mas enquanto aquele barulho bolsa, sempre ouvimos menos as vozes dentro de nós. Ecos do que nos disseram, ou se calhar só ouvimos, ou talvez até só lemos. Ecos que nos caíram como pedras, e nós esmagados debaixo delas, um pé a tremer, um suspiro final.

    ClicClic!

    Ao meu lado, na borda da cama, com uma perna chegada a si num abraço, ela corta as unhas do pé direito alheada da minha irritação.

    De frente para a televisão, de comando na mão, e com uma nuvem cinzenta e arreliada a sombrear o meu semblante, olho-a com alfinetadas de desdém ao ver uma unha rebelde saltar no ar para parte incerta:

    — Precisas de estar a fazer isso agora?!

    ClicClic!

    a pair of pliers cutting a piece of yellow paper

    — Nem consigo ouvir as notícias, e há um balão chinês por cima da América!

    Levanta-se e sai, em silêncio descontraído e trocista do meu sistema nervoso, em aromas de sabonete e com o cabelo enrolado na toalha que já escorregava.

    Afinal, que importa? São só barulhos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Nada nos dói mais que sentir os nossos filhos de mãos geladas

    Nada nos dói mais que sentir os nossos filhos de mãos geladas


    Coisa é fascinante constatar – e entenda-se o fascínio com o devido riso de escárnio – como é que no Portugal de 2023 se tem a casa gelada ao ponto de se ver o próprio bafo; como é que se tem a roupa tão fria que vestir se mostra penoso; como é que se tem coisas guardadas que subitamente ficam cobertas por uma camada de bolor.

    Pobreza energética.

    Num país de sol que tantas vezes brilha

    boy in black and white plaid coat

    Como se pode, e não se pode (e só para quem pode), procuram-se bálsamos e pensos rápidos, janelas simples emparelhadas com velhas para poder pagar cada janela, mantendo as existentes, mas tendo assim duas fiadas, e as condensações a escorregarem nos vidros…

    O famoso capoto [acessível, rápida execução, desempenho mais pobre, sistema antigo tratado como a coisa mais nova que já se viu por estas partes, pobreza de informação, ao ponto de pensarem que o dito capoto é nome quando, na verdade, é uma marca, à semelhança do pladur], o que não é o mais perfeito a resolver pontes térmicas [uma ponte que o calor cruza para fugir de nós pelos cantos, mesmo que queimemos toda a lenha que encontrarmos] em reabilitação, mas todas as gentes o fazem e põem e vai aparecendo. Não sobra dinheiro para arranjar o telhado ou colocar isolamento por lá, e assim continuam surgindo as telhas partidas e a água a minar, a minar.

    (O minério agora somos nós.)

    Também não há dinheiro para o valor actual dos pellets, e tantos que investiram nisso, de salamandra catita, com mais fé na relação custo benefício. (Viram o preço da saca agora?) Pelo meio ainda surge mais uma bandeirinha a queixar-se das partículas do fumo emitido pelas chaminés. Ou ligar o ar condicionado e aquecer o ar que vem de lá de fora e foge rapidamente, encostando-se aos vidros e junto ao caixilho (libertem-me, libertem-me! Ar vira água e água dentro de casa, as cheias de todos os dias).

    houses covered with snow during daytime

    “Apanhem lenha” dizem os bem calçados, assim uma coisa como a decapitada que disse “comam brioche”.

    Andar com mini-aquecedores que se ligam junto às pernas para os miúdos aquecerem e que mal se desligam, com o pânico da conta da luz, todo o calor se esvai em meia hora.

    As casas em que sempre vivemos definem-nos?

    Se somos o que comemos, somos como vivemos?

    Pelo meio, os tiranetes lusitanos piam, piam, piam.

    Entretêm, entretêm, entretêm.

    Um palco invadido, outro palco projectado.

    fire burning on fireplace

    E pelo meio esfregamos as mãos, encostadas à boca, ansiando a Primavera. E a larga maioria quer lá saber de respeitar as centenas de mortes em crianças causadas pela inoculação experimental contra o vírus da moda.

    Mate-se o mensageiro? Que podres terá ele, não é? Está frio, ninguém tem tempo para pensar nisso.

    Segue em frente! Falar? Eu? Para quê?

    Cada um sabe de si, não é verdade? E aquecer as carnes já gasta tanta energia.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ai o Estado!, essa entidade sobrenatural

    Ai o Estado!, essa entidade sobrenatural


    Olhou para a câmara porque sabia que alguém o via. Um bebé quando acorda já sabe onde está a vigilância. Olha de frente para a câmara, porque acredita que estou ali miniaturizada, a vigiar o sono e a vigília. Uns choram e chamam, outros ficam a olhar, outros desatam a gatinhar para tentar fugir, enquanto a mãe não se manifesta por artes mágicas.

    Um dia olhei o céu e senti que já ninguém me via. Estaria alguém ainda a ver? Disseram-me para acreditar que sim, e eu fiquei a olhar, cheguei a gatinhar para desatar a fugir, experimentei chorar e chamar e depois fiquei a olhar outra vez.

    landscape photography of green land under bluesky

    Assim nos fizemos, ou fizeram-nos, entre a casa dos nossos pais, a Igreja e a escola. E todos os recreios e caminhos entre eles.

    Quem é que nos paga a escola?

    – … é o Estado.

    Errado, é o Governo, que afectou verbas ou não para investir num molde de cidadão eleitor futuro. Esse Governo foi agora eleito por interferência externa de grandes poderes do capital corporativo, a diferença entre ter cartazes e não ter. A diferença entre ter uma equipa de gestão de imagem e conteúdos ou ser um cão pequenino a ladrar em oposição controlada.

    Se for um Governo mais fascizante, prima por investir em baixar-nos o pensamento crítico com o medo e o respeitinho; normalmente é útil para isso usar entidades sobrenaturais.

    two black turtles

    Se for um Governo mais liberalzinho, vai fazer o mesmo, mas em vez de entidades sobrenaturais dão-nos um computador pessoal (que já ninguém tem pachorra para fazer marcação na biblioteca) e acesso à internet. Que dádiva!

    Ambos gostam de exaltar grandes substantivos abstractos; um usa a Pátria, o outro usa o Mundo, dá tudo no mesmo. Ninguém vai ensinar Jaspers, Kierkegaard, Kant, Nietzsche, Heidegger, Sartre ou centenas de outros mais. Nem há tempo. Ninguém sequer explica as diferentes correntes desde a escolástica, ao simbolismo, às inquietações modernas ou ao pós-modernismo que serve de semente ao actual “mundo”.

    Quando muito proíbem filósofos perigosos, não enquadrados no pensamento vigente. Sem segundas hipóteses na igreja woke. Ninguém vai explicar ou mostrar Adam Smith e Marx. Ninguém vai dizer o que é “interpretação”. Ninguém vai explicar as estruturas de funcionamento da sociedade, do Estado, dos impostos, do mercado livre. Ninguém vai explicar, porque ninguém vai ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada…

    boy singing on microphone with pop filter

    A única coisa que vão fazer é ensinar-nos que houve uns egípcios com umas pirâmides e uns gregos com umas togas, depois que houve uns portugueses heróicos que foram por aí fora participar no mercado livre das mercadorias em voga (e, dependendo do púlpito, podemos ter a versão “somos-os-maiores” ou “somos-umas-bestas-esclavagistas”). Por minha culpa, minha tão grande culpa!

    O menino é malcriado, o menino é pequeno burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico!

    Pelo meio aparece o Pitágoras, alguns axiomas, Pessoa, Bocage e talvez Cesário, e ainda talvez Saramago. Tudo embrulhado e enfrascado em conserva, para saber tudo ao mesmo. Camões e Eça servem-se enlatados lavados com champô.

    Tudo ao molho e fé em Deus, ou no tik tok partilhado no intervalo. Tudo num torvelinho hormonal de crianças em desenvolvimento com o mundo num telemóvel e uns senhores no fundo da sala a explicar que o mundo vai acabar; antes, bastava todos reciclarmos e deixarmos de usar laca e fazer grafittis; agora, melhor deixar de comer carne e, de preferência, deixar de respirar. É o molde, é o que é, é a lei, come, cala.

    worm view photo of brown concrete building

    Vá! Mandem-me lavar as mãos antes de ir pra mesa!

    O Estado não existe.

    É uma entidade sobrenatural criada para nos fazer crer que o poder é nosso. Que houve consenso, moral, ética, terreno comum, que houve necessidade, que a grande obra pública era urgente e emergente. E caros amigos monárquicos, isto vai até vocês. Não pensem que a ruína da Fazenda Pública nasceu com a República. São todos os mesmos. Têm todos as mesmas ambições megalómanas.

    Um gajo sonha de noite, dá uma bofetada na própria mãe e vamos para a guerra, combater vizinhos mouros que estavam aqui como estava toda a gente. É o califado! Lutem! Um gajo sonha de dia, dá um encontrão ao irmão e vamos para o mar, trapacear e raptar indígenas distantes em nome de Cristo e do progresso e que espertos que nós somos.

    As palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa!

    barbed wire

    Depois umas salas ao xadrez com outros gajos de avental, sonham de madrugada e maquinam planos, engendram progresso, ou sem avental a obra, a obra! A obra de Deus fazem eles! Abaixo o rei, viva a República! Continuemos…

    Estado que se preze, autoridade que seja digna, reduz os seus papéis ao mínimo de garante da ordem e de estrutura assistencial de que se orgulhe. Estado que se preze desaparece do nosso dia-a-dia. A cada escola cabe seu caminho, sua gestão, sua planificação programática entre corpo docente e pais e famílias. E aí quem não concorda; é livre de se expressar e, em caso de não estar feliz com o consenso maioritário descentralizado e local, procurará, bem mais próximo possivelmente, uma solução, ou até criará uma.

    O estado da escola mostra precisamente o Estado que temos. Os professores não querem ver isso porque continuam a ser pagos pelo Estado, escravizados pelo Estado, manietados pelo Estado. Mas esses professores já foram educados numa escola que lhes dizia que a entidade sobrenatural do Estado era uma inevitabilidade, por isso “lutam” e reivindicam. Sem abrirem os olhos para verem que a razão de ser da luta deles continua a existir e a manter a necessidade de luta.

    human leg skeleton

    O Estado…

    Essa entidade sobrenatural.

    O Estado, que investiu décadas a vender que é sinónimo de liberdade. Que em 1974 apareceram e nos soltaram as grilhetas da opressão. Que quem está lá agora são os descendentes naturais desses heróis, muito embora os heróis de então estejam a fazer tijolo, abandonados que foram na própria hora ou arrumados numa prateleira desde 1975 a mandar vir baixinho, porque a pátria lhes comeu a carne e deixou os ossos.

    O Estado…

    Essa entidade sobrenatural que, se for brasileira, até injecta manifestantes detidos na capital com a inoculação experimental da moda.

    Curioso. Diria até que parece prova de que afinal é um castigo e uma penalização. [calma, calma, certamente é um mal-entendido…]

    Curioso… Diria até que parece que o Estado quer tratar as pessoas como animais no matadouro [ah! mas são meliantes… não são bons cidadãos!]

    Curioso. Como ferro em brasa na carne.

    O Estado…

    … não existe.

    Mas alguns de nós continuam à procura do cérebro, outros à procura do coração, outros à procura de coragem, outros só querem bater os calcanhares e voltar para casa, seja lá onde isso for.

    Oh Toto, there’s no place like home.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem gritou lobo?

    Quem gritou lobo?


    Uma vez mais continua o carrossel, por entre o verdadeiro, o falso, o dúbio, a fofoca e o informativo, o cavalinho sobe e desce com música infernal de realejo, e nós, a tratar da nossa vida, só queremos evitar ficar nauseados.

    Um dos papas finou-se, um dos futebolistas gera nova polémica, um dos políticos de carreira gera novo desfalque, atrás da cortina fica um sem-fim de cenários ainda mais grotescos.

    Mais que tráfico de influência, estamos numa guerra de influências. Cada um no seu recreio, num infinito e imensurável parque infantil de quem grita mais alto, quem domina a brincadeira, quem dita as regras do jogo.

    brown wolf standing boulder during daytime

    Amigos imaginários que proclamam fábulas, rufias que perdem o domínio da caixa de areia para outros rufias aparentemente maiores e com piadas mais originais. Nas turbas vemos ecos de vozes a entrincheirarem-se pela sua suposta equipa. Que circo.

    Humildes, vaidosos, vaidosos humildes. Omnívoros, carnívoros, vegans, trans, lobbies, colaboradores e trabalhadores, ladrões ou presumíveis inocentes, figuras públicas com gripe e teste de gravidez de virose VIV (very important virus)!

    Façam like, façam subscribe, não se esqueçam de partilhar, mensagens que circulam de mão em mão a prometer o apocalipse climático, viral, pandémico, de reacções adversas, de genocídio, de eugenia. Usem máscara, o novo acessório do século XXI, tão indispensável como um chapéu nos idos anos 20 de outra era, um, dois, esquerda, direita!

    Alguém pare isto por favor.

    white and blue carousel

    As figuras de louça continuam nos seus poleiros. Um na China, outro na Rússia, outro nos Estados-assim-um-pouco-unidos. E nós a correr na roda do hamster. Corre, corre, corre. Grita, grita, grita. Squeak!

    Pelo caminho ficam migalhas que órfãos por imposição, aflitos, seguem, confusos em florestas de metal escuro, terra queimada, terra de ninguém, viva a liberdade. Sais à rua de cravo na mão, sem saberes que sais à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?

    Não!

    Tiranos são eles todos. Não é mais um que outro. Não há demónios a leste mais diabólicos que os demónios a oeste. Não há heróis libertadores da praça pública dos passarinhos azuis mais confiáveis que qualquer estátua de bronze no país da bandeira bicolor. Carne é o que somos para eles todos, dispensável, supérflua, para canhão ou para a barriga do lobo.

    Quem nos grita que isto é uma guerra, seja ela qual for, seja qual for a trincheira, é sempre quem nos merece desconfiança!

    O que nos sobra? Impotência e revolta? Conformismo e cansaço?

    closeup photography of bong mask

    Haverá trincheira que mereça o vivermos em lodo, lama e vermes?

    Lembro sempre de 1914. Que podia ter sido 1917, 1918, 1945 quando as forças aliadas lançaram últimas vagas de destruição total.

    Valeu a pena?

    Em 1914, no Natal, “surgiu um sentimento pacífico espontâneo nas zonas de guerra, quando as tropas de todos os exércitos europeus celebravam o nascimento do Salvador.

    (…) Na manhã seguinte, soldados alemães deslocaram-se até à linha de arame farpado britânico e soldados ingleses foram ao encontro deles. ‘Pareceram ser muito amigáveis e trocámos lembranças, estrelas para os bonés, insígnias, etc.’, anotou Hulse. Os ingleses ofereceram aos alemães pudins de ameixa, ‘de que eles gostaram muito’.

    black barbwire in close up photography during daytime

    (…) A Legião Estrangeira Francesa estava numa parte da linha onde a luta se interrompeu, os que tinham sepultado os corpos voltaram ao trabalho e foram trocados tabaco e chocolates. Entre os legionários estava Victor Chapman, um americano que se tinha graduado em Harvard em 1913. ‘Durante todo o dia não houve troca de tiros, e na noite passada a tranquilidade foi absoluta’, escreveu aos seus pais a 26 de Dezembro, ‘mas no entanto fomos instados a estar alerta. Esta manhã, Nedim, um turco pitoresco e acriançado, começou de novo a erguer-se na trincheira e a gritar para o outro lado. Vesconsoledoss, um cauteloso português, disse-lhe que não se expusesse daquele modo, e então, e porque falava alemão, fez alguns comentários mostrando a cabeça. Voltou-se para descer e – caiu! Uma bala tinha-lhe entrado pela parte de trás do crânio: gemidos, uma poça de sangue.’

    Sir John French recordou mais tarde que quando lhe foi dado conhecimento daquela confraternização, ‘Dei de imediato ordens para evitar qualquer nova ocorrência de tal conduta, e disse aos comandantes locais que deveriam ser estritamente cumpridas, o que teve como resultado um boa quantidade de problemas.’”

    Cuidado com quem nos incita a lutar. Cuidado com quem nos diz que é mais humano ou existencial fazê-lo quando, na verdade, o mais humano é sempre trocar cromos e jogar ao berlinde.

    Riam. Riam de quem vos manda odiar. Talvez a rir se deixe de ouvir os uivos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. O trecho citado consta nas páginas 76 a 78 do segundo volume de A Primeira Guerra Mundial, da obra de Martin Gilbert, editada em Portugal pela A Esfera dos Livros em 2007.