Autor: Mariana Santos Martins

  • Delícia poética em dose dupla

    Delícia poética em dose dupla

    Título

    ​Fundação Gramaxo: Álvaro Siza/Claustro do Rachadouro, Mosteiro de Alcobaça: Eduardo Souto de Moura com Luís Peixoto

    Autor

    ​Vv. Aa.

    Editora

    NMB (Novembro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A recensão terá de ser dupla, porque nada melhor do que escolher não escolher, ter tudo, sorver de uma vez e juntar bolas de gelado de sabores distintos.

    Os dois livros que vos trago agora para a minha tímida apreciação vieram à luz para exibir duas artes: a arquitectura e a fotografia…

    Esperem, deixem-me expressar melhor, porque estão ali dentro, de ambos, também as palavras. As vozes. E brilhos e opacidades. Porque em cada um dos livros subsistem as escolhas, as diferentes pessoas, os diferentes caminhos: o “do” Siza tem as folhas a brilhar como mármore polido, a colarem ligeiramente nas falangetas; porém, o “do” Souto, tem a calmia de papel baço, macio a deslizar com outro tipo de som mais pesado.

    Como na vida, um projecto editorial (um projecto, uma arquitectura), mais ainda na era da polarização, colhe significado nas suas finas diferenças. Tal, não tem de comer à consistência, mas se o fizer – e caberá ao leitor decidir se o fez – que mal tem? Só tem consistência aquilo que, porque perene, se aparenta a certa altura artificial ao ponto de nos ser indiferente. Queremos isso de uma obra? Uma obra nunca acaba, se acabasse, que horror seria. (E, no entanto, lá está, logo na página do título, a data de “nascimento” e “morte” da dita cuja!)

    Agora não esperemos, claro, escolhas sem consequências. E que mal tem? Nada melhor que observar muros e ver o traço da caneta ali, visivelmente invísivel, consequente.

    Mas vamos a factos, para que não se aborreçam comigo quando divirjo:

    O livro da Fundação Gramaxo começa pelos esquissos do autor das obra. O Siza, claro está. “Esquissos” – para o leitor menos acostumado com o maravilhoso léxico dos entes que arquitectam – nada mais são do que esboços, pensamentos desenhados que, algures no tempo, decidimos nomear assim para dar uma sonoridade do étimo francês (talvez porque a cultura ainda era deles). Diria que é o momento “Era uma vez” do arranque da narrativa.

    Já o livro do Claustro do Rachadouro, contém também os esquissos, mas só nos mostra essas provas em dois momentos, já bem no meio da ponte, primeiro pela caneta do Souto Moura e ocasionais lápis nervosos, depois, já dactilografada a obra a acontecer com muitas mãos, pelo elegante traço do Luís Peixoto. O momento “Era uma vez” deste livro bate-nos antes em cheio no nariz, com Francisco Pato de Macedo no timbre próprio dos historiadores, não fossemos nós esquecer que aqui falamos do Mosteiro de Alcobaça, e o respeitinho é muito lindo (e bem entendido fique que o desajeitado gracejo de minha parte presta a devida homenagem à aula prestada sobre esta história, de um autêntico luxo).

    Depois começam então as histórias, onde a fotografia irá brilhar em todo o seu esplendor de captura do tempo, sempre acompanhada por palavras várias, dos outros, dos autores, dos críticos, das testemunhas criteriosamente escolhidas para estes actos particulares. No livro da Fundação Gramaxo temos o privilégio do ensaio fotográfico de António Júlio Duarte, desde o ferro armado às cadeiras, com direito a espreitar pela fechadura do atelier do arquitecto (certamente num domingo de manhã, vazio, mas com vestígios do café e dos cigarros do Arquitecto); no livro do Claustro do Rachadouro o prazer da aturada reportagem de André Príncipe, ainda mais focado da viagem desde o embrião in utero ao bebé nascido, em perspectivas puras, descarnadas e verdadeiras. Essenciais. Para relatar a verdade de uma pré-existência e de um processo de reabilitação cuidadoso.

    E, por fim, o capítulo que, normalmente, o meu querido público julga ser o busílis desta arte: os desenhos técnicos. Tudo ali, limpo e lindo, bem mastigadinho e depuradinho, como se não estivessem centenas de milhares de escolhas em cada inflexão da espessura da linha, já brilhantemente editados por Macedo Cannatà num dos casos, e requintadamente afinados por Luís Peixoto e Carvalho Bernau no outro.

    Acrescento que as palavras de Jorge Figueira, no primeiro livro que vos comento, são uma delícia poética a convocar as artes todas do mundo para o Siza, assim, inteiras e gordas. Pergunto-me sempre, se as palavras conferem significados novos ou os lêem de facto lá. Suponho – ou aliás, noto – que falar sobre o alheio é bem mais fácil, basta escolher que música tocar. Gostei particularmente desta música neste livro. Voltarei a ler dentro de vinte anos para confirmar como envelheceu. Do texto do Frampton? Nada a dizer, repetições do termo “miraculoso”, que julgo adequadas quando a crítica se pronuncia sobre o que é português, mas que a tradução portuguesa prontamente corrigiu. Ironias que talvez se permitam numa língua, mas não noutra.

    Ah! E já agora, os livros também são bilingues. Assim, como quem não quer a coisa, para falar de escolhas. Resta-me apontar apenas, ao Nuno Miguel Borges, um pedido para edições futuras, se a tal me atrevo, arranca todos os livros na página 3 com poetas, daqueles mesmo a sério, com calo tingido de tinta no dedo da mão dominante e tudo.

  • Ribeiros, riachos e bichos-de-conta

    Ribeiros, riachos e bichos-de-conta

    Aquilo que devemos ter em conta sobre viagens no tempo é se, de verdade, as queremos fazer.

    Nadar contra a corrente, para além de esforço considerável, requer a capacidade de engolir golfadas de pirolitos. Os ribeiros trepam fragas e não sobram margens para abrir os braços, de verdade, pagas o preço dessa viagem?

    Ah, e depois, podes sempre decompôr, se é mera viagem (ida e volta) ou se é regresso (retorno). Numa viagem, a tentação da nostalgia é tão imensa que quase admitimos o risco.

    Green Swim Band

    – Deixa-me só ir lá ver, de novo.

    Num regresso há, pois então, perda. Perdemos a pescaria, fogem-nos as redes das mãos, a rebentação engole-nos e abafa-nos, choca o corpo contra pedras polidas.

    Nunca arriscaria tal. Isso é para garotos e românticas que se atiram do barco em plena rebentação.

    – Simão! Simão!

    Viagens no tempo fazem-se com facilidade, fazem-se com música e água, sem precisarmos de regressar, para ir (e vir) só lá ver (de novo).

    Somos todos antenas. Seja em que ponto do ribeiro (tempo) for. Estamos todos a ampliar o sinal uns dos outros, lembramo-nos mutuamente de pedras nos caminhos e saltamos riachos que alimentam lameiros (a lama) que alimentam aquele rebanho (a lã) que nos alimenta a nós, aos nossos filhos, enquanto o sangue se inflama com coisas vãs (a lama) e o lodo entra nos sapatos se nos falha um pé.

    a group of cell towers sitting on top of a mountain

    Todos nós antenas, que lá continuam pelo tempo corrido, corninhos no ar, flutuando ao de leve com as brisas e ventanias da sociedade do espectáculo, entre actores que memorizam bem as suas deixas – até com precisão matemática –, pontos, encenadores nas sombras, e os críticos – ah! Os críticos. Essa massa soberba – cheia de ar no recheio, fermento lento e pão que seca num dia até parecer cavaca amarga. Ranho que pinga do nariz (são as alergias, as alergias!), mas têm eles sempre uma opinião, homessa! Sempre um refrão na ponta da língua, para cantar em verso e fingir que não seguem a partitura. Os instrumentistas todos a levar com chimbalaus e a plateia só ais e uis, que espanto, que emoção! Ora são os turcos, os argelinos, os brasileiros, os portugueses de bem e os portugueses de mal, os aventais e os bordados! Ai! Ui! Pim! Pam! (Pum!)

    Nada de novo. Qualquer viagem no tempo nos ensina isso. Mas precisamos de tempo para a fazer, pode parecer diferente, mas na verdade não há atalhos para ida e volta. Podemos ter ido até onde o primeiro Deus habita, a distância percorrida continua a mesma.

    E mesmo que agora baixem todos os lancis, pintem os passeios de vermelho, para em seguida desovar mecos de ferro a cada cem centímetros (cem). Pim! Pam! (Pum!) Tomem lá estas acessibilidades mágicas, que a vida não foi feita para trepar ribeiros sem tropeçar nas fragas, dependendo da distância das rodas a um potencial volante tereis ou não privilégio de circular pelas ruas ocupadas pelas forças opressoras.

    Entre rios, ribeiros e riachos, anda a água acima e abaixo, a alimentar mares e oceanos e, com música bastante, quantas viagens no tempo podemos fazer até ficarmos loucos?

    – Sabes que, para os meus filhos, eu sou como a chuva e peço desculpa, e isso é razão bastante para que me gostem.

    O primeiro Deus, ouvindo-me, soltou sonora gargalhada, sobressaltando-me. E, imediatamente, se enrolou como um bicho-de-conta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Ruas, vielas e caminhos

    Ruas, vielas e caminhos

    O primeiro Deus atravessou o limiar daquele bar escuro e hesitou frente à Viela da Fonte da Caganita. Sabe Deus que caminhos com nomes de eventos, e não de pessoas, aportam uma carga demoníaca pesada. Ainda mais em entroncamentos. É sabido.

    O escuro do bar espalhou-se, de dentro para fora, pelos céus e, sobre as nossas cabeças, trovejou implacavelmente. Encolhi-me e encostei-me à perna dele, não por medo, mas frio e desconforto. Aí viria a cheia para engolir bocados, quatro cavaleiros a cavalgar em cada nuvem, o dilúvio a limpar as serpentinas de percursos palmilhados, as paredes de farelo a esboroar, gritos histéricos de incautos, os chalupas de galochas no alto da Rua do Rixixi a ver as ondas apoiados em cajados, aguardando a ascenção, crentes que a sua consciência os salvaria antes de serem sorvidos.

    Coitados.

    silhouette photography of street

    Negacionistas a rebolar na lama, adolescentes dopados com ansiolíticos numa canoa a bater com os remos em afogados “A culpa é tua, a culpa é tua! Como te atreves?!”

    Enfim, o caos. E o primeiro Deus manteve-se observador e não me enxotou. Havia uma serenidade no seu comprido casaco negro de fazenda que era boa de colher. O país de Viriato julgava-se por ele escolhido para escapar às águas, sabíeis vós, lusitanos, que não serviriam para mais do que bancada sobranceira ao apocalipse? É sabido que nada escapa, sabe Deus que limpar sem levantar o tapete é batota. Seus batoteiros.

    Também nada há de agradável na margem dos rápidos, sabemos que a água pode galgar num ápice, o que me restava naquele cantinho era decidir-me por galochas, canoas ou lama, pouco mais, na verdade. Desta vez ninguém fez a arca, meteram-se todos os espertalhões debaixo de terra.

    Energúmenos.

    Por alguma razão os dilúvios são a melhor escolha para limpeza, escusam de se enfiar em tocas que só se vão escapar as bactérias na orla da exosfera, a enxurada infiltra-se em tudo.

    man in black crew neck t-shirt sitting on black couch

    E já que estamos no país das ruas, vielas e caminhos que falam dos momentos, olhei o primeiro Deus, sem lhe largar a perna, e perguntei “Afinal onde está a Irmã Lúcia? Aquela que dizia para uns senhores consagrarem a Rússia? É que os chalupas disseram que a senhora foi trocada! E, de facto, que a carinha laroca dela mudou muito, mudou! Não sei se será hábito cirurgia plástica em mosteiros, não me parece!

    O primeiro Deus sorriu, pareceu até conter uma gargalhada, ignorando-me e mantendo a vigília. Amuei, carreguei o sobrolho como garota e bufei. Se fosse sensata largaria a fazenda negra e tinha antes montado refúgio, em tempos idos, na Rua Quebra Cus. Mas aquilo dos três meses de inferno e nove meses de inverno não me apaziguou, certo é que as pessoas fogem de quebrar as costas, ou os cus, ou as almas em rochas e ferro, e dentes também, além Douro, por uma razão, a salto até, pois num salto largo de lá fugiram todas as gentes.

    O que não tem remédio, remediado está.

    Ninguém quer na verdade falar sobre os retornados, insistem em amuos bufados em esquinas enquanto um dos reis que vai nu fala em reparações históricas. Como se a história fosse reparável. Como se fosse assim nau de mastro quebrado, que com os lacinhos das inaugurações bem atado até se põe de pé de novo, como se as nações de hoje devessem algo pelas nações de ontem. Porque se formos a secar o dilúvio de tristezas com as dívidas, sabe Deus onde é que isso vai parar. Qual o limite. Qual a nação (e o que é isso?)

    desk globe on table

    Existem nações refúgio? Em 2020 quase achamos que sim, na Suécia não venderam novos normais com a mesma ganância. “Isto é como uma guerra” disse o rei nu.

    Guerra, é o que estes reis de realejo inventam, na pausa da casa de banho, com as calças nos tornozelos. Patético.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Colecção

    Colecção

    O primeiro Deus apoiou o queixo numa mão, enquanto a outra tamborilava os dedos no balcão de madeira. Soltou um suspiro mudo.

    Era o dia sétimo, infinitos sete dias de cansaço, e 99 milhões de afogados eram apontados como seguros e eficazes para uma travessia do Canal da Mancha. Os deuses menores apressaram-se a alinhar todos estes corpos, flutuantes, enquanto berravam que avançassemos, caminhassemos sobre as águas que limitassem as bóias humanas. Deuses menores, todos bem enxutos, que não aproximavam um pé das águas, pois seria demasiado arriscado. Mais a mais, até abotoavam o colete salva-vidas naquele enterrado capítulo… Declaration of competing interest.

    white clouds and blue sky

    Mas isso são detalhes, bainhas (não tirem a espada), mangas, debruns, corte em viés, colarinho. Agora são todos contra as bóias humanas. É esperar que não se repita de novo. E seguir limpando.

    O primeiro Deus ouviu a minha zanga e, continuamente mudo, agarrou o copo de mel fervido em frente. Bebericou, gargarejou, desinflamou a garganta por milénios de silêncio.

    Por momentos, julguei ir falar, mas continuou apenas o tamborilar de dedos, suave, em unhas bem cortadas.

    Olhei o dia, pela janela, do obscuro bar, que transformava a luz lá de fora em noite cá dentro, e vi içado, numa bicicleta, um homem já todo ele ampliado. O pescoço desapareceu e a cabeça e os ombros fundiram-se, como se fosse todo ele uma bigorna, a pedalar, a custo, rua acima na direcção do bar. Tive medo, desviei o olhar, pensei – que te aconteceu homem bigorna? – conseguem ver o que lêem? Conseguem imaginar que somos, afinal, todos assim, invólucros que, de repente, deformam, incham, quase estouram, e a alma, cá dentro, a pedalar, pedalando em contínuo, rua acima na direcção do bar, mel fervido, a desinflamar a garganta por milénios de silêncio.

    Rodas envoltas em ferro amarelo, visitas roubadas e um bocadinho que fique em cada canto. Cada canto que nos deixe um bocadinho.

    Explico, ao primeiro Deus: sabes que sou uma colecção deles todos? Não há paz nisto.

    Ele sorri.

    O pascácio.

    a dark room with a shelf filled with bottles and glasses

    Claramente, detém um sentido de humor a roçar o cruel.

    Uma colecção deles todos, dos deformados aos polidos – e, que raio, melhor que nos sobrem as árvores e animais simples. Esta experiência genética já produziu demasiada anomalia para se suportar, mas tudo continua, mesmo sabendo-se, desde os alquimistas, que corríamos o risco da ciência perder o respeito pela vida – pois, se não tem pela morte, saberá ter sequer tal conceito?

    Pigarreou “talvez o melhor seja ficares no teu cantinho”.

    Verdade. Controlar pelo menos três lados de cada vez, apontar a janela para onde é seguro.

    Detalhes.

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  • Ambição

    Ambição

    Há um silêncio que embrulha aquele senhor, não é solene, é uma cautela, um cálculo, um sorriso de escarninho. Respostas curtas e a gotejar de desdém, esperteza, manha, diria diplomacia mas prefiro dizer ardil.

    Este senhor tem a pele saudável, dentes devidamente monitorizados, perfume em aroma leve, elegante, roupa engomada e discreta. Uma aparente calma (devidamente monitorizada), senta-se de forma confortável na cadeira estofada, sem anseios ou devaneios. Boas noites de sono propiciam isto, saúde (calma).

    black and silver hair brush beside black soft tube

    Há uma trança de números que embrulha aquele senhor, moedas que geram moedas e quantos algarismos sobram para ele. Trata de assuntos. Tem três telemóveis hiperactivos e vários números importantes gravados na lista de todos. Os números são importantes, porque pertencem todos a outros senhores calmos e bem engomados, alguns eleitos, outros instituídos (ungidos), nunca encardidos ou puídos pela traça.

    Defronte da cadeira estofada está a mesa redonda com centro de pedra marmoreada, de novo com um brilho elegante (leve), e em cima da mesa os meus bonecos, desenhos suados de um esforço vão de tentar brincar aos sistemas, onde as pessoas vão ser roubadas e compartimentadas em caixas indignas, casas fatiadas como pão de forma, farelo, para render uma medida política, para acenar com circo (e pão), nós de forca em pescoços tensos, nada de calma, nada de escárnio, só cabeça baixa (não baixa, vergada, vergada pela bota da ambição).

    Há um silêncio conivente, que nos embrulha a todos perante um senhor assim, a mão estendida é sempre solene, a cautela já pouco importa. Primeiro direito. Depois esquerda e segue-se a vénia. Obra feita para encher a boca com bolo rei, e nós todos a rabear na orla da toalha, a ver se nos cai migalhas para encher a barriga, que a vida não é só rezar e sobra pouco a oeste da meseta em tempos de terceiras guerras disfarçadas de acidentes.

    stack of stack of books

    Há salas assim de cadeiras estofadas e mesas debruadas a mogno, dignas, onde ocasionalmente indignos entram de mão estendida a ver o que lhes toca, ou outros disfarçam o roncar de estômago com um pigarrear tímido, ou outros fazem peito de raposa segura das suas capacidades, ou outros entram com absoluto sentido de propriedade, cautela, cálculo, calma, ardil. E todos manobram rodas para que a coisa ande (avança, avança! Se viras as costas ao sistema, o sistema vira-te as costas a ti).

    Ora pois então o senhor calmo, composto, sossegado trata de assuntos. Um gavião. Uma pedra filosofal. (Se não comes estás a ser comido, sabes, sabes?)

    Escusemo-nos de juízos de valor, por favor, predadores fazem parte da lei natural (sabes, sabes?), eles seguem por aí a controlar a população de lebres, a restringir o crescimento dos patos bravos. Desde que as salas continuem com umbrais selectivos, desde que as pedras não se danifiquem por palmas suadas de ansiedade, os aromas permanecem sem a intensidade dos brutos, isto é importante!

    Quando o senhor se levanta, alheio a contemplações desta natureza, alheio porque genuinamente desinteressado dos novelos, (para quê novelos se já as tranças levam tanto tempo e atenção a manter apertadas?) sabemos que a conversa está encerrada. O bólide não se paga sozinho. O retemperar forças em férias onde o sol se mantém a brilhar não se sustenta a mãos estendidas. Se insistimos em novelos estranhos sobre ética e deontologia vemos a calma a perturbar-se, a impaciência sacode-lhe a anca, de repente vemos os números dos seus olhos a ponderar o quão dispensável somos, como interlocutores tão impertinentes. Que as crianças não pagam nada, e as crianças é que acreditam em heróis e vilanias.

    gold and black car license plate

    Convenhamos, de novo, não se atormentem a julgar o senhor. Entre o falcão e o bando de pombos são poucos os que escolhem os pestilentos gangrenados.

    O senhor Ambição é um motor! Toda uma economia!

    Isto no fim do dia é tudo um jogo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • E agora construímos

    E agora construímos

    Título

    Paisagens construídas – O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras

    Autor

    VALDEMAR CRUZ

    Editor (Edição)

    Valdemar Cruz (Fevereiro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A nobreza não deveria ser luxo. E não o é nesta edição de homenagem à arquitectura portuguesa.

    Em cada vinco das páginas encontramos a dignidade de quem quer que as letras ecoem traços de desenho pelo nosso país, com a leveza e harmonia de notas bem construídas, improvisos inesperados, pontes, refrões, música enfim.

    Ou como diria Frank Lloyd Wright, perante boa arquitectura, o nosso ouvido interno capta música (ou foi Goethe que disse que arquitectura era música petrificada?)…

    Não importa quem diz o quê se ao passarmos dedos, olhos e corpo em partituras melodiosas como este livro podemos relembrar o porquê da nação de poetas saber cantar poesia com muros. Sem dúvida um livro que recomendo, que encarna o esforço que ultrapassa barreiras, quer pelo seu sucesso na edição, quer pelo seu conteúdo.

    É-me impossível fazer uma recensão sem sentir a minha experiência pessoal: a primeira que este livro evoca é o confronto que tive, desde cedo, com o facto de edições desta natureza parecerem inacessíveis, marcos históricos superiores, testemunhos debruados a ouro do tempo das iluminuras, em que laboriosos escribas penavam segundo a segundo, milímetro a milímetro para encapsular na posteridade um arrojo humano, uma visão, um milagre.

    Valdemar Cruz e Inês d’Orey parecem-me aqui esses escribas, dedicados com a alma a erguer uma publicação capaz de competir com a Birkhäuser Verlag, mas melhor, porque além da estrutura decassilábica temos cores, texturas e sons; uma prova de que em Portugal cá estamos, de montante a jusante do rio criativo que flui por estas terras, cá ficaram, cá navegam, cá entram e saem pessoas de tanto valor, numa abnegada produção de conhecimento que país e mundo ignoram.

    Não o proclamo em vitimização, não! Que se lixe! Assim mesmo o digo, que se lixe! O valor intrínseco não se tolhe pela poluição dos atmosféricos, não se paralisa pelo atavismo dos míopes. Faz. E acontece.

    Curioso que, ainda no prólogo, o autor e coordenador nos admita ter chegado à arquitectura não pelos alicerces, mas sim pelo telhado. Ora, curioso, porque nutro eu sentimento igual, que não sacudo por nada, e já nem tento, bem vos digo. Facto é que a cada degrau subido só sinto estar mais longe das fundações e periclitante nos ombros dos gigantes que povoam esta arte, e de cada vez que sinto que esse afastamento se generaliza e atemoriza a sociedade sobre o mundo da arquitectura, eis que livros como este surgem para estender a escada.

    Única nota, neste caso também ao prólogo, que lamento, é o infestar de parêntesis de “correcção” do artigo masculino para feminino. Certamente, vários colegas meus discordam de mim nesse aspecto, certamente que sou eu que estou desfasada do Zeitgeist do que considero ser uma artificial paridade da língua e do mundo, mas não poderia deixar de o anotar.

    Mas, de novo, que se lixe, não importa – nem sequer vou aprofundar sobre tal, seria mesquinho da minha parte perante a grandeza deste empreendimento e a beleza do resultado final.

    Este livro é tão bom, que espero que as edições seguintes se multipliquem. Tão bom, que espero que caiba mais um, e mais outro, para mapear a arquitectura portuguesa que se omite por agora e espera a sua vez. Porque a arquitectura portuguesa espera, pacientemente, diligentemente, sem parar de trabalhar.

    Obrigada ao autor, obrigada a todos os seus participantes, na prova de que o esforço conjunto materializa grandes obras. É uma honra poder saltar de telhado em telhado nos projectos que por aí nascem.

  • Condução

    Condução

    É qualquer coisa como uma calma natural – não diria paz, diria harmonia. O motor segue, trabalhando, naquele compasso próprio, e ronronado, mais rápido do que nós poderíamos andar, talvez mais seguro, dependendo apenas da capacidade de ele, o carro, curvar, como se quer e para onde se quer, mesmo se a chuva martela o seu fino tecto sem piedade.

    Mãos calejadas de bate-chapas. E a forma como, numa curva, se desfaz a manobra, largando o volante na pressão exacta para deslizar pelas mãos, e pelos calos, de uma forma suave, macia, meiga, num shush arrastado, parecendo um corpo a esfregar-se nos lençóis ainda quentes da manhã.

    a close up of the front of a classic car

    Tanto assim é que, aliás, estamos sentados, a bordo da “viatura”, veículo, nave, como que argonautas percorrendo o mundo. E o mundo se move lá fora, tanto que estamos, aliás, sentados, a bordo, gestos suaves nos pedais, pressão suave no volante. E o mundo se abre à chuva, lá fora, e o sol tímido de Primavera surge e nos cega pelo vidro, ali, enquanto estamos, aliás, sentados.

    Sentados.

    Sentados.

    E o mundo é que se move lá fora.

    Cheiro a óleo de motor numa cave escura, panos esfarrapados tingidos de negro, tinir de martelos na distância, chapa amolgada, a queda de uma peça, metal, metal, metal. Calos nas mãos, e a pressão exacta que se exerce, com paciência, na condução, metade do caminho nem por nós é feito, mas pelo mundo que se move lá fora, forças cinéticas que nos levam, alguns a segurarem o leme, outros só à boleia.

    A acidez industrial que nos penetra as narinas, e sabemos que o mundo se constrói assim, de forma suja, veloz, violenta (mas a pressão exacta e a suavidade do couro nos calos das mãos, shush, shush).

    Fatos macacos azuis, semanas de segundas a sábados. Domingos desmaiados num sofá, que se esmaga debaixo de ossos, que vibraram em demasia em cada martelada. Sestas com sonhos nebulosos, e a pressão da água a ferver em radiadores que se preparam para declarar a sua irritação. Velas, faíscas, ar, combustível.

    white vehicle on road

    A forma de condução diz tudo de uma pessoa (já viste, já viste?) – se tem o sangue quente de novos imortais ou a frieza conformada de velhos curvados (que força é essa, que força é essa que trazes nos braços?).

    A espacialidade, a navegação, a rota imaginária. O olhar de soslaio para um retrovisor na esquerda, na direita (em cima?) e o não parar e o parar também.

    Há homens que nascem para conduzir uma vida inteira (eterna), conduzem e engatam mudanças, quebram ciclos com o pé na embraiagem, travam ao de leve, gerindo a poupança de calços, nariz no ar a medir a máquina, ouvidos afilados a auscultar os sussurros.

    Se tirais a máquina ao homem, que conduz, é vê-lo lá, desmaiado a um domingo eterno, durante a sesta, a premir ligeiramente o pé direito no acelerador e a mão (e os calos) a engatar a mudança, o volante a deslizar na curva de saída da via rápida, e o horizonte agora tão longe, porque a máquina se vai sem eles (e agora? E agora?).

    Agora, é montar puzzles, cismar, sem saber se envelhece, porque parou, ou parou porque envelhece.

    Como podemos nós envelhecer se ainda nos lembramos tão bem de ter sangue quente de jovem imortal, mas dentes que caem, gengivas que retraem, calos que amolecem, joelhos que petrificam se sentados.

    assorted-color car lot

    Sentados.

    Sentados.

    Ajustes na máquina. Calibragem, nariz no ar, a medir, ouvidos afilados, a auscultar. Reserva de combustível tem impurezas, contamina o circuito e tolhe os movimentos.

    Fatos macacos azuis.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Expiação

    Expiação

    Viajar a alta velocidade na vida deve deixar para trás a carne dos ossos, porquanto, de novo, aqui se apresentar este menino franzino, com as rugas da camisa a caírem nas esquinas dos cotovelos de forma leve – como se, em verdade, nem estivesse vestido, já assim andasse, nu, braços e pernas a soltarem-se no caminho.

    Os cabelos firmes e grisalhos agarram-se com força, a ele. A sua barba rala e rija é que denuncia os hábitos matinais segurando-lhes os despertares da insónia, mas os círculos em volta dos olhos atestam a geometria que lhe navega as noites por galáxias distantes e nebulosas roxas, entidades de outras dimensões e sussurros a baralharem-se nos gritos internos do seu desespero.

    a close up of a man's green eye

    Estacou frente a mim na paragem de autocarro do Bolhão, eram três da manhã. Mediu-me com atenção para decidir se depositaria em mim o que recolheu na última viagem, até se convencer a sentar-se ao meu lado para conversar sobre o estado, de então, do Conde de Ferreira – entenda-se, o hospital, não o sangue azul escorraçado pela populaça ao fim de umas noites de prevaricação de regras sagradas no burgo.

    O mundo que ele me mostra é dos jogos dos impossíveis. Nada há de mais agonizante do que forçar alguém a ver o Preço Certo na televisão com companheiros que babam, alienados – e ele, ali, com tanta fúria que saiu para ir comprar uma televisão só para ele, porque quer ver muito os documentários. Aqueles, sabes, de Física, do Universo, da matéria negra, mares nunca dantes navegados que, esses sim, esses sim, ah! Se pudéssemos erguer caravela de chapas rebitadas a caminho de Saturno, só para ver aqueles anéis a girar de perto.

    Mas sabes, comprei a televisão, que era boa, e a doutora que lá anda pegou e afiambrou-se a ela. Já viste isto? Quer-se dizer, fui falar com a auxiliar, queixei-me, e ela vira-se para mim a dizer que eu podia ficar com a pequena, a grande, fica para a doutora…

    a close up of a man's eye with a blurry background

    Ora já viste? Não é de os carbonizar? É ou não é? Diz-me. Que farias tu? Que eu vejo que tu sabes ouvir e que sabes do que falo. Que farias tu? Olha que eu vou carbonizá-los!

    Porque, sabes, a maçã podre, não apodrece a boa, mas também não a torna melhor! É, ou não é? Ora ouve bem: a maçã boa, não apodrece a boa… Mas também não a torna mellhor! É que é mesmo assim, sabes?

    Não sei. Nem sei. Já viste o estado de coisas? E depois… é sempre os mesmos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Condição

    Condição

    É um rapaz de cinquenta anos, esguio, alto, moreno. Faltam alguns dentes, os que restam encavalitam-se em cima do cigarro.

    Cabeça baixa a vencer a distância ao chão. Nunca o vi caminhar devagar, e caminhar é o que sempre faz, quase corre, não tem outro meio que não as pernas.

    Acena-me sempre, se em mim tropeça na corrida, estende-me o punho para chocar metacarpos na distância de quem se acanha.

    silhouette photography of man

    Ocasionalmente, pede trabalho para amigos. Ninguém tem condição para comer, não com as moedas que recebem por hora. Maioria das vezes ao negro. Não têm condição.

    Para ele vai-se andando. Não se pode parar. Levanta-se sempre às seis da manhã, vai até ao concelho vizinho ver um irmão. Pelo caminho visita quem lhe estende o punho. Quem lhe dá sacas de laranjas, pão, massa, arroz. Frascos de salsichas e latas de atum.

    Sempre dá, vai dando, enquanto não respondem da segurança social.

    Trabalhou muitos anos numa confeitaria, tem orgulho no trabalho que fazia e diz que faz o que for preciso. Se é preciso varrer, varre-se. Se é preciso limpar, limpa-se.

    Levanta o nariz enquanto recorda; a cabeça quase se ergue também.

    Isto está, sabe, não sei… Não sei onde isto vai parar. Não conhece quem precise? Não é assim para trabalho fino de obras, mas para as massas, os baldes, o entulho, sabe?

    brown and green metal handrails

    Fica condicional, conjugação permanente, nem sabemos o quanto até que temos de contar só com as pernas e as sacas para comer. Num vaivem infinito que atravessa cidades, a empurrar os dias para as noites e as noites pela janela fria da casa de adobe com estuques embolorados.

    Como se chega a esta condição e o quanto parece impossível sair de lá, por mais que se continue a caminhar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Caminha: crónica dos lugares

    Caminha: crónica dos lugares

    A cor não sobrevive ao tempo.

    Não é que tudo tivesse aquele tom empastelado de areia compactada (naquele tempo). Não é que penas de tinta sépia esbatessem as nuvens, e a chuva estivesse sempre próxima, a enublar as vidas, enquanto carvão gasto, e espalhasse cinza pelos caminhos (daquele tempo).

    É que os anos amarelecem as coisas, como o ar oxida a maçã mordida. Então, a cor, não sobrevive ao tempo. E no fundo, cá dentro, ficamos a cismar que as pessoas viviam assim, sem azuis, verdes, laranjas, rosas, vermelhos.

    Quando toquei as cartas do território desde Vila Praia de Âncora até Caminha, passei logo as mãos pelo corpo da Serra d’Arga. Como quem acaricia. Quando fatiei aquela mancha, curva a curva, para empilhar cada camada como quem constrói um mundo (sobre o mundo, dentro do mundo), ganhei-lhe carinho.

    Enamoro-me profundamente por tudo o que conheço. Até do feio. Sinto-lhe o suor, o esforço, o anseio, e não o respeitar é uma desonra. Minto: será desonra? Traição? Violência, talvez, pelo menos.

    Por isso não sei se vos digo a verdade, mas em tudo, pelo caminho a Caminha, encontro beleza. Com carinho. Surgem casas, pendendo a cabeça ou os braços, de forma torta, desengonçada (têm as casas um rosto? Têm as casas mãos?). No fundo, se vivas e habitadas, até me aquecem a alma. Ali há gente, aquela casa é lar de alguém.

    Passei curvas apertadas e cruzei aldeias. Por exemplo, Argas, onde um carneiro me olhou com ar inquisidor (avisando). Passei dias no Mosteiro, perdida entre ribeiros, um bosque implantado por força de vontade e escadarias transformadas em monte.

    Passei noites num canto da Mata do Camarido, a ver se assim sabia o que era ser de Caminha, a raia, a irmandade silenciosa com Galiza, a Ínsua, Camposancos na saída do ferryboat.

    Sabem, Camposancos foi muitas coisas. Um edifício, só que tanto foi colégio jesuíta, como armazém de cereais, como campo de concentração de Franco, ali, de olhos postos em Portugal. Casas que podem ser assim, cascas de vários espíritos. Manoel de Oliveira ainda estudou ali, há umas vidas atrás.

    Venci a barra na mudança de maré a bordo de uma Gamela timonada por um senhor alcunhado de Garrafão. Fiz-me de forte, não sabia nadar, naquela altura, mas seria certamente imortal e, mais a mais, o Minho ali é nosso e brandura lusa não me ia encurtar a sentença.

    Mas a cor não sobrevive ao tempo.

    Talvez assim as memórias fiquem todas a preto e branco. E sépia (depende de lentes, papéis, químicos?).

    De Caminha ficaram-me meses de ondulação nas vagas, matas auspiciosas, a energia de então, os pastéis de lá, o Mosteiro, a Arga de São João, a água, a neblina (a água, em névoa), Santa Tecla (a água, ainda), as pedras (com água), uma ruína a caminho de Vilar de Mouros, as azenhas (moendo água), os caminhos encharcados.

    Sempre água.

    A cada volta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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