Autor: Maria Carneiro

  • Sou outro, não sou outro

    Sou outro, não sou outro

    Título

    Manual para a obediência

    Autor

    SARAH BERNSTEIN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora

    Dom Quixote (Junho de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    O mote é dado logo nas primeiras páginas:

    Eu era a filha mais nova, a mais nova de muitos – mais do que gostaria de me lembrar – de quem tomei conta desde a mais tenra idade, antes, de facto, de ter eu própria a faculdade da fala e não obstante as minhas capacidades motoras estarem na altura pouco desenvolvidas, estes, os meus muitos irmãos, foram deixados a meu cargo. Eu satisfazia todos os seus desejos, aliviava o menor desconforto com perfeita obediência, com o maior grau de devoção, de modo que com o passar do tempo os desejos deles se tornaram os meus, de modo que eu conseguia antever necessidades ainda nem formuladas, porventura sequer imaginadas, providenciando aos meus irmãos o maior auxílio possível, satisfazendo-os apenas o suficiente para que depois me pudessem exigir mais, sempre mais, exigências a que eu acudia com alacridade e discreta prontidão, ministrando os complexos caldos terapêuticos que lhes eram prescritos por vários médicos, servindo refeições e lanchinhos, cigarros e aperitivos, últimas bebidas da noite e copos de leite à cabeceira da cama.”

    Uma jovem mulher muda-se da sua terra natal para uma remota região, para ser governanta do irmão que foi, recentemente, abandonado pela mulher e filhos.

    Embora seja a filha mais nova de uma série de irmãos, foi ela que sempre teve a seu cargo servi-los o que lhe moldou desde cedo o espírito, aprendendo a anular a sua existência. Mesmo no trabalho conta-nos: “(…) saí sem estardalhaço. Ninguém lamentou ver-me partir. O trabalho que tinha antes de ir para casa do meu irmão, no país dos nossos antepassados, e que continuaria a desempenhar remotamente de lá era transcrever documentos áudio em texto para um escritório de advogados, função em que era exímia, datilografando com rapidez e rigor e conhecendo bem o meu trabalho. Apesar disso, sentia que não era bem-vinda no escritório, onde se alinhavam os habituais aprestos legais, dossiês e diplomas, couro e madeira. Eu sabia que as minhas exibições hesitantes de humanidade, a minha insistência miserável em continuar a aparecer no escritório dia após dia, não podiam deixar de causar desalento aos juristas e assistentes jurídicos cujas vozes eu datilografava num processador de texto com rapidez, precisão, devoção e até amor, e por isso acolheram o anúncio da minha saída com indisfarçada alegria, organizando uma festa de despedida em minha honra, dando uma espécie de banquete e oferecendo presentes generosos.”

    A esta espécie de não-existência junta-se, conforme as peças se ligam, e a narradora discorre sobre a sua vida, o facto de a própria família parecer sentir por ela uma certa aversão.

    Voltando aos dias onde começa a narração, quando, a certa altura, o irmão a deixa sozinha na casa, para viajar numa das suas muitas viagens de negócios  “dedicado à bem-sucedida venda e comercialização, importando e exportando, de uma variedade de bens e serviços, cujas especificidades permanecem ainda hoje uma incógnita para mim”, muito pouco tempo depois de ela ali ter chegado, ocorrem vários acontecimentos inexplicáveis, na povoação próxima da casa e as suspeitas dos habitantes recaem sobre ela, uma estrangeira recém-chegada. O crime do qual ela é acusada é de ser a culapada de uma série de catástrofes ambientais locais: uma “gravidez fantasma” de uma cadela; uma porca depressiva que esmaga os seus leitões; e um rebanho de gado enlouquecido. “Foi no ano em que a porca erradicou os leitões. Viviam-se tempos céleres e inquietantes. Uma das cadelas da terra estava a ter uma prenhez fantasma. As coisas saíam de um sítio e apareciam noutro. Era primavera quando cheguei ao campo, soprava um vento de leste, um vento aziago, como se viu depois. Começaram a dar-se certas coisas. Os leitões vieram mais tarde mas não muito, e mesmo que eu não tivesse chegado há pouco, não tivesse os animais a meu cargo, só tivesse lá ido ver, a salvo do outro lado da vedação elétrica, eu sabia que eles tinham razão quando afirmavam que era responsável.”

    E é nesta toada que o livro acontece. Ela rapidamente descobre que todos os habitantes da povoação a odeiam. Ou temem-na. As mães cobrem os olhos dos filhos quando ela passa. Num café, incapaz de falar a língua local, aponta para o café de uma mulher porque também quer um e ela começa a chorar enquanto os outros clientes secretamente fazem o sinal da cruz. Mais tarde, um lojista agacha-se atrás do balcão enquanto ela examina as prateleiras. O que há nesta mulher que provoca respostas tão extremas? A única resposta é que ela é judia. O que acontece à narradora é por ela aceite passivamente. Afinal ela estava “naquele remoto país setentrional, o país, veio a saber-se, dos nossos antepassados, uma gente obscura embora ultrajada que fora arrastada através de fronteiras e metida em valas (…)”. Só lhe acontece o medo. O medo do que lhe pode acontecer e a dúvida do que serão capazes os habitantes da povoação? Realmente pouca coisa acontece  mas, espelhando as divagações diárias da protagonista pela floresta que circunda a casa, o romance é composto de divagações filosóficas, às vezes rapsódicas, registadas numa prosa meticulosa mas contida e oferece-nos uma meditação sobre a sobrevivência, os perigos de absorver as narrativas dos que têm o poder e um aviso de que a autoculpa dos oprimidos muitas vezes volta para se vingar. “Manual para a Obediência” de Sarah Bernstein, pois, uma obra que mistura elementos de ficção literária com pitadas filosóficas e psicológicas, abordando temas como autoridade, conformidade e rebelião.

  • Morar longe do lugar onde se nasce

    Morar longe do lugar onde se nasce

    Título

    O livro das despedidas

    Autor

    VELIBOR ČOLIĆ (tradução: António Gonçalves)

    Editora

    Gradiva (Julho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Esta é uma obra marcante que se insere no contexto das narrativas sobre a guerra e o exílio. Čolić é um autor bósnio que vive em França desde que desertou do exército, em 1992, durante a Guerra da Bósnia. Traz-nos uma visão profundamente pessoal e poética sobre a experiência de ser um refugiado e o sentimento de perda que acompanha o exílio partilhando connosco a resiliência e a criatividade em face das adversidades, utilizando a sua escrita como um meio para processar o trauma: “o exílio é exigente. O exílio recomenda: doseia bem a tua visibilidade. Faz-te notar apenas pelas mulheres e não pela polícia. Toda uma arte. Tornar-se um cidadão anónimo, o Senhor ninguém. Suavizar os nossos gestos. Cortar a barba. Mudar de penteado: substituir o estilo da Europa de Leste por outro mais descontraído, mais livre, mais ocidental. (…) Deslocar-se sem fazer barulho, comer em silêncio, falar com suavidade, escrever com gentileza. (…) As pessoas não te perguntam quem és nem como estas. Perguntam simplesmente de onde vens.”

    O livro é construído de maneira fragmentada, misturando memórias, reflexões e episódios fictícios, mas que ressoam com a realidade vivida por muitos que, como o autor, foram forçados a deixar o seu país de origem devido à guerra. O protagonista, um alter ego de Čolić, navega por essas memórias e histórias enquanto tenta reconstruir a sua vida no seu novo país. A estrutura do livro não é linear e tem pequenos capítulos onde o autor vai espelhando a natureza fragmentada das lembranças e da identidade do exilado: “Estamos num bar na rua Sainte-Catherine. À nossa volta, o mundo literário, a casta dos escritores. Estou espantado com a monotonia deste mundo. Imaginava-o diferente, mais colorido, mais livre, anárquico. Mas não, os verdadeiros escritores franceses são como eu: desamparados, malvestidos, mal na sua pele. Um mundo insípido, baço. Falam muito disso, até só escrevem sobre isso, mas o seu sofrimento permanece anónimo.”

    A obra explora a despedida em múltiplos níveis: da pátria, da língua, da família, dos amigos e, em última instância, de uma parte de si mesmo. Čolić escreve sobre o exílio não apenas como uma deslocação física, mas como uma experiência profundamente emocional e psicológica. A guerra, apesar de não ser o tema do livro, está sempre presente como a força destrutiva que desencadeia todas essas despedidas. Há também uma forte ênfase na identidade e na sobrevivência cultural, abordando a dificuldade de preservar a própria identidade enquanto vai sentindo a necessidade de adaptação a uma nova cultura: “Sou o cão da estação de caminho-de-ferro. Passo o meu tempo nos corredores escalavrados e obscuros da Gare de Estrasburgo. Descubro e saboreio a dupla tristeza dos que partem e dos que ficam, circulo na fronteira entre dois mundos. Arejo o meu exílio. Levo-o a passear como um cão que cheirica as árvores no parque e ladra às estrelas. (…) Entre dois comboios, escrevo. Rapidamente. Frase a frase, página a página. Sou uma metralhadora literária. Algures entre Faulkner e Zola, um existencialista que não respeita a pontuação, um homem que tenta reconstituir o mosaico da sua própria vida. Um sobrevivente. O biógrafo do meu próprio destino. Avanço no escuro às apalpadelas, mas a minha coragem não tem limites. Vivo a minha própria literatura.

    Como o Primo já está tomado, considero-me um Secundo Levi.”

    O autor adota uma linguagem lírica e evocativa, entrelaçando a poesia com a prosa para capturar as complexas emoções das personagens. O estilo é, ao mesmo tempo, contundente e delicado, refletindo a dor do exílio e a nostalgia de um lar perdido. A narrativa é permeada por uma melancolia sutil, mas também por momentos de humor e ironia, o que proporciona um contraste interessante e evita que o texto se torne excessivamente sombrio.

    A tradução usa algumas liberdades que nos soam estranhas. Por exemplo: “(… ) Impõem-se então duas soluções : emagrecer ou tornar-me um Vasco Santana Júnior .

    E como toda a gente bem sabe, eu não sou propriamente um humorista. ”

    Não era necessário. O livro é, no entanto, imperdível. Um testemunho pungente de um refugiado entre tantos exilados “porque o exílio quase nunca é uma questão de presença. É tantas vezes uma acumulação de sombras, uma história de ausências.”

  • Todos nascemos loucos

    Todos nascemos loucos

    Título

    Os rostos

    Autor

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os rostos, originalmente publicado na Dinamarca em 1968, foi escrito por Tove Ditlevsen no mesmo período da magnífica Trilogia de Copenhaga, também é inspirado na sua vida, mas transforma o seu material em arte numa alquimia que perturba e enternece, simultaneamente. Ao longo de toda a sua vida adulta, a autora lutou contra o abuso de álcool e drogas, e foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos. Vimos isso várias vezes na sua outra obra e voltamos a vê-lo neste.

    A personagem central, Lise Mundus, é uma escritora de livros infantis, que não sabe lidar com o seu sucesso. Ganhou um prémio com um livro que “não considerava nem melhor ou pior do que os seus outros livros”, e é assediada por jornais e revistas à procura de opiniões de “mulheres proeminentes” sobre questões triviais (“As minissaias estão a destruir o casamento?”).  Casada e mãe de três filhos, Lise sente-se esmagada pelas expectativas e responsabilidades da vida doméstica e pela pressão da sua carreira, embora não consiga escrever nada há dois anos. Sente-se posta de parte pelo meio literário, e vive com a preocupação que, um pequeno acto de plágio cometido há muito tempo, venha a ser descoberto e que ela esteja prestes a ser desmascarada. Lentamente, torna-se numa mulher a viver um colapso mental, navegando entre a realidade e as alucinações. 

    À medida que a sua saúde mental se deteriora, ela começa a ver rostos perturbadores à sua volta, rostos que a observam e a julgam. Essas visões misturam-se à sua realidade, tornando-se cada vez mais difíceis de se distinguir numa impotência que nos arrasta a nós também. O livro procura retratar a “loucura” vista por dentro, com toda a falta de confiabilidade que tal acarreta. Lise, por exemplo, acredita que o seu marido, Gert, está a ter uma relação amorosa com a governanta, Gitte, depois de a sua amante anterior, Grete, se ter suicidado. Ela também acredita que Gitte lhe fornece uns comprimidos para dormir e a instiga a suicidar-se também.

    Os pensamentos de Lise são delirantes, mas ela acaba por tomar uma overdose medicamentosa e acaba num hospital psiquiátrico “amarrada à cama com um cinto de couro largo coberto de parafusos e parafusos“. Lise anseia por “um lugar diferente, outra realidade, onde seja possível existir”, mesmo que isso signifique uma enfermaria de hospital. Mas nem aí fica tranquila: é atormentada por vozes intrusivas e teme os rostos das outras pessoas que a rodeiam. Os rostos que Lise vê são expressões simbólicas da sua angústia interior, representando a culpa, o medo e a autopunição. Ditlevsen explora aqui a desconexão entre a identidade interna e a externa, e como essa divisão pode levar à fragmentação da mente. A mãe visita-a, mas não é simpática. O resto da família está impedido de o fazer, porque ela mantém a narrativa de que querem matá-la. Desde o início, os armários são “cavidades perturbadoras”, o céu cheira “como o hálito de pessoas que não comem” e as vozes soam como “pus de uma ferida”.

    Os rostos e as vozes (nós nunca sabemos quais são reais e quais são produto da sua loucura) continuam a atormentá-la, a ela e a nós, leitores. As descrições das alucinações de Lise são tão vívidas que sentimos a mesma confusão e terror que a protagonista. A fronteira entre a realidade e a ilusão é deliberadamente ténue, o que cria uma atmosfera de incerteza e suspense psicológico.

    Quando um médico lhe pergunta a Lise a razão para ter tentado matar-se, ela responde:

    “Eu tinha uma necessidade terrível de ver alguns rostos novos”.

    Os rostos torna-se assim uma exploração poderosa e perturbadora da mente humana em desintegração. Tove Ditlevsen, através deste romance, oferece uma representação visceral da luta pela saúde mental, escrito com a habitual clareza e honestidade brutal, apresentando uma visão perturbadora da vulnerabilidade humana e da fragilidade da mente. No entanto, diga-se que depois de se ter lido a Trilogia de Copenhaga, este romance não vem nada acrescentar de novo.

  • O  herói niilista

    O herói niilista

    Título

    Niels Lyhne

    Autor

    JENS PETER JACOBSEN (tradução: Elisabete M. de Sousa)

    Editora

    Antígona (Junho de 2024)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Niels Lyhne, a obra de referência do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, um dos precursores do naturalismo na literatura no seu país escrito em 1880, é considerado uma obra-prima. O livro explora temas profundos como a procura da identidade, a luta contra as convenções sociais, e a complexidade dos sentimentos humanos.

    O romance narra a vida do protagonista homónimo, um jovem idealista e sonhador que luta para reconciliar as suas aspirações artísticas e filosóficas com a realidade dura e, muitas vezes, decepcionante da vida. “Niels Lyhne era tolhido por certa timidez, filha de uma repugnância instintiva em ousar e neta de um sentimento confuso de falta de personalidade. Vivia constantemente em luta com essa timidez; ora lhe dava nomes injuriosos, para excitar a si próprio contra ela, ora procurava interpretá-la como uma virtude inerente à sua natureza ou, mais ainda, a marca da sua individualidade e das suas aptidões. Mas, de qualquer modo que a considerasse, sempre a odiava como a uma imperfeição secreta, a qual, por melhor que fosse dissimulada aos outros, não poderia sê-lo à sua própria consciência e que lá estava sempre para humilhá-lo. E invejava o desembaraço confiante daqueles que não temem pronunciar palavras cheias de consequências, que não se incomodam com estas enquanto não se tornam inelutáveis. Essas pessoas davam-lhe a impressão de centauros: pensamento e ação unidos, como o homem e o cavalo, num só corpo. Enquanto ele se dividia em pensamento e ação descontinuados, como um cavaleiro separado da sua montaria.”

    O livro aborda temas como a perda da fé religiosa, a procura de um sentido, e o confronto entre o idealismo e a realidade: “- Não há Deus, e o homem é o seu profeta! – disse Niels com amargura e também com tristeza.  -Sim, pois não! – esclareceu Hjerrild, e acrescentou: – O ateísmo é ilimitadamente prosaico, e o seu objetivo, afinal de contas, é nada mais do que uma humanidade desiludida. A fé num Deus providencial e justo é a última grande ilusão da humanidade. O que acontecerá quando também ela se perder? Ter-se-á tornado mais culta, mais rica, mais feliz?… Não creio!”.

    Jacobsen utiliza a vida de Niels como um microcosmo para explorar questões existenciais maiores, como o significado da vida e a inevitabilidade da morte. A desilusão de Niels com as instituições estabelecidas e os seus conflitos internos refletem a atmosfera de dúvida e mudança que caracterizava a Europa no final do século XIX. “- (…) Os homens que estão para morrer não têm teorias, e é completamente indiferente que as tenham. As teorias são apenas para ser vividas, só são úteis durante a vida. Que importa ao homem morrer com esta ou aquela teoria? Acredite-me, nós todos temos lembranças luminosas e suaves da nossa infância. Já vi morrerem muitos homens e sei que sempre é um consolo despertar essas lembranças. Sejamos honestos: podemos ser o que bem quisermos, jamais conseguiremos afastar Deus do céu, o nosso cérebro imaginou-o lá em cima tantas vezes que ele acabou por se introduzir na nossa mente ao som de sinos e de canções, desde que éramos pequeninos…”

    Os personagens de Niels Lyhne são ricamente desenhados e profundamente humanos. Niels, como o protagonista, é complexamente desenvolvido. A sua caminhada entre um idealismo juvenil para um ceticismo resignado é tanto uma tragédia pessoal quanto uma crítica às expectativas sociais e culturais da época.

    O livro traz uma série de recomendações de peso: “Um livro dos esplendores e das profundezas.” Rainer Maria Rilke; “Um dos maiores romances ateístas já escritos e talvez o mais intenso.” James Wood; “O romance do crepúsculo do artista e do indivíduo.” É ainda uma obra-prima que marcou Franz Kafka, James Joyce e Thomas Mann, como confessaram os próprios.

    No entanto, o seu estilo lírico e descritivo, as suas descrições da natureza e dos estados emocionais embora vívidas e evocativas, conseguindo criar uma atmosfera introspectiva e meditativa, é tanto uma força quanto uma fraqueza do livro. Poderemos apreciar a beleza da sua linguagem, mas o seu ritmo é demasiado lento e a narrativa, por vezes, excessivamente contemplativa.

  • A maldição da casa assombrada

    A maldição da casa assombrada

    Título

    Caruncho

    Autora

    LAYLA MARTÍNEZ (tradução: Guilherme Pires)

    Editora (Edição)

    Antígona (Março de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Carancho é, sobretudo, uma história de fantasmas enterrada num armário familiar carregado de esqueletos e pecados. As narradoras são uma avó e uma neta que se vão revezando capítulo, após capítulo. Mas há outras duas mulheres presentes na história, as mães de ambas que várias vezes são recordadas também por ambas.  Mas a personagem principal é a casa. Uma casa assombrada. Uma casa que respira. Uma casa que contém corpos e segredos. Uma casa que é visitada por fantasmas, por anjos que revestem o telhado como insetos e por santos que queimam os lençóis com as suas auréolas. As quatro gerações de mulheres estão presas à casa, cercadas de fantasmas e de anjos insectóides.

    A casa fica perto de uma aldeia presa pela pobreza, na aldeia muitas mulheres presas no purgatório da falta de poder e da violência contra os seus corpos e uma armadilha mortal: a raiva que se vai instalando nos seus corações, por vezes incontrolável, e que penetra nas entranhas e não deixa dormir nem as personagens, nem a nós, leitores que, de algum modo, nos sentimos presos na casa. Quando se começa a ler o livro também bate a porta atrás de nós prendendo-nos na narrativa claustrofóbica e perturbadora. “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta retorce-lhe as entranhas até a deixar som fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras. “

    Como diz Rachael Conrad, “este livro tem TUDO: traumas geracionais, maldições, assassinatos, bruxas, santos, anjos que parecem louva-a-deus, fantasmas, imagens profundamente perturbadoras que ficarão comigo por muito tempo e é, possivelmente, uma das casas mal-assombradas mais vingativas e furiosas, na literatura. Caruncho é profunda e maravilhosamente perturbador.”

    A avó e a neta são movidas a ódio. Na aldeia chamam-lhes bruxas. A forma como se tratam uma à outra é de uma violência incomodativa. “A avó não estava lá. Também não estava debaixo da mesa da cozinha nem dentro da despensa. (…) Velha de merda. Arrastei dali a velha, sentei-a na cama e sacudi-a pelos ombros. Algumas vezes funciona, outras não, desta vez não funcionou. Arrastei-a para o corredor, abri a porta do quarto, empurrei-a lá para dentro e tranquei-a. Nesta casa todas as portas podem ser trancadas pelo lado de fora.”

    É, pois neste tom que ambas as personagens nos vão fazendo uma novela de dimensão sobrenatural mas também nos fazem um retrato da guerra civil espanhola, e da posterior razia franquista “quando tudo se transformou em fome e poeira” e das recordações de ambas as protagonistas que são “coisas piores do que os mortos que surgem do nada”. Homens que vão para a guerra e não regressam, homens que não querem ir para a guerra e se escondem, uma família rica da aldeia, os Jarabos, que sofre com as maldições que a avó e os seus santos lançam sobre ela, e que espera, ainda que inconscientemente, a punição das mulheres da casa. O casamento da avó com o capataz dos Jarabos, Pedro, que termina com a sua misteriosa morte, e o emprego da neta como criada que tem um desfecho trágico com o desaparecimento de uma criança que apenas aprofunda a ruptura familiar, a má fama das mulheres e o drama de todos os que de algum modo são envolvidos na história e na maldição. Nós, leitores, somos alguns deles porque o livro cola-se-nos à pele e não o esquecemos facilmente.

  • A encarnação do inferno

    A encarnação do inferno

    Título

    A malnascida

    Autora

    BEATRICE SALVIONI (tradução: Ana Cláudia Santos)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    O livro começa no fim e narra, logo ali, um acontecimento traumático: “É difícil tirar de cima o corpo de um morto. Descobri-o aos doze anos, com o sangue a escorrer-me do nariz e da boca e as cuecas enroladas à volta de um tornozelo. Os seixos da margem do Lambro, duros como garras, pressionavam-me a nuca e o rabo nu, as costas afundadas na lama. O corpo dele pesava-me na barriga, anguloso e ainda quente.

    Tinha os olhos brilhantes e vazios, saliva branca sobre o queixo, e a boca aberta exalava um cheiro mau. Antes de cair, olhara para mim com o medo a contorcer-lhe o rosto, uma mão metida nas cuecas e as pupilas dilatadas e negras, que pareciam dissolver-se até escorrerem pelas faces.

    Tombara para a frente, os seus joelhos comprimiam-me ainda as coxas, que ele conseguira manter abertas. Já não se mexia.” 

    O morto é Tiziano Colombo, um jovem fascista, machista, filho de uma das mais influentes famílias de Monza, cidade italiana onde se passa a ação, nos anos 30; e a vítima Francesca, uma adolescente de 12 anos que é uma das protagonistas e a narradora, na primeira pessoa, desta história fascinante.

    Mussolini estava no poder, viva-se num clima opressivo de um país fascista onde ter a ousadia de pôr em causa o status quo requeria uma coragem enorme. Foi isso que fizeram Francesca e Maddalena, a partir do momento em que ficaram amigas. Contrariando a vontade da mãe, obcecada pelas convenções sociais burguesas, Francesca junta-se a um bando de amigos problemáticos, de que é líder Maddalena, a “malnascida”, ávida por descobrir um modo de vida em absoluta liberdade. 

    Como se lê no La Repubblica:

    «A “malnascida” que conhecemos ao longo desta história é uma pequena encarnação do inferno. Uma daquelas figuras incómodas que, na Idade Média, seriam atiradas à fogueira. […] Maddalena é uma personagem sólida e cálida, que se solta das páginas deste romance com um sopro quase percetível.» 

    A malnascida é, pois, um romance sobre duas amigas a viver aquele período difícil da vida, que muitas vezes se desvaloriza – a adolescência –, e retrata a amargura que é crescer, ver a vida a desenvolver-se, num pano de fundo cheio de matizes: a relação adúltera da mãe de Francesca com o pai de Tiziano, o relacionamento afetuoso com o seu pai, a gravidez escondida de todos e que levou à tentativa de suicídio de Donatella, irmã de Maddalena, a invasão da Abissínia por Benito Mussolini e a mobilização dos rapazes da cidade para a guerra, onde perde a vida um dos irmãos de Maddalena, a amizade com Noé, o filho do merceeiro que as ajuda em vários momentos apesar de agredido violentamente pelo próprio pai.

    Como pano de fundo, a amizade das duas raparigas que, cúmplices até ao fim, acabam por se ver envolvidas na morte descrita logo no prólogo. A narrativa é ágil e a leitura não se consegue largar. Um livro muito interessante.

  • O menino que amava o Senhor, seu pai

    O menino que amava o Senhor, seu pai

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Este livro deve o seu título a um verso de um belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Estórias de vida

    Estórias de vida

    Título

    Mentiras de mulher

    Autora

    LUDMILA ULITSKAYA (tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Outubro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mentiras de Mulher é um romance muito original porque não tem uma narrativa contínua em que as personagens se mantêm do princípio ao fim. É mais um “patchwork” narrativo, constituído por uma manta de retalhos de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia, única personagem recorrente.

    No primeiro retalho, que dá o mote ao livro, conhecemo-la: uma intelectual soviética, com um casamento fracassado que, na companhia do filho, uma criança de três anos, está de férias numa estância balnear na Crimeia. O ambiente é pacato e rotineiro, até que chega Irene, uma ruiva exuberante, faladora e divertida que é hóspede habitual na casa e conta a Génia, que é russo-inglesa, viúva, filha de um espião comunista da Irlanda britânica e faz adivinhar que teve uma vida cheia de peripécias mirabolantes.

    As duas mulheres encontram-se todas as noites ao serão, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia – os tradutores optaram por designá-lo por Portwein), e Irene vai contando as desgraças pelas quais passou: quatro filhos e um marido todos mortos em circunstâncias diversas, carregadas de pormenores dramáticos, levando Génia às lágrimas e a nós leitores a compadecer-nos com o seu destino fatal. Com a chegada de outros hóspedes, Génia descobre que tudo o que ouviu de Irene era mentira e, desiludida, sem confrontar a mentirosa, parte para outro destino. Esta primeira história é um choque para nós também. Apanha-nos de surpresa, porque o relato é verosímil e cheio de pormenores perfeitamente plausíveis, apesar de muito dramáticos.

    Génia encontrará depois outras mulheres que com ela partilham histórias e episódios, uns mais caricatos que outros, mas que revelam a fascinante vida interior de mulheres e que a autora, num estilo ao mesmo tempo mordaz e terno, vai contando. São relatos de intimidade, histórias de lutos, adultérios, ligações escandalosas e ilusões perdidas, algumas artificiosas e rebuscadas, outras inofensivas e quase infantis.

    As histórias desenvolvem-se: a de Nádia, de 10 anos de idade, que inventa um irmão mais velho e mente de maneira muito divertida e invulgar; a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de 40, casado, pintor famoso e familiar de Génia, o que se revela ser uma fantasia dela embora o desenlace permita saber que há de facto, um adultério, mas com outros protagonistas.

    A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que, após a morte desta, descobre que toda a poesia que lhe lera, como se fosse sua, era afinal de grandes poetas russos do início do século XX.

    Há também a aventura suíça de Génia que, tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem de entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: são todas filhas de um comandante da Marinha, morto num acidente, violadas pelo padrasto e obrigadas a sair de casa e a fazerem-se à vida.

    É uma pena que com o decorrer da narrativa já não sejamos apanhados de surpresa e fiquemos, logo à partida, vigilantes à espera da próxima mentira, porque Ulítskaia construiu um naipe de histórias ternas e enternecedoras que relevam muito do sentido trágico da condição humana.

  • Uma autobiografia em dois contos

    Uma autobiografia em dois contos

    Título

    A Tília – Aniversário

    Autor

    CÉSAR AIRA (tradução: Miguel Filipe Mochila)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Setembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Pode escrever-se uma autobiografia em dois contos? César Aira pode. E fê-lo com mestria, neste livro que nos conta a sua infância, no primeiro conto, e a idade depois dos cinquenta anos, no segundo. 

    A infância, em Pringles, foi marcada por uma árvore, a “Tília Monstra”, porque era enorme: “(…) vinte tílias das outras fundidas numa não teriam feito esta. Eu dera-lhe o nome de “Tília Monstra”, diz-nos o autor, logo na primeira página.

    Era à Praça da Tília que ia com o pai colher as flores para fazer chá: “O meu pai, consuetudinária vítima de insónia, ia à Praça com um saco, no começo do Verão, colher florzinhas de tília que depois secava e usava para fazer um chá que tomava à noite após o jantar. (…) E era bastante evidente que precisava daquilo, pois não houve homem mais nervoso do que ele. (…) além de nervoso, era irascível em último grau, sempre à beira de explodir, sempre em polvorosa. Bastava-lhe uma palavra, um gesto, e desatava logo aos berros como um louco furibundo. Precisava de muito menos para perder o controlo; subtilizava as causas até à magia; o adejar de uma borboleta no Japão provocava-lhe um ataque em Pringles.” A criança não saberia, mas o nervosismo do pai advinha do facto destes acontecimentos se passarem durante a presidência de Juan Perón.

    O pai de Aira (“um peronista convicto”) desenvolve uma profunda ambivalência em relação à vida após a queda do governo de Perón. A sua mãe, por outro lado, torna-se uma antiperonista convicta e dada a discursos “difamatórios e verdadeiramente delirantes”. Aira oferece pistas sobre as causas subjacentes do suposto desacordo político entre os pais, mas, surpreendentemente, não explora esses factos e leva-nos, antes, a apreciar outros episódios que lhe aconteceram a ele enquanto miúdo, filho único, num bairro operário, e fá-lo de uma forma encantadora.

    “A minha memória mais antiga do meu pai é vê-lo montado na bicicleta que usava para se deslocar para todo o lado na vila, até aos mais remotos confins, com uma longuíssima escada encaixada no ombro. A escada era o mais notável, e não creio que a cena me tivesse ficado gravada na memória se não estivesse presente. Era uma escada de madeira com pelo menos quatro metros de comprimento (não quero exagerar), e levar equilibrado semelhante trambolho na bicicleta devia requerer certa arte, ou pelo menos um hábito assíduo”. Ou então: “Em frente à casa havia um escritório de contabilidade onde passava os meus tempos livres. Fazia recados ao contabilista e ao empregado, que era seu sobrinho. Como o empregado faltava muito, o contabilista costumava deixar-me a tomar conta do escritório quando saía. A minha única função era estar ali e, se alguém viesse, dizer-lhe que ele saíra e que voltava já.”

    Deu-se o caso dele e da família terem vivido num palácio abandonado, disputado numa questão de heranças que se prolongou durante anos, e que atiçou, também a imaginação do miúdo: “Todos os meus amigos viviam em casinhas mesquinhas e apertadas. A nós, sobrava-nos espaço, mas, num gesto de soberba dignidade de pobres, desprezávamo-lo e vivíamos num quarto. Até da galeria só usávamos o espaço correspondente ao nosso quarto. A mim, tinham-me proibido de entrar nos outros, embora a maioria não tivesse portas e fosse percorrida apenas pelos ratos.”

    “Uma vez a minha mãe contou, a meio do incessante tagarelar que empregava para acalmar o meu pai, que quando foram viver para ali, logo após o casamento, usava a lareira para cozinhar, com fogo de lenha, como na Idade Média. Entusiasmei-me, com o histórico snobismo das crianças. Teria gostado de vê-lo. Pedi que preparasse uma refeição, nem que fosse apenas uma, ao velho estilo, mas ela não me deu tal prazer. Prometi a mim mesmo que, quando fosse grande, voltaria à Idade Média as vezes que quisesse, a despeito do progresso.”

    No conto seguinte, o registo é completamente diferente. Uma conversa aleatória que teve com a mulher, enquanto passeavam e o leva a fazer esta declaração: “Tenho cá para mim que nos enganaram quando nos disseram que a sombra da Terra é que produzia as formas da Lua quando se interpunha entre a Lua e o Sol. Precisamente agora o Sol e a Lua estão ambos no céu, a Terra não se interpõe minimamente entre eles, e ainda assim não se vê completa. Mentiram-nos!”

    A mulher esclarece que ele é que está enganado e isso leva-o a uma reflexão sombria sobre a juventude desperdiçada, por causa de toda a informação que reteve e que pode, eventualmente, estar errada, o que o leva a uma desconsideração artística do seu próprio trabalho que, por sua vez o leva ao seu futuro potencialmente sombrio.

    Relembra que aos 40 anos iniciou um grande projeto, que implicaria um afastamento consciente dos seus “pequenos romances”, que ele considera marginais. Chama a esse projeto, Enciclopédia, imaginando-a como um livro abrangente de inúmeros conhecimentos. Mas aos 50 anos (é nos dias após esse aniversário que ele começa a narrativa), tudo o que ele tem é uma coleção de esboços e planos, sem uma única página manuscrita, e é improvável que este ambicioso projeto seja concluído. O conto passa a ser assim, também, uma profunda reflexão sobre a vida e o envelhecimento.

  • Um livro desconfortável

    Um livro desconfortável

    Título

    Shy

    Autor

    MAX PORTER (tradução: Manuel Alberto Vieira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Setembro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Estamos em 1995. Shy é um adolescente de 16 anos com um currículo impressionante de delinquência e de comportamento de risco. “Grafitou, snifou, injuriou, roubou, feriu, esmurrou, fugiu, galgou, estampou um Ford Escort, destruiu uma loja, vandalizou uma casa, partiu um nariz, espetou uma faca no dedo do padrasto”. A lista poderia ser ainda mais extensa. 

    Por exemplo, num momento de descontrolo emocional, numa festa, pegou numa garrafa de cerveja, partiu-lhe o gargalo e “traça uma linha reta através do alto da testa do puto, abre-lhe a pele e vê uma mancha de sangue que escorre como numa foleira e sórdida cena de efeitos especiais”. Foi “expulso de duas escolas. Primeira advertência em 1992, aos treze anos.”

    É aluno do internato Last Chance, descrito como uma instituição “não convencional” para a reabilitação de “alguns dos jovens infratores mais perturbados e violentos do país”, e descrito por Shy como “uma mansão velha de merda, convertida em escola para meninos malcomportados, no meio de uma merda de lugar nenhum”.

    Parte do inferno em que vive Shy é precisamente o Last Chance e é lá que Shy vive, apesar de ter família. Deixando de lado a ironia do nome, o próprio Last Chance tem em si a sua própria condenação, uma vez que tem uma morte anunciada, esperando só o avanço da especulação imobiliária para se marcar a data em que o edifício vai despejar os jovens residentes e acolher gente abastada e desejosa de se instalar em apartamentos de charme, naturalmente renovados com os melhores acabamentos.

    Quando o romance começa é de noite, e Shy, com uma mochila cheia de pedras às costas, caminha sozinho em direcção a um lago. Atravessa os campos escuros com um walkman e um charro. A sua vida é um desastre de erros sucessivos e ele está farto.

    Enquanto caminha, vamos ouvindo o monólogo interior e atormentado de Shy num discurso confuso de más lembranças e sonhos piores. O monólogo é sobre estar perdido no escuro e aprender que está sozinho, é a história de algumas horas estranhas na vida de um adolescente problemático que ouve as vozes da sua cabeça: “não podes fazer isso contigo próprio, Shy, não te deves magoar assim…”. E vai ouvindo os seus professores, os seus pais, as pessoas que ele magoou e as pessoas que tentaram amá-lo. E sente o peso do seu passado e a pesada incógnita do seu futuro e a noite é enorme e toda a sua vida lhe dói. 

    “É cansativo seres tu?”

    E ouve as tentativas desesperadas da mãe para chegar até ele: “Mas porquê, mas o que é que te deu? Tu não me estás a ouvir, o que é que se passa contigo? Porque me fazes isso?”, e “O teu padrasto pergunta quando é que a merda de Jekyll e Hyde vai acabar?”.

    Shy é uma narrativa dura sobre um jovem a quem tudo falhou: a família, o Estado, a providência, algum equilíbrio no mundo. Ao longo destas páginas, perguntamo-nos como é que há alguém que nasça com tanta raiva acumulada, tanto desespero, tanta decepção. A linguagem é crua, muitas vezes obscena e incomodativa. A leitura perturba-nos. É um livro para ler num dia bom, porque nos vai deixar marcas. E não são boas. A capa é magnífica. O livro deixou-me desconfortável.