Autor: Luís Serpa

  • A América não está bem

    A América não está bem

    Título

    Nenhum turista vai a Tucson

    Autor

    ALBERTO GONÇALVES

    Editora

    Alêtheia (Junho de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nota prévia: mais do que leitor, sou apreciador de Alberto Gonçalves há muitos anos (e estive quase a fazer com ele uma viagem aos Estados Unidos, projecto que foi adiado mas de modo algum anulado). Este livro – o primeiro deste autor que leio – goza, portanto, à partida, de um enorme capital de simpatia, de aprovação e de expectativa positiva. Felizmente, não foi preciso tocar nesse capital. A excelência do livro basta-se a si própria. 

    Qualquer pessoa que siga o autor na imprensa sabe que ele é um apreciador dos Estados Unidos. Não pode é saber até que ponto conhece os e o quanto os ama.

    Mas comecemos pelo princípio: o título. Foi o que Alberto Gonçalves ouviu de uma senhora – em Tucson, claro – quando lhe disse que estava ali como turista, não estava a trabalhar. Os Estados Unidos de Alberto Gonçalves não são os de um turista habitual – e quando são, não são. Já lá vamos.

    O livro contém dezoito capítulos (cada um com uma «nota de rodapé»), uma introdução e um epílogo. Ao todo, pouco mais de 210 páginas que se lêem num ápice, porque não é só um livro de viagens. É também um livro sobre música, cinema e literatura americanos, de que o autor tem um conhecimento enciclopédico, passe o cliché.

    Para quem, como eu, gosta de tudo o que a cultura americana produz, mas não aprofunda muito esse gosto, Nenhum turista vai a Tucson é uma mina – tanto como para os lugares menos conhecidos do país, que Alberto Gonçalves visita por causa de uma canção, de um autor ou de um filme. Mesmo os mais conhecidos, aqueles aonde todos os turistas vão, são vistos à luz desse conhecimento: nomes de compositores, títulos de livros ou de canções, histórias com elas relacionadas, episódios anedóticos são invocados a cada passo, a cada olhar. 

    Há uma frase de James Baldwin de que gosto particularmente: «O viajante é sempre maior do que o mundo no qual viaja». Aplica-se como uma luva a Alberto Gonçalves e aos Estados Unidos. Tal como, de resto, outra do mesmo Baldwin: «Amo a América mais do que qualquer outro país no mundo e exactamente por essa razão insisto no direito de criticá-la perpetuamente.»

    Uma grande parte do conteúdo do livro são críticas a muito daquilo em que os Estados Unidos se estão a tornar. O último parágrafo do livro é paradigmático e comovente:

    «Em suma, a América não está bem e se calhar não está bem de um modo como nunca tinha estado. Em simultâneo, mantenho uma esperança talvez infundada de que a América recupere do modo como sempre recuperou. Quero voltar à América, e voltar a queixar-me dos limites de velocidade nas estradas largas e das escalas nos aeroportos e do calor do Yuma e do declínio de Nova Iorque e dos molhos na comida. E quero voltar a sentir lá o que não sinto em nenhum outro lugar com intensidade ou regularidade comparáveis: vida, liberdade e, o excesso lírico não é meu, o direito a procurar a felicidade, nem que a encontre só por instantes numa bomba de gasolina do Texas. Estas ligeirezas são, quer a humanidade saiba quer não, o que de melhor nos resta. E são sobretudo um privilégio da América, de que beneficiamos em grande medida graças à América. Se a América abdicar de ser um exemplo a seguir para se tornar num exemplo a evitar, o futuro da América será negro. E o nosso ainda mais.» 

    A quem lê quase religiosamente Alberto Gonçalves (a palavra-chave é “quase”), Nenhum turista vai a Tucson traz um bónus: ler o autor a falar do que gosta, em vez de o ler a falar daquilo que – muito justamente, de resto – detesta: a política portuguesa. Isto foi notado por alguém na apresentação e encheu-me de curiosidade: que mudaria? Calma: quase nada. A acutilância é a mesma, o humor também, idem a qualidade da escrita. Muda o tom.

    Enquanto lia, ocorreu-me várias vezes que «isto parece um pai a falar de um filho que adora mas é traquinas». Esse tom, que perpassa por todo o livro, aumenta exponencialmente o prazer da leitura. Talvez no fundo, a melancolia seja mais atraente do que o ódio, por justificado que este seja (e se é que tal termo se pode aplicar a Alberto Gonçalves, o que duvido. Mas isso é outra história).

  • Navegando pelas irregularidades

    Navegando pelas irregularidades

    Título

    Divisão da alegria

    Autora

    RAQUEL NOBRE GUERRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Março de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Quando comecei a navegar nas águas frias e tempestuosas do norte de França e do Canal da Mancha costumávamos justificar tão masoquista exercício dizendo “um bom dia de mar vale nove maus”. (Hoje sei que não é inteiramente verdade. Não vale nove maus, vale muitos mais. Vale uma vida. Mas isso são outras águas.)

    Pensava nisto enquanto lia Divisão da alegria, o último livro de Raquel Nobre Guerra e – diz-nos Pedro Mexia, na pequena nota introdutória – o mais “extenso e expansivo” da autora. Não sei como eram os outros, mas este é extremamente irregular.

    Tem poemas de uma beleza siderante; muitos outros ficam aquém. Naturalmente, resisti à tentação de estabelecer um ratio: talvez a matemática seja poesia, mas a poesia não é de certeza matemática. Temos portanto – na minha opinião, claro – de nos ficar por esta espécie de baloiço que ora nos faz deparar com versos como:

    Decompor trecho a trecho a regra do diaos mesmos gestos, os mesmos objectosroupa larga, o rocegar do verso longoeu e tu, palavras soltas por aí

    as papoilas vão tornando raras quase supérfluascomo se estivessem prontas para o estio

    (in Palavras Soltas, Pág. 15)

    [Os livros já não têm errata. Penso, mas não tenho a certeza, que falta um pronome a seguir a “vão”: As papoilas vão-se tornando raras, etc.]

    Umas páginas mais à frente (A tua segunda consciência, pág 22):

     …que o espaço aberto que percorres com os dedosé o meu corpo tocado pela tua segunda consciência…

    Versos como estes descrevem, vestem e transformam simultaneamente a realidade e o olhar da autora. Comparem-se com:

    Todo o pensamento é uma Vénus de Milo quandotrês pernas do cavalo azulde porcelana chinesas se desfizeram em póespalhando o rasto frágil que a beleza traz…(In Paris num caderno, pág. 56)

    Esta última estrofe resume aquele que é para mim o pecado mortal da maioria da poesia portuguesa actual: imagens opacas, “intraduzíveis”, digitais no sentido em que ou aderimos a elas ou não aderimos. O surrealismo deixou uma pesada herança ou, se preferirem um termo náutico, uma longa esteira na poesia portuguesa. Esteira essa que só agora, hesitantemente, começa a apagar-se. Já era tempo.

    Isto dito, penso que o livro deve ser comprado e lido. Os bons poemas desequilibram claramente a balança para o lado “bom”. Há realmente momentos de prazer extático, há uma relação amorosa com as palavras,

    Desculpa se sou bruta com as palavrasporque as amo violentamentee tendo a despi-las e carregá-las de frutosde verniz conforme a estação…(in Frutos de verniz, pág. 42)

    A poesia de Raquel Nobre Guerra excele no último capítulo do livro, Oito poemas para o pai: as imagens tornam-se menos herméticas, o amor que as inspirou transparece e transforma-se numa poesia sensível, capaz de fazer o leitor identificar-se com essa ternura e – talvez seja esta a função da poesia – torná-la sua.

    (Nota: na página 107, in Envelope a dizer: lambi para fechar – “Espero que os dias longos sejam ideiais para ti também / apesar da clara vitória dos maus”. Impossível não pensar noutros ratios.)