Autor: Luís Coelho

  • Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência

    Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência


    Sempre que discuto a “morte assistida”, morro mais um pouco. E por ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida.

    Assim, posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações.

    man sitting on chair

    Mas há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já, ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por voltar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher preferi-la à vida morrida.

    Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de descontar o tempo perdido.

    Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e, depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reencarnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado.

    Ninguém quer ver o que a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa.

    Se nos pusermos a questionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-conscientes.

    Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer.

    A moral quer frustrar a liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expensas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssima alguma.

    Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força. Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita.

    Ora, ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha moral restritiva.

    silhouette of man illustration

    Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até morrer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liberdade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre.

    Saber se o sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos responder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas responder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua medida.

    São tão “livres”, mas não se livram de querer matar, que é uma forma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irracionalidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o ludíbrio da morte morrida.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Choy vs. Scimed: a aventura placebetária

    Choy vs. Scimed: a aventura placebetária


    A contenda “Choy vs. Scimed” criou, na opinião pública, uma fractura ideológica que devia ser aproveitada para efeitos de discussão basilar acerca das “ciências”. Muito nos diz, aliás, tal peleja sobre os próprios portugueses, bem como do que os prende e motiva.

    Não é, apesar de tudo, meramente nacional a, tão antiga, atracção pelas terapêuticas de cunho “tradicional”. Atracção que vigora na devida proporção do que estas terapias possuem de fabulístico. O “mito” opera bem mais, precisamente, porque não se conforma à realidade. Mas será o efeito, neste caso, da acupunctura mera ficção? Nem o placebo é ficção, ele implica uma “injecção hormonal” que serve determinadas necessidades subjectivas.

    Ora, bem sabemos que, no fim, o que interessa é, tão-só, o que sentimos, o grau de “insofrimento”. Mas se atendermos a este em exclusividade, podemos perigar outros aspectos da saúde, com repercussões a médio e longo prazo.

    Vamos ser claros: não há qualquer evidência científica de que a acupunctura resulte no tratamento de patologias e estados internos. Aceitar o que a move “estruturalmente” é, portanto, como aceitar certos aspectos do dogmatismo, sem pura evidência “material”.

    Essa aceitação é, também, um placebo. Abraçá-lo é criar uma ilusão perigosa. Porque, por ser “irrealista”, o placebo é de duração ténue. Mais, por permitir “compensar” o paciente sem chegar à causa do problema, pode ceder ao corpo a oportunidade para se criar maior desequilíbrio. E isto é verdade, também para a possibilidade de a acupunctura resultar no tratamento da dor. É aqui que a evidência ruma a favor da acupunctura.

    Esta parece ser efectiva no tratamento da dor, para além do placebo. Mas o motivo por que isso acontece reside no sistema nervoso, na forma como a acupunctura poderá resultar na diminuição do estímulo de dor. Subsiste, aliás, aqui, um mecanismo semelhante ao do placebo, porque este implica a acção “descendente” no mesmo estímulo álgico. E, do mesmo modo, permanece o problema: diminuir a dor é retirar o “alerta” necessário ao tratamento mais profundo do que a gera. Daí que, às tantas, se tenha convencionado que a acupunctura poderia ser muito efectiva no tratamento da dor crónica, quando o mecanismo profundo que a gera tiver sido sancionado.

    Portanto, quem faz uso da acupunctura poderá estar a incorrer numa ilusão, que pode perigar a sua saúde. Claro está que cada um bebe da ilusão, da crença, que lhe serve. E, como é óbvio, ela resulta melhor onde subsiste a ignorância, bem como a fragilidade psíquica.

    Mas o que importa, também, é saber se homens como o Pedro Choy chegam a ter mais “sabedoria” científica do que os seus pacientes. Porque um dos aspectos mais interessantes no placebo é precisamente a forma como ele actua sobre os próprios terapeutas. E se o terapeuta acredita genuinamente ajudará o paciente a acreditar cada vez mais.

    Daqui só poderá advir uma espécie de comunhão. Mas a melhor comunhão é aquela que cede a cada um dos seus membros a possibilidade de um divórcio. Ora, para um espiritual crédulo, não há divórcio exequível ou desejável. Tal ensejo configura uma total heresia.

    No passado, homens como Francis Bacon representaram essa mesma heresia, ao apresentarem os perigos da subjectividade “espiritual”. E estes perigos, que são estendidos pela religião e, tal-qualmente, pelos médicos de Molière, tiveram, e têm, na ciência moderna um franco opositor. Mas é importante que a oposição não atinja um limite de “objectividade” tal que se conforme novo dogma. Porque quando a ciência se comporta como uma religião, perde-se, novamente, o senso, a distância. E, no entanto, é, de algum modo, a distância “objectiva” que desagrada aos espirituais.

    Uma medicina tamanhamente preocupada com diagnósticos e prescrições serve pouco os interesses da subjectividade. E nem sempre um anti-depressivo resolve a coisa. Muito menos aos que acreditam, inclusive, que o anti-depressivo escusa a entrada no reino dos Céus. Já os mais adaptados à modernidade científica, não precisarão, talvez, de tal ajuda; não será, portanto, assim tão difícil para estes tolerar os que requerem de alguma ilusão placebetária.

    man wearing black t-shirt close-up photography

    No entanto, os supostos “científicos” nem sempre representam a latitude “segura” do Sistema. Parece que também os seus egos periclitam, e pretendem, como tal, beber, e dar a beber à força, da sua pretensa “objectividade”. Não fosse esta uma eventual incapacidade de se representarem subjectivamente. Incapaz de tamanha “psicanálise”, bem como incapaz de qualquer tipo de preciosismo teorético e cultural, está aquele que alguns elegeram como padroeiro da cientificidade.

    João Júlio Cerqueira devia ser estudado, já que o próprio nunca foi capaz de estudar nada. Mas quem deveria ser puramente objecto de estudos é a turba que o segue.

    Como pode um indivíduo filosoficamente pobre, sem nada publicado, sem qualquer tipo de experiência clínica e de investigação, atrair tantos que se pretendem embaixadores do cepticismo? Tão-somente, pela ausência de cepticismo. Porque se os que visitam a página “Scimed” fossem, realmente, científicos, não perderiam o mais pequeno segundo com aquilo.

    Há ciência a sério, por aí. Aquilo é uma atrocidade à ciência. E, no entanto, é uma representação perfeita do que acontece quando a ciência se torna, ela mesma, ideologia, ou seja, placebo dos supostos “científicos”. João Cerqueira é o Pedro Choy da medicina. Provavelmente nenhum dos dois se apercebe disso, e, por isso mesmo, desempenham, cada um, um precioso papel, digno de um estudo sociológico.

    A página “Scimed” conseguiu, tamanhamente, o que certa “ciência” alcançou: adensar, ainda mais, a fractura social que, actualmente, opõe modernos a pós-modernos. Ao invés de permitir o grau necessário de tolerância “terapêutica”, aquela página conseguiu reforçar, ainda mais, as certezas placebetárias dos “crentes” acientíficos. Por isso mesmo, a página “Scimed” é a melhor amiga do Pedro Choy, a melhor providenciadora de clientes à acupunctura e às “terapêuticas não convencionais”. Se eu sequer imaginasse que aquilo é “ciência”, entraria para uma seita, o que, de mais a mais, poderia tornar-me fã da página em questão.

    Fugir do aspecto cruento da ciência e abraçar a simpatia dum acupunctor, que mais quererá o indeciso que poderá perder-se nesta confusão? Todos os outros, que bebam do seu placebo, e, não obstante, isso não chega, é preciso gozar, achincalhar, lastimar, estigmatizar, mas quem o tem feito é precisamente o modelo dominante, o “científico”, nas mãos dos “entertainers” da ciência, ajudando a fazer da “pseudociência” o parente pobre do Sistema, entretanto ganhando adeptos que ajudarão a fazer dela o velho e portentoso dogma.

    Se não é possível conciliar, é preciso, então, tolerar, para que ambos os pólos possam, um dia, comunicar (lembremos Habermas), assegurando o equilíbrio perdido. Porque a ciência “plena” é duplamente objectiva e subjectiva, grupal e idiossincrática.

    A tolerância é, sempre foi, o signo da liberdade. E as duas permitem a dúvida, o real exercício do cepticismo. A Sociedade actual deseja, tão-só, o extremismo polar. Ele nutre, obviamente, celeumas, retóricas, rancores, que, sobretudo no tempo vigente, têm minado o terreno da Verdade. Claro está que esta não é alcançável plenamente, e sabê-lo é, igualmente, ser científico.

    A conturbação em causa poderia ser muito saudável, não fosse a urgência de soluções para tantas vítimas dos dois pólos. Dito isto, parece-me que o caso “Choy vs. Scimed” não beneficia nada nem ninguém. Quiçá pudesse Pedro Choy ser menos sensível a um Cerqueira ego-teo-maníaco. Oxalá pudesse João Cerqueira resolver o seu complexo de castração junto de um bom psicanalista. Mas eu não sei se o Cerqueira considera a psicanálise pseudociência. E isso é relevante para obter resultados tangíveis.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.