Autor: Joaquim Sá Couto

  • Médicos: o escândalo do Adicional

    Médicos: o escândalo do Adicional


    “Exclusivo: dermatologista ganhou 400 mil euros por 10 dias de trabalho no maior hospital público do país”. Este título sensacionalista abriu uma autêntica caixa de Pandora, cujos segredos ainda mal começaram a ser revelados. Tudo começou “a propósito de um caso”, mas rapidamente se multiplicaram as denúncias de situações semelhantes, envolvendo alegados abusos de médicos que, contornando o sistema, chegam a auferir entre 20 e 30 mil euros por mês.

    Os médicos envolvidos nestes “esquemas”, a confirmarem-se as acusações, terão usado o chamado Adicional para benefício próprio. Se assim for, não merecem comiseração. Mas para compreender o verdadeiro problema, convém olhar para a floresta e não apenas para a árvore.

    O Programa Adicional foi criado com o objectivo de reduzir as listas de espera — particularmente em especialidades com maior atraso, como a oftalmologia e a ortopedia — oferecendo incentivos financeiros para trabalho fora do horário habitual.

    Na prática, e sob orientação do Ministério da Saúde, as administrações hospitalares industrializaram o Adicional. Os blocos operatórios passaram a funcionar para lá do horário normal, incluindo sábados e domingos. O horário habitual manteve-se pouco produtivo, enquanto os turnos extra se transformaram em verdadeiras linhas de montagem. Para tal, seleccionam-se os casos mais simples e rápidos, maximizando a produção (e a facturação). Sem esta “desnatação”, os resultados impressionantes seriam impossíveis.

    Quem beneficia? Não são apenas os médicos. Enfermeiros, técnicos, auxiliares — todos recebem remuneração adicional. As administrações hospitalares asseguram financiamentos extra e os fornecedores de consumíveis registam aumentos consideráveis nas vendas.

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    Quando se operam 30 cataratas, compram-se 30 lentes intraoculares. Quando se realizam 6 próteses da anca, adquirem-se seis próteses. Quando se corrigem 12 hérnias com recurso a redes protésicas, estas têm de ser compradas.

    Segundo estimativas actuais, o custo médio de uma lente intraocular ronda os 950 euros, enquanto o de uma prótese total da anca varia entre 1.200 e 4.000 euros. Se, num domingo tranquilo, um hospital distrital realizar 30 cirurgias às cataratas e 6 próteses totais da anca, o SNS despende cerca de 40 mil euros apenas em próteses (28.500 euros em lentes e 12.000 euros em próteses da anca, a um valor médio de 2.000 euros).

    Um serviço de oftalmologia bem ‘adicionalizado’ pode gerar mais de 3 milhões de euros por ano só para o fornecedor de lentes. Imaginem as pressões que os administradores — pobrezinhos — devem sofrer para “adicionalizar” ao máximo… e até o próprio Ministério.

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    O leitor incauto questionará: «Mas não é importante tratar os doentes?». Sem dúvida. Mas vejamos os números de cirurgias às cataratas por 100.000 habitantes, segundo dados de 2022:

    • Portugal – 1.273
    • Bélgica – 950
    • Finlândia – 900
    • Dinamarca – 850
    • Países Baixos – 800
    • Hungria – 480

    É legítimo perguntar: estamos realmente a responder a uma necessidade ou a alimentar uma máquina?

    Disse, no início, que o caso dos 400 mil euros abriu uma caixa de Pandora — e é verdade. Mas não devemos esquecer que, segundo a lenda, o último item na caixa é a esperança. E é por acreditarmos que as coisas podem melhorar, que elas se mantêm em movimento.

  • Sedação terminal: uma reflexão

    Sedação terminal: uma reflexão


    A sedação terminal (ST) é uma espécie de coma induzido, em doentes terminais, para lidar com sintomas intratáveis, como dispneia (falta de ar), delírio e ansiedade extrema.

    Uma vez iniciada a sedação terminal, o doente deixa de poder comunicar e não se consegue alimentar nem hidratar. O desfecho torna-se, portanto, inevitável num prazo de tempo que raramente ultrapassa os sete dias.

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    É muito importante explicar estas circunstâncias à família e obter o respectivo consentimento informado, uma vez que se trata de uma abordagem próxima da eutanásia.

    Os sintomas do doente devem ser refractários, ou seja, não responderem a qualquer outro tipo de terapêutica. A dor, só por si, raramente constitui uma indicação para a ST, uma vez que pode ser tratada com eficácia por outros meios.

    No caso de a sedação não obliterar completamente a consciência do doente, permitindo vagas intermitências de comunicação, a interrupção de alimentos e fluídos torna-se perversa por induzir uma desidratação extrema (com secura e sede) que pode aumentar o sofrimento.

    Nesses casos, parece-me mais humana a administração liberal de estupefacientes, mesmo que possam ter o efeito de abreviar a vida, do que suspender o apoio hídrico e nutricional.

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    O momento chega em que a morte se aproxima e se torna inevitável. As intervenções médicas, porém, devem suavizar essa fase, aliviando sintomas que não são refractários e permitindo um nível de consciência que não elimine a comunicação com os entes queridos.

    É muito importante, como disse, obter o consentimento informado da família, explicando que a ST põe fim à capacidade de o doente comunicar, algo de extrema relevância nos últimos dias de vida. Os médicos não têm legitimidade para desencadear uma ST sem esse consentimento e expõem-se a procedimentos criminais.

    No caso de a ST ser prescrita em doentes terminais sem sintomas refractários, entramos no território da má prática. O exemplo mais evidente seria o de um doente terminal com dores moderadas.

    Durante a pandemia da covid-19 (2020 -2021), foi administrada ST a muitos idosos que apenas apresentavam dispneia moderada. Foi uma catástrofe incentivada pelas autoridades sanitárias que encurtou a vida de muitos residentes em lares da terceira idade (NY destacou-se nesta actuação).

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    Um aspecto que não deve ser descurado é uma possível predisposição do pessoal de saúde para recorrer à ST por esta diminuir drasticamente a necessidade de assistência 24/7. Um doente inconsciente e com a “certidão de óbito assinada” é um doente que não dá problemas, não dá trabalho.

    Em conclusão: a ST é uma solução que deve ficar reservada para doentes com sintomas refractários, depois do caso ser discutido com a família, com toda a transparência e cumpridas as formalidades legais e princípios da Legis Artis.

    A Medicina deve conjugar a Ciência com a Caridade.

    Joaquim Sá Couto é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um Serviço Nacional de Saúde, dois sistemas…

    Um Serviço Nacional de Saúde, dois sistemas…


    As listas de espera têm sido uma das maiores pechas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) quase desde a sua instituição, em 1979.

    Curiosamente, a maior parte dos “especialistas da saúde” não entende a razão de ser das listas de espera. Razão que é facílima de explicar: o SNS é uma organização estatista, as instituições são públicas, os trabalhadores são funcionários públicos e a administração é centralizada por comando e controle. Ora, neste tipo de organizações sempre surgiram desencontros entre a oferta e a procura, provocando filas de espera, por vezes para bens de primeira necessidade.

    Para tentar minorar o impacto das listas de espera, os Governos – dos diferentes partidos e coligações – organizaram programas especiais como o Programa Especial de Recuperação das Listas de Espera (PECLEC), o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) e agora o Adicional.

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    O Adicional, como o nome sugere, começou por oferecer às melhores equipas a possibilidade de preencheram tempos vagos do Bloco Operatório com casos “adicionais”, que eram remunerados extra (à peça). Evoluiu, contudo, para o formato actual em que o hospital designa períodos, que podem ser em qualquer dia da semana (inclusive Domingos), onde os médicos, que assim o pretendam, podem trabalhar à peça, desde que fora do horário de serviço.

    Evoluiu para “UM SNS, DOIS SISTEMAS” (parafraseando Deng Xiaoping, “Um país, dois sistemas”). Dentro do horário de serviço, o médico é um funcionário do Estado; e fora do horário de serviço, mas sempre dentro do SNS, é um freelancer pago à peça.

    Ora, o que é que pode correr mal neste arranjo, que tem o alto patrocínio do Ministério da Saúde?

    E se… os profissionais “travassem a produtividade” nas horas de serviço e “acelerassem a fundo” no adicional?

    E se… desnatassem a seleção de casos para o adicional (selecionando os casos mais fáceis)? E se… usassem técnicas diferentes na rotina e no adicional?

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    Vale a pena fazer este clássico “What If”, quando nos chegam ecos de Domingos de Adicional preenchidos com dezenas de casos e períodos de rotina com o Bloco Operatório meio-vazio. Serão apenas rumores sem fundamento ou haverá algo indecoroso que se está a passar.

    Como médico, ficaria surpreendido que um colega fizesse depender a sua praxis da remuneração. Como gestor, ficaria surpreendido que as administrações fechassem os olhos a abusos que defraudassem o SNS, onerando o custo de cada intervenção (não esquecendo que há também a cegueira da corrupção). Como cidadão ficaria escandalizado com os cambalachos a céu aberto.

    O meu desejo é que os incentivos perversos inscritos no ADN do Adicional não tenham dado lugar a “What If”. Já há demasiados problemas no País.

    Joaquim Sá Couto é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.