Autor: José Maria Gonçalves Pereira

  • Página Um: O primeiro jornal português “Open Source”.

    Página Um: O primeiro jornal português “Open Source”.

    Portugal contribui para o mundo da programação com inúmeros talentos individuais. Os nossos engenheiros destacam-se lá fora, integrando projectos de grande relevância (escolhamos, como exemplo totalmente aleatório, João Moreno, um dos principais responsáveis pelo Microsoft VSCode). Contudo, também nesta área, a abundância de “Ronaldos” contrasta com a escassez de troféus colectivos – e para falar de colectivo em software temos que falar de “open source” (e pedir desculpa pelas demais expressões em inglês que, inevitavelmente, se seguirão).

    Poderá surpreender quem está de fora, mas uma parte substancial do código de computador mais complexo e estrutural do nosso mundo é escrita por voluntários não remunerados e publicada à vista de todos, com licença explícita de cópia, alteração e até comercialização por terceiros. Não estamos a falar de pequenos projectos de hobbie-istas mas, por exemplo, da maioria do código que corre nos servidores que suportam a internet.

    É assim que, há várias décadas, os programadores colaboram em “repositórios” acessíveis a todos. Melhoram e discutem o seu código sem se conhecer e criam autênticos arranha-céus nas nuvens.

    Em Portugal, conhecem-se poucos repositórios abertos com dimensão e dinamismo. Talvez mais preocupante, seja não haver notícia de um único repositório “open-source” que esteja na base de qualquer projecto relevante para a sociedade Portuguesa em geral – como é natural noutras paragens.

    Se é verdade que a nossa economia não tem meios para segurar os nossos talentos mais valiosos num contexto de trabalho remunerado, não há razão para deixar de aproveitar o seu trabalho voluntário.

    Assim, é com muito entusiasmo que anunciamos que a presente renovação do Página Um é acompanhada de uma migração da sua infraestrutura a fim de permitir o desenvolvimento em “open-source”.

    Quer isto dizer que o código subjacente a esta mesma página é do domínio público e pode ser melhorado por qualquer um, tanto na aparência como nos aspectos mais invisíveis da plataforma (uma aplicação WordPress headless + GraphQL + NextJS). E há muito trabalho a fazer!

    Convido desde já todos os que se interessam por programação, seja qual for o seu nível de experiência, a visitar o nosso repositório, descarregá-lo e enviar a sua proposta de melhoramento sob a forma de “Pull request”.

    Esperamos colher um pouco do talento individual que, sabemos, reside entre a comunidade P1 e os programadores portugueses, potenciando o crescimento deste órgão ímpar na nossa vida pública.

  • Conta-me como foi… a música

    Conta-me como foi… a música

    título

    Silêncio aflito

    autor

    LUÍS TRINDADE

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Março de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Em Silêncio aflito, o historiador Luís Trindade fornece um tratamento académico a uma associação bastante comum, esta que une as transformações da segunda metade do século passado e a sua efervescente banda sonora. De prever, por isso, um caminho já bastante trilhado, com pontos de passagem inevitáveis até um destino certo. Assim foi, em larga medida.

    Nestas quase quinhentas páginas (re)descobrimos um Portugal nacionalista e conservador ao som da música “ligeira”; burgueses e ocidentais dançando “ié-ié”; emancipado e esclarecido, cantando a “nova canção portuguesa”.

    Por isso, é também de prever que esta “aflição” quebraria o “silêncio” com um solene “Grândola, Vila Morena”. Felizmente, o autor acerta aqui, como noutras passagens, em eventos, pessoas e canções para iconizar a sua narrativa. Nesta, o conturbado Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios, em Março de 74.

    Porém, é de questionar se uma história da “sociedade portuguesa através da música popular” aflora o essencial ao acompanhar, até àquela noite, a plateia que “harmonizou a voz com a do cantor e, em uníssono, formou uma comunidade, criou um hino e desencadeou um movimento” (p.464). Por exemplo, se nos interessamos por comunidade, cantor e hino, talvez o fado e Amália não devessem ter sido tratados ortogonalmente à “grande narrativa” que o autor ensaia.

    Haveria outra forma? Será possível dizer algo de fundamentalmente novo sobre a história deste tempo? Talvez. No entanto, a forma balizada com que Trindade estabelece alguns pontos de partida obriga a que, neste estudo, muitas observações porventura imbuídas de sentido acabem na berma como inconsequentes “contradições” (que o autor tem a franqueza de sinalizar).

    Com efeito, um monolito chamado “sociedade salazarista” (p.88), na qual a opressão e imobilismo parecem ser fins em si mesmos, é um conveniente antagonista, omnipresente embora pouco definido para além do papel de António Ferro e de alguns cronistas conservadores.

    Para colher outros sentidos ainda nos falta “desmilitarizar” o pensamento e discurso sobre o passado (já não tão) recente. Não seria razoável exigir que o autor desta pesquisa profissional e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia o fizesse espontânea e isoladamente.

    O mérito de Silêncio aflito reside afinal na sólida pesquisa documental em que se baseia, reconstruindo este velho nexo com o auxílio quase exclusivo de imprensa da época, o que nos leva a dizer que o melhor deste livro está, quase sempre, entre duas aspas. Tanto assim que fechamos o volume com a clara impressão de que uma colecção completa d’ O Século Ilustrado e da revista Flama são essenciais para entender o passado recente português!

    Entre recortes e fotografias gloriosamente empoeiradas, vamos reforçar ou ajustar a nossa intuição sobre esta época fascinante, com tempo para arrumar de vez a origem da rivalidade entre Simone de Oliveira e Madalena Iglésias. Finalmente.

    Não podemos dizer de Silêncio aflito , como se diz dos bons livros de História, que se lê como um romance: para isso precisaríamos de uma verdadeira voz a narrá-lo. Mas podemos dizer que se lê como uma partitura, fiquedo a carga do intérprete extrair o melhor sentido dos símbolos ali inscritos.