Autor: Ernesto S. Sousa

  • Scorsese espiritual

    Scorsese espiritual

    Título

    Conversas sobre a fé

    Autores

    MARTIN SCORSESE e ANTONIO SPADARO (tradução: Dinis Pires e Pedro Branco)

    Editora

    Casa das Letras (Outubro de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mais do que serem meras ‘Conversas sobre a fé’, este livro, que resulta de um diálogo contínuo entre Martin Scorsese – um dos mais influentes cineastas contemporâneos – e o padre jesuíta Antonio Spadaro – com uma longa experiência em explorar as interseções entre cultura e espiritualidade –, deve ser lido sobretudo como um exercício de ‘confissão’,não tanto para um perdão, mas para uma auto-reflexão do conhecido realizador norte-americano, no contexto da sua vida e filmografia.

    De facto, embora o título sugira uma óbvia interacção entre Scorsese e Spadaro, os diálogos transformam-se sobretudo numa forma de conhecer os pensamentos e reflexões do realizador, numa profunda imersão nas dimensões humanas e transcendentais que lhe moldaram a vida e a obra, mas onde o jesuíta, que se coloca numa espécie de psicólogo espiritual, o conduz a reflectir sobre os mistérios da fé e a busca pelo sentido.

    A génese do livro, como explicado na introdução, remonta a Março de 2016, quando Spadaro e Scorsese se encontraram para discutir ‘Silêncio’, o filme de Scorsese sobre a perseguição aos jesuítas portugueses no Japão do século XVII. A obra cinematográfica, baseada no romance de Shūsaku Endō, tornou-se assim no catalisador de um diálogo que rapidamente ultrapassou o cinema para se tornar numa troca mais íntima e filosófica sobre a espiritualidade, a dúvida e a graça.

    A partir deste encontro inicial, os contactos dos dois aprofundaram-se, ao longo dos anos, e nessa intmidade revelam-se aspectos menos conhecidos da infância de Scorsese, o impacto da sua formação católica e a forma como a sua fé – muitas vezes turbulenta e desafiada – moldou a sua visão artística.

    O livro estrutura-se assim numa troca de ideias fluida, mas onde Spadaro se coloca apenas como interlocutor atento, guiando Scorsese por um percurso de memórias e reflexões, e simultaneamente introduzindo as perspectivas teológicas e culturais. Deste modo, de uma forma habilidosa, pela via destas conversas sobre fé – que, porventura, um jornalista não conseguiria –, Spadaro oferece-nos uma leitura perspicaz do percurso artístico de Scorsese, identificando as camadas de espiritualidade que atravessam filmes como ‘Táxi driver’, ‘A última tentação de Cristo’ ou o já mencionado ‘Silêncio’. Embora a sua abordagem seja de um enorme respeito intelectual, o jesuíta não abdica de provocar o cineasta, conduzindo-o a explorar os limites da sua compreensão sobre Deus, o sofrimento humano e a redenção. Em todo o caso, Scorsese não surge aqui como um devoto tradicional; antes sim alguém profundamente humano em constante questionamento e procura.

    Enquanto obra, ‘Conversas sobre a fé’ apresenta uma análise riquíssima das forças espirituais e culturais que moldam não só a criação artística, mas também a própria existência. No entanto, notam-se momentos em que o texto se torna demasiado autocentrado, especialmente quando as reflexões de Scorsese recaem em episódios conhecidos, já abordados em entrevistas. A ausência de uma análise mais crítica por parte de Spadaro, que frequentemente opta por concordar ou amplificar os pensamentos do cineasta em vez de os problematizar, pode não acrescentar nada de novo à obra do cineasta, mas enriquecem a transversalidade deste testemunho.

  • O que é ser maçom no mundo de hoje

    O que é ser maçom no mundo de hoje

    Título

    A palavra ao Grão-Mestre

    Autores

    ARMINDO AZEVEDO

    Editora

    Guerra & Paz (Agosto de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Os desafios da Maçonaria Regular contados por dentro. É a esta a proposta da obra do Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal (GLLP/GLRP), a maior obediência maçónica e a única no país que cumpre os critérios internacionais de regularidade.

    O livro reúne textos de Armindo Azevedo que foram publicados na comunicação social e alocuções que proferiu em assembleias maçónicas em longo dos últimos seis anos.

    Eleito, em 2018, Armindo Azevedo desempenhou as funções de Grão-Mestre durante dois mandatos. Actualmente, o economista e pós-graduado em Recursos Humanos, é o Embaixador da Confederação Maçônica Interamericana − CMI junto da Comunidade Maçónica Europeia. 

    O livro começa com um prefácio sobre ‘De onde vem e para onde vai a Maçonaria Regular’, seguindo-se uma Nota de Abertura sobre o facto do livro ter nascido do confinamento, que foi uma das medidas impostas pela estratégia de gestão radicai adoptada pelo Governo português na pandemia de covid-19.    

    De carácter mormente pedagógico e propagandista, porque serve como ‘panfleto’ sobre as actividades e ‘feitos’ da Maçonaria, este livro está organizado em 11 capítulos e inclui ainda uma ‘Introdução’ e ‘Notas Finais’.

    No capítulo sobre ‘As eleições de 2018 e o ciclo de abertura à sociedade’ são recordados os “dois momentos negativamente marcantes” do mandato de Armindo Azevedo: a pandemia; e a aprovação na Assembleia da República “da Lei regimental de declaração de pertença a associações ditas discretas, que visava claramente a Maçonaria”.  “Vieram-me à memória as perseguições perpetradas pelos ditadores Hitler, Mussolini, Franco e Salazar, e a famigerada Lei Cabral, de 1935, que levou Fernando Pessoa, não sendo maçom, a tomar a defesa da Maçonaria”, escreveu o ex-Grão-Mestre. Adiantou: “A aprovação desta Lei em pleno século XXI foi para mim interpretada como um sinal claro de que, passados 50 anos do 25 de Abril, ainda não aprendemos a viver plenamente em democracia”.

    Seja para os curiosos da Maçonaria ou para os anti-maçons, esta obra serve para fomentar a literacia sobre o mundo da Maçonaria em Portugal, em particular na maior obediência regular, desde que se entenda que se está perante um livro cujo autor foi Grão-Mestre, sendo um olhar de dentro. Tendo consciência desse facto, é uma obra valiosa para um maior conhecimento e compreensão de um universo que não está ao alcance de todos.   

      

  • Uma faca de dois gumes

    Uma faca de dois gumes

    Título

    O coração pensante

    Autor

    DAVID GROSSMAN (tradução: Lúcia Liba Mucznik)

    Editora

    Dom Quixote (Novembro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Uma das vozes literárias mais profundas e complexas de Israel, David Grossman é reconhecido tanto pela sua ficção quanto pelos seus ensaios e intervenções públicas. Nascido em Jerusalém em 1954, a sua carreira literária nota-se pela exploração das vulnerabilidades humanas e pelos dilemas éticos da sociedade contemporânea, transitando entre a dor íntima e o trauma coletivo, sempre com uma abordagem literária de fino recorte. Por isso, a sua obra transcende as fronteiras do conflito israelo-palestiniano – mas não a esquece, pelo contrário – e foca-se, amiúde, em questões universais como a perda, a memória e a procura de sentido em tempos de adversidade.

    Nesta colectânea de ensaios intitulada ‘O coração pensante’, Grossman reafirma o seu compromisso com uma literatura que questiona e ilumina. A obra reúne reflexões, que se iniciam em 2017 e se prolongam até ao presente ano, com enfoque aos acontecimentos após 7 de Outubro de 2023, o enfoque do prólogo. Acreditando que a literatura deve ser um espaço de resistência à indiferença, uma forma de capturar a essência humana mesmo em contextos de desumanização. Os textos de ‘O coração pensante’, reflectem uma sensibilidade que vai além da emoção imediata para integrar pensamento, ética e acção.

    Aliás, Grossman não se limita a explorar o sofrimento pessoal, não o explora para comover. Embora a dor seja um tema constante na sua obra, essa questão nunca aparece isolada; ela é contextualizada, analisada e, muitas vezes, transformada num convite à empatia, aparentemente impossível entre palestinianos e israelitas.

    Embora ‘O coração pensante’ não seja um manifesto político, Grossman não se esquiva das questões mais prementes deste seu e nosso tempo. O conflito israelo-palestiniano atravessa as suas reflexões, mas não como uma mera análise directa, mas como cenário e palco inevitável, sendo que David Grossman se posiciona como um crítico tanto das políticas de ocupação israelitas quanto da violência por parte de extremistas palestinianos.

    Em todo o caso, trespassa, desde logo no prólogo, escrito no dia 10 de Outubro do ano passado, um tom avassaladoramente crítico ao Governo de Netanyahu, que fere pela justa crueza: “Vejo também um profundo sentimento de traição. A traição dos cidadãos pelo seu governo. Traição a tudo o que nos é caro, a nós enquanto cidadãos, enquanto cidadãos deste Estado. Traição no sentido específico e vinculativo da palavra. Traição à garantia mais cara de todas – a lei nacional do povo judeu – que foi entregue aos seus dirigentes para salvaguarda, e que eles deviam ter tratado com reverência. E em vez disso, o que vimos? O que é que nos habituámos a ver como se fosse normal e inevitável? O que vimos foi o abandono deste país em benefício de interesses mesquinhos, de uma política cínica, tacanha de espírito e delirante. O que acontece hoje é o preço que Israel paga por se ter deixado seduzir durante anos por uma governação corrupta, que o conduziu de fracasso em fracasso. Que corroeu as suas instituições de direito e justiça, os sistemas militar e de educação; que estava disposta a colocá-lo perante um perigo existencial, a fim de salvar o primeiro-ministro de ser preso. Basta pensarmos naquilo em que colaborámos durante anos. Na energia, pensamento e dinheiro que desperdiçámos vendo a família Netanyahu representar o seu drama estilo Ceaușescu. Nas fraudes grotescas que ela encenou perante os nossos olhos estupefactos.”

    E, não esquecendo a barbárie do Hamas, há muitas críticas mais que sibilinas a Netanyahu, a quem os ataques terroristas serviram para a sua salvação política. “Nos últimos nove meses”, salienta Grossman, “milhões de israelitas manifestaram-se semanalmente contra o governo e contra o   homem que o chefia. Foi um processo extremamente importante que exigia devolver Israel a si próprio, à grandiosa ideia que está na base da sua existência: criar um lar para o povo judeu. E não um lar qualquer: milhões de israelitas queriam criar um estado liberal, democrático, amante da paz, pluralista, respeitador das crenças de todos os homens. Em vez de escutar o que o movimento de protesto propunha, Netanyahu preferiu desacreditá-lo, chamar-lhe traidor, incitar contra ele e aprofundar o ódio entre as partes. Mas aproveitou todas as oportunidades para declarar o quanto Israel era forte, determinado e, acima de tudo, preparado, preparado para enfrentar qualquer perigo. Diz isso agora aos pais loucos de dor, ao bebé atirado para a berma da estrada. Diz isso aos reféns, pessoas partilhadas como rebuçados entre as diferentes organizações terroristas. Diz isso aos que te elegeram. Diz isso às oito brechas no muro de fronteira mais sofisticado do mundo”. 

    E continua, assertivo, virando-se para o Hamas: “Mas não se pode errar e confundir: com toda a ira contra Netanyahu, os seus pares e os seus métodos, não foi Israel que causou aquele horror. Foi o Hamas quem o causou. A ocupação é certamente um crime, mas prender centenas de cidadãos, crianças, pais, idosos e soldados, e depois passar por eles um a um e disparar sobre eles a sangue-frio – é um crime muito mais horroroso. Na hierarquia do crime também há ‘graus’”.

    Lidas as crónicas, fica-se no fim com uma estranha sensação sobre a impossibilidade para um fim do conflito. Num dos ensaios, um discurso pronunciado na Praça Habima, em Telavive rem Maio de 2021, um Grossman profético sentencia: “Nós, os israelitas, ainda recusamos entender que terminou a era em que a nossa força pode decidir uma realidade cômoda apenas para nós, para as nossas necessidades e interesses. Será que a última guerra nos convencerá finalmente que, de certo ponto de vista, a nossa força militar já quase não é relevante? Que não importa quão grande e pesada é a espada que empunhamos, no final de contas qualquer espada é uma espada de dois gumes?”

    No final de 2024, vemos que essa faca de dois gumes continua a dilacerar a Humanidade.

  • As cabeças rapadas: das raízes ao ódio

    As cabeças rapadas: das raízes ao ódio

    Título

    Nação Skinhead

    Autor

    GEORGE MARSHALL (tradução: Flávio Gonçalves)

    Editora

    Libertária (Novembro de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    A publicação de ‘Nação Skinhead’ (‘Skinhead Nation’, no original) em Portugal, pela editora independente Libertária, oferece uma oportunidade interessante para conhecer uma das subculturas mais controversas e polarizadoras da História Contemporânea. Escrita em 1994 por George Marshall – que, anos antes editara ‘Spirit of 69: a skinhead bible’, publicado em Portugal também pela Libertária no ano passado –, este livro é sobretudo, e em simultâneo, uma análise cultural e uma investigação sociopolítica, explorando as origens, as dinâmicas e a apropriação do movimento skinhead, frequentemente associado à extrema-direita e à violência. Ao mergulhar nas camadas históricas e sociais desta subcultura – que surge traduzido como “o cena”, Marshall desmistifica muitas percepções simplistas, proporcionando um retrato multifacetado que ainda agora permanece relevante.

    Na verdade, apesar de o termo skinhead remeter agora, de imediato, para a violência e o racismo, a origem desta subcultura remonta ao final da década de 1960, no Reino Unido, quando jovens da classe trabalhadora adoptaram um estilo visual distintivo – botas Doc Martens, suspensórios e cabeças rapadas – como símbolo de identidade e resistência. A influência cultural era, originalmente, multicultural, com raízes no ska e no reggae jamaicano trazidos pelos imigrantes caribenhos, bem como no estilo mod britânico. Contudo, em particular nas décadas de 1970 e 1980, este movimento foi apropriado por grupos de extrema-direita e nacionalistas brancos, transformando-se em sinónimo de intolerância e violência.

    Neste seu livro, George Marshall traça esta evolução de forma meticulosa, argumentando que a associação dos skinheads à extrema-direita não foi inevitável nem natural, mas sim resultado de um contexto social e político específico, marcado por crises económicas, desemprego e descontentamento generalizado. A falta de oportunidades e o colapso das comunidades da classe trabalhadora criaram o terreno fértil serem atraídos por organizações nacionalistas e claramente racistas, como o Front Nacional e o British Movement. O ódio racial, segundo Marshall, foi uma ferramenta para canalizar a frustração da juventude proletária, transformando-a numa força política reaccionária.

    Um dos aspetos mais interessantes do ponto de vista sociológico desta obra é centra-se nas contradições internas deste movimento, que nunca foi homogéneo, sobretudo depois da sua linha principal derivar para o extremismo da direita. Enquanto grande parte dos skinheads abraçou ideais racistas e violentos, outros grupos, como os SHARP (‘Skinheads Against Racial Prejudice’), ainda hoje uma corrente existente em diversos países, lutavam para recuperar a subcultura das garras da extrema-direita.

    A questão da violência é outro tema central neste livro que pode ser considerado desculpabilizante. Marshall salienta não ser possível dissociar a brutalidade de alguns skinheads do seu contexto social, designadamente desemprego, alienação e exclusão, e critica a forma como os media, ao pormenorizarem os incidentes violentos, reforçaram estereótipos negativos, ignorando as complexidades sociológicas do fenómeno.

    Recorde-se que quando ‘Nação Skinhead’ foi publicado pela primeira vez, na década 90, levantou questões controversas que dividiam tanto a esquerda como a direita. Os críticos de esquerda acusaram Marshall de indulgência com um movimento que associavam exclusivamente ao racismo e ao autoritarismo, enquanto sectores mais conservadores viram esta obra como uma denúncia perigosa das suas estratégias de recrutamento e propaganda. Este clima de contestação, porém, destaca a relevância da obra como peça sociológica, exigindo assim aos leitores uma análise crítica e informada.

    No contexto português, a tradução de ‘Skinhead Nation’, neste ‘Nação Skinhead’ oferece um contributo valioso para a compreensão de como subculturas podem ser apropriadas por ideologias extremistas. Embora o movimento skinhead em Portugal, mesmo contabilizando lamentáveis crimes, nunca tenha tido a mesma expressão que no Reino Unido, os paralelos com outros fenómenos sociais e políticos são evidentes, nomeadamente no que diz respeito à instrumentalização do descontentamento popular por parte de forças populistas e radicais.

    Por isso mesmo, a importância desta obra de Marshall, mesmo num tema pouco aprazível, serve para que reflictamos sobre como crises económicas e sociais podem alimentar movimentos de ódio e divisão, sendo por isso mais do que uma obra sobre skinheads; antes investigação sobre a relação entre identidade, política e poder.

  • Da ganância e da gula: uma guerra vencida pela indústria alimentar

    Da ganância e da gula: uma guerra vencida pela indústria alimentar

    Título

    Pessoas ultra processadas

    Autor

    CHRIS VAN TULLEKEN (Tradução: Raquel Dutra Lopes)

    Editora

    Lua de Papel (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “A culpa não é dos consumidores. A epidemia de obesidade é fruto da inércia governamental e do trabalho implacável de algumas corporações internacionais que começaram a substituir alimentos naturais (como o açúcar, ou leite ou a manteiga) por alternativas sintéticas (gomas e emulsionantes). Os novos aditivos são propositadamente concebidos para nos viciar.” Este trecho que pode ser lido na contracapa da edição portuguesa de ‘Pessoas Ultra Processadas’ resume o tema da obra de Chris Van Tulleken, pai, cientista, doutorado e professor no University College de Londres. 

    A observação de um simples gelado que a filha, Lyra, lhe passou para as mãos certo dia, espoletou um caminho que levou Tulleken a investigar a história e os eventos que levaram a que diversos bens alimentares fossem transformados em ‘comida de plástico’, ou pior. Neste livro percebe-se a dimensão desta catástrofe sanitária e ambiental que tem dados lucros pornográficos a muitas multinacionais da indústria alimentar. Como tem sucedido com outras indústrias, como é o caso da farmacêutica, as empresas que produzem bens alimentares perderam a perspectiva e o foco (se é que algumas vez tiveram) na saúde e bem-estar humano e ambiental e concentraram-se num único ponto: viciar os consumidores para gerar lucros infinitos. 

    A receita é simples: criaram-se aditivos novos, feitos para viciar; juntou-se quilos de marketing irresistível; mais umas boas colheradas de cientistas vendidos, cujas ‘pesquisas’ são financiadas pela indústria alimentar. Adicionam-se umas pitadas de aprovações regulatórias e apoios de políticos e entidades de saúde e nutrição et voilá: saiu do forno a era das ‘Pessoas Ultra Processadas’. 

    Como acontece com a indústria farmacêutica, e outros sectores, a indústria alimentar, com os seus milhões, compram muita gente e até a ‘Ciência’ para servir um prato frio e estragado que envenena gerações e gerações de humanos. Pais, filhos e netos consomem comida que não é comida com efeitos devastadores, excepto para as as indústrias que beneficiam de consumidores viciados e doentes. 

    Com base na literatura científica, o autor apresenta as provas em como as acções da gananciosa indústria alimentar criaram um epidemia de obesidade, pessoas doentes, mortes prematuras e destruição ambiental. 

    Dividido em cinco partes, este livro conta os horrores de boa parte dos alimentos, designadamente bebidas, que são vendidos em todos os supermercados, sendo que o último capítulo sugere pistas sobre o que se pode fazer para tentar que a Humanidade consiga vencer a guerra que, para já, está a ser ganha, com larga vantagem, pelos magnatas industriais alimentares. E também aponta o que podemos fazer junto dos governos e, principalmente, o que podemos fazer para pararmos de consumir comida que mata, ainda que lentamente, com o tempo. Como o pior dos vícios.

  • Afinal, o que nos define?

    Afinal, o que nos define?

    Título

    Bipolar, sim, louca, só quando eu quero

    Autor

    BIA GARBATO

    Editora

    Oficina do Livro (Setembro de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Bia Garbato, escritora e publicitária brasileira, traça neste livro o percurso desde que foi diagnosticada bipolar, contando histórias cheias de intensidade e que tanto geram risos como compaixão e tristeza. E fá-lo com leveza e alegria, armas de combate ao estigma da ‘doença mental’.

    O livro está organizado em 12 capítulos e a dedicatória deixa pistas ao leitor sobre ‘de onde’ a autora partiu e ‘onde’ chegou, na actualidade: “dedico este livro àqueles que sempre acreditaram em mim, mesmo quando eu deixei de acreditar”.

    Na sua versão original, a obra tem um prefácio da romancista e publicitária brasileira Tati Bernardi, que é complementado com outro, da escritora portuguesa Rita Ferro, na edição para Portugal.

    Na parte dedicada ao diagnóstico, Bia Garbato escreveu: “eu sempre soube que tinha uma coisa estranha aqui dentro”. relata que se lembra de pensar: “como será que é ser normal’”. E conta como é viver uma vida de depressão em depressão, a depressão pós-parto e os altos e baixos, os saltos para a euforia. 

    Num dos capítulos, o quarto, sobre ‘Emagrecimento’, a autora conta-nos: “como cheguei aos 100 quilos e voltei para contar”. Em outro, fala sobre os seus sentimentos e noutro ainda sobre os pensamentos, neste caso, os ‘doentes’, catastrofistas e negativos, tóxicos.

    Apesar de um tom que pode ser percepcionado como um tanto ‘lamechas’ em algumas páginas, o facto de o livro estar escrito com humor anula o ligeiro enjoo provocado por algumas frases mais ou menos piegas. 

    Pode acontecer que muitas das experiências narradas na primeira pessoa por Garbato possam parecer familiares ao leitor. Se assim for, não será tarde para procurar um diagnóstico, não apenas para que confirme se padece ou não de bipolaridade, mas para apurar se pode ou não ter uma espécie de ‘super-poder’, daqueles que o ‘desvia’ do padrão dito ‘normal’. Com o bom e o mau que isso traz. Com as coisas fáceis e os desafios. Para Bia Garbato, as coisas difíceis da vida incluem “guardar dinheiro”, “ler Guimarães Rosa”, “trabalhar depois do almoço” e “emagrecer”. A listas das coisas fáceis da autora é bem mais curta que a das coisas difíceis e inclui “engordar”, “gastar dinheiro” e “dormir depois do almoço”. (Diria que só o facto de gostar de fazer listas será um ‘sintoma’ em si…)

  • Conexão divina (e felina)

    Conexão divina (e felina)

    Título

    Tarot dos gatos

    Autora

    BETTI GRECO (tradução: Alexandra Cardoso)

    Editora

    Marcador (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Chegado o Outono e a chuva, o chamamento para ir para ‘dentro’ começa a dar os seus sinais. É uma época que confere a oportunidade para se mergulhar em si próprio e reconectar-se com o seu interior. Esta obra, composta por livro e conjunto de 78 cartas de tarot, pode ser um dos instrumentos úteis para esse ‘mergulho’ interior. 

    Em primeiro lugar, destaca-se o facto de se tratar de um objecto esteticamente aprazível. As cartas de tarot com ilustrações de gatos são deliciosas, sobretudo para quem aprecia os felinos e também este tipo de ‘packs’ de tarot, de cartas de anjos, deuses ou similares. De resto, as maravilhosas ilustrações são também da autora do texto. Betti Greco é uma ilustradora e designer gráfica italiana. Cada carta do tarot é única e mesmo as cartas ‘Louco’, ‘O Enforcado’ e Morte’ são perfeitas, a meu ver. Ter ilustrações de gatos em cartas de tarot, realmente tem um impacto positivo, traz leveza e descontracção, à forma como lidamos com uma sessão de leitura ou meditação.

    Depois, é muito simples de utilizar e pode ser usado para ajudar numa meditação sobre alguma temática sobre a qual se pretenda reflectir ou encontrar uma resposta para um desafio. Pode sempre ser também usado como ferramenta de aconselhamento para ajudar a tomar decisões e guiar o rumo para o futuro.

    Experimentei meditar e tirar uma carta para testar o conceito. Fiquei satisfeito com a resposta que surgiu a uma questão que coloquei. Mas, no final do pequeno livro, a autora deixa instruções sobre formas de usar o tarot de diversas formas e para diversos fins. 

    De resto, a Betti Greco deixa também uma nota no pequeno livro que integra o conjunto: entrou no mundo do tarot pela mão de uma amiga, Elena, e é a ela que dedica este baralho. Não sei se será por isso, mas sente-se, de facto, ao pegar no livro e no baralho, que este conjunto foi sonhado, desenhado e produzido com muito carinho. E só isso altera a forma de se estar, antes de meditar ou fazer uma leitura. Outro aspecto interessante é que a autora sugere que se prepare a leitura na presença de um gato, se tivermos um na ‘família’. O objectivo, diz Greco, é criar um ambiente descontraído para a meditação e a leitura das cartas. Se não se tiver um gato, parece que outro animal de estimação serve. 

    Concluindo, este ‘pack’ foi uma agradável surpresa, tanto em termos estéticos, como ao nível de experiência pessoal. E, ao contrário da sugestão da autora, nem sequer tinha um gato por perto. 

  • O fim da submissão

    O fim da submissão

    Título

    Pare de (tentar) agradar aos outros

    Autor

    HAILEY MAGEE (tradução: Elisabete Nunes)

    Editora

    Albatroz (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    O título original deste livro, na sua versão em inglês, é Pare de agradar aos outros − Encontre o seu poder. Na adaptação à versão portuguesa, perdeu-se algo pelo caminho, mas também se ganhou algo. No fundo, perdeu-se a parte de ‘encontrar o nosso poder’ e ganhou-se na ideia de que, efectivamente, por muito que se tente, nunca conseguimos saber se agradamos aos outros ou não. Isto porque os outros podem estar, também, a tentar agradar-nos a nós! Uma espécie de círculo vicioso no qual uns tentam agradar aos outros e vice-versa, criando uma bola de neve infindável que desliza e acelera montanha abaixo, imparável. Algum dia, a bola terá de chegar ao vale e, aí, ou encontra um campo aberto para abrandar e estabilizar (derretendo, depois, lentamente até desaparecer por completo) ou rebenta com estrondo contra algum obstáculo que encontre na descida. Seja como for, o final dessa montanha, pode ser já na nossa morte. Por isso, seria melhor que deixássemos de alimentar a bola enquanto é tempo. No fundo, é o que nos propõe a autora deste livro: deixar de alimentar a bola de neve do ‘agradar aos outros’. 

    Agradar (ou tentar agradar) é algo que se faz como mecanismo de defesa e protecção. Pensa-se que, assim, seremos apreciados, pertenceremos a um ‘grupo’ e, numa eventual crise, não morremos à fome. Pensa-se que, assim, agradando, não se é atacado. Seremos (bem) vistos. Pensa-se, assim, que está garantida a ‘sobrevivência’. Contudo, é um mecanismo que arrisca conduzir ao burnout, ao desequilíbrio financeiro, emocional e mental. Não é possível agradar a todos, a toda a hora, e ‘sobreviver’ intacto. Há perdas a registar. 

    A autora, uma life coach, propõe ao leitor um plano dividido em quatro partes para se sair do círculo vicioso e tóxico de ‘ter’ de agradar aos outros. Na primeira parte, o leitor é desafiado a ‘descobrir-se’. Na segunda, a ‘defender-se’. Na terceira, a ‘cuidar-se’. Na quarta, e última, a ‘enriquecer-se’. 

    Pelo meio, há que largar a ‘culpa’ por não se ‘agradar’ aos outros e por dizer ‘não’. E também deixar ir a ‘vergonha’ e ‘raiva’ e convidar a ‘empatia’ por nós a entrar na nossa vida. 

    Este livro fornece, nas suas 355 páginas, muitos recursos para se atingir o objectivo pretendido e deixar de querer ‘agradar’. O que fazer com os recursos e com o livro, isso cabe apenas ao leitor decidir. Tem-se toda uma vida para o fazer, até se chegar ao vale, no fundo da montanha. 

  • Os segredos da fundadora da medicina holística

    Os segredos da fundadora da medicina holística

    Título

    A vida bem vivida

    Autor

    GLADYS McGAREY (Tradução: Maria Augusta Júdice)

    Editora

    Lua de Papel (Outubro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Completaria 104 anos no dia 30 de Novembro. A autora deste livro, a médica Gladys McGarey, faleceu no passado dia 28 de Setembro, aos 103 anos. Neste livro, deixou os seus ‘segredos’ para uma “vida bem vivida”, como refere no título da obra.

    São “seis segredos para a saúde e felicidade” que a médica anciã deixou em 287 páginas, na edição portuguesa. Logo na contracapa surge um aviso: “os médicos não curam os pacientes; os pacientes é que se curam a si próprios”. Percebemos então que nos espera, talvez, um livro diferente do que imaginaríamos, sendo escrito por uma médica. Afinal, McGarey lançou, junto com o marido, as bases da medicina holística nos Estados Unidos. Na prática, trata-se de uma medicina que assume que não se pode separar o corpo da mente, pelo que é fundamental ouvir a história de cada paciente para chegar às causas das suas doenças. (Muito diferente do simples passar de uma receita para tratar os sintomas que é praticado pela generalidade dos médicos na medicina convencional).

    O primeiro segredo de McGarey pode surpreender: “estamos aqui por um motivo”. Logo no primeiro capítulo, a médica desafia o leitor a “encontrar o seu sumo”, na vida. 

    No segundo capítulo, a autora lança o repto ao leitor para se “soltar”, desvendando o segundo segredo: “toda a vida precisa de movimento”. Remover bloqueios, libertar o que não tem importância, fazem parte deste ‘movimento’ para sair da estagnação.

    Talvez o segredo mais importante será o terceiro: “o amor é a mais poderosa medicina”. Aqui, McGarey escreve sobre o papel do amor-próprio e de como deixar o amor entrar. No fundo, ensina como cada um se pode “curar amando-se a si próprio”.

    Enquanto revela os segredos para uma “vida bem vivida”, a médica relata detalhes de alguns dos muitos casos de pacientes que acompanhou durante a sua carreira que de mais de oito décadas na medicina. As muitas histórias ajudam à compreensão dos ‘segredos’ e lançam uma luz sobre a forma como McGarey cuidava dos pacientes e via a Medicina. 

    Esta médica, era já octogenária quando decidiu ir para o Afeganistão ensinar quais os cuidados a ter durante o parto, contribuindo para diminuir a mortalidade infantil naquele país.

    O amor de McGarey pela medicina (e por ajudar os seus pacientes) continuará vivo e permanecerá presente, através deste livro e das pessoas que tratou ao longo da sua carreira. “O amor tem uma rara capacidade de transformar aquilo em que toca”, escreveu a médica (página 120).  Amén.

  • O primeiro milionário da História

    O primeiro milionário da História

    Título

    O homem mais rico de sempre

    Autor

    GREG STEINMETZ (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É considerado o homem mais rico de sempre mas morreu apenas acompanhado das pessoas a quem pagava para o servirem. Quando estava no leito de morte, a sua mulher estava com o amante. Esta é a história de vida de Jakob Fugger, camponês tornado banqueiro e ultra-milionário, contada pelo norte-americano Greg Steinmetz, que foi jornalista e analista de bolsa. 

    A obra está recheada de factos e eventos que nos remetem para a época do Renascimento e para um mundo de Papas, Reis e Imperadores. Os detalhes ajudam o leitor a espreitar aquilo que terá sido a vida extraordinária do banqueiro alemão que se tornou milionário e esteve, segundo o autor, nas origens da Reforma de Martinho Lutero. Também terá patrocinado a viagem de circum-navegação de Fernão Magalhães. 

    Jakob Fugger era um plebeu, neto de camponeses, que se tornou comerciante e banqueiro. Nasceu e viveu na Alemanha nos séculos XV e XVI e, aquando da sua morte, acumulava uma fortuna que ascendia a cerca de 2%  da riqueza produzida na Europa. Conjugava talento, frieza, determinação e ousadia.

    Fugger conseguiu impor-se numa era de monarcas e em que a Igreja era poderosa.  As suas façanhas e o seu engenho para os negócios moldaram o mundo financeiro até aos nossos dias. Tinha influência na política, numa época em que dinheiro e guerras andavam de mãos dadas (e não andam hoje?). 

    Mas também “explorou trabalhadores, aterrorizou a família, combateu Lutero e financiou guerras contra o seu próprio povo em nome da ordem social”. Steinmetz cita, na obra, uma descrição de Fugger feita pelo fundador do partido socialista da Alemanha, Ferdinand Lassalle:

    “Agora todos estão nas mãos dos banqueiros

    São eles os verdadeiros reis do nosso tempo!

    É como se uma ventosa gigantesca em Augsburg

    Tivesse rodeado com todos os seus tentáculos

    Todo o país, e com isso sorvesse todo o ouro

    À tona de água para o seu interior.”

    Do Renascimento aos dias de hoje, há coisas que mudaram e outras não.