A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), apesar do estatuto de entidade pública, funciona como uma ‘Casa da Mãe Joana’, atropelando códigos e leis, ao mesmo tempo que obstaculiza o acesso aos documentos administrativos. Numa decisão hoje tomada sozinha pela sua presidente, Licínia Girão, através de um órgão colegial (Secretariado) que assume não ter actas das suas reuniões, o PÁGINA UM viu recusado o acesso aos debates do Plenários desde meados de 2023. Neste lote de documentos administrativos estará a descrição de uma acesa discussão em Novembro do ano passado onde foi criticado o uso por Licínia Girão de 6.000 euros desta entidade para custear advogados contratados especificamente para processar o director do PÁGINA UM. A presidente em fim de mandato da CCPJ alega que os requerimentos do PÁGINA UM para aceder às actas são abusivos e entende que mesmo os jornalistas não devem consultar dados nominativos, uma enviesada interpretação que contraria a jurisprudência e que, além do mais, constitui um princípio pouco abonatório para uma entidade que regula a actividade desta classe profissional.
A presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), Licínia Girão, recusou hoje divulgar ao PÁGINA UM diversas actas de reuniões de plenário, que integram nove membros deste órgão regulador, entre as quais uma onde se discutiu o uso abusivo de dinheiros públicos.
Na carta de renúncia de dois dos membros da CCPJ – Anabela Natário e Isabel Magalhães –, no final de Outubro passado, é explicitamente referido, alegadamente citando uma acta, que em reunião do Plenário de 15 de Novembro de 2023, Licínia Girão decidiu informar os seus colegas que tinha “apresentado uma queixa, em nome pessoal, contra o jornalista Pedro Almeida Vieira [director do PÁGINA UM] junto do Conselho Deontológico (…) e apresentado igualmente queixa junto do Ministério Público”. As duas ex-membros do Plenário da CCPJ salientam que “só depois de uma grande pressão, acabou [Licínia Girão] por retirar a queixa, querendo, no entanto, impor condições tão esquisitas que foram ‘chumbadas’”. E são as mesmas duas jornalistas que renunciaram, acusando Licínia Girão de despesismo e centralismo, que a presidente da CCPJ “não se comprometeu a devolver a quantia gasta indevidamente”.
Licínia Girão, presidente da CCPJ.
Embora essa seja uma das actas que requereu, o PÁGINA UM pretende consultar um período mais alargado, entre Junho de 2023 e o presente mês de Novembro, mas de qualquer modo Licínia Girão, em ofício remetido em nome do Secretariado – constituído por três membros, mas só por si assinado –, indeferiu o pedido.
Na sua missiva, Licínia Girão – que tem um passado profissional sobretudo ligado à imprensa regional e não tem actividade jornalística conhecida nos últimos dois anos – alega que os pedidos do PÁGINA UM são abusivos, considerando que foram feitos pedidos similares há menos de dois anos, algo que é, de todo, falso.
Além disso, Licínia Girão – que é a principal beneficiária de as actas se manterem secretas – alega que se aplica o Regulamento Geral de Protecção de Dados, considerando que “os próprios jornalistas têm o direito de ver protegida a devassa dos seus dados pessoais”, mesmo quando se está meramente perante informação relativa a actividade profissional regulada por lei.
Esta interpretação da presidente da CCPJ contraria, aliás, a jurisprudência de forma gritante. Por exemplo, um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de Maio de 2021, que até foi publicado em Diário da República, salienta, num processo de intimação intentado pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional, que mesmo que haja documentos “que contenham dados pessoais”, apenas ficam protegidos aqueles “que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa”.
Funcionamento à margem da lei tem sido a regra na CCPJ.
Similar entendimento teve uma sentença de Outubro de 2022 do Tribunal Administrativo de Lisboa, em benefício do PÁGINA UM, relativa a uma intimação contra a Ordem dos Farmacêuticos e a Ordem dos Médicos, então liderados pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e pelo actual deputado social-democrata Miguel Guimarães, respectivamente. Não consta, aliás, que nas reuniões do Plenário da CCPJ sejam debatidas as origens étnica ou as opiniões políticas, filosóficas e religiosas, nem tão-pouco questões de índole sexual.
Por fim, Licínia Girão – na linha, aliás, de uma visão restritiva e enviesada do acesso dos jornalistas à informação – defende ainda que não se aplica a norma legal específica que concede direitos especiais aos jornalistas no acesso a dados abrangidos pelo RGPD, remetendo para uma alínea que pretende garantir que apenas profissionais legitimados pela legislação (ou seja, reconhecidos como jornalistas segundo as normas nacionais) possam justificar o tratamento de dados sensíveis com base em finalidades jornalísticas.
Para terminar, Licínia Girão diz também que o Secretariado da CCPJ – o órgão colegial e permanente deste órgão regulador e disciplinador dos jornalistas – “não elabora, obviamente, actas relativas às reuniões que realiza”. Esta é mais uma interpretação temerária de uma jornalista supostamente eleita por ser “jurista de mérito”.
Presidente da CCPJ assume com naturalidade que tem funcionado sem actas no funcionamento do Secretariado, um órgão colegial, em flagrante violação do Código do Procedimento Administrativo, pelo que as decisões são nulas e passíveis de responsabilidade financeira, disciplinar e penal.
Com efeito, de acordo com o Código do Procedimento Administrativo, sendo um órgão colegial, o Secretariado da CCPJ está obrigado por lei, em cada reunião, a lavrar uma acta, “que contém um resumo de tudo o que nela tenha ocorrido e seja relevante para o conhecimento e a apreciação da legalidade das deliberações tomadas, designadamente a data e o local da reunião, a ordem do dia, os membros presentes, os assuntos apreciados, as deliberações tomadas, a forma e o resultado das respetivas votações e as decisões do presidente”.
E acrescenta ainda esta norma que “as deliberações dos órgãos colegiais só se tornam eficazes depois de aprovadas as respetivas actas ou depois de assinadas as minutas e a eficácia das deliberações constantes da minuta cessa se a acta da mesma reunião não as reproduzir”. Ou seja, todas as decisões tomadas por Licínia Girão estão feridas de nulidade, arriscando também responsabilidade financeira e disciplinar, ou mesmo responsabilidade penal, se houver prevaricação ou falsificação de documentos.
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Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 13º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a esconderem que a maioria dos Prémios Nobel que não querem ver Robert F. Kennedy Jr. na liderança da ‘pasta’ da Saúde na administração Trump são os mesmos que defenderam a organização caída em desgraça, EcoHealth Alliance, que conduziu pesquisas perigosas em Wuhan, na China. Também se analisam dois casos em que a SIC Notícias e o Correio da Manhã cometeram lapsos de tradução que totalmente alteraram as notícias em causa.
É uma figura pública reconhecida pelos portugueses e acaba de ganhar um importante caso na Justiça. António Garcia Pereira, advogado e antigo candidato à Presidência da República, defendeu em regime ‘pro bono’ Renata Cambra num processo contra dois réus, um deles Mário Machado, que está ligado à extrema-direita e ao neonazismo. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação de Machado a uma pena de prisão efectiva de 2 anos e 10 meses, num caso que envolve incitamento à violência e ao ódio contra mulheres de ideologias de esquerda, designadamente contra a ex-dirigente do Movimento Alternativa Socialista. Esta vitória segue-se a outra: Garcia Pereira foi homenageado, em Maio, com o Prémio Nelson Mandela pela sua “coragem em denunciar excessos” de entidades “com capacidade de intimidação”. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, no seu escritório, em Lisboa, Garcia Pereira falou sobre os limites à liberdade de expressão mas também sobre a cultura de cancelamento de que tem sido alvo na comunicação social, desde que criticou as medidas ilegais que foram adoptadas pelo governo na pandemia. O Tribunal Constitucional acabou por lhe dar razão, mas a cultura de cancelamento mantém-se. O advogado afastou um regresso à vida política activa mas deixou críticas aos partidos de esquerda. Deixou também um alerta: o Almirante Gouveia e Melo, que não tem afastado ser candidato às eleições presidenciais, tem um perfil autocrático que beneficia dos tempos actuais de ascensão do populismo e do facto de o povo não ter memória.
António Garcia Pereira luta há muito contra o fascismo e tem sido um rosto em defesa da democracia e dos direitos fundamentais. Agora, o conhecido advogado e antigo professor universitário, acaba de celebrar uma relevante vitória na Justiça: a confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa da condenação a pena de prisão efectiva de Mário Machado, ligado à extrema-direita e ao neonazismo. Machado e outro réu, Ricardo Pais, foram condenados por terem incitado à violência e ao ódio contra mulheres de esquerda, designadamente Renata Cambra, antiga dirigente do Movimento Alternativa Socialista.
Apesar de poderem recorrer da sentença, Garcia Pereira está confiante de que Machado vai mesmo cumprir os dois anos e 10 meses de pena de prisão, admitindo que um eventual o recurso para adiar o cumprimento da sentença venha a ser rejeitado.
Mas, nesta entrevista ao PÁGINA UM, no seu escritório em Lisboa, Garcia Pereira, de 72 anos, alertou que “evidentemente que a luta contra os fascistas e os neonazismo não se faz apenas nos tribunais”. Para o reputado mestre e doutor em Direito, tem existido alguma complacência com situações em que há ataques ao bom nome e dignidade das pessoas, nomeadamente nas redes sociais. E citou a “própria jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” que tem alimentado abusos do direito à liberdade de expressão.
António Garcia Pereira. / Foto: D.R.
Para o advogado, “a liberdade de expressão de pensamento é um valor fundamental, mas a liberdade de expressão de pensamento está aliada a uma coisa que Gabriel García Márquez escreveu na sua carta, considerado o seu testamento: um homem só deve olhar de cima para baixo, para outro homem, para ajudar a levantar-se no chão”.
Para Garcia Pereira, “há uma desvalorização de valores imateriais, como o bom nome e a dignidade das pessoas”, que é fruto “da época do capitalismo” em que há uma depreciação do respeito pela pessoa, “do respeito pelo outro, da solidariedade”.
O advogado e histórico combatente contra o fascismo, alertou que se está a assistir a uma repetição da História, em que o excesso e abuso da liberdade de expressão poderão levar a um outro extremo, que é a punição, não só de comportamentos abusivos mas também de todos, incluindo aqueles que são verdadeiramente de liberdade de expressão. “E nós já tivemos essa experiência durante o período da covid-19”, em que houve censura de cientistas e de todos os que suscitaram dúvidas sobre muitas das medidas impostas por governos.
Garcia Pereira chegou a alertar para o facto de algumas medidas do governo serem ilegais, o que lhe valeu ser cancelado pela comunicação social. “A minha voz, como a de muitos outros, foi eliminada na comunicação social”, lamentou. Um ‘cancelamento’ que se mantém até hoje. Garcia Pereira era um convidado assíduo e era regularmente chamado para fazer comentários em diversos canais de TV. Deixou de ser convidado. “Este ponto de vista que eu estou a defender ser imediatamente silenciado e, pior do que isso, ser insultado, é evidentemente uma demonstração da época que vivemos”, disse.
Mas o Tribunal Constitucional deu-lhe razão, com mais de duas dezenas de acórdãos a confirmar a inconstitucionalidade de medidas impostas indevidamente e de forma desproporcional na pandemia. “Na pandemia, foi usada a velha teoria de que os fins justificam os meios e que quem conhece a História sabe perfeitamente que esse é um dos alicerces da teoria de legitimação do direito e do Estado do III Reich”, afirmou. Lembrou que chegou a haver quem tivesse sido alvo de processos disciplinares por ter posições diferentes das do governo.
O advogado com os filhos Tiago, Ricardo, Manuel e Rita, na cerimónia em que recebeu o prémio Nelson Mandela. / Foto: D.R.
O antigo candidato à Presidência da República afastou um regresso à vida política activa. Mas deixou críticas aos partidos de esquerda, os quais considera serem os responsáveis pelo populismo. “Em meu entender, não há nenhuma força política verdadeiramente de esquerda [em Portugal] e isso é, em larga medida, responsável pelo pântano em que nos encontramos hoje”, com a população a não ver nos partidos diferenças substanciais sobre as grandes questões que afectam o país.
E deixou um alerta sobre a ascensão da figura de Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada. “É aí [nas crises] que sempre, historicamente, surgem os salvadores da pátria. As soluções dos dos [falsos] Messias que aparecem, apresentando-se supostamente acima das classes e dos partidos políticos, com um discurso que é sempre igual”, de que vai acabar com “a bandalheira e a corrupção”. Alguém que diz que “isto está muito mal, é preciso uma pessoa com autoridade”.
Garcia Pereira criticou Gouveia e Melo por estar há um ano a “a fazer uma campanha usando inclusivamente os meios da Marinha e a farda”. E deu o exemplo recente de um podcast em que o Almirante participou, que decorreu “nas instalações da Marinha, no Centro de Inovação da Marinha”, no qual “não só se pronuncia, por exemplo, sobre o caso do NRP Mondego, como se pronuncia sobre uma série de matérias, inclusivamente políticas, o que um militar no activo não pode fazer”.
Para o advogado, o anúncio de que André Ventura poderá ser candidato nas eleições presidenciais não passa de uma manobra que “destina-se pura e simplesmente a marcar um certo distanciamento do Chega, de que o próprio Almirante Gouveia e Melo necessita”. Isto porque o Chega foi o partido que se manifestou ser favorável a apoiar Gouveia e Melo, o qual aparenta ter uma proximidade evidente ao CDS-PP.
Garcia Pereira não tem dúvidas de que Gouveia e Melo é uma “solução perigosíssima” para o cargo de Presidente da República, porque “representa aquilo que representaram todos os [falsos] Messias da História”. Sublinhou que, tudo aponta que o Almirante “é uma personalidade ultra-reaccionária, com um timbre da atuação que é violentamente autocrático”.
Disse que a aparente popularidade de Gouveia e Melo é explicada pelo facto de haver um povo sem memória. “Um povo sem memória é um povo sem futuro e nós não nos devíamos esquecer para onde é que conduziram experiências políticas anteriores a essa [de Gouveia e Melo]”.
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Martin Kulldorff foi professor de Medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas. O trabalho desenvolvido pelo proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco é amplamente reconhecido. Membro de uma comissão da norte-americana Food and Drug Administration (FDA) dedicada à segurança de medicamentos e gestão de risco, os seus modelos de software são muito utilizados, nomeadamente pelo CDC, nos Estados Unidos, para a rápida detecção de surtos de doenças infecciosas e de reacções adversas graves a vacinas. Durante a pandemia da covid-19 foi uma das vozes a favor de uma estratégia que salvasse vidas sem deixar danos colaterais graves na saúde pública e na sociedade. Foi um dos três reputados professores que escreveram a histórica Declaração de Great Barrington. Mas suas posições valeram-lhe a censura, insultos e difamação. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Kulldorff fala sobre as lições da pandemia e a sua esperança de que, na Ciência e nas políticas de saúde pública, se vai voltar aos factos e às decisões baseadas na evidência científica. Também revelou que prepara o lançamento de uma publicação científica na qual os cientistas poderão publicar os seus estudos e artigos, com transparência, criando o espaço para o debate.
Os ventos são de mudança e a ‘idade das trevas’ da censura e perseguição de cientistas, que regressou com a pandemia de covid-19, parece estar moribunda e cada vez mais perto do fim. Que o diga Martin Kulldorff, proeminente epidemiologista e bioestatístico, que foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas, mas que se viu a ser alvo de censura e difamação por ter feito o seu trabalho e defendido a medicina baseada na evidência.
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada por videochamada, num Sábado, em vésperas do Dia de Acção de Graças, Kulldorff afirmou que não se arrepende de ter sido uma voz em defesa da Ciência, contra os dogmas e o falso consenso promovido pelas autoridades nos Estados Unidos, durante a covid-19. “Percebi, logo no início, que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar?” Contudo, sendo um epidemiologista, Kulldorff viu-se forçado a falar. “Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos”, afirmou.
Martin Kulldorff é um proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco. Foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas e fundou a Academy of Science and Freedom. É consultor da FDA como membro da comissão ‘Drug Safety and Risk Management Advisory Commitee’. Os programas que desenvolveu para detecção de surtos de doenças infecciosas (SaTScan) e para detectar reacções adversas graves a medicamentos e vacinas (TreeScan) são amplamente usados, nomeadamente pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention).
Martin Kulldorff / Foto: D.R.
Nos últimos anos, ficou também conhecido por ter sido um dos três reputados professores de respeitadas universidades que escreveram a Declaração de Great Barrington. Escrita em Outubro de 2020, em plena pandemia, o texto defendia uma resposta à covid-19 centrada na protecção das pessoas mais velhas e vulneráveis e alertava que os confinamentos e medidas mais restritivas iriam causar danos graves em termos de saúde pública, no curto e no longo prazo, prejudicando, sobretudo, a classe trabalhadora e as crianças e jovens. Além de Kulldorff, escreveram a Declaração o professor Jay Bhattacharya, da Universidade de Stanford − que foi nomeado para director do National Institutes of Health (NIH) na nova administração Trump −, e a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford. O documento criado a 4 de Outubro de 2020 conta com 940 mil assinaturas.
Em Março deste ano, e após duas décadas como professor de medicina na Universidade de Harvard, Kulldorff anunciou que tinha sido dispensado, numa confirmação do estado dogmático e da ‘idade das trevas’ que atingiu o mundo científico e académico, pautado pelo ‘cancelamento’, censura e até perseguição de cientistas e professores devido às suas posições distintas, num mundo que ficou fechado ao debate. Kulldorff escreveu, nessa altura, um artigo, que foi publicado também em português no PÁGINA UM com o título ‘Universidade de Harvard espezinha a verdade‘.
Kulldorff salientou que, com a pandemia, se aprendeu que “temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência”, o que não aconteceu na covid-19, com medidas que deixaram um rasto de danos colaterais gigantescos na saúde pública, na sociedade e na economia. Outra lição da pandemia é de que “nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia”, que foi uma realidade para muitos cientistas e médicos de topo desde 2020. (Em Portugal, vale a pena recordar que comentadores nas TVs, políticos e jornalistas insultavam – e ainda hoje insultam – os defensores de medidas baseadas na evidência científica, classificando-os de ‘negacionistas’ ou ridicularizando-os com nomes como ‘chalupas’.)
Nesta entrevista, Kulldorff também revelou que vai lançar, nos próximos meses, uma publicação científica através da qual os cientistas podem divulgar os seus estudos e artigos científicos, de uma forma mais transparente. Recorde-se que várias das principais revistas de natureza científica falharam na pandemia, ao cederem a políticas enviesadas e censurando cientistas, que se viram em dificuldades para conseguir publicar o resultados dos seus trabalhos de investigação. Enquanto isso, alguns cientistas próximos da ‘narrativa’ oficial conseguiam publicar em tempo recorde, mesmo se o seu trabalho estivesse rodeado de muitas dúvidas. “Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos”, disse Kulldorff, frisando que é crucial que haja debate científico livre e aberto.
O epidemiologista sublinhou que, para que se possa restaurar a confiança na Ciência e nas universidades, “o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica”. “Penso que os cientistas de base vão conseguir dar a volta, mas o fundamental é que haja uma nova liderança”, frisou, destacando que a nomeação de Martin (Marty) Makary para liderar a FDA é um sinal de esperança. Kulldorff também manifestou a esperança de que Bhattacharya fosse nomeado director do NIH, o que se confirmou já após a entrevista.
Segue a transcrição em português da entrevista feita em inglês.
Foi professor em Harvard, na escola de Medicina de Harvard, durante duas décadas, até Março passado. E em que está a trabalhar agora? Qual é o seu dia-a-dia?
Trabalho como consultor, na detecção de surtos de doenças infeciosas. Trabalho com vacinas. Faço um trabalho semelhante ao que fazia antes, mas não fazendo parte da Escola de Medicina de Harvard.
E desenvolveu um software importante, uma ferramenta de recolha de dados. Um software que permite a detecção de surtos em hospitais, por exemplo, e em termos geográficos, e também software na área de monitorização de segurança de vacinas.
Sim. Criei dois softwares: SaTScan, que é geográfico, para detectar rapidamente surtos de doenças infeciosas, que podem ser a salmonela ou a doença do legionário. Também criei um software que se chama TreeScan, que detecta reações adversas inesperadas a medicamentos ou vacinas, porque, uma vez que o medicamento ou a vacina é aprovado, sabemos em última análise que está a funcionar, mas é impossível saber se há reacções adversas raras graves. Temos de fazer essa vigilância, depois de [as vacinas ou medicamentos] terem sido aprovados pela FDA, ou a EMA [European Medicines Agency], na Europa.
Os autores da Declaração de Great Barrington: Martin Kulldorff (Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). A Declaração dos três professores e cientistas detende uma resposta à pandemia de covid-19 focada nas pessoas mais vulneráveis e alerta para os efeitos devastadores que os confinamentos e restrições duras têm na saúde pública a curto e longo prazo, afectando desproporcionalmente a classe trabalhadora e as crianças e os jovens. Os três reputados professores acabaram por ser alvo de campanhas de difamação e perseguição pelas autoridades de Saúde nos Estados Unidos e os media ‘mainstream’. / Foto: D.R.
E o professor também trabalha com a FDA e um dos seus softwares é usado pelo CDC, na detecção de reacções adversas a vacinas.
Sim. Esses dois métodos são amplamente utilizados pelo CDC e a mineração de dados também é usada pela FDA. E também são usados por departamentos de saúde estaduais e municipais.
Muitos não sabem o trabalho que é necessário para detectar não só surtos de doenças, mas para monitorizar as reacções adversas. É necessário muito trabalho envolvendo software e mineração de dados.
Sim. Por exemplo, na detecção de novos casos de salmonela, por exemplo: iremos querer saber se, de repente, há um pico de doença num determinado bairro, com mais casos do que seria o esperado. Por acaso, pode haver a indicação de que talvez um restaurante esteja a servir algum alimento contaminado ou que alguma mercearia está a vender frango que foi contaminado. Então, vai querer saber-se o mais rápido possível. Porque, mesmo se for detectado mais rápido, isso pode salvar pessoas de ficarem doentes e, às vezes, de morrerem. É importante poder ter este tipo de sistema automatizado e rápido para detectar rapidamente quando há esse tipo de problemas.
Sendo um especialista nestas áreas, ficou surpreendido com as políticas que foram implementadas na pandemia de covid-19? O professor foi um dos três autores da Declaração de Great Barrington, que defende uma abordagem focada para se salvar vidas. Esperava o tipo de comportamento que as autoridades adoptaram em resposta à covid-19?
Não, eu fiquei extremamente surpreendido. Porque a forma como lidámos com a covid-19 ignorou os princípios fundamentais da saúde pública, bem como a medicina baseada na evidência. Ficou claro, logo no início de 2020, que qualquer pessoa poderia ser infectada com a covid-19. E o risco dependia da idade. As pessoas mais velhas tinham um risco de morrer 1000 vezes maior do que as pessoas mais jovens. Portanto, a única coisa que havia a fazer era proteger as pessoas mais velhas, permitindo que as escolas permanecessem abertas e permitindo que os jovens adultos prosseguissem com as suas vidas, perto do normal. E um dos princípios da saúde pública é que não se pode estar focado em apenas uma doença, tentando eliminar a covid-19, porque causaria enormes danos naturais colaterais em outras áreas da saúde pública, como no caso das doenças cardiovasculares ou diabetes ou pessoas com cancro. Na verdade, no caso do cancro, estava a diminuir, mas não porque as pessoas não estavam a ter cancro, mas porque não estava a ser detectado. Se não é detectado, não pode ser tratado. Vamos ter de viver com esse tipo de coisas. Há pessoas que vão morrer mais cedo porque o seu cancro não foi detectado. E, claro, houve problemas com a saúde mental e a educação, com o encerramento das escolas. Houve enormes danos colaterais de saúde pública devido a estas medidas de resposta à covid-19, porque as autoridades estavam unicamente focadas na covid-19 e ignoraram tudo o resto. E isso não se faz na saúde pública.
Nasceu na Suécia, é um cientista sueco. Na Suécia, a abordagem foi completamente diferente. Os números relativos ao excesso de mortalidade são muito melhores do que no resto do mundo, nomeadamente face aos de Portugal, onde os números de excesso de mortalidade são enormes. Porque é que a maioria dos países ocidentais seguiu uma abordagem e a Suécia seguiu uma abordagem diferente?
Não sei. Acho surpreendente que a Suécia tenha sido o único país a adotar uma abordagem baseada na evidência, durante a epidemia, e entre os principais países ocidentais. Alguns outros locais também seguiram a mesma estratégia [da Suécia], como as Ilhas Faroé, por exemplo. Mas não sei porquê. É muito surpreendente. O que aconteceu na Suécia é que houve, realmente, um debate robusto sobre os prós e contras das diferentes abordagens. Os grandes jornais tinham pessoas a debater as duas abordagens, a abordagem sueca de protecção focada, bem como a abordagem de confinamentos severos em outros países. Penso que foi algo bom que houve na Suécia. Nos Estados Unidos, esse debate foi esmagado. Os que tentaram falar sobre a protecção focada, em vez de se fazer confinamentos, foram caluniados ou ridicularizados. Demorou muito, muito tempo até conseguirmos chegar ao público e informar o público de que não existia um consenso científico para esses confinamentos.
Não apenas na comunidade científica, mas também nas universidades, existiu uma enorme onda de censura nos Estados Unidos e também em outros países. Ficou surpreendido com isso? Para mim, nunca pensei vir a ter de enfrentar a censura. Mas enfrentámos censura. Por que é que isso aconteceu?
Sim, fui censurado pelas redes sociais por fazer afirmações cientificamente factuais sobre a pandemia. Fui censurado pelo Twitter, pelo Facebook, YouTube, LinkedIn, Tiktok. E eu fico chocado. Se me tivessem dito que isso iria acontecer cinco anos antes, eu não teria acreditado. Pensava que a liberdade de expressão estava enraizada na cultura ocidental, na Europa Ocidental e na América do Norte. Mas foi como se estivéssemos na União Soviética ou num país fascista e não em países do Ocidente. Fiquei completamente chocado. Fui censurado, a mando do governo norte-americano, bem como muitos outros cientistas e indivíduos.
E, recentemente, o Professor Jay Bhattasharya escreveu no X sobre o facto de a Universidade de Stanford ter votado para manter a censura aplicada ao professor Scott Atlas. Não têm a consciência pesada e ainda pensam que a censura foi acertada. Poderíamos esperar que, de alguma forma, universidades como Harvard ou Stanford reconhecessem que erraram, mas parecem não ter uma consciência culpada.
Sim. E, na verdade, há quatro anos, quando escrevi a Declaração de Great Barrington com o Dr. Bhattacharya, de Stanford, e a Dra. Sunetra Gupta, de Oxford, tivemos um debate. Eu disse: com algumas excepções, iria ser muito difícil convencer os políticos e os jornalistas ou os principais cientistas, mas conseguiremos convencer o público. E depois, como o público é que estava a ser afectado por todos os danos colaterais, acabariam por convencer os políticos e, eventualmente, os media. Os cientistas de base foram sempre muito razoáveis, mas foi a liderança científica que fez de tudo para houvesse esses confinamentos. Eu disse-o há quatro anos e ainda penso que nunca, nunca os vamos convencer, nunca seremos capazes. Nunca irão admitir que estavam errados sobre a pandemia. Há um ditado na Ciência que diz: A Ciência prossegue um funeral de cada vez. A próxima geração na Ciência vai perceber o enorme erro que isto foi, mas penso que a liderança atual, como [Anthony] Fauci ou [Francis] Collins ou [Ralph] Baric ou vários professores universitários ou editores dos grandes jornais científicos, nunca vão admitir que erraram totalmente e que impuseram pseudociência em vez da medicina baseada na evidência.
Mas acredita que ainda é possível salvar a credibilidade e a confiança na Ciência e nos académicos depois do que aconteceu? Acha que há esperança nisso?
Espero que sim, porque acho que é muito importante. Mas o primeiro passo, antes da confiança, o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica. Acho que os cientistas de base vão conseguir dar a volta. O fundamental é que haja nova liderança. Um sinal de esperança, por exemplo, foi ontem o Dr. Martin (Marty) Makary ter sido nomeado para ser o próximo diretor da Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos. É preciso voltar à tomada de decisões baseadas na evidência. E penso que o Dr. Makary vai fazer isso. Esse é um sinal de esperança. Há outras pessoas que fazem ouvir a sua voz. Ele foi uma das pessoas que falou e há muitos outros que o fizeram. Por isso, espero que estas pessoas possam chegar a alguns dos cargos de liderança da comunidade científica.
Kulldorff, Scott Atlas (radiologista e antigo professor na Universidade de Stanford) e Jay Bhattacharya. / Foto: D.R.
Mas mesmo essas pessoas, aquelas novas nomeações que a administração Trump tem vindo a fazer, por exemplo, aqui em Portugal, na comunicação social, estão sendo difamados. Nos media ‘mainstream‘ ainda continua a impor a narrativa daqueles que foram responsáveis por políticas que levaram ao enorme excesso de mortalidade e tudo o que mencionou.
Isso é verdade. Ontem houve um artigo na NBC News, nos Estados Unidos. Estavam a criticar o Dr. Martin Makary por ter acreditado na imunidade natural, que é algo que conhecemos desde 430 a.C. Então, criticar o nomeado para a FDA por acreditar na imunidade natural é como criticar o chefe da NASA por pensar que a Terra é redonda e não plana. Penso que é inacreditável que isso ainda esteja a acontecer. Simplesmente surpreendente.
Talvez demore algum tempo também para alguns jornalistas e outros de reconhecer que estavam enganados, e talvez tenham sofrido uma lavagem cerebral com toda a programação e a repetição de disparates que vimos durante a pandemia, nomeadamente, em relação à imunidade natural.
Sabe, isso já começou a acontecer, na verdade. Tive alguma interacção com alguns jornalistas que estão agora genuinamente interessados no que estivemos a dizer nos últimos quatro anos. Eles começam a perceber que o que acreditavam não era verdade. Estão interessados em descobrir e aprender sobre a pandemia e epidemiologia e saúde pública. Penso que as coisas estão a mover-se nessa direcção, o que é esperançoso.
São óptimas notícias. Posso supor que está optimista que a administração Trump vá trazer, de algum modo, uma nova política de saúde pública, mais baseada na evidência e defendendo a Ciência e os académicos.
Estou com muita esperança na FDA. É uma excelente escolha, com o Dr. Martin Makary a ser o próximo director da FDA. Vamos ver quem é que é nomeado para o NIH. A minha esperança é que seja o Dr. Jay Bhattacharya, de Stanford, mas ainda não sabemos isso. [Entretanto, após a entrevista, Jay Bhattasharya foi nomeado para liderar o NIH].
Seria bom ver que essas áreas não estarão nas mãos nem de políticos nem de burocratas. Será bom que sejam lideradas por cientistas e especialistas nessas áreas.
Nos últimos anos, tem havido portas giratórias entre a FDA e a indústria farmacêutica. Por exemplo, o ex-diretor da FDA Scott Gottlieb entrou para o conselho de administração da Pfizer. Esse é apenas um dos muitos, muitos exemplos. Isto acontece tanto ao mais alto nível como ao nível intermédio. Pessoas que trabalham na FDA e depois vão para a indústria farmacêutica. Isso cria um problema porque se o papel da FDA é ser o ‘watchdog’ da indústria para se certificar de que os produtos têm a eficácia que afirmam ter e que não provocam reacções adversas e para remover [do mercado] qualquer medicamento ou vacina que seja perigoso. Espero que haja melhorias na FDA, agora.
Caso contrário, a FDA não é um ‘watchdog’, mas um ‘petdog’. Pensa que é necessário que haja nova legislação para acabar com estas portas giratórias?
Sim. O que for preciso para acabar com isso. Outra questão são as comissões consultivas da FDA. Muitos membros das comissões consultivas são também remunerados por farmacêuticas, como investigadores recebem bolsas de empresas da indústria farmacêutica. Não podem receber de empresas cujos produtos eles estejam a analisar. Isso é bom, mas penso que é melhor que as regas sejam mais amplas, para que os membros das comissões sejam, realmente, completamente independente das farmacêuticas.
Especialmente, quando existem grandes empresas, tanto na indústria farmacêutica como na indústria alimentar, e essas empresas poderiam estar a conceder financiamento para pesquisa em várias áreas. Penso que é difícil monitorizar tudo.
Sim, é verdade.
E, em relação, à covid-19, quais são as lições que se aprenderam para o futuro e as que talvez não tenham sido aprendidas até agora?
Bem, o quadro geral, é que temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência. E nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia. É prejudicial. E, por exemplo, na Suécia havia um debate aberto. Havia pessoas a publicar artigos nos jornais a criticar a abordagem sueca. Apesar de discordar 100%, estou realmente muito feliz que escreveram, porque fizeram um serviço ao país e à saúde pública. Isso significou que houve um debate público, e isso foi muito importante, para que as pessoas pudessem realmente ouvir esses lados da história, e decidir o que era mais razoável. Outros países fizeram as coisas de forma diferente. Por isso, estou muito grato. E estou grato aos jornais que publicaram esses artigos com opinião oposta.
Pensando numa nova pandemia ou numa crise de saúde pública, o que pode ser feito agora para gerir melhor uma nova crise no futuro? Para que não caiamos nos mesmos erros que foram cometidos na covid-19 e também para proteger todos, se possível?
Sim, vamos ter outra pandemia, porque tivemos pandemias ao longo da história. Se vai ser daqui a cinco ou 50 anos, não sei. Mas haverá outra pandemia. E a minha esperança é que aprendamos com os erros. Penso que se houver uma nova pandemia dentro da próxima década ou duas, será impossível cometer o mesmo erro que se cometeu na covid-19 porque há muitas pessoas entre o público que se iriam opor a isso. Porque no início da covid-19, as pessoas estavam confusas. A maioria das pessoas não tinham estudado epidemiologia. Era natural para a maioria das pessoas acreditar em Anthony Fauci, apesar de ele estar errado e apesar de ter posto de lado os cientistas que sabiam mais sobre saúde pública. As pessoas confiaram nele. Mas não penso que as pessoas irão fazer isso da próxima vez. Tenho esperança que faremos melhor da próxima vez.
Em relação ao seu trabalho, tem ressentimento por ter sido demitido de Harvard? Foi justo? Trabalhou duas décadas e deu tanto. Como vê Harvard neste momento?
Não acho que foi justo. Acho que erraram e estão em pior situação por causa disso. Espero que se recomponham algum dia. Não fui o único que foi demitido. Espero que façam algo para recuperarem a sua integridade e a sua posição. Mas não vejo nenhuma evidência disso neste momento. Veremos o que acontece.
Em termos da sua vida e do seu trabalho, vê que está melhor agora? Talvez tenha algum tempo para se concentrar em algum projecto que queira fazer? Como se vê nos próximos anos?
Bem, eu sou uma pessoa de sorte no sentido de que eu sempre pareço encontrar problemas científicos interessantes para trabalhar. Em termos dos colegas com os quais colaboro, tenho uma boa relação com a maioria. A maior parte deles pensa que eu estava certo sobre a pandemia. Não disseram nada porque não queriam ser atacados ou caluniados, o que eu entendo. Mas continuei a trabalhar com os meus antigos colegas e gosto disso. Estou a fazer algumas das mesmas coisas que fazia em Harvard, mas agora como consultor privado. E também tenho a oportunidade de estar a fundar uma nova revista científica sobre saúde pública, que esperamos que seja lançada nos próximos meses para combater os problemas que existem com as revistas científicas. Sabia que era algo problemático há muitas décadas, mas foi algo que veio mesmo à tona durante a pandemia. Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos.
Para que possa haver um escudo face a outros interesses, ideologias ou políticas.
Sim. Temos um processo de publicação mais aberto onde se podem publicar, onde os cientistas podem publicar coisas que eles acham que são importantes. E agora o sistema de revisão pelos pares [‘peer review’] é escondido, é secreto. Penso que deve aberto. Queremos publicar os ‘peer reviews’. Isso é uma forma de abrir o debate científico.
Isso seria muito importante. Arrepende-se de ter sido uma voz que falou sobre a pandemia e todas as políticas, a forma como as políticas erradas estavam a ser implementadas? Porque mencionou que alguns colegas não se manifestaram porque tinham medo de serem insultados e difamados.
De maneira nenhuma. Percebi logo no início que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar? Sou um epidemiologista de doenças infeciosas por isso tenho de falar sobre essas coisas. É a minha área. Se fosse um professor de química poderia ter ficado em silêncio. Mas eu não era. Por isso tinha de falar. Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos. Por isso, não me arrependo, de todo.
NOTA: Transcrição editada e adaptada para português de entrevista feita em inglês.
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Sendo um dos mais qualificados e profícuos romancistas e divulgadores de História, Sérgio Luís de Carvalho é um mestre na arte de contar estórias. Em ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’, os leitores serão transportados para um fascinante e, por vezes, tumultuoso mundo dos príncipes e princesas que marcaram o rumo do nosso país. Mas não são contos de fadas.
Longe de uma abordagem académica ou árida, Sérgio Luís de Carvalho oferece uma narrativa viva, didáctica e deliciosamente anedótica, em muitos casos, que alia rigor histórico a um estilo leve e acessível. Com uma curiosidade quase insaciável, com apartes deliciosos e a propósito, e uma escrita desenvolta e cativante desde a primeira página, este livro é um verdadeiro deleite para quem deseja conhecer os ‘bastidores’, em alguns casos escandalosos ou doentios, da outrora Monarquia portuguesa.
Percorrendo as infância e juventude dos futuros monarcas e suas famílias, o livro vai iluminando os caprichos, as arbitrariedades e as peculiaridades que moldaram não apenas os seus destinos, mas também os do reino. É um retrato humano, por vezes divertido, outras vezes chocante, daqueles que, por nascimento ou desígnio, assumiram o trono e marcaram os rumos de Portugal. As histórias destes príncipes e princesas revelam-se cheias de contradições: entre o esplendor e o grotesco, o privilégio e o sacrifício, a inteligência e a insensatez.
Sérgio Luís de Carvalho estrutura o livro de forma meticulosa, organizando os capítulos por monarca e oferecendo ao leitor a liberdade de escolher por onde começar. O índice, que apresenta os reis pelos seus cognomes — como ‘D. Pedro I, o príncipe destrambelhado’, ‘D. Sebastião, o príncipe alienado’ ou ‘D. João V, o príncipe galante’ —, já antecipa o tom despretensioso e quase irónico da narrativa.
Esta escolha editorial é, aliás, um convite à leitura não-linear, permitindo que o leitor explore as personalidades mais fascinantes ou as histórias mais curiosas de acordo com o seu interesse.
A riqueza de detalhes é notável, fruto do extenso trabalho de investigação, que se baseia tanto em crónicas antigas como em análises modernas. Sérgio Luís de Carvalho apresenta os príncipes e princesas com uma imparcialidade que não tenta desculpar os seus erros, mas também não os reduz a caricaturas simplistas. Assim, conhecemos D. Pedro I, cujas paixões e vinganças o tornaram uma figura tão fascinante quanto controversa; D. Sebastião, cuja obsessão pela glória e religiosidade beirava a alienação; D. João V, que, entre festas e conquistas amorosas, simbolizava o apogeu e os excessos do barroco português; e D. Pedro IV, cuja vida dividida entre Portugal e o Brasil o tornou uma das figuras mais complexas e enigmáticas da nossa história.
Mas não é apenas o conteúdo que cativa: o estilo de Sérgio Luís de Carvalho é uma das maiores virtudes do livro. A sua escrita combina leveza e profundidade, didactismo e humor. Mostra bem como captar a atenção do leitor – não se tivesse ele dedicado a ser professor do ensino secundário –, seja através de uma anedota curiosa, seja por meio de uma reflexão mais séria sobre o contexto histórico.
A violência, os desmandos e a opulência que marcam muitas dessas histórias não são romantizados, mas apresentados como parte integrante de uma realidade histórica muitas vezes desconcertante.
Apesar do carácter lúdico deste livro, Sérgio Luís de Carvalho também nos oferece uma reflexão implícita sobre a natureza do poder e a formação das elites. Ao explorar como as infâncias e juventudes muitas vezes arbitrárias e traumáticas moldaram os futuros monarcas, o autor lança luz sobre os mecanismos que perpetuavam (e, em alguns casos, ainda perpetuam) as desigualdades e os privilégios. Não se trata apenas de reviver episódios pitorescos ou dramáticos, mas também de compreender as forças sociais e políticas que moldaram a História de Portugal.
Para os leitores contemporâneos, ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’ é também uma oportunidade de olhar para os bastidores da monarquia com o mesmo fascínio que hoje as revistas cor-de-rosa dedicam às casas reais da Europa. No final, fica sobretudo um retrato humano, um mosaico de vidas extraordinárias e, muitas vezes, contraditórias. E Sérgio Luís de Carvalho consegue transformar o que poderia ser apenas um inventário cronológico de príncipes e princesas num relato fascinante e acessível, que diverte e ensina ao mesmo tempo. Uma leitura obrigatória para os apaixonados pela História de Portugal e para todos os que desejam descobrir os traços humanos por debaixo das coroas.
Comida de ‘plástico’ é uma expressão para ser levada à letra no que toca a alimentos que contêm aditivos sintéticos nefastos. E mais ainda nos Estados Unidos, onde a Food and Drug Administration (FDA) tem sido mais permissiva do que a congénere europeia, a European Safety Food Authority (EFSA), autorizando ainda o uso de aditivos já proibidos ou restritos nos países da União Europeia. O tema do uso excessivo de aditivos, incluindo alguns cancerígenos, na alimentação saltou para a ‘mesa’ com a campanha eleitoral às presidenciais nos Estados Unidos, pela ‘mão’ de Robert F. Kennedy Jr, que há muito defende políticas regulatórias mais fortes e mais protectoras da saúde dos norte-americanos, tanto na alimentação como na Medicina, exigindo mais estudos científicos independentes.
Pela boca morre o peixe, já diz o ditado. No caso dos alimentos processados, a doença ou a morte do ‘peixe’ vai depender se ele vive em águas europeias ou norte-americanas. É que a “Ciência” parece dizer coisas diferentes aos reguladores de em ambos os lados do Atlântico, no que toca a autorização que é dada para que determinados aditivos possam ser usados em alimentos comuns, como cereais de pequeno-almoço, doces e refrigerantes. Alguns aditivos autorizados na indústria alimentar nos Estados Unidos são proibidos na União Europeia.
Há aditivos controversos para todos os gostos: dos corantes artificiais, ao aspartame, gordura transgénica, xarope de milho rico em frutose, benzoato de sódio, nitrato de sódio e o glutamato monossódico (o sal sódico do ácido glutâmico, ou MSG).
Foto: D.R.
Este tema tem estado, de novo, no centro das atenções devido a Robert F. Kennedy Jr, um defensor da transparência regulatória nos alimentos e medicamentos, e que desistiu da candidatura na corrida à Casa Branca a favor de Donald Trump, que acabou por ser eleito. Trump retribuiu, entregando a ‘pasta’ da Saúde nas mãos do sobrinho de John F. Kennedy, antigo presidente dos Estados Unidos assassinado em 1963. Difamado pela imprensa mainstream, que o acusa de ser ‘anti-vacinas’, Kennedy defende que haja um procedimento mais rigoroso na testagem de vacinas e também é a favor da proibição nos Estados Unidos de certos aditivos alimentares, que foram banidos em outros países, nomeadamente pelos danos que podem causar em crianças, designadamente problemas de hiperactividade e défice de atenção e asma.
Nos Estados Unidos, o regulador, a Food and Drug Administration (FDA), opta por uma filosofia diferente da União Europeia (UE), onde prevalece a precaução e uma política regulatória mais restritiva, com a condução de testes, embora não sendo uma regulação perfeita, como se vê pelos controversos aditivos que ainda são permitidos no espaço europeu. Por outro lado, é sabido que na terra do tio Sam, as pressões dos lobbies de multinacionais da indústria alimentar têm mais peso, ou não fossem também financiadores de partidos e candidatos nas diversas eleições.
São diversos os aditivos suspeitos de serem nocivos para a saúde que são permitidos nos Estados Unidos mas não autorizados na Europa e outros países. É o caso da azodicarbonamida (ADA), que está ligada a problemas do foro respiratório e se suspeita que possa provocar cancro. O químico é muito usado na produção de plásticos espumados, designadamente colchões para a prática de yoga. Nos Estados Unidos, ainda é utilizado na indústria de panificação e em massas, sendo adicionado às farinhas como agente oxidante e no pão aumenta a elasticidade da massa, conferindo-lhe assim um maior rendimento.
Os cereais de pequeno-almoço Froot Loops, da Kellogs, contêm colorantes naturais na Europa e quatro colorantes artificiais nos Estados Unidos. Os cereais de cor azul não se encontram em alguns países, por não existir colorante natural para o efeito. / Foto: D.R.
Outro caso é o do óleo vegetal bromado (BVO), um emulsionante e estabilizador em refrigerantes com um sabor cítrico, que foi proibido na União Europeia por receios sobre a acumulação de bromo no corpo humano e eventuais efeitos tóxicos. Nos Estados Unidos, a FDA propôs o fim do uso do químico no país, embora ainda se encontre em alguns alimentos processados.
Na alimentação animal, na EU foi banido o uso de ractopamina, uma hormona de crescimento, devido a preocupações pelo bem-estar animal e possíveis efeitos nefastos na saúde humana. Nos Estados Unidos, o uso desta hormona de crescimento é permitido e não é exigido que seja incluída uma referência nas etiquetas dos produtos que chegam aos consumidores.
Alguns corantes artificiais usados em bebidas, doces, snacks e outros tipos de alimentos processados têm de incluir avisos nas etiquetas em países da União Europeia, nomeadamente por poderem causar défice de atenção e hiperactividade em crianças. Os corantes alimentares sintéticos são mais baratos do que os corantes naturais. Nos Estados Unidos, é comum encontrarem-se alimentos processados nas prateleiras dos supermercados, nomeadamente cereais de pequeno-almoço, refrigerantes e doces contendo corantes artificiais. O mesmo acontece em produtos vendidos em populares cadeias de ‘fast food’. Já nos países europeus e no Canadá, os mesmos produtos são produzidos com corantes naturais.
Outro exemplo, são os conservantes BHA e BHT, usados como intensificadores de sabor. São comuns em salsichas, pastilhas elásticas, batatas fritas, óleos vegetais e cosméticos. Na Europa, são autorizados em alguns casos, como nos cosméticos e elixires orais, mas há suspeitas de serem cancerígenos. Nos Estados Unidos, são autorizados e fazem parte de muitos bens alimentares processados presentes diariamente nas mesas dos norte-americanos. Estão presentes em populares cereais de pequeno-almoço, pizzas congeladas, preparados para fazer bolos e batatas fritas.
Foto: D.R.
O dióxido de titânio também se encontra proibido na Europa. Nos Estados Unidos continua a ser usado em pastilhas elásticas, doces, queijos, molhos, doces, bebidas alcoólicas e diversos alimentos processados.
Já a somatotropina bovina, uma hormona sintética para aumentar a produção de leite nas vacas, encontra-se em produtos como iogurtes, manteigas, queijos e gelados. Na Europa, não é permitida e, nos Estados Unidos, algumas grandes marcas excluíram leite proveniente de vacas tratadas com a hormona dos seus produtos.
Quanto ao uso de nitritos e nitratos, a Comissão Europeia reduziu, em 2023, os limites para uso de nitritos e nitratos como aditivos alimentares, normalmente usados na conservação de produtos cárneos curados, no âmbito do Plano Europeu de Luta contra o Cancro. Em causa está o uso do nitrito de potássio (E 249), do nitrito de sódio (E 250), do nitrato de sódio (E 251) e do nitrato de potássio (E 252). Trata-se de substâncias que são utilizadas há décadas na Europa como conservantes carne, peixe e produtos à base de queijo. Mas a presença de nitritos e nitratos nos géneros alimentícios pode dar origem à formação de nitrosaminas, algumas das quais são cancerígenas. Nos Estados Unidos, há uma maior pressão para a manutenção do uso das substâncias.
Outro exemplo, é o caso do propilparabeno, um conservante usado para controlar o crescimento de fungos, bactérias e bolores, foi banido dos produtos alimentares na União Europeia, após uma recomendação da EFSA, mas é usado no outro lado do Atlântico.
Por fim, a UE impõe restrições ou proíbe organismos geneticamente modificados (OGM) devido a preocupações ambientais e de saúde, enquanto nos EUA se autoriza o uso generalizado de OGM na agricultura.
A maior abertura dos Estados Unidos quanto ao uso de aditivos alimentares pode explicar, em parte, a epidemia de obesidade no país, que gera ‘memes’ na Internet e faz já parte da imagem que outros países têm dos norte-americanos. Afinal, a ‘terra das oportunidades’ é também um ícone da sociedade capitalista e da busca do lucro. Tornar a América saudável de novo (‘Make America Healthy Again-MAHA’), o ‘slogan’ de Robert F. Kennedy Jr., pode ser alvo de troça pela imprensa convencional e pelos adversários políticos de um dos homens-chave na nova administração Trump. Ou pode dar-se o caso de a Europa estar errada e precisa de autorizar mais aditivos suspeitos de serem cancerígenos à alimentação dos europeus.
Seja na Europa ou nos Estados, o certo é que quando o lucro, e o uso de aditivos sintéticos que são mais baratos, se sobrepõem aos interesses de saúde e bem-estar dos consumidores, não é só um problema político e de regulação. É de todos.
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Alterações Mediáticas, podcastda jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 12º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou a directora da agência Lusa a ‘aliar-se’ a Luís Paixão Martins, na rede X. Também é analisado o fenómeno estranho que tem levado a imprensa, em geral, a esconder que Luís Delgado e os outros dois gerentes da Trust in News foram condenados a pena de prisão, com pena suspensa por cinco anos.
Há mais de duas décadas que o investigador Andrew Lowenthal defende os direitos humanos e civis no espaço digital. Actualmente, dirige a liber-net, uma organização sem fins lucrativos de combate ao autoritarismo digital. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, feita por videochamada a partir de Sydney, na Austrália, o investigador e activista comentou as duas recentes iniciativas legislativas do Governo australiano que fizeram soar os alarmes dos defensores dos direitos fundamentais: uma proposta que visava o alegado combate à desinformação, que foi vista como uma ameaça à liberdade de expressão; e uma iniciativa legislativa para proibir os menores de 16 anos de aceder a redes sociais. O primeiro diploma acabou por ‘morrer na praia, depois de o Governo não ter conseguido reunir suficiente apoio para que fosse aprovado. O segundo foi aprovado, mas está a gerar polémica por haver quem defenda que o Governo deveria optar por uma abordagem mais pedagógica em vez de proibir o acesso. Lowenthal sublinhou que a iniciativa levanta ainda muitas dúvidas sobre como vai ser protegida a privacidade de todos os australianos online no processo de confirmar a idade de quem acede a redes sociais no país. Nesta entrevista, Lowenthal falou ainda sobre a rede X e os eventuais riscos da proximidade de Elon Musk à nova administração Trump e defendeu que devem existir mais redes sociais e descentralizadas, em vez das actuais plataformas controladas por “meia-dúzia da oligarcas”.
Mais do que nunca, há que estar vigilante para evitar que ideais totalitários tomem conta da Internet, designadamente através de ferramentas de controlo da informação e da eliminação da liberdade de expressão e da privacidade. Esta a é a visão de Andrew Lowenthal, que há mais de duas décadas trabalha na defesa dos direitos humanos e civis no espaço digital.
Segundo o investigador e director executivo da liber-net, uma organização sem fins lucrativos de combate ao autoritarismo digital, duas recentes iniciativas legislativas na Austrália são a prova de que não se pode baixar os braços e tem de se continuar vigilante, para impedir que a censura e a vigilância dos cidadãos passe a ser o ‘novo normal’ no mundo online.
Uma das iniciativas legislativas na Austrália, alegadamente visando o combate à desinformação, colocava em perigo a liberdade de expressão. A segunda proposta legislativa, visava impedir que menores de 16 anos pudessem usar redes sociais, o que levanta questões sobre o perigo de passar a ser obrigatório que todos, adultos incluídos, tenham de apresentar uma prova de identificação ou dados biométricos para entrar em plataformas como Facebook, Instagram ou X.
Andrew Lowenthal tem sido uma das vozes a combater o autoritarismo no mundo digital e tem participado em conferências e concedido entrevistas em vários países. / Foto: D.R.
A primeira proposta foi retirada, depois de o Governo não ter obtido apoio suficiente para que fosse aprovada. A segunda foi aprovada à pressa e sem tempo para que partidos e o público a pudessem analisar e debater convenientemente. Mas a polémica em torno deste diploma promete continuar, até porque, para ser confirmada a idade, na prática, todos os utilizadores terão de passar a apresentar alguma prova de serem maiores de 16 anos, eliminando assim um direito fundamental: o direito à privacidade.
Nesta entrevista, Lowenthal alertou que esta alteração à Lei levanta riscos sobre a segurança de protecção dos dados e abre a porta a uma potencial vigilância apertada dos cidadãos australianos no mundo online. Numa futura crise, como foi o caso da pandemia de covid-19, o Governo pode mesmo usar esse recurso para impedir cidadãos, incluindo jornalistas, de aceder a redes sociais.
Lowenthal, que colaborou nas investigações dos ‘Twitter Files‘ − que expuseram a máquina de censura que existia no antigo Twitter e que englobava a Casa Branca e diversas entidades oficiais −, defendeu que devem existir mais redes sociais e descentralizadas, deixando algumas dúvidas sobre a centralização da rede X na figura do seu proprietário, o magnata Elon Musk, que é aliado declarado do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Há receios de que uma nova lei na Austrália para impedir o acesso de menores de 16 anos às redes sociais pode vir a impor a todos os australianos, incluindo adultos, a apresentação de um documento de identificação digital ou dados biométricos, como a leitura facial, para poderem usar plataformas como o Facebook, Instagram ou X. A acontecer, eliminará a privacidade dos utilizadores e deixará nas mãos das redes sociais e do Governo muitos dados que podem ser roubados por ‘piratas’ e também o poder de vigiar os australianos, podendo, no futuro, ter a capacidade de impedirem cidadãos específicos, designadamente jornalistas e opositores políticos, de usar redes sociais. / Foto: D.R.
Na Austrália, tem havido iniciativas legislativas preocupantes, nomeadamente para eliminar a liberdade de expressão. Afinal, o que se passa na Austrália?
O Governo diria que estão a tentar eliminar a desinformação, mas a forma como funcionaria teria um impacto significativo na liberdade de expressão na Austrália. Estavam essencialmente a propor criar um sistema com dois níveis de liberdade de expressão em que, se se tratasse de um académico, um político ou um jornalista dos media ‘mainstream’, não seria abrangido por esta lei. Mas se fosse um jornalista de um meio de comunicação social independente, um comentador no Twitter ou um ‘influencer‘ no Instagram a dizer exactamente aquilo que o académico ou o político dissesse, seria considerado como estando a espalhar desinformação. Seria criado um sistema com dois níveis de direito à liberdade de expressão na Austrália. As definições que propunham eram muito vagas; apenas diziam que as informações tinham de ser razoavelmente verificáveis. Mas seria verificável à luz dos ‘standards‘ de quem? Pensando na covid-19, diriam que seria razoavelmente verificável a afirmação que a vacina impede a transmissão do vírus, por exemplo [o que se sabe que é falso]. Seria complemente selectivo.
A lei também iria impor multas enormes às plataformas que operam redes sociais, de 5% da facturação anual a nível global; não apenas a facturação registada na Austrália. Por exemplo, o Facebook poderia ser multado em 5% das sua facturação anual global por não combater suficientemente o que o Governo entendesse tratar-se de desinformação. Também iria endereçar toda a informação que fosse considerada pelo Governo como prejudicial para o ambiente ou para a economia, por exemplo. Se alguém criticasse os bancos, estaria a espalhar desinformação. Na Saúde, se alguém criticasse confinamentos ou o uso de máscaras, tudo o que o Governo considerasse ser desinformação, poderia ser abrangido.
O que foi positivo é que, em geral, as pessoas que habitualmente têm criticado este novo tipo de regime de censura têm sido classificadas como sendo de direita, apesar de muitas vezes serem de esquerda; mas assim que alguém critica estas coisas é logo acusado de ser direita. Mas, neste caso, a oposição [à proposta legislativa] por parte de progressistas foi muito significativa. Porque, em termos de estrutura de decisão política, há uma câmara inferior e uma superior, com os senadores, e partido com a maioria na câmara inferior não tem a maioria no Senado e precisa do apoio dos partidos progressistas para aprovar legislação. E todos disseram ‘não’. Disseram que iria ser muito mau para a liberdade de expressão. O que é particularmente de destacar é que, finalmente, se abriu uma brecha entre os progressistas. Há uma fatia considerável de pessoas que vêem esta ideia da desinformação e entendem como pode ser usada para censurar, e como potencialmente poderia ser usada contra todos nós.
Mas será que alguns políticos aprenderam a lição com o facto de Donald Trump ter vencido as eleições norte-americanas? Porque, um dos temas que preocupava muitos norte-americanos era a questão da liberdade de expressão. Sabemos como a Casa Branca liderada por Biden era pró-censura, designadamente na Internet. Há quem defenda que um dos motivos que levou à vitória de Trump foram receios nessa temática. Os políticos estão a aprender a lição, de que as pessoas não querem censura?
Penso que esse ambiente político já chegou à Austrália. As pessoas estão agora mais confiantes para dizerem o que pensam e não estão disponíveis para alinhar com um conjunto particular de ideias que lhes queiram estar a impor. Penso que teve definitivamente um efeito. Não se sabe ao certo em que medida, porque, ao mesmo tempo, muitos dos partidos progressistas têm muitos receios sobre a desinformação que pensam estar associada a Trump e isso pode facilmente ter o efeito contrário e pensarem: ‘temos de nos proteger de todas as mentiras que Trump vai andar a espalhar e que vão chegar aos cidadãos australianos’. Começa a haver um regresso de normalidade. As pessoas olham para a legislação e tentam vê-la sob uma luz menos emocional. O jogo parece ter mudado, o que é muito, muito encorajador.
Foto: D.R.
Mas o pior já passou ou vai haver nova tentativa para eliminar a liberdade de expressão no futuro, na Austrália?
Penso que não vão tentar voltar a tentar aprovar esta lei. Até porque haverá eleições na Austrália no próximo ano, no primeiro semestre. Algumas pessoas pensam que o que está a acontecer é que o Governo está a tentar apressar a aprovação de legislação, porque esta semana é a última em que o Parlamento está reunido [semana passada]. No início do próximo ano, vão convocar eleições. Por isso, estão a apressar tudo isto. E estão a cometer erros em resultado de estarem com muita pressa. Penso que se tentarem voltar a tentar fazer passar esta lei teria de a mudar radicalmente, porque teve a oposição de dois terços do Senado. Depois, Os Verdes votarem contra não foi bem por serem a favor da liberdade de expressão. Foi parcialmente por isso. Eles queriam que o Governo tivesse mais autoridade sobre as empresas [tecnológicas] mas estavam também incluídos os media ‘mainstream‘, que são contra o partido Os Verdes. Em alguns níveis queriam mais autoridade e em outros não. É uma posição complicada. O que podem tentar fazer, e já estão a tentar, é tentar aprovar outro tipo de leis. Uma das novas, que já mencionámos, é a que visa proibir os adolescentes de aceder a redes sociais, proibindo todos com menos de 16 anos de aceder à maioria das redes sociais. O acesso ao TikTok, Instagram, Facebook e X seria banido a todos com 15 anos e menos. Isso traz imensos problemas. Sim, as redes sociais têm efeitos negativos em adolescentes, mas em ambos os casos estão a tentar fazer algo muito autoritário, em vez de adoptar uma abordagem educativa a este problema. Está a gerar muita contestação, incluindo de progressistas, finalmente. Um dos grandes problemas é: como se verifica se alguém tem mais de 16 anos? Têm de arranjar uma forma, ainda não especificaram como, para verificar a idade de todos, para que possam usar as redes sociais. Portanto, os adultos terão de se identificar, de algum modo, para poderem usar o Facebook ou o Instagram, ou outra rede social. Potencialmente, [será usada] uma forma de identificação digital ou reconhecimento facial ou partilhando a carta de condução ou o passaporte. Com todos as questões de segurança que surgem com isso, em termos dessas empresas terem acesso a uma quantidade enorme de dados sensíveis. Há sempre o risco de roubo ou fugas. Depois, o Governo ficaria a saber tudo o que as pessoas diriam nas redes sociais; cada comentário, cada ‘like‘, cada publicação, cada pensamento. Não queremos isto.
E vimos o que aconteceu durante a covid-19, com a censura. No futuro, numa futura crise, pessoas, incluindo jornalistas, poderiam ser simplesmente banidos das redes sociais, de modo fácil.
Seria muito fácil banir pessoas das redes sociais. Mas também mataria algumas destas plataformas. Porque muitas pessoas usariam o Facebook, mas menos pessoas usariam o X ou o TikTok se tivessem de se identificar de algum modo. E se alguém quisesse criar uma rede social que exige identificação real, então também poderia ser possível criar uma rede social para as pessoas que não querem identificar-se, ou as pessoas terem uma opção. Mas isso seria excluir as pessoas que não querem disponibilizar dados reais sobre si. É mais uma forma de o Governo controlar o mundo digital.
O que passa com a Austrália? Porque, durante a pandemia de covid-19, foi um dos países mais autoritários do mundo. Vimos imagens terríveis de violação de direitos humanos e civis por parte das autoridades; violência sobre cidadãos australianos; imposição de medidas sem base na evidência científica. Porquê esta abordagem radical, agora, para acabar com direitos humanos e civis?
É uma pergunta muito interessante. Penso que a forma como as pessoas vêem a Austrália já desapareceu há muito tempo. Essa versão da Austrália morreu na década de 70 [do século passado] mas continuou a estar viva nos filmes e nos media. Mas é uma sociedade muito urbana, a maioria das pessoas trabalha no sector dos serviços. Poucas pessoas trabalham com as mãos ou no exterior. É uma sociedade altamente institucional, com as pessoas a trabalharem com computadores. Isso torna as pessoas um pouco frágeis. Todos vivemos nos subúrbios. Esta ideia anterior de uma Austrália forte e resiliente já não existe há muito tempo. Numa crise, manifesta-se de forma significativa. Depois, há confiança no Governo porque nunca tivemos uma guerra para obter a independência, nunca passámos por uma ditadura. Até à covid-19, penso que 9 em 10 cidadãos australianos podiam confiar no Governo; talvez 8 em 10. Nunca fomos realmente confrontados com este tipo de desafios. Essa confiança foi explorada durante a covid-19. Isso agora está a mudar, porque grande parte da confiança desapareceu, pelo menos junto de uma porção significativa da população. E muita da oposição que tem havido a este tipo de leis sobre a desinformação e a verificação de idades para aceder a redes sociais está muito ligada ao movimento de liberdade de decisão na Saúde, o movimento que saiu da covid-19, que não é da direita nem de esquerda, que é mais anti-autoritário. Esse movimento é que conseguiu parar esta lei sobre desinformação.
Página da liber-net fundada, uma iniciativa criada por Andrew Lowenthal. / Foto: PÁGINA UM
Esteve na Web Summit, em Lisboa, recentemente. Pode falar sobre o evento em que participou?
Tivemos um pequeno evento na Web Summit para falar sobre censura e alegações de desinformação e como podem ser usadas para censurar. Este evento resultou de conversas que tive com Paddy Cosgrove, o CEO, que está muito activo politicamente e no ano passado teve de se afastar do evento porque fez comentários não muito controversos sobre o conflito Israel-Gaza. Houve uma resposta desproporcional.
Foi imediatamente cancelado.
Foi cancelado, mas regressou e, não posso falar em seu nome, mas compreendeu os perigos da censura e do cancelamento, porque aconteceu directamente com ele. O evento, foi uma curta conversa. Estiveram presentes representantes de grandes media ‘mainstream‘ e de meios independentes que têm trabalhado sobre temas similares aos que temos estado a falar; desinformação; covid-19; os camionistas no Canadá; toda a farsa ‘Russiangate’ nos media [que envolveu acusações falsas sobre Trump]. Houve um debate aceso no final. Houve pessoas que falaram com muita paixão de ambos os lados. Houve pessoas muito críticas dos media ‘mainstream‘, que acham que os media foram longe demais e perderam o contacto com a realidade. Alguns media ‘mainstream‘ reconheceram isso, em particular um senhor que estava presente e admitiu que os media ‘mainstream‘ tinham feito um péssimo trabalho em torno do estado mental débil de Biden. Houve outras pessoas a admitir os erros dos media ‘mainstream‘. Houve uma pessoa que gere uma grande plataforma de media europeia que admitiu que, na covid-19, não tiveram uma diversidade de opiniões. Algumas pessoas reconheceram alguns dos problemas. Houve outras que acharam que não fizeram nada de errado e disseram: ‘vocês é que são o problema; deve-se sempre confiar no Governo’.
Isso vai contra o que é o Jornalismo.
O que penso é que este tipo de debates não tem sido permitido. Tem havido imensas conferências sobre desinformação, mas é com pessoas que têm todas a mesma opinião, de que há uma crise de desinformação, e admito que há problemas, mas nunca promovem uma auto-reflexão sobre se não se está a ultrapassar a fronteira e a entrar no campo da censura. Por isso, para mim, esta rejeição da proposta de lei na Austrália é tão emocionante. Porque muitas destas pessoas, não apenas pessoas da direita, mas também pessoas da esquerda, veem que há problemas com toda esta máquina de combater a desinformação e do quanto se excedeu e de como pode ser perigosa para a liberdade de expressão. Estou bastante encorajado a esse respeito.
Há problemas com desinformação, sempre houve esses problemas. Também mencionou os efeitos que as redes sociais podem ter nos adolescentes. Mas deve haver uma abordagem pela educação e não pela censura e o autoritarismo.
Sem dúvida. Muitas pessoas da esquerda estão a chegar a essa conclusão. Tenho ouvido alguns a usar o argumento de, por exemplo, no tema do LGBT, um jovem com 15 ou 16 anos, que não conhece ninguém na escola ou está isolado e não sabe como se conectar com pessoas; as redes sociais são um meio para encontrar pessoas e se conectar e avançar, sendo alguém muito diferente na sociedade. E estão a querer impedir isso, estarão a isolar estes miúdos e afastá-los uns dos outros. Há grandes problemas nas redes sociais mas colocar um cobertor e bloquear o acesso como solução… Talvez tenha razão e, dado o que a Austrália fez na covid-19, não é inteiramente surpreendente que faríamos isto neste tema. Mas criou uma polémica. Portanto, a história acabou por conduzir a duas situações. Porque, há esta tendência profundamente autoritária na Austrália, numa sociedade muito resiliente e bem gerida aos olhos de fora − excessivamente gerida, a meu ver. Por outro lado, há esta rejeição deste novo sistema de controlo social na Internet.
Lowenthal dedica-se há mais de duas décadas a defender os direitos humanos e civis no mundo digital. / Foto: D.R.
O que espera do futuro? Tem esperança de que a sociedade ocidental não vá cair na armadilha de voltar aos tempos de censura e a tempos de autoritarismo? Ou está pessimista e pensa que a batalha ainda não terminou e a liberdade a democracia estão em perigo?
Talvez ambas. Penso que a única forma de se reverter este totalitarismo e ditaduras é através de se estar vigilante constantemente. Estou muito mais optimista do que estava há umas semanas. Há mais pessoas a fazer ouvir a sua voz sobre como estão fartas disto. Mas a luta não terminou. Vai continuar indefinidamente. Mas, talvez, haja mais vitórias no curto e médio prazos, e mais desafios que surgirão depois. Mas temos estado a ter algumas vitórias, o que é muito bom.
Sobre o X, tem havido celebridades e mesmo jornais, como The Guardian, a sair da rede social. Colaborou nos ‘Twitter Files’ e sabe sobre a censura que o antigo Twitter fez e como se articulou com a Casa Branca de Biden para censurar. Como vê estas saídas do X, numa altura em que a rede social regista um recorde de utilização?
Deve haver múltiplas plataformas de redes sociais. Temos demasiada centralização nas redes sociais. Talvez, hoje, um utilizador pode concordar com Elon Musk [dono da rede X] e amanhã pode discordar. E ele tem muito poder sobre aquela plataforma, não é algo democrático. É baseada no que ele pensa hoje e pode não pensar o mesmo amanhã. Não creio que a Bluesky seja para mim, mas ainda não a vi bem. Precisamos de ter redes sociais descentralizadas e não apenas meia-dúzia de oligarcas a controlar estas plataformas, o que é, definitivamente um problema. No futuro, deveria haver uma maior diversidade de plataformas do que as que temos actualmente. Obviamente, há também problemas sobre a proximidade que Musk tem com a nova administração [Trump]. Temos de estar vigilantes, mesmo em relação a pessoas que a dada altura considerámos serem nossas aliadas. Temos de poder criticar e manter as pessoas de acordo com os princípios, fundamentalmente.
NOTA: Transcrição editada e adaptada para português de entrevista feita em inglês.
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Em exclusivo para o PÁGINA UM, a directora de operações da Bluesky − a rede social ‘sensação’ que ganhou milhões de seguidores no último mês, após a vitória de Donald Trump nas presidenciais norte-americanas, − garantiu que a chave do sucesso está em dar prioridade aos utilizadores e não aos anunciantes. Rose Wang defendeu que os utilizadores gostam de ter ferramentas para poderem decidir que conteúdos veem. A jovem executiva de 33 anos explicou como uma equipa de apenas 20 pessoas está a gerir o crescimento da Bluesky que, dos 13 milhões de utilizadores que tinha no final de Outubro, passou a ter agora 23 milhões. Também falou sobre o conceito descentralizado, “aberto” e colaborativo desta rede social e defendeu a política de moderação de conteúdos da sua rede social, que funciona “por camadas”, com intervenção dos utilizadores. A privacidade dos dados também foi um dos temas abordados. Sobre o ‘concorrente’ mais directo, disse que “o X se tornou num grande megafone para um partido”.
É a ‘app’ sensação do momento entre as plataformas que operam redes sociais. Em apenas um mês, a Bluesky saltou dos 13 milhões de utilizadores para os 23 milhões. Parte do crescimento deve-se a migração de utilizadores que deixaram a rede X (ex-Twitter), de Elon Musk, descontentes pelo facto de o magnata ter ajudado o antigo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a regressar à Casa Branca, nas recentes eleições presidenciais que levaram à derrota da candidata democrata, Kamala Harris.
Rose Wang, 33 anos, é Chief Operating Officer (COO) da Bluesky, que nasceu como um projecto interno do Twitter. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, feita por videochamada, Rose Wang falou sobre como uma equipa de apenas 20 pessoas está a gerir uma plataforma de milhões de utilizadores. Também defendeu a política de moderação de conteúdos da Bluesky, que conta com diferentes “camadas”, em que utilizadores dispõem também de ferramentas de ‘moderação’.
A Bluesky é uma rede social descentralizada que foi pensada por Jack Dorsey, co-fundador do Twitter, com o objectivo de criar uma plataforma sem um controlo central. O projecto acabou por tornar-se autónomo e desvincular-se do Twitter, já na ‘era’ Musk. Mas Dorsey decidiu sair da Bluesky, em Maio deste ano, desencantado com o caminho que a rede social estava a seguir e acusou a Bluesky de estar a cometer os mesmos erros que o Twitter cometeu.
A Bluesky, que funcionava apenas por convite, começou a estar aberta a todos os utilizadores a partir de Fevereiro deste ano. Não vende os dados dos utilizadores a anunciantes e, no mês passado, anunciou que conseguiu um financiamento de 15 milhões de dólares (14.2 milhões de euros), através de uma operação financeira liderada por uma empresa de ‘venture capital’ ligada ao sector das criptomoedas.
Rose Wang, Chief Operating Officer (COO) da Bluesky. / Foto: D.R./Bluesky
Qual é o conceito da Bluesky? Qual é a filosofia da rede social?
A Bluesky é fundamentalmente diferente das outras plataformas de redes sociais porque somos uma rede social aberta, que coloca os utilizadores em primeiro lugar e dá às pessoas a possibilidade de escolha. O que é que isso significa exactamente? Estamos habituados a estar presos num algoritmo controlado por um pequeno grupo de pessoas. Não é o caso da Bluesky. Os utilizadores construíram cerca de 50 mil ‘feeds’, nomeadamente de gatos, mais de 200 ‘feeds’ sobre Taylor Swift e muitos outros que estão organizados cronologicamente ou com base naquilo que os seguidores estão a colocar ‘gostos’ (‘likes’). As possibilidades são infinitas. E quando se mistura com este feed, encontra-se um cantinho mais aconchegante para estar com pessoas com os mesmos interesses porque não existe um algoritmo único denominador que ou promove as publicações mais polarizadoras ou as publicações com mais ‘posts’ (‘threads’). Consegue-se interagir com pessoas reais e divertir-se e ter conversas, de novo.
Pensa que a Bluesky é a resposta que a Internet estava à procura, em termos de uma rede social mais descentralizada, porque os algoritmos são um problema, tal como a publicidade e outros temas.
Penso que a Bluesky está a cumprir uma promessa do que uma rede social deveria ter sido desde o início. Se pensarmos no e-mail ou nas operadoras de comunicações móveis. Se estou no Gmail, consigo falar consigo no Yahoo!. Isso não acontece nas redes sociais. Se estou no Facebook, não consigo falar consigo no LinkedIn. É um jardim fechado entre paredes que é dono da sua identidade, tenta mantê-la na sua plataforma, não a deixa sair, porque despromovem ‘links’; as pessoas estão cansadas de um espaço [redes sociais] onde as suas prioridades não estão em primeiro lugar, onde as prioridades dos anunciantes estão primeiro. Porque são eles que estão a pagar pelo serviço. Portanto, é por isso que chegámos a um mundo em que existe tanta toxicidade, tanto discurso de ódio e tanta desinformação. Porque as empresas não são incentivadas para tornar a experiência melhor para o utilizador final. Apenas são incentivadas a tornar a experiência melhor para os anunciantes. Para a Bluesky, a nossa missão é dar prioridade ao utilizador, como nosso principal cidadão. Aquilo que procuramos é: está a divertir-se? Está a fazer amigos? Está mesmo a publicar posts? O que está a acontecer na Bluesky é fundamentalmente diferente do que o que está a acontecer no Twitter, ou X. Por exemplo, no X, 1% dos seus utilizadores publicam posts. Não são muitas as pessoas que estão a interagir com o resto da rede social. Na Bluesky, cerca de 30 das pessoas fazem publicações. Na última semana tivemos 1,5 milhões de publicações de pessoas por hora. Foi tão emocionante assistir a isso porque: ‘olha, esta é uma rede social onde podes tirar o filtro, em vez de seres uma versão menos autêntica de ti’. Não é preciso fazer isso na Bluesky. Pode-se auto-expressar e expressar partes de si, em comunidades mais pequenas e ‘feeds’ diferentes, onde não ser julgado, poderá fazer amigos e criar ligações de novo. Penso que é por isso que as pessoas estão a gostar da Bluesky.
Falou sobre desinformação. Qual é a vossa política, em termos de moderação de conteúdos? Há receios sobre se a Bluesky vai ser uma rede social que vai aplicar uma forte censura como a que assistimos, por exemplo, no Facebook e no antigo Twitter, onde vimos cientistas e investigadores proeminentes e até jornalistas a serem censurados. O que podemos esperar da Bluesky?
Moderação é governação. Se pensarmos nas redes sociais, a forma como a moderação funciona, o que vemos é um pequeno grupo de pessoas a tomar decisões sobre que conteúdos são autorizados ou não na plataforma, quem é permitido e não permitido na plataforma. Isso é ter muito poder. Nós somos mais inspirados na abordagem de uma governação baseada numa república democrática, onde existem camadas de governação. Quando alguém entra na ‘app‘ Bluesky, entra na nossa sociedade. Há outras sociedades; há o ‘Greysky’; pode construir a ‘Greensky’; ou a ‘Yellowsky’. Pode ter as próprias regras e uma Constituição própria. Quando entra na nossa Bluesky, temos os nossos termos de serviço e as regras de comunidade, que são como que a Constituição deste espaço, que o nosso director de Segurança e Confiança, Aaron Rodericks -, ex-responsável da equipa de ‘Elections Integrity’ no Twitter – gere implementa. A Constituição apenas protege contra desinformação, discurso de ódio, assuntos graves. Mas há muitos assuntos que não atingem esse nível de gravidade, como deepfakes, má-educação, informação especulativa que não é desinformação. Há uma zona cinzenta e é aí que demos ferramentas aos utilizadores para gerirem os seus espaços. Não é muito diferente do que se passa no Reddit, onde moderadores de comunidades também gerem sub-comunidades, mas apenas têm soluções manuais. O que fizemos foi melhorar essa experiência e dar ferramentas digitais aos utilizadores. Pode retirar todos os ‘spoilers’ de filmes na rede. E pode esconder todos os ‘spoilers’ de filmes. Ou política: algumas pessoas querem ver publicações de política; em alguns dias quer ver publicações de política e em outros não quer ver; há um filtro para isso que um utilizador criou. É isso que é bom na Bluesky: não tem de esperar por uma autoridade central, ou um centro de gestão, como nós, que vá fazer essas mudanças que a sua comunidade precisa. E é difícil porque somos uma equipa de 20 pessoas, provavelmente não conseguimos chegar a todos os assuntos. Se tem essas soluções, o utilizador pode decidir o que a sua comunidade precisa e outros utilizadores vão olhar para o seu feed e escolher subscrever a sua etiqueta de moderação. Essa é a promessa de uma república democrática.
Foto: D.R.
Quantos utilizadores tem a Bluesky hoje? E com uma equipa de 20 pessoas; como é que estão a gerir toda esta atenção?
Temos cerca de 23 milhões de utilizadores na Bluesky, o que é muito emocionante. Temos apenas 20 membros na equipa. Mas isto não é novo. Somos muito inspirados em equipas como as do Instagram e WhatsApp, antes de serem adquiridas. Eram equipas pequenas de 18 a 23 pessoas a servir centenas de milhões de utilizadores. Há um precedente. E há um benefício em ter uma pequena e forte equipa. Primeiro, temos muita experiência. Mencionei Aaron Rodericks. É importante que não se tenha pessoas que nunca trabalharam em empresas de redes sociais. E em equipas pequenas é mais fácil tomar decisões. Por isso, conseguimos agir tão rápido, como equipa. Temos uma coordenação apertada e caminhamos para o mesmo objectivo. É algo mais difícil de se fazer quando se tem uma grande equipa.
Mas precisa de mais servidores e há outro tema: tem muito mais conteúdo para moderar. É um crescimento enorme em tão pouco tempo.
Para nós, ao mesmo tempo, não é novo. No mundo ocidental, a app Bluesky entrou nos tops da App Store e está nas notícias. Mas vimos a Bluesky a crescer em outras partes do mundo. Quando tornámos a app pública (antes era por convite), em fevereiro deste ano, tivemos mais de um milhão de utilizadores japoneses. Quando o X foi banido no Brasil, este ano, tivemos mais de quatro milhões de brasileiros a vir para a Bluesky em poucas semanas. A equipa tem experiência com fases de grande crescimento. É por isso que a rede não registou períodos significativos de estar em baixo. Por isso, as pessoas continuam a divertir-se sem se sentirem inseguras, ao contrário de outras plataformas. A nossa equipa tem experiência e está pronta para mais.
E na Europa. Suponho que tenham também muitos utilizadores europeus e portugueses.
Temos muitos utilizadores europeus e portugueses, o que significa que tenho de ir a Portugal.
Definitivamente.
É emocionante para nós. Vemo-nos como uma plataforma global. Se vir a nossa equipa, vem de todo o mundo e é muito diversa, em termos de género e ‘raça’. A equipa reflecte a base de utilizadores que queremos ter na Bluesky, desde que tenha um diálogo gentil e saudável. É difícil gerir. A liberdade de expressão no Reino Unido é diferente do que é nos Estados Unidos. Os valores em diferentes países da União Europeia são ligeiramente diferentes. São este tipo de nuances que nos fazem quer dar ferramentas aos utilizadores para criarem o seu novo feed para servir a comunidade. Isto está a ressoar muito com os europeus, não há um controlo centralizado que garante que os anunciantes estão a ter um lucro maior.
E em relação aos regulamentos na União Europeia? Se continuam a crescer a esta ritmo, precisam ajustar-se a regras da União Europeia. Podem ajustar-se ou ainda têm tempo para se ajustar?
Vamos cumprir com as regras europeias. Houve uma notícia sobre haver uma regulação europeia que nós não cumpríamos, mas se ler a notícia, nenhum regulador tentou entrar em contacto com a Bluesky, só falaram com a imprensa, o que está bem. Se tivessem falado connosco, teríamos imediatamente feito essa mudança. Temos a total intenção de cumprir com as regras.
E quais são os vossos planos? Quais são as novas funcionalidades que querem disponibilizar?
Sem dúvida. Olhamos sempre para o que as pessoas realmente precisam e o que está a acontecer na app. Penso que o motivo por que as pessoas estão a vir para a Bluesky é que não há outro lugar onde ir para ver notícias globais e de última hora de vários lados. O X tornou-se num grande megafone para um partido. O Threads despromove ligações da Internet e conteúdo político. A Bluesky está a fazer oposto: ‘venham, partilhem os vossos links aqui’. Mesmo a forma como o nome de utilizador funciona; pode-se usar um website como nome de utilizador porque é dono dessa identidade. Queremos mais notícias na Bluesky e vamos criar mais funcionalidades para que os media possam publicar. Parte disto é compreender o que está a acontecer. O Guardian anunciou hoje que o tráfego da Bluesky para seu jornal é duas vezes aquilo que vem do Threads. Isto na primeira semana na plataforma, com 300 mil seguidores. O tráfego nas notícias do Guardian é mais alto do que em qualquer semana de 202 no Twitter em 2024, onde tinha 10,8 milhões de utilizadores. Em geral, há muito mais interacção na Bluesky porque não se está preso a um algoritmo.
Então é uma boa plataforma para quem tem publicações?
Sem dúvida.
Como opera a Bluesky em termos de consentimento dos utilizadores sobre a utilização dos seus conteúdos para treinar inteligência artificial (IA)?
A Bluesky teve de escolher entre ter os dados públicos ou privados. A maioria das redes sociais escolheu dados privados, o que significa que são donos dos dados, estão a treinar os seus modelos de inteligência artificial com os dados dos utilizadores e estão a vender os dados privados a anunciantes. Queríamos sair desse mundo. Portanto fizemos uma plataforma aberta como o Reddit. É aberta como a Internet. Não somos donos dos seus dados, é o utilizador. E o utilizador é dono da sua identidade. Aquilo que estamos a tentar fazer é que seja o utilizador a expressar o seu consentimento sobre se as empresas de IA podem usar ou não os seus dados. Não podemos obrigar as empresas de IA a seguir o consentimento que você expressou, mas podemos dar-lhe, pelo menos, as ferramentas para poder expressar o seu consentimento. E esse é nosso primeiro passo nesse sentido.
Como definiria, em resumo, a Bluesky?
A Bluesky põe os utilizadores em primeiro lugar, e isso significa que lhes estamos a dar escolha; podem escolher ‘feeds’ diferentes e podem conhecer pessoas reais e divertir-se, novamente, em comunidades.
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O choque que muitos sofreram com o regresso do antigo presidente dos Estados Unidos Donald Trump à Casa Branca não parece ter chegado aos mercados de capitais. Pelo contrário. Os dados sugerem que investidores e casas de investimento já estavam a prever um resultado favorável para o candidato republicano. A vitória do Partido Republicano acabou por ser esmagadora em várias frentes, do Senado à Câmara dos Representantes, reforçando os poderes de Trump, o que ajudará o novo presidente dos Estados Unidos a baixar os impostos a empresas, como pretende, e a impor taxas nas importações. Por outro lado, o Mundo também não parece ter mergulhado no apocalipse, o que está a desapontar grande parte da comunicação social e comentadores mediáticos que adoptaram uma posição activista em prol de Kamala Harris e do Partido Democrata durante a campanha. A ‘ressaca’ e espanto nos media tradicionais contrasta com a animação e confirmação das previsões nos mercados de capitais.
Não chegou o apocalipse nem acabou o mundo após a eleição de Donald Trump para a Casa Branca. Para grande desilusão de muitos comentadores influencers, e a generalidade dos jornalistas dos media tradicionais, o regresso do antigo presidente dos Estados Unidos republicano à Casa Branca está a ser motivo de celebração para muitos, nomeadamente no sector empresarial e económico e nos mercados de capitais.
Ao contrário do que sucede cada vez mais nos media, em que jornais e jornalistas adoptam uma posição de activistas, neste caso de apoio a Kamala Harris e ao Partido Democrata, nos mercados de capitais os factos é que contam. Analistas financeiros destacam a “vitória esmagadora” dos republicanos que deixa a porta aberta para a prometida descida de impostos para empresas nos Estados Unidos. Os mercados também antecipam a perspectiva de se estar mais perto do fim de alguns conflitos armados, além de se preverem melhores expectativas para a economia. Tudo isto levou os índices norte-americanos para novos máximos históricos e gerou valorizações em diversos sectores de actividade e classes de activos.
Até em Lisboa houve quem celebrasse a vitória do candidato republicano e antigo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na corrida à Casa Branca. (Foto: PÁGINA UM)
De resto, os dados mostram que nos mercados de capitais já se contava com a vitória do candidato do Partido Republicano nestas eleições para a presidência dos Estados Unidos. “Havia uma cegueira, um certo negacionismo nos media tradicionais, de que Trump iria ganhar, mas os mercados já estavam a descontar que o cenário central seria o de uma vitória dos republicanos”, disse Filipe Garcia, economista da IMF-Informação de Mercados Financeiros. “Os mercados só não previam que a vitória dos republicanos fosse tão vasta, por isso é que ainda reagiram”, adiantou em declarações em PÁGINA UM.
De facto, os mercados de capitais reflectem as perspectivas para a economia e para os lucros de diversos sectores e evolução dos preços de matérias-primas. Com a confirmação da eleição de Trump e a esmagadora vitória republicana em várias frentes, os índices norte-americanos dispararam para novos máximos, o dólar valorizou, as criptomoedas dispararam.
A 6 de Novembro, um dia a seguir às eleições, era claro que a vitória de Trump não era uma surpresa para muitos investidores e analistas. “Com todos os sinais a apontarem para uma vitória de Donald Trump, esperamos que muitas das suas políticas populistas tenham repercussões, embora os mercados tenham sido largamente avaliados a contar com este resultado”, escreveram responsáveis da Allianz Global Investors numa análise publicada a seguir às eleições.
Para Filipe Garcia, Trump ganhou sobretudo devido “à falta de propostas” do Partido Democrata. “O outro lado não tinha nada para oferecer”, sublinhou.
O regresso do republicano Donald Trump à Casa Branca já era largamente antecipado pelos mercados financeiros que esperam um acalmar de alguns conflitos e tensões geo-políticas, nomeadamente na Ucrânia, e um cenário mais positivo para a economia norte-americana e as empresas dos Estados Unidos.
E o que dizem os mercados de capitais? Esperam que os republicanos implementem medidas que irão beneficiar as empresas norte-americanas e a economia nos Estados Unidos. Prevêem que Trump vai levar a que acalmem ou se resolvam guerras e conflitos. Segundo Filipe Garcia, “os mercados estão a descontar um apaziguar das coisas”, nomeadamente na Ucrânia. Mas lembrou que, para já, a administração Biden vai continuar a armar e a financiar Zelensky enquanto Putin, em troca, não quererá dar sinais de fraqueza, pelo que a acalmia naquele conflito pode não chegar já. “No anterior mandato, Trump não iniciou guerras, mas não quer dizer que resolveu os problemas, apenas os meteu debaixo do tapete”, lembrou Filipe Garcia.
Em termos de ‘vencedores’ deste resultado nas eleições nos Estados Unidos, no mercado accionista contam-se bancos, tecnológicas, e, claro, a Tesla de Elon Musk, um aliado do novo presidente. Entre os perdedores, estão as grandes farmacêuticas, a antecipar que os dias de políticas de saúde pública vergadas à influência e poder das ‘big-pharma‘ vão chegar ao fim, pelo menos nos Estados Unidos. Também o ouro desvalorizou para o mínimo em dois meses, com os investidores mais confiantes a apostarem no mercado accionista. O preço do ouro fechou nos 2749,7 dólares a onça, no dia 5 de Novembro e no dia 13 fechou a cotar nos 2586,5 dólares, uma queda de 6%.
Comecemos então por olhar para os vencedores destas eleições nos Estados Unidos.
Os principais índices accionistas norte-americanos dispararam para novos máximos de sempre com a eleição de Trump, a antecipar uma redução da carga fiscal sobre as empresas e uma maior pujança económica. Também esperam que a “vitória esmagadora” dos republicanos permita ao novo presidente dos Estados Unidos implementar políticas sem o boicote ou travões do Partido Democrata.
Os analistas da Allianz Global Investors destacaram, numa análise após as eleições que “o foco de Donald Trump na redução dos impostos sobre as empresas e numa maior desregulação deverá favorecer as empresas dos EUA (Estados Unidos), especialmente os pequenos negócios com avaliações atrativas no mercado acionista”.
Segundo Michael Heydt, analista da divisão de ‘ratings’ de dívida soberana da Morninstar DBRS, “a forte performance eleitoral dos republicanos – vencendo a presidência, o Senado e, potencialmente, a Câmara dos Representantes – coloca-os numa posição de mudar de várias formas importantes a política económica dos Estados Unidos”.
O dólar valorizou, designadamente face à moeda única europeia enquanto o petróleo reflecte a previsão de um aumento da oferta e de vir a haver menos entraves regulatórios à exploração nos Estados Unidos, que são já o maior produtor de mundial, liderando na produção de barris de ‘ouro negro’ por dia.
Para os especialistas da Allianz Global Investors, “a posição dura de Trump numa série de questões que vão desde o comércio à imigração poderá impulsionar o dólar americano e o ouro”. Já o impacto nos mercados obrigacionistas “é mais difícil de prever”.
No caso do preço do petróleo, fechou no dia 5 de Novembro nos 71,99 dólares o barril de crude e no dia 13 de Novembro valia 67,93 dólares o barril no fecho do mercado. Durante a campanha eleitoral, Trump apresentou uma política energética que promete focar-se na produção de combustível e energia dos Estados Unidos. Esta estratégia contraria as políticas da Administração Biden, mais voltadas para seguir a estratégia focada nos negócios e indústrias que beneficiam do tema em torno do combate às alterações climáticas. “Penso que será um governo positivo para as empresas de combustíveis fósseis, com menos regulamentação a restringir a produção”, disse Ronald Temple, responsável pela estratégia de mercado da Lazard, citado pela Reuters.
Quanto ao euro, cotava a 1,09 dólares no dia das eleições e no dia 13 de Novembro valia 1,07 dólares.
Acções de bancos valorizaram com a vitória do candidato republicano, com casos como a acção do Goldman Sachs a disparar com a confirmação da eleição de Trump. Também as ações dos norte-americanos JPMorgan Chase e Bank of America dispararam.
Os investidores contam agora com menos travões regulatórios e, sobretudo, um ambiente mais propício ao investimento e aos negócios. “Há uma expectativa de que o cenário regulatório diminua na Administração Trump”, o que ajuda a impulsionar a cotação das acções do sector financeiro, disse David Ellison, gestor de activos da Hennessy Funds, que detém várias acções de bancos, citado pela Reuters.
No caso das Obrigações do Tesouro dos Estados Unidos a 10 anos já se antecipava que desvalorizassem. Trump prometeu implementar taxas sobre as importações estrangeiras, com o foco em produtos provenientes da China. Analistas esperam que a medida leve a aumentos de preços, o que, a acontecer, também levaria a um aumento da inflação.
Ao contrário do esperado, as acções da Trump Media registaram uma queda de 15%, pois no dia 5 de Novembro cotavam a 33,94 dólares por acção e no dia 13 de Novembro a 28,93 dólares.
Mas o destaque tem sido a Tesla, fabricante de veículos eléctricos de Elon Musk, que se tornou um grande aliado do agora presidente dos Estados Unidos. Musk vai mesmo ter uma tarefa de relevo na nova Administração Trump, tenso sido incumbido de ‘cortar’ a gordura e melhorar a eficiência ao nível federal.
Pode dizer-se hoje que as previsões ‘negras’ que tantas vezes os media tradicionais vaticinaram para a as acções da Tesla foram definitivamente enterradas, fazendo agora essas previsões apenas parte do cemitério de expectativas da imprensa mainstream para os títulos da empresa de Musk.
As acções da Tesla valiam 251 dólares no dias das eleições e chegaram a fechar nos 350 dólares no dia 11 de Novembro. Valorizaram quase 50% no último mês. Nos últimos cinco anos, subiram mais de 1260%.
Tal como a generalidade das empresas norte-americanas, as acções das ‘big-tech’ também beneficiaram com a vitória de Trump. “Até certo ponto, as tecnológicas podem beneficiar da sua lealdade a Trump”, salientaram os analistas da Allianz numa análise.
Por outro lado, espera-se menos pressão regulatória em geral, o que pode ajudar também as tecnológicas. Por outro, a intenção de aplicar taxas a importações, nomeadamente da China, deverá ajudar algumas empresas norte-americanas deste sector.
Mas há casos e casos. O historial do relacionamento de Trump com empresas que detêm plataformas e redes sociais, como a Meta, dona do Facebook e Instagram, e a Alphabet, dona do Google e do YouTube, tem sido acidentada, para dizer o mínimo. O novo Presidente dos Estados Unidos viu as suas contas serem suspensas em diversas plataformas e acusou várias empresas de censurarem conteúdos e favorecerem o Partido Democrata.
Um dos grandes vencedores das eleições norte-americanas foi o mercado das criptomoedas, com destaque para o ‘ouro digital, a Bitcoin. No dia 6 de Novembro, a seguir às eleições, a Bitcoin disparou para um valor acima dos 75.600 dólares e ontem já estava nos nos 89.747 dólares.
Mas, em geral, as moedas e activos virtuais dispararam após a confirmação da vitória de Trump, que é mais favorável a um ambiente pró-criptomoedas. A promessa de Trump de fazer dos Estados Unidos a capital do mundo das criptomoedas foi talvez o argumento mais forte por detrás desta euforia.
Também as acções de empresas ligadas ao sector dos criptoactivos dispararam, como foi o caso dos títulos da Coinbase e da MicroStrategy.
As acções das grandes farmacêuticas, sobretudo das que tiveram lucros pornográficos com a pandemia de covid-19, como a Pfizer, começaram há semanas a antecipar uma vitória dos republicanos. Com a confirmação da eleição de Trump e a vitória alargada do Partido Republicano em várias frentes, a desvalorização ainda se acentuou mais. Isto porque, com os republicanos no poder, arrefecem as perspectivas de as farmacêuticas poderem ter cortes nas receitas provenientes da subsidiação de de medicamentos e tratamentos por parte dos cofres federais. Trump também defende preços mais baixos dos medicamentos.
Por outro lado, a política de saúde pública dos republicanos deverá também sofrer alterações, com menor tolerância para o lobby das ‘big-pharma‘ junto de decisores públicos e a promessa de acabar com a corrupção e conflitos de interesses no sector regulatório e de saúde pública nos Estados Unidos.
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