Nos Açores, a região com a maior taxa de pobreza do país, há um município que acaba de fazer um ajuste directo recorde. Tem apenas 3.500 habitantes, mas isso não impediu o a autarquia açoriana de Calheta, São Jorge, de gastar “à grande e à francesa”. No passado dia 4 de Julho, a autarquia adjudicou o seu maior contrato por ajuste directo de sempre. E não, não foi para tapar buracos numa estrada nem para mudar o telhado numa escola nem para apoio social. Calheta decidiu fazer o ajuste directo milionário para organizar um festival de música.
A despesa recorde, efectuada em ano de eleições autárquicas, supera os 343 mil euros e destina-se a contratar músicos e serviços de montagem e desmontagem de palco no âmbito de um festival que se realiza entre o dia de hoje, 10 de Julho, e o dia 14 deste mês.
O irlandês Gavin James é a principal estrela do Festival de Julho 2025, na Calheta, Açores. / Foto: D.R.
Segundo o contrato, adjudicado sem concurso à empresa Excellent Vanguard, entre os artistas que vão actuar neste festival contam-se Gavin James, David Fonseca, The Gift, À variações, Némanus, Wet Bed Gang, Karetus, Tropa do Lima e os DJ’s John c e Oram. O preço final inclui a montagem e desmontagem do palco, som e luz..
Assim, David Fonseca e À variações actuam hoje, 10 de Julho e os Némanus actuam amanhã. Já os Wet Bed Gang e os Karetus actuam no dia 12 enquanto a banda The Gift sobe ao palco no dia 13. Gavin James encerra o evento com um concerto no dia 14. Quanto aos dois DJ’s contratados, actuam no dia 12. Todos os concertos têm uma duração aproximada de duas horas.
Para o município açoriano, trata-se do quinto maior contrato de sempre registado pela autarquia na plataforma de contratos públicos, o Portal Base. Só é superado por quatro despesas referentes a empreitadas de reabilitação de infrastruturas.
David Fonseca sobe ao palco hoje na Calheta. / Foto: D.R.
Em termos de despesa, este ajuste directo ‘comeu’ 3,6% do orçamento anual global da autarquia, da ordem dos 9,5 milhões de euros. Comparando com o caso do orçamento de Lisboa, é como se a capital decidisse gastar 49 milhões de euros com um só evento.
Tendo em conta o número de habitantes, este festival ‘grátis’ na Calheta corresponde a 98 euros por residente naquele município açoriano que engloba cinco freguesias.
Para a empresa que ganhou este contrato sem concurso, trata-se da maior facturação de sempre com uma entidade pública. Dos cinco contratos que tem no Portal Base, o segundo maior contrato que obteve com o sector público foi no ano passado, também o município de Calheta, para organizar o Festival de Julho 2024.
The Gift. / Foto: D.R.
Mas o contrato obtido no ano passado com aquela autarquia foi de ‘apenas’ 135.736 euros, ou seja, um valor que corresponde a 40% do montante que a empresa conseguiu facturar com o contrato feito agora para o ‘Festival de Julho 2025’.
O contrato assinado em 4 de Julho do ano passado aparece em branco no documento que é disponibilizado no Portal Base, estando apenas registados os dados com um resumo do procedimento.
A empresa Excellent Vanguard foi criada em Setembro de 2017 e é detida por um casal que reside em Angra do Heroísmo. A maior quota está nas mãos de Elisa Margarida Oliveira Terroso e uma quota menor pertence ao marido, Rui Duarte Alves Álamo.
A Excellent Vanguard anunciou que fez o ‘bis’ e ganhou a organização do ‘Festival de Julho 2025’. / Foto: Captura de imagem do Instagram
Rui Álamo conseguiu, individualmente, um outro ajuste directo no ano passado, no valor de 60.614 euros. Tratou-se de um contrato adjudicado pelo município de Angra do Heroísmo relativo à aquisição de “serviços de manutenção de pavimentos através do corte de infestante no centro urbano da cidade de Angra do Heroísmo”.
De resto, não se encontra site da empresa na Internet, mas nas sua página na rede social Instagram, a Excellent Vanguard apresenta-se como a organizadora de outros eventos nos Açores, designadamente o Graciosa Sound Fest e o Festas na Praia, na Terceira, e a ‘Festa do imigrante’, nas Flores.
Para os residentes nos Açores, música não faltará este Verão. No caso da Calheta, haverá música e festa a ‘bombar’ nos próximos dias.
O cais da Calheta, São Jorge, Açores. / Foto: D.R.
Segundo o relatório ‘Balanço Social 2024‘, uma em cada 10 famílias na Região Autónoma dos Açores não consegue fazer uma refeição proteica de dois em dois dias, sendo que “a taxa de pobreza está quase 8 pontos percentuais acima da média nacional nos Açores, a região com maior taxa de pobreza em Portugal”.
De resto, segundo o mesmo relatório, a região apresenta o valor mais alto de privação em diversos indicadores de pobreza, a nível nacional. Os Açores registaram, em 2023, o mais alto coeficiente de desigualdade — GINI — (36,0)em Portugal. Em 2024, a região apresentava a maior taxa de risco de pobreza a nível nacional, chegando aos 24,2%. No relatório, os Açores surgem ainda como a região do país com maior nível de desigualdade.
Mas, apesar destes indicadores, música não faltará. Pelo menos na Calheta.
Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.
No 22º episódio, analisa-se o caso do jornalismo abutre que se está a aproveitar das trágicas mortes de Diogo Jota e André Silva. Também se analisa o sensacionalismo atroz que ‘pintou’ de vermelho e negro o mapa de Portugal nas previsões meteorológicas.
Ainda se analisam dois fenómenos estranhos que afectaram a BBC e um estudo (mais um) divulgado pela Lusa, desta vez da autoria de uma investigadora do ISCTE.
Cada vez mais as organizações apostam em acções de motivação dos seus líderes e funcionários. Na Câmara Municipal de Oeiras essa aposta é em grande, pelo menos no que toca a quadros dirigentes. É que o município contratou uma empresa unipessoal desconhecida no meio para efectuar um retiro de ‘team building‘ para 25 líderes na autarquia.
Esta acção motivacional custou aos contribuintes quase 100 mil euros. Mais precisamente, o município pagou 89.175 euros para “motivar” 25 dos seus quadros dirigentes.
Foto: D.R.
A empresa escolhida para levar a cabo esta acção para animar e fortalecer o espírito de equipa dos “25 líderes” do munícipio foi a Atmosférica Unipessoal, uma empresa detida por Maria Ermelinda Varela Carvalho. A empresa foi criada em 28 de Março do ano passado, não tem ainda contas apresentadas nem curriculum conhecido, designadamente no campo de acções de ‘team building‘. O PÁGINA UM pesquisou e não conseguiu encontrar um site da empresa na Internet ou sequer um contacto.
A sociedade foi selecionada através de um processo de consulta prévia, mas o registo do procedimento que consta no Portal Base é omisso sobre se mais alguma empresa foi consultada pelo município no âmbito desta contratação.
Uma pesquisa pelo nome da proprietária da Atmosférica Unipessoal também não detecta nenhum curriculum ou experiência profissional nesta ou outra área.
O presidente da Câmara Municipal de Oeiras numa inauguração. / Foto: D.R. | CMO
O que se sabe é que foi esta empresa a ser contratada no dia 17 de Junho para “a prestação de serviços de Teambuilding – Retiro para 25 Líderes”. O valor do contrato é de 89.175 euros, com IVA incluído.
O contrato é omisso quanto aos contornos desta acção de ‘team building‘, designadamente se o preço inclui estadia em hotel ou transportes para levar os 25 líderes para algum local específico.
O que é certo é que esta acção motivacional vai ficar em 3.567 euros por cada um dos participantes que vão beneficiar da experiência. Como termo de comparação, se o município de Oeiras decidisse antes enviar aqueles “25 líderes” numa viagem de 10 dias às Maldivas, com voo, hotel e refeições incluídas, iria gastar praticamente o mesmo valor.
Foto: D.R.
Apesar de a proprietária da empresa Atmosférica não apresentar publicamente curriculum na área de ‘team building‘, o seu nome surge ligado a outro sector. É que já foi dona de uma empresa de construção, a DCHJ.
Actualmente, esta empresa é detida pela World Templet – Gestão e Investimentos, que teve como sócia, até 2023, Maria Ermelinda Varela de Carvalho. A World Templet é agora detida por um seu familiar, Hermenegildo Varela de Carvalho – que já teve pelo menos duas outras empresas de construção insolventes -, e um outro sócio, Carlos Garcia Ribeiro.
A DCHJ efectuou 26 contratos com entidades públicas num valor global de 454 mil euros. Desses, 20 foram contratados com o Município de Oeiras, todos por ajuste directo, sendo que o último data de Janeiro de 2022. No total, a DCHJ facturou 292 mil euros com a autarquia.
Foto: D.R.
A maioria dos contratos públicos foram obtidos em 2015, 2016 e 2017, sendo que a empresa também efectuou reparações e obras no Palácio das Necessidades, em contratos efectuados por ajuste directo pela secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Da construção de paredes para o ‘team building‘, certo é que a proprietária da empresa Atmosférica encontrou no município de Oeiras um cliente generoso que não poupa a esforços para motivar os 25 líderes que vão beneficiar de uma experiência rica. Nem que seja pelo preço.
Quem envereda profissionalmente pelo mundo das artes e da cultura arrisca poder passar por dificuldades financeiras. Mas a Apordoc-Associação pelo Documentário, que é responsável pela organização do evento Doclisboa, elevou a precariedade laboral no mundo das artes e do cinema a um novo nível.
Num anúncio de emprego que a associação publicou no dia 11 de Junho, a Apordoc surpreendeu o sector pela negativa levando potenciais candidatos a desabafar: “tirem-nos deste filme!” Em causa está um anúncio de recrutamento para a vaga de ‘coordenador’ para o Doclisboa25. Além do salário baixo para a função, no montante de 1.200 euros, com IVA incluído — o que resulta num rendimento líquido de 924 euros —, o cargo será desempenhado na modalidade de recibos verdes.
Foto: D.R.
Isto apesar de a acção de recrutamento indicar que irá existir um evidente vínculo laboral, com cumprimento de horário fixo de trabalho e o exercício das funções em local físico fixo. O ‘coordenador’ terá ainda de levar o seu PC pessoal, pois não terá nenhum disponível na organização.
Para se ter um termo de comparação, o valor bruto oferecido pela Apordoc para o cargo de ‘coordenador’ está abaixo do oferecido, por exemplo, pela retalhista Mercadona, em Portugal, aos seus trabalhadores base, os quais beneficiam ainda de vínculo permanente. Por outro lado, o valor pago pela Apordoc iguala o rendimento de entrada oferecido pela sueca IKEA aos novos trabalhadores em Portugal, sendo que 90% dos postos na empresa retalhista são de vínculo permanente.
Mas, em concreto, o que terá de fazer o ‘coordenador’? No anúncio pode ler-se que a Apordoc “procura um(a) profissional com experiência em produção e coordenação de eventos da indústria cinematográfica para integrar a equipa do Doclisboa 2025”. Aponta que “este cargo envolve a gestão operacional de actividades relacionadas com a indústria, sob a supervisão da Direção de Indústria e Desenvolvimento, com uma visão abrangente das actividades do Nebulae [projecto de indústria e espaço de networking do DocLisboa], alinhadas à estratégia global do festival”.
Uma das principais responsabilidades será a “coordenação e produção das actividades do Nebulae, gerindo os aspetos técnicos e logísticos em articulação com a equipa de produção do Festival”. Também terá de “acompanhar e garantir a execução do calendário das actividades da indústria, em diálogo com as diferentes equipas do Festival, assegurando a sua implementação conforme o planeamento definido pela Direção”. Cumpre ainda ao coordenador “elaborar o mapa de necessidades técnicas para os espaços de eventos e sessões Nebulae”.
Foto: D.R.
O coordenador terá ainda de “atuar como responsável pela comunicação directa com project holders, convidados/as e participantes das actividades Nebulae, assegurando fluidez e clareza na troca de informações”. Cabe-lhe também as tarefas de “recolher e organizar conteúdos para o catálogo da indústria e documentos de imprensa, em colaboração com a equipa de Comunicação” e “coordenar com a equipa de Guest Office as necessidades de viagem, alojamento e hospitalidade dos convidados da Indústria”.
Outra das suas funções será a de “acompanhar a implementação das contrapartidas para patrocinadores (banners, materiais gráficos, menções, etc.), sob orientação da área de Desenvolvimento e Parcerias”. Por fim, terá a ser cargo a “coordenação directa da equipa de voluntários/as da Indústria, incluindo atribuição de tarefas, orientação e supervisão durante o Festival”, além do “acompanhamento e gestão das actividades da Indústria ao longo dos dias de Festival”.
O recrutamento será apenas para o período que vai de 04 de Agosto de 2025 até 31 de Outubro de 2025 e o horário dura das 10H00 às 19H00. O local de trabalho será no “escritório da Apordoc em Lisboa (Casa do Cinema, Rua da Rosa, 277, 2º) ou outros espaços a ser utilizados para efeito de escritório para o desenvolvimento deste trabalho”. O coordenador contratado “deverá dispor de computador portátil próprio para o desenvolvimento do trabalho”.
Anúncio da Apordoc para recrutamento de um coordenador do festival DocLisboa.
O anúncio da Apordoc tem gerado reacções negativas dentro e fora das redes sociais. Numa publicação sobre a vaga na conta da associação no Instagram, um dos utilizadores escreveu um comentário negativo “Oferta de emprego vergonhosa. Trabalho precário com exigências de relação laboral com vínculo efectivo. Continuamos a brincar com as pessoas, que na verdade são o principal activo de qualquer organização que se preze.”
Uma outra utilizadora desta rede social questionou: “porquê recibos verdes?” Em resposta a esta pergunta, a Apordoc indicou que “esta é uma vaga para a equipa temporária que o festival contrata a cada edição, dezenas de pessoas que, pela natureza do projecto, trabalham connosco apenas durante uns alguns meses por ano”. “Acrescentou que “todas as pessoas que fazem parte da equipa permanente do Doclisboa têm contrato de trabalho e tentamos dar as melhores condições possíveis à nossa equipa”.
Além das condições precárias oferecidas para o cargo, no anúncio da Apordoc pode ainda ler-se uma nota que serve de aviso aos interessados com alguma limitação de locomoção: “o escritório da Apordoc ainda não dispõe de acesso para pessoas com mobilidade reduzida”. Ou seja, as pessoas com mobilidade reduzida não poderão concorrer ao cargo. E assim, além das condições precárias de contratação, também se enterra o lema da inclusão.
Foto: D.R.
O PÁGINA UM colocou questões à Apordoc por e-mail, na semana passada, mas até ao momento ainda não obteve respostas.
O anúncio da Apordoc não só desiludiu alguns profissionais do sector, pela patente precariedade e ausência de inclusão, como deixou uma má impressão sobre a organizadora do festival. Mas, havendo quem no sector esteja com dificuldades para pagar as contas ao fim do mês, certamente haverá candidatos para a função, aceitando as baixas condições. Sempre servirá para adicionar mais uns ‘créditos’ ao curriculum. Mesmo que os bolsos já cheguem vazios ao meio do mês.
Era uma tarde soalheira de Domingo. A Avenida das Forças Armadas estava vazia. Não havia o habitual frenesim de estudantes a subir e a descer a rua. A cantina universitária também estava fechada. Desci do autocarro e aterrei num dos momentos que mais me marcou na adolescência. Um grupo de rapazes e raparigas skinheads estava a chegar à paragem de autocarro no preciso momento em que eu estava já sozinha naquela avenida deserta.
Quando eu era adolescente, e também na infância, parecia ser de origem asiática, com os olhos amendoados e o tom de pele claro no Inverno. No Verão, ficava morena e ainda acentuava mais o ar ‘exótico’. Era muitas vezes chamada de ‘chinesa’ na escola. Confundiam-me frequentemente como uma ‘uma rapariga oriunda de Macau’.
Voltando à paragem de autocarro e aos skinheads. O motorista já tinha arrancado com o autocarro avenida acima. Olhei e estava aquele grupo infeliz no meu caminho. Percebi que já me tinham na mira. Senti um frio na barriga. Não havia ninguém à volta. Não havia edifícios de habitação ali. Ninguém à janela. O que havia, estava fechado. Passavam poucos carros e a ‘abrir’.
O grupo acelerou na minha direcção. Tinham encontrado uma ‘presa’, pensaram.
Senti como se fossem cães a vir morder-me. Como fui atacada por um cão em pequena, tinha algum medo de cães mais ferozes. Pensei no que aprendi sobre como agir perante cães: ‘fica quieta, anda muito devagar; não olhes nos olhos’.
O grupo rodeou-me. Largou alguns insultos. Tentei continuar a andar, muito devagar. Fingi que não ouvia nada. Sobretudo, procurei não mostrar medo. Mas por dentro estava apavorada. Temia que tivessem alguma arma. Que me fossem magoar. O momento durou uns minutos e pareceu-me serem horas.
Lembro-me que me agarrei à alça da mala que levava pendurada ao ombro e que quase não respirava. Lembrei-me dos cães. Continuei a caminhar muito devagar, enquanto o grupo me cercava. Eventualmente, eles seguiram o seu caminho. Eu segui o meu.
Passei a trazer uma navalha comigo na altura, confesso (mas não o recomendo hoje). Não que a fosse usar. Mas queria sentir-me segura de algum modo.
Quando ouço hoje falar em neonazis recordo sempre aquele episódio. Por um lado, penso que se está a banalizar a palavra ‘neonazi’. E considero perigoso estar a misturar esse termo com outros. Banaliza. Normaliza. Preocupa-me que, ao se banalizar o termo, se esqueça o que ele significa e de onde vem. Por outro lado, não me surpreende que exista um aumento de extremistas. Aliás, era previsível que tal iria acontecer.
Será sempre incompreensível para mim haver humanos que consideram outros humanos inferiores. Não falo apenas em termos de aspecto físico, como a cor da pele, a textura do cabelo. Não falo apenas da origem, da língua, da cultura. Falo de todos. Do outro ‘diferente’. Do humano que tem um problema na fala, um condicionamento cognitivo. Uma reduzida mobilidade. Um corpo ‘diferente’. O neurodivergente. O que é sensível aos ambientes, aos sons, às multidões. Aos ruídos. À pressão no trabalho ou na escola. O ‘gordo’, o ‘magro’.
Sou do tempo em que chamar ‘baleia’ a uma menina mais redondinha era normal, sobretudo na escola. Sou do tempo das alcunhas que se punham aos ‘diferentes’: ‘chamuça’; ‘banana’; ‘xinoca’; ‘mongoloide’.
Já em adulta, era normal ouvir nas redacções expressões como ‘larilas’, ‘gaja’, ‘monhé’, ‘chamuça’, ‘preto’. Não havia igualdade de oportunidades para todos (não há, ainda). Não éramos todos iguais aos olhos de alguns.
Também nunca compreendi como há humanos que se julgam superiores a outros humanos, apenas porque nasceram em famílias mais abastadas e com muitos apelidos. As castas sempre estiveram bem vivas em Portugal. Só me apercebi disso já adulta, no meio profissional.
Mas, das muitas entrevistas que fiz, as que mais me custaram foram aquelas em que tinha à minha frente alguém racista, xenófobo, sexista. Os outros, os que se acham de uma ‘casta superior’, são almas que se encontram perdidas, iludidas. Já os racistas e sexistas, estão perdidos mas provocam-me arrepios. Como os cães ferozes.
Nos últimos anos, durante a pandemia de covid-19, vivi um verdadeiro choque em matéria de ódio e segregação. Foi profundamente desolador assistir à vaga de intolerância dirigida a cientistas de renome internacional que defendiam uma abordagem mais moderada e científica da gestão da crise de saúde.
Assistimos não apenas à censura de vozes dissidentes, mas também à estigmatização brutal de quem, por convicção ou prudência, optou por não tomar as novas vacinas. Os media aplaudiram políticas de segregação e deram palco a figuras que incitavam ao ódio e à perseguição. O discurso de ódio tornou-se normal nos media.
Fiquei abalada com a facilidade com que o discurso de ódio se infiltrou e ganhou legitimidade, designadamente entre figuras públicas, governantes, políticos, jornalistas e celebridades. Percebi como foi possível nos anos 30 do século passado que os nazis tenham conseguido convencer famílias alemãs comuns a aderir à sua ideologia. Percebi, na pandemia, como pessoas comuns se podiam transformar, de um dia para o outro, em predadores e carrascos e disseminar ódio por outros humanos.
Estocolmo, Suécia, 2020. Enquanto em Portugal se disseminava nos media todo o tipo de discurso de ódio contra os que questionavam as medidas covid impostas pelo Governo, na Suécia o país manteve-se a funcionar perto da normalidade, com ajustes ponderados, respeitando as liberdades fundamentais e sem impor o uso de máscara em geral. / Foto: PAV
Em países como os Estados Unidos, a Austrália ou a Nova Zelândia, a loucura chegou a um nível distópico de perseguições, violência, opressão e bullying institucional. As medidas segregacionistas, os atropelos a direitos fundamentais tornaram-se o novo normal. Os insultos. Os atropelos à Constituição em Portugal. Os atropelos ao consentimento informado na Medicina.
E assim se normalizou uma era de obscurantismo e impunidade. Assim se normalizou o extremismo e o discurso de ódio e o bullying em larga escala. Assim se normalizou o ódio. E este ódio evidente nos media durante a pandemia nasceu da mesma forma como sempre nasceu o ódio: por ignorância e por medo. Onde há medo e ignorância, está o terreno tratado para semear o ódio.
Ver hoje o regresso do termo ‘neonazis’ aos jornais causa-me um arrepio. Mas não posso dizer que me surpreende. Foram feitos vários avisos de que o extremismo iria aumentar nestes anos. Porquê? É simples. O extremismo gera extremismo. Quando se começaram a adoptar políticas radicais e extremistas em países europeus, incluindo Portugal, era óbvio o que iria suceder.
As políticas radicais, muitas das quais sem base científica, que foram impostas na pandemia, deixaram, além disso, um rasto de danos económicos, sociais, psicológicos, emocionais gigantescos. Mas não foram as únicas medidas que serviram de adubo para criar zanga e revolta. Para ajudar a fazer nascer extremistas.
As políticas radicais referentes à imigração que têm sido impostas no Ocidente atiraram migrantes para redes de tráfico de humano e condenaram milhares a viver em condições indignas. Também não acautelaram devidamente questões como a da integração cultural. Por outro lado, a tentativa de se querer ‘proteger’ migrantes, escondendo do público a nacionalidade de suspeitos em crimes hediondos, alimenta a desconfiança e o extremismo. Pior: tentar diminuir alguns crimes aberrantes, como aconteceu no Reino Unido com os gangues de pedófilos e predadores de meninas britânicas vulneráveis, tem o efeito contrário: alimenta a xenofobia. São políticas que alimentam a divisão e a polarização.
Depois, há as políticas que têm promovido a anulação dos direitos das mulheres, designadamente o direito a estarem seguras e a terem privacidade em espaços baseados no sexo. Tem sido promovida uma nova forma de misoginia, em que os direitos de algumas pessoas se sobrepõem aos direitos de meninas e mulheres. E, mais uma vez, esta é uma nova forma de … polarizar e dividir a população. Inclusão nunca devia servir para dividir.
Mesmo políticas como as que incentivam à eutanásia em países como o Canadá, ou a descriminalização da interrupção de gravidez até ao nascimento no Reino Unido — são medidas radicais e que levantam profundas questões éticas. Onde está o bom senso nestas políticas? Estas políticas não alimentam extremistas? E não dividem a população?
Ontem, extremistas criaram extremistas. Hoje, continuam a alimentá-los.
Os media têm sido parte do problema, não da solução. Têm aprovado e promovido muitas das políticas radicais e extremistas que governos têm vindo a adoptar, designadamente na Europa e nos Estados Unidos. Os media têm sido avessos ao contraditório e ao pensamento dos moderados.
Os que optam pelo caminho do meio, pelo bom senso, não são bem-vindos aos media. Os que procuram manter o discurso numa base factual, racional, empírica, não são bem-vindos. Os que procuram a paz, o diálogo, a diplomacia, a razão, a compaixão, a compreensão, não são bem-vindos.
São bem-vindos os populistas. Os radicais. Os opostos. Os extremos. Isso vende. Vende jornais, vende cliques. Atrai audiência. São bem-vindos os que promovem ódio. Os radicalizados. Os que defendem políticas e governantes que perderam todo o bom senso. Porque os media dependem, muitas vezes, de financiamentos de governos e entidades públicas, além de dependerem de parcerias comerciais de empresas de indústrias poderosas que lucram com algumas das políticas em curso.
E governos lucram com o aumento do extremismo. O extremismo e o medo lançam as bases para se criar o terreno ideal para o Estado policial em permanência. Reforçam as ideologias de vigilância, controlo, opressão e de aniquilação de direitos humanos e civis e das liberdades fundamentais. É a ‘desculpa’ ideal para reforçar poderes de políticos e mudar leis fundamentais, eliminando direitos como a liberdade de imprensa e de expressão ou o direito à greve.
Nunca as democracias ocidentais estiveram tão ameaçadas como hoje. Pelas forças (incluindo na Europa) que pretendem arrastar os países para guerras. Pelos grupos extremistas. Pelos governos e políticas extremistas. Uns alimentam os outros. E vice-versa.
O problema criado por estes extremismos – o institucional, de governos, que viola liberdades e as leis dos países, e o de grupos ‘civis’ – vai ter uma ‘solução’. Cria-se o problema para oferecer uma solução. Essa ‘solução’ vai parecer ser a que nos vai ‘salvar’ dos neonazis. Da extrema-direita. Da extrema-esquerda. Dos terroristas. Vai incluir aquilo que já se chama nos media de ‘limites’ à liberdade de expressão. Vai incluir um aumento da vigilância. Um reforço dos gastos em defesa e armamento. A eliminação de leis fundamentais. Do espalhar o medo. Tudo para o ‘bem de todos’. O ‘bem comum’.
Vivemos numa era de grande mudança. Mas também temos meios que não existiam em outros tempos. E temos uma capacidade de mobilizar e fazer passar a palavra como nunca houve antes. Apenas desejo que os moderados, os ponderados, os do caminho do meio, criem uma onda avassaladora que derrube os extremismos e o caminho que nos conduz ao fim das democracias. Porque só há um futuro que desejo para os mais novos. E não inclui cercos em paragens de autocarro por bandos de almas perdidas. Nem inclui jornais e TVs que incentivam e promovem o ódio contra grupos de humanos. Nem inclui políticas e governos que esqueceram a História e as conquistas do pós-Segunda Guerra Mundial, como direitos humanos.
Tenho receio de neonazis? Tenho. Ainda hoje. Tenho receio de governos totalitários e que enterram as liberdades fundamentais e direitos conquistados? Mais do que nunca.
A verdadeira solução para combater os extremismos passa pela promoção de políticas de verdadeira inclusão, de tolerância, mas também políticas de combate à pobreza e de promoção de melhores condições de vida da população, migrantes incluídos. Passa pelo combate ao radicalismo de governos em matérias que têm dividido e polarizado a sociedade. Para por políticas ‘back to basics‘, o regresso ao fundamental, ao prioritário: pão; emprego; tecto; educação; solidariedade.
O futuro que sonho pertence aos moderados, aos ponderados, aos pacifistas, aos racionais, aos que defendem o bom senso. São eles que podem por ‘um pé na porta’ e travar o avanço do extremismo, mas também o avanço do Estado policial e de uma nova forma de totalitarismo e censura. Porque a solução para travar o neonazismo, o extremismo e o terrorismo não está no reforço de poderes de políticos que anseiam por estados de emergência permanentes e um dispendioso arsenal de armas.
A solução do combate ao extremismo está no encontro entre a razão, o bom senso e a ética. E isso tem de estar reflectido nas políticas de governos.
A solução do combate ao extremismo está no sabermos que somos iguais, nós humanos. Com sexos diferentes. Com culturas e origens diferentes. Com tons de pele diversos. E temos de ambicionar chegar a um terreno comum para alcançar um mesmo propósito: avançar e progredir, vivendo em paz e em harmonia. Entre nós. E neste planeta em que, sendo nós a espécie dominante nesta era, somos apenas uma das muitas que aqui têm o seu lar. Pelo menos, enquanto não nos aventurarmos galáxia fora e ‘emigrarmos’ para novos planetas, transportando o melhor que temos para dar: a nossa humanidade.
Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.
No 21º episódio, analisa-se o caso dos títulos que anunciam concertos ‘grátis’ e festivais ‘grátis’, mas que, afinal, são pagos pelos contribuintes…
Também se analisa: a ‘não cobertura’ da reunião anual do Grupo Bilderberg; a repentina preocupação dos media com conflitos de interesse entre ‘especialistas’ de saúde pública; a cobertura ‘fofinha’ da presença de Portugal na Expo 2025; e a bipolaridade dos media ao noticiar motins como protestos ‘pacíficos’.
Vidros partidos, fechaduras arrombadas, portas estragadas. O cenário repete-se de noite para noite, Nas últimas semanas, somam-se os assaltos a estabelecimentos situados no popular Bairro Alto, em Lisboa. Na Rua do Norte, numa só noite foram assaltados dois restaurantes, o Limoncello e a Adega Machado. Outros estabelecimentos não foram assaltados, mas os proprietários encontraram fechaduras e portas estragadas pela manhã. Foi o caso do restaurante Stasha, na Rua das Gáveas.
Os proprietários de restaurantes e bares daquele conhecido bairro lisboeta de diversão nocturna fazem contas aos prejuízos causados pelos roubos e sentem-se sozinhos. Falam na existência de um certo desinteresse pelo tema por parte das autoridades, designadamente a Junta de Freguesia da Misericórdia. Sobretudo, nesta altura, pedem mais vigilância e patrulhamento policial na zona, durante a noite.
Os assaltos a estabelecimentos no Bairro Alto têm acontecido pela madrugada. / Foto: D.R.
“Quase todos os dias há um assalto ou uma tentativa de assalto a estabelecimentos aqui no Bairro. Sentimo-nos impotentes para parar isto”, disse um dos empresários da zona ouvidos pelo PÁGINA UM.
“O problema aqui no Bairro não é a falta de segurança nas ruas, das pessoas, dos clientes, mas dos espaços e estabelecimentos. Tem havido uma onda imparável de assaltos. Era preciso haver mais vigilância e um reforço da presença da polícia durante a noite”, disse.
Ainda não foi possível obter respostas da Polícia de Segurança Pública (PSP) e os empresários afectados desconhecem se já foram identificados ou detidos os assaltantes. Testemunhas têm apontado o dedo a dois estrangeiros, de nacionalidade argelina, como sendo os alegados autores de alguns dos assaltos.
Policiamento no Bairro Alto, até há, mas da Polícia Municipal, e os empresários lamentam que seja, sobretudo, para visar os estabelecimentos e encontrar eventuais ‘falhas’, e não para afastar e travar o aumento dos assaltos.
Um dos recentes assaltos no Bairro Alto. / Foto: D.R.
Para Ricardo Tavares, presidente da Associação Portuguesa de Restaurantes, Bares e Animação Noturna, é incompreensível que não se consiga travar os assaltantes, noite após noite. “No Bairro Alto não há insegurança para as pessoas. Tem é havido assaltos a vários espaços”, disse. O empresário apontou que existe uma falta de solidariedade por parte da Junta de Freguesia da Misericórdia em relação à situação que insegurança que afecta os estabelecimentos daquele bairro histórico. E aponta o dedo a interesses que existem para acabar com o negócio da restauração na zona para instalar hotéis de luxo no bairro.
O PÁGINA UM colocou hoje algumas questões sobre a onda de assaltos no Bairro Alto à Junta de Freguesia da Misericórdia e também à Câmara Municipal de Lisboa, e ainda não foi possível obter respostas.
Contudo, não é só no Bairro Alto que os roubos a restaurantes e bares se avolumam. Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, os empresários falam na existência de um clima de insegurança. Nunca sabem como vão encontrar o seu estabelecimento pela manhã. Alguns estabelecimentos foram assaltos várias vezes seguidas.
Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, dezenas de donos de estabelecimentos criaram um abaixo-assinado depois de terem sofrido assaltos e arrombamentos. Na imagem, é visível a fachada em vidro partida de um bar situado na Rua Damasceno Monteiro que foi assaltado no início deste ano. / Foto: D.R.
Foi mesmo criada uma petição, reunindo assinaturas de dezenas de proprietários de estabelecimentos destas zonas, a pedir um reforço de segurança e policiamento. “Abrimos as nossas portas todas as manhãs, sem saber se seremos as próximas vítimas”, lê-se no texto da petição. “Esta onda implacável de crimes não só coloca em risco a nossa segurança e a de nossos colaboradores, mas também abala a confiança e a tranquilidade dos nossos clientes”, adianta.
Os assaltantes, além de provocarem danos em portas e janelas, levam o que podem, desde dinheiro, tabaco, garrafas de bebidas alcoólicas, máquinas registadoras e pequenos electrodomésticos.
Nenhum estabelecimento está imune a ser assaltado. Os roubos têm deixado um rasto de prejuízos que afecta desde o pequeno restaurante familiar até ao café ‘gourmet’ e ao bar popular, que atrai turistas em busca de esplanada e diversão.
Estes empresários fizeram um apelo, “com urgência, que as autoridades responsáveis, como a Câmara Municipal de Lisboa, a Polícia de Segurança Pública e as Juntas de Freguesia de Arroios e Penha de França, tomem medidas imediatas e eficazes para combater a criminalidade na nossa área”.
Vista de Lisboa a partir de um dos miradouros na Graça. Na zona, as receitas ganhas com turistas e clientes habituais não chegam, por vezes, para alguns estabelecimentos cobrirem os prejuízos deixados por assaltos sucessivos. / Foto: D.R.
Tal como está a acontecer no Bairro Alto, os assaltos decorrem sobretudo de noite e nas primeiras horas da manhã, por isso, os proprietários de bares e restantes pediram um reforço do patrulhamento policial nesse período. Também pediram a instalação de câmaras de vigilância “em locais estratégicos para deter a atividade criminosa” e “apoio institucional e logístico para os proprietários de negócios que desejam reforçar a segurança dos seus estabelecimentos, como ‘gratificado’ ou ajuda financeira para poder contratar empresas de segurança para vigilância”.
De resto, no caso da Graça, não há estabelecimento que não se queixe de roubos e assaltos, tanto aos estabelecimentos como a funcionários. Nem as farmácias escapam. De há uns meses para cá, a mais frequentada farmácia do Largo da Graça conta com um segurança presente logo à entrada. Um sinal dos tempos que se vivem nestes bairros turísticos de Lisboa.
No caso do Bairro Alto, sem respostas das autoridades, aos donos dos estabelecimentos, resta-lhes, para já, enfrentar os prejuízos enquanto colocam mais trancas nas portas, sem saber quando vai chegar o próximo assalto.
Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.
Regressa o Alterações Mediáticas. E no 20º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que tem levado a agência Lusa a esconder repetidamente uma informação relativa aos gerentes da Trust in News.
Também se analisa um artigo distorcido da revista The New Yorker sobre Jacinda Arden e o fenómeno que levou alguns media britânicos a mentir no caso do acórdão do Supremo Tribunal sobre direitos das mulheres.
A forma como os leitores apreendem os conteúdos de um jornal pode ser analisado e avaliado pelas reacções nas caixas de comentários ou nas redes sociais. Não tendo o PÁGINA UM, por razões editoriais, uma caixa de comentários (que exigiria ‘moderação’, algo impraticável para os nossos meios), resta-nos as reacções nas redes sociais. E, na semana passada, sucedeu algo curioso com dois textos no PÁGINA UM: uma notícia e uma crónica satírica.
Ora, no Facebook, surgiram soldados da tropa dos bons costumes e, de repente, senti que estávamos no Portugal da década de 60.
Percebi que há quem pense que não podemos escrever sobre Nininho Vaz Maia, mesmo que seja para noticiar que o artista continua popular entre autarcas e é muito requisitado, após a polémica.
E percebi também que há quem defenda que não podemos fazer humor tendo como alvo ‘famílias de bem’.
Se escrevermos textos satíricos sobre ‘famílias de bem’, lançam-nos uma fatwa aristocrática, banindo toda a redacção do PÁGINA UM, e descendentes, de poderem integrar confrarias, lojas do avental ou ser sócios do Sporting (valem-nos as cooperativas).
Pelas notícias sobre a popularidade de Nininho nas autarquias, arriscamos uma valente praga e eterna condenação.
Caramba! Se quiséssemos fazer fretes, lamber botas ou fazer ‘jornalismo positivo’ para viver confortavelmente com financiamento autárquico ou europeu, então o PÁGINA UM não teria sido criado.
Foto: D.R.
Por outro lado, não existem ‘vacas sagradas’, nem para o jornalismo nem para a sátira. Por muitas fatwas e ofendidos que surjam, isso faz parte da arte do Jornalismo. E da arte do Humor.
No dia em que nos cancelarmos, como jornalistas ou humoristas, escritores, para acalmar ofendidos, é o dia em que o melhor é arrumar as botas.
Os barris de cervejas já rodam no asfalto, tilintando de vez em quando nos carris do 28.
A parada de WCs, que já estão estacionados junto ao parque estacionamento clandestino, já denunciam que vai haver festim.
No cabeleireiro, a talentosa ‘patroa’ já mandou o seu estimado cãozinho de férias com a filha, por uns dias, porque vai estar a trabalhar nos Santos. E a estatueta de Santo António que protege num mini altar o estabelecimento, guarda as preces de esperança (procura-se marido para uma das cabeleireiras e força e sucesso para as restantes…)
O palco está montado no largo, em frente ao coreto, pronto para receber artistas de variedades e DJs com reportório popular.
As fitas, as fitas, os manjericos em papel, ….
As lojas que estavam em obras, estão em contagem decrescente para abrir a tempo da festa. Este ano, a grande novidade é o novo supermercado Continente que anunciou a inauguração para dia 12. (Saberá ao que vem?)
A marca da Sonae veio ocupar o espaço que estava arrendado a uma das lojas mais procuradas pela comunidade que vive e trabalha na Graça: ‘O chinês’.
O chinês não era um chinês qualquer. Era uma espécie de mala do Sport Billy em que tudo, mas tudo se podia encontrar. Fosse o produto ainda produzido por uma velhinha marca portuguesa, até acessórios de costura e tricôt, aos brinquedos de plástico da moda, aos panos da loiça a forra para camas de coelhos e porquinhos da Índia. E, claro, manjericos de papel. E fitas. Muitas fitas.
Vai ser difícil ao Continente bater a popularidade d’ ‘O chinês’, até porque há populares que culpam a marca pela perda que a comunidade da Graça perdeu, quando ‘O chinês’ fechou.
Talvez se oferecer sardinhas ou cervejas nos Santos, a coisa fique esquecida. Pelo menos até ao dia de Santo António.
Para mim, viver na Graça, traz por esta altura duas tarefas: estacionar o carro num lugar onde ficará parado durante uma semana; colocar avisos à entrada das hortas para evitar as habituais invasões de festivaleiros em busca de casa de banho.
Este ano, vou experimentar dois avisos novos, na esperança de que mesmo malta alcoolizada tema pela vida e fique longe do nosso portão.
Depois, é desfrutar da proximidade das festas e da música, embora já os miúdos não achem piada nenhuma a ir dar um pé de dança até ao largo, ao som de música dos anos 80 (com sorte). Já nem querem ir às farturas ou comprar um balão que depois fica lá em casa, a dançar pelo tecto até Agosto.
‘Sobram’ os amigos com paciência para virem até à confusão, para conversar ao pé de colunas de som estridentes, e com o aroma a sardinha e bifanas a perfumar o ar quente das noites que se avizinham.
As obras que alguém decidiu iniciar recentemente na rua do Forno do Tijolo prometem transformar a Damasceno num caos. O melhor é vir prevenido e deixar o carro longe.
No meio da azáfama local, é ir regando a horta. Observar os pimentos a crescer. Os pepinos. O tomate. A passarada ao fim do dia. As abelhas de manhã. E ter um saco de lixo à mão para recolher os copos, latas e garrafas que festivaleiros irão certamente ‘semear’ na horta por estes dias.
‘Os Santos’ trazem alegria e animam as ruas da Graça, por esta altura. Aqui, não há fogueiras para saltar (como as que saltei em criança). Também há poucas mesas compridas postas por vizinhos que se juntam em comunhão. Há, sobretudo, negócio. Dança, música. Alegria. Lixo. Mares de gente guiados por fitas coloridas que serpenteiam ruas, largos, praças, becos e miradouros. E há álcool (muito).
Depois, não tarda nada, teremos, de novo, o sossego. Teremos a Graça só para nós (e alguns turistas). Para o ano há mais.