Autor: Elisabete Tavares

  • Do Prazer e da Tortura

    Do Prazer e da Tortura

    Termina hoje a 93ª edição da Feira do Livro de Lisboa. Ainda restam algumas horas para percorrer os corredores desta imensa livraria a céu aberto. Entre as promoções, os saldos e a azáfama típica da feira está “a minha” Feira: cheia de segredos, de prazeres, de descobertas, de odores. E de dores. A dor causada pela sensação (aflição) de deixar tantos livros para trás. A dor, da culpa, por desejar objectos que implicam a morte de árvores. A dor … nas pernas. Apesar da máxima de que “quem corre por gosto não cansa”, as minhas pernas dizem-me que cansa, sim. Mesmo na “minha Feira”. Nesta minha peregrinação anual em busca dos prazeres (e das dores), fica sempre o desejo de querer mais, a ânsia de voltar no próximo ano. Como um vício, como um tormento bom que me abraça. Uma breve viagem sentimental pela pena de Elisabete Tavares e pelo olhar de Júlia Oliveira.


    Mergulho na Feira do Livro como quem entra no mar pela primeira vez a cada ano, no Verão. Às vezes, a água está mais fria, ou mais quente. Às vezes está mesmo gelada. Para os amantes de praia, quando perguntam “como está a água” a resposta é sempre “está (gelada/fria/quentinha) mas muito boa”.

    Delicio-me a cada passo, só por estar na Feira. Entro num portal sem tempo em que não tenho idade (e a infância retorna, como uma avalanche de recordações e memórias de livros e histórias)

    O aroma do papel dos livros, a suavidade de cada capa, de cada página, … A leitura é um misto de sensações criadas pelos sentidos e a percepção, inflamada por palavras lidas, frases que se bebem, se entranham em nós, parágrafos que irrompem sem pedir licença e nos marcam para sempre.

    Cada livro é como um prato que saboreamos: pode ser salgado, doce, picante, áspero, suave, difícil de mastigar, amargo, ácido. Uma experiência de prazer e dor (que por vezes deixamos a meio).

    De uma forma ou outra, quem caminha na Feira, mesmo que não saiba, está nesse portal de sensações e experiências. Cada um busca o objecto do seu desejo, seja um livro, um autógrafo, uma selfie com o autor preferido ou com as “estrelas” da TV ou influenciadores da Internet.

    Os gostos, já se sabe, não se discutem. Nem se julgam. Nem se condenam (a não ser que sejam crime). Claro que para alguns, há livros que são autênticos crimes que mereciam castigo (mas que castigo maior haverá de que escrever um mau livro?).

    Lembro de estar na Feira há muitos anos e ter dois autores lado a lado e precisar de escolher a qual iria pedir autógrafo. O tempo desfiava-se e era preciso escolher. Ali, sem me aperceber, tinha afinal um autor favorito entre aqueles dois que ali estavam (e trouxe um livro autografado por António Lobo Antunes). Não escondo que é bom trazer para casa um livro com uma dedicatória de um escritor que guardamos com boas memórias.

    Depois, há as descobertas, as surpresas boas e inesperadas. Aquele livro de um autor que desconhecíamos e que passa a fazer parte do nosso roteiro de degustação literária.

    Entre autores variados, “estrelas da TV” e escritores novos (e ainda desconhecidos), a Feira é mesmo para todos, democrática, diversificada, inclusiva.

    É também na Feira que encontramos “ídolos” e temos a oportunidade de estar cara a cara com aquele autor, especialista, ilustrador que sempre quisemos conhecer.

    E há ainda os lançamentos de livros, as palestras, as apresentações de obras de autores com nome já firmado ou recém-chegados ao mundo das publicações.

    No resumo de cada ano, há a luta interna pelos livros “perdidos” e o prazer (euforia, por vezes) dos livros “achados”, das experiências vividas. E aquele formigueiro na pele junto com a moinha na barriga do prazer de ter novos livros para ler. E de saber a pouco, porque a sede de ler (e de degustar) é insaciável.

    Fotos de Júlia Oliveira

  • Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Ainda é tudo muito recente, mas Rabo de Peixe (ou Turn of the tide, em inglês) fez disparar a notoriedade da vila situada na ilha de São Miguel, nos Açores. O sucesso da série da Netflix colocou a vila piscatória, mais conhecida pela sua pobreza, debaixo dos holofotes mediáticos tanto na imprensa nacional como internacional. A onda de publicidade em torno da região fez nascer perspectivas de atracção de mais turistas e investidores, nomeadamente para o mercado imobiliário. Por agora, os efeitos não são ainda visíveis. Mas as expectativas, agora que se anunciou a segunda temporada, são grandes, aproveitando o estrelato mediático da região. Talvez Rabo de Peixe se venha a tornar tão icónico como qualquer um dos 12 antigos cenários de filmes que o PÁGINA UM recorda.  


    Ainda não deu à costa, mas o mercado imobiliário na vila de Rabo de Peixe, nos Açores, agora famosa internacionalmente devido à série portuguesa que faz sensação na plataforma Netflix, espera uma mudança de maré, e que seja alta.

    Para já, à tona há muitas expectativas e a esperança de um aumento na procura turística e também na venda de imóveis nesta vila piscatória de São Miguel, uma das mais pobres do país. Em 2015 era a freguesia portuguesa com mais pessoas a receber Rendimento Social de Inserção (RSI).

    O sucesso da série “Rabo de Peixe” (Turn of the tide, em inglês) não é apenas nacional. A cobertura mediática também tem sido internacional, por via das boas classificações em sites da especialidade.

    Com os holofotes colocados na freguesia onde residem cerca de 8.800 habitantes, é natural que as expectativas de que a série possa atrair turistas e investidores para a ilha seja vista como natural.

    Para já, na procura turística por alojamento local, mantém-se a situação prévia à estreia da série. O Verão está lotado em praticamente todos os alojamentos contactados pelo PÁGINA UM na plataforma Airbnb, mas não é nada surpreendente: a esmagadora maioria das reservas já estavam asseguradas antes mesmo do lançamento da série. Para o Outono, ainda há muitos alojamentos disponíveis, mas os preços rondam os valores praticados em Lisboa.

    Em termos do mercado imobiliário, a situação é ainda de normalidade. “A procura [por casas] tem sido relativamente a mesma, não houve um pico acentuado”, diz João Lima, agente imobiliário da Remax naquela vila piscatória, que alberga o maior porto de pesca da ilha de São Miguel.

    Também uma porta-voz na imobiliária ERA apontou ao PÁGINA UM no mesmo sentido: “não temos dados, de momento, que sustentem uma maior procura de casas nos Açores que possamos atribuir à série da Netflix”.

    Mas há muitas expectativas.

    white concrete building on green mountain beside sea during daytime

    “De momento, está tudo dentro da normalidade, mas ainda é muito recente, e acredito que nos próximos meses a série irá contribuir para uma maior procura, não só em Rabo de Peixe, mas na Ilha de São Miguel”, lançou João Lima.

    De facto, a procissão ainda vai no adro. A série estreou há cerca de um mês, 26 de Maio, tem sido a mais vista na Netflix em Portugal. A nível mundial, chegou ao Top 10 do ranking de visualizações da plataforma de streaming, atingindo a sétima posição das séries mais vistas em língua não-inglesa. Além disso, atingiu o Top 10 em 15 países de quatro continentes.

    A promoção internacional do nome da pequena vila enfrenta, porém, uma corrente que tem levado a um arrefecimento do mercado imobiliário a nível nacional.

    O mercado ainda continua “quente”, com os preços em níveis historicamente elevados, mas tem-se observado um abrandamento, tanto na subida dos preços, como no número de casas vendidas e créditos à habitação concedidos.

    Na avaliação que os bancos fazem das casas no âmbito da concessão de crédito à habitação, registou-se em Abril uma queda de 34,3% no número de avaliações efectuadas, comparando com o mesmo mês do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).

    O valor mediano de avaliação bancária na habitação subiu oito euros face a Março, para o valor mais alto desde pelo menos 2011: nos 1.491 euros por metro quadrado. O aumento em média mensal foi de 0,5% enquanto a subida homóloga foi de 10%, a mais baixa do último ano. Foi na região autónoma dos Açores que se registou a menor subida homóloga: 1,9%.  

    De facto, ainda segundo o INE, os preços das casas desaceleraram nos primeiros três meses deste ano, com o índice de preços na habitação a aumentar 8,7% em termos homólogos, 2,6 pontos percentuais abaixo do registado no trimestre anterior.

    A venda de casas sofreu uma queda trimestral de 16% e, em termos homólogos, a descida chegou aos 20,8%. Nos Açores, a queda na venda de casas foi de 23% no primeiro trimestre de 17% em comparação com igual período de 2022. Em todo o arquipélago, no primeiro trimestre, foram vendidas 599 casas num montante de 87 milhões de euros. Estes valores representam, respectivamente, 1,7% e 1,3% das vendas efectuadas em todo o país.

    Actualmente, na plataforma de promoção de imóveis Idealista, surgem à venda 44 casas em Rabo de Peixe. O preço médio em todo o concelho da Ribeira Grande ascende aos 1.031 euros por metro quadrado, o que representa um aumento de 13% face ao valor registado há um ano na mesma plataforma. Em Lisboa, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) o valor médio das casas era de 3.872 euros por metro quadrado, no final de 2022.


    Série no topo   

    Criada pelo açoreano Augusto Fraga, Rabo de Peixe foi rodada em diversos locais, incluindo na freguesia que dá o nome à série.

    O enredo baseia-se num caso real que remonta a 2001, quando deram à costa daquela vila piscatória fardos de cocaína, na sequência de um naufrágio de uma embarcação que se dirigia para Espanha transportando meia tonelada daquele estupefaciente.  

    Produzida pela Ukbar Filmes, a série, além de ser líder em visualizações na Netflix em Portugal, Rabo de Peixe chegou a série mais vista em muitos outros países. A plataforma anunciou, entretanto, que vai haver segunda temporada.

    Também tem recebido excelentes classificações, nomeadamente no site IMDb, onde tem um rating de 7,7 em 10. No Rotten Tomatoes, a série portuguesa cativou uma classificação de 4.5 em 5. A crítica do PÁGINA UM pode ser lida aqui.

    Com tão boa recepção e impacto mediático, e com segunda temporada à vista, antecipam-se possíveis mudanças na região, tanto em termos turísticos como ao nível da atracção de investidores. E a bela vila, outrora conhecida como uma das zonas mais pobres da Europa, ganhou agora uma fama mais glamorosa. Como num conto de fadas, a “abóbora” transformou-se numa linda carruagem. A expectativa é que a maré traga mais visitantes (e dinheiro) à (naturalmente) bela região.

  • A ideologia totalitária chegou-nos antes da Lei do Tabaco…

    A ideologia totalitária chegou-nos antes da Lei do Tabaco…


    A proposta da nova Lei do Tabaco, com as suas diversas proibições, está a fazer “sair da casca” aqueles que tão obedientemente estiveram a pactuar com medidas totalitárias, e sem nexo nem senso-comum, nos últimos três anos.

    Não deixa de ser curioso assistir, agora, a grandes actos de revolta; a grandes manifestações de incredulidade perante tamanhas proibições e tamanhos actos deste regime que começa a ser chamado até de “ditatorial”.

    gray scale photo of woman holding cigarette

    Ora, mas isto não deixa de ser curioso porque, de facto, nos últimos três anos, aquilo que tivemos em Portugal foi uma população extremamente obediente, mesmo em relação a medidas que eram completamente anti-Ciência; que prejudicaram a população, deixaram um rasto de mortalidade em excesso, um rasto de uma epidemia de saúde mental; e deixaram a Economia como sabemos, com as taxas de juro a dispararem, com todos os efeitos na inflação e nas condições de vida das famílias.

    Nos últimos dias, conclui-se que, de facto, as pessoas só se mexem se lhes tocarem em pontos mais sensíveis. Porque, de resto, não se interessam e até obedecem de boa vontade.

    Agora, é sobretudo curioso ver jornalistas muito revoltados com estas medidas. É curioso porque quando eu comecei como jornalista na profissão – e eu nunca fumei –, nas redacções vivia-se num ambiente de fumo; mais de 90% dos jornalistas fumava. E eu lembro-me de chegar a casa ao fim do dia e toda a minha roupa tinha de ser lavada imediatamente, tal era o cheiro entranhado em mim, como se eu fosse fumadora.

    man standing on sand while spreading arms beside calm body of water

    Durante anos, enquanto era permitido fumar no interior dos edifícios e dos escritórios, nunca vi jornalistas incomodados com o facto de fumarem constantemente para cima de colegas.

    Por tudo isto, é curioso ver agora esta grande revolta. Mas sobretudo ver esta revolta – e não é só em Portugal – por causa deste tipo de proibições, de o Estado e os políticos se quererem substituir aos próprios indivíduos para definir as suas escolhas.

    Isso é algo que tem vindo a acontecer, meus caros, mas não é de agora apenas: é desde 2020. Não é nenhuma surpresa agora. Vocês recordam-se daquelas pessoas que em Portugal queriam obrigar os outros a vacinarem-se, com novas vacinas que, afinal, podem causam problemas do foro cardíaco, por exemplo? Pois, eu recordo-me.

    A ideia de que deve desaparecer o livre-arbítrio e deve desaparecer a vontade e a soberania individual, prevalecendo um indefinido bem-comum, é uma nova ideologia, uma nova moda que tem ressurgido.

    man in white t-shirt smoking

    Meus caros, a nova Lei do Tabaco é apenas uma das partes que mostra esta nova ideologia: a liberdade e a vontade individual não contarão para nada.

    Por isso, saúdo estes “novos revoltados” contra esta ideologia ditatorial, ainda mais associada a uma onda de censura.

    Basta ver a legislação em aprovação em diversos países e também a regulamentação arquitectada pela União Europeia, toda no sentido de classificar e condicionar a informação possível de ser divulgada – em suma, a autorizar a censura e também a estabelecer limitações à liberdade de imprensa –, para compreender que o ressurgimento de uma nova onda, cíclica, de regimes totalitários está aí à porta.

    Já era visível em 2020, e é cada vez mais visível para qualquer um que olhe para as muitas políticas em desenho e em implementação: é só juntar os pontinhos. Nem é preciso ser muito inteligente: basta colocar as várias políticas, a legislação e as várias regulamentações que têm estado a ser desenhadas a vários níveis, para compreender que, juntando tudo, há uma estratégia clara e um sentido comum: a anulação da vontade individual, do livre-arbítrio, da soberania individual.

    selective focus photography of girl standing beside boardwalk

    Portanto, é bom ver estes revoltados de agora, por causa da questão do tabaco, vejam que isto não surge isolado; é mais um dos pontos. Olhem à volta, meus caros. Olhem.

    Há muito mais que está a acontecer, há muitos alertas. Acordem, porque se não, quando um dia perceberem, poderá já ser tarde demais.


    Este texto baseia-se no episódio 123 do podcast Caramba, à Galamba.

  • ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    Jornalista norte-americano de investigação, premiado, Paul D. Thacker não se acanha quando fala sobre a corrupção na indústria farmacêutica. Vive em Espanha há sete anos e é do país vizinho que conduz hoje as suas investigações, mantendo um acompanhamento próximo da actualidade nos Estados Unidos. Há mais de 20 anos que investiga as campanhas que visam distorcer a Ciência. Em 2021, recebeu o prémio de jornalismo British Journalism Award pela publicação de uma série de artigos que denunciavam os interesses financeiros de especialistas médicos que aconselharam os Governos dos Estados Unidos e do Reino Unido durante a pandemia de covid-19. Nos Estados Unidos, foi um dos investigadores principais na comissão de Finanças no Senado que investigou as ligações entre médicos e a indústria farmacêutica, e as suas revelações contribuíram para a produção de nova legislação sobre o tema. É um forte crítico da censura que se instalou com a pandemia de 2020, e os seus trabalhos têm alertado para os perigos da indústria farmacêutica. Mais recentemente colaborou nos Twitter Files. Presente no recente Congresso Internacional de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, Paul D. Thacker concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, onde também aborda a forma como as empresas de relações públicas “mandam” agora nas narrativas e nos media.


    Como é que um jornalista norte-americano acaba a viver em Espanha?

    Faço investigação, e a minha mulher é uma médica espanhola, e só pode trabalhar na Europa.

    Quando veio para Espanha? Planeia ficar?

    Há sete anos. Oh, sim. Vou ficar aqui. Adoro Espanha, é óptima. É um grande país. Cresci na Califórnia e no Texas. Sempre ouvi espanhol. Sempre gostei. E Espanha lembra-me muito a Califórnia. Quando vim aqui pela primeira vez de visita (estávamos a namorar), estávamos no comboio de Madrid para Pamplona e pensei: isto é parecido com a Califórnia. Ah, sim, Espanha parece-se muito com a Califórnia!

    Portanto, planeia ficar, então. Com a Internet consegue-se trabalhar em qualquer lado?

    O único problema é, por vezes, o fuso horário. Escrevo sobre temas norte-americanos. Como o Glenn Greenwald, que está no Brasil, eu estou um pouco distante dos Estados Unidos. Então, tenho uma capacidade de ter um olhar um pouco mais objetivo do país e do que está a acontecer lá. Mas, às vezes, o fuso horário é mau. Como no caso de uma palestra que dei este ano na Brown University, e que começou por volta das 4:00 horas da tarde. Eram 11:00 horas da noite aqui!

    Antes de 2020, já investigava a indústria farmacêutica e os escândalos nessa indústria, a corrupção, as ligações a políticos e organizações. O que mudou na investigação da indústria farmacêutica após a covid-19? Parece que investigar agora as farmacêuticas e a corrupção no sector se tornou em blasfémia. Ainda se pode investigar as farmacêuticas?

    As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção. Se entrarmos em qualquer livraria encontramos livros sobre o historial de corrupção na indústria farmacêutica; é a indústria que mais multas pagou na História dos Estados Unidos. Mas, a partir de 2015, todas as pessoas que faziam perguntas sobre o sector começaram a ser chamadas de “anti-vacinas”.  Eu estava a investigar uma empresa chamada Monsanto, que era uma empresa tão corrupta que quando compraram a empresa [a Bayer, em 2018] descartaram a marca. Foi a única maneira da Monsanto existir hoje. Foi uma empresa apanhada a mentir vezes sem conta. Por volta de 2015, houve um evento no Clube Nacional de Imprensa para falar sobre algo como desinformação na Ciência ou semelhante. Foi aí que começou a surgir todo este tema da “desinformação”, como se tivéssemos um problema com desinformação.

    É então algo que já vem detrás.

    Temos jornais e outros meios para que as pessoas possam estar informadas, mas esse tema da “desinformação” passou a ser algo único. De alguma forma, é algo único agora. Tão único neste ponto da História da Humanidade que precisamos realmente de ter especialistas em “desinformação”, verificadores. Mas nós já tivemos isso. Durante a Inquisição, na Europa, na Idade Média, tivemos isso, e a Igreja era o verificador de factos. O árbitro das verdades.

    Sim, exactamente…

    Então, esse novo tema surgiu, e foi muito estranho. Escrevi um artigo para o Huffington Post sobre o facto de ter havido essa conferência, que foi, curiosamente, liderada pela empresa de relações públicas que trabalha para a indústria agroquímica, para a Monsanto, e tudo mais, para empresas que mentem sobre os produtos químicos agrícolas. Achei bizarro. Era uma empresa de relações públicas [Ketchum PR] que, na verdade, também representou Putin e a empresa petrolífera russa [Gazprom], tem um longo historial na divulgação de desinformação. Quer dizer, isso é relações públicas! E foi assim que este tema [desinformação na Ciência] foi implantado – por uma empresa de relações públicas.

    Esse tipo de empresas tem muita influência.

    Num painel, havia um participante que foi lá para falar sobre alterações climáticas; e a sua solução para as alterações climáticas era a energia nuclear. Estava lá outro participante a falar sobre organismos geneticamente modificados (OGMs), e de como “são seguros”. E estava lá outra pessoa para falar sobre vacinas, e de como são seguras. E assim foi todo o resumo da conferência: se acreditam nas alterações climáticas, então a solução é a energia nuclear; e os OGM são seguros, e as vacinas são seguras. E eu estava lá e o primeiro pensamento que tive foi: de que vacina estão a falar?

    Falava-se genericamente que todas as vacinas são seguras…

    Ninguém jamais diria que todos os produtos farmacêuticos e medicamentos são seguros, porque a primeira questão que surgiria seria: de que medicamento está a falar? Na indústria de dispositivos médicos, ninguém diria que todos são seguros, porque você questionaria: qual dispositivo médico? Eu investiguei alguns deles [dispositivos médicos]. Investiguei os produtos da Medtronic. Foram retirados do mercado, porque eram perigosos, estavam a ser colocados em pessoas e eram perigosos. Estavam a ferir as pessoas e a prejudicá-las. Foi muito claro que houve o arranque de uma campanha de relações públicas que deu o pontapé inicial… Logo naquela altura fui chamado pela primeira vez de “anti-vacinas”, o que foi bizarro. Eu nunca tinha escrito ou até mesmo pensado alguma coisa sobre vacinas! Como é que eu podia ser “anti-vacinas” se eu nunca escrevi, nem twittei, nem disse nada sobre vacinas?

    Isso é típico em campanhas de comunicação…

    Passei muito tempo a olhar para a história da indústria de relações públicas. A história da desinformação na Ciência remonta à indústria de relações públicas nos Estados Unidos, e tem a ver com a empresa de relações públicas chamada Hill+Knowlton, que na década de 1950 começou a trabalhar com a indústria do tabaco para criar a maior conspiração da História dos Estados Unidos. Que conspiração foi essa? A conspiração de que os cigarros eram seguros, que não se sabia se eram perigosos. E foi brilhante! E o que fizeram? Para fazer isso, basicamente tomaram conta de universidades e começaram a trabalhar com os professores universitários para criar essa realidade alternativa, de que não se sabia se o tabaco era perigoso ou não. Ou de que talvez fosse seguro! A narrativa era: tem a certeza de que o fumo passivo é mau? Quais são as suas provas? Mas isso é que ressoa com a realidade que temos visto com a covid-19. Temos também esse envolvimento com as universidades.

    Paul D. Thacker, no Congresso de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, que decorreu nos dias 20 e 21 de Maio, em Fátima.

    Aquilo que está a dizer é que essa questão de desinformação começou muito antes da covid-19, e que começou a ser criada e a crescer antes desta pandemia?

    Penso que estava a acontecer muito antes. E há uma coisa muito óbvia que se tornou muito clara para mim, nos últimos dois anos. Se um produto era aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), se esse produto fosse um produto farmacêutico ou um dispositivo médico, você podia fazer as perguntas básicas que qualquer pessoa que entende de Medicina faria: qual é a sua eficácia, como funciona, quais são os efeitos secundários. Mas hoje, assim que um produto é aprovado pela FDA, já não se pode fazer nenhuma dessas perguntas. Essas perguntas não são permitidas. Não se pode fazer perguntas quando é uma vacina, porque as vacinas são “Ciência”. Não se pode questionar sobre corrupção envolvendo vacinas ou sobre quão bem funcionam, ou quais os seus efeitos colaterais. Hoje, as pessoas que fazem essas perguntas são chamadas de “anti-vacinas”. As farmacêuticas ainda não criaram uma campanha de relações públicas que rotulasse as pessoas como “anti-farmacêuticas”. Não dizem que alguém é um “anti-remdesivir”, por exemplo, porque as pessoas iriam rir. Mas conseguiram safar-se com a narrativa de chamar a todos de “anti-vacinas”, porque é cativante. É como uma campanha feita por uma empresa de relações públicas muito boa. Tal como acontece com a indústria do tabaco. É cativante chamar de “anti-vacinas”, você pode ficar obcecado com isso.  É assim, como uma lavagem cerebral em torno deste assunto. É uma religião. Não podemos tocar nisso.

    Mas isso é uma forma de censura…

    Escrevi um artigo sobre o facto de não se poder fazer, quando se trata de uma vacina, as perguntas normais que se fazem para qualquer outro produto aprovado pela FDA. Assim, as vacinas são mágicas. Ao contrário de todas as outras terapêuticas que se conhecem, as vacinas são mágicas. Você não pode fazer perguntas. São apenas vacinas e “funcionam”. Mas havia outras questões relativas, por exemplo, aos ventiladores, que foram usados em pessoas com covid-19. E há alguns estudos que concluíram que as pessoas realmente morreram por causa do protocolo que foi implementado em hospitais, usando os ventiladores. Então, também não podíamos falar sobre isso. Não podíamos questionar o protocolo médico. Eu nunca prestei atenção a este tema, o que captou a minha atenção desde o início [da pandemia] foi o professor John Ioannidis, da Universidade de Stanford. Começou a publicar algumas declarações e alguns estudos sobre o vírus e foi muito criticado.  Depois começaram a censurar o que dizia. O YouTube eliminou declarações suas a uma televisão por ser “desinformação”.

    pile of blister packs of colorful medicine tablets

    Foi absurdo…

    E eu pensei como era estranho, nem sequer era permitido ter-se uma opinião! Pensei: o que está a acontecer? Não fazia sentido. E outra coisa que me impressionou também foi, logo no início, quando as vacinas foram lançadas… Primeiro, essas vacinas foram lançadas à pressa no mercado, nem sequer foram aprovadas, apenas foram autorizadas [para uso de emergência]. No New York Times, lia-se que a Pfizer indicava que tinham 95% de eficácia. E esta é uma grande manchete, certo? Porque todos estavam preocupados com o vírus. Então, se alguém lê “95% de eficácia”… Mas depois, alguns parágrafos abaixo no texto percebia-se que aquele número não vinha de um estudo; era de um comunicado de imprensa! Ninguém viu esses dados, excepto a empresa, e a empresa divulgou um comunicado à imprensa. E um comunicado de imprensa acabou como manchete no New York Times! E essa publicação foi planeada para quê? Eu sei, porque investiguei, e na verdade serviu para pressionar a aprovação pela FDA. Para pressionar toda a comunidade biomédica. Foi tudo relações públicas. E o New York Times, e esses outros meios de comunicação social, foram cúmplices disso.

    Mais uma vez, o papel de influência da comunicação empresarial e das relações públicas…

    Então, as coisas realmente mudaram [na pandemia de covid-19]. Havia algo realmente chocante na censura. Sabe, censura de cientistas, e também o comportamento dos grandes órgãos de comunicação social. O ambiente mediático fragmentou-se, porque agora temos a Internet, e pessoas como eu podem publicar uma newsletter. Há o Twitter, para que as pessoas possam ver coisas que não conseguiam ver [nos media nem em outras redes sociais]. O que está a acontecer é que agora há essa necessidade de fechar isso [esse acesso livre a informação independente]. Então, há a mensagem dos grandes media, e há os documentos e informações que pessoas como eu divulgam. E as pessoas estão a ler. Como se fecha isso? Tinham de erodir isso, e criaram o tema da “desinformação”, e uma infraestrutura para ir atrás de pessoas independentes e fechar esse acesso a informação. Essa infraestrutura envolve agências governamentais e estranhas organizações sem fins lucrativos, que muitas vezes são financiadas pelo Governo e em colaboração com esses centros de investigação académica. E estão em pânico, porque estão a perder poder.

    3 clear glass bottles on table

    Algo que me impressionou é que, antes da covid-19, víamos os liberais, os comentadores de esquerda, a criticar os capitalistas e o capitalismo e os mercados financeiros, as grandes empresas. E agora é chocante ver que a esquerda e os chamados “liberais” são aliados do grande capital. São aliados das Big Tech, das grandes farmacêuticas, e apoiam, por exemplo, medidas como o dinheiro digital de bancos centrais. O mundo parece estar de cabeça para baixo. O que está a acontecer?

    Não faço ideia do que se passa. Há oito anos, as pessoas que mais criticavam a indústria farmacêutica eram liberais, de esquerda. Agora, estão todos “na cama” com a Pfizer. Será que se esqueceram que essas pessoas querem apenas lucros, que trabalham para obter lucros? Aquilo que penso é que as mensagens da indústria foram planeadas para atrair pessoas que são de centro-esquerda. Em relações públicas, fazem grupos de foco. Pensam sobre as mensagens que querem passar, e para quem as querem passar. É preciso entender como funciona a indústria farmacêutica e como os fármacos são colocados no mercado. A indústria farmacêutica não faz investigação, não faz pesquisa. Quem faz pesquisa são pequenas empresas, pequenas empresas de desenvolvimento normalmente associadas às universidades. As farmacêuticas colocam os medicamentos no mercado. Agora, toda a pesquisa de biomedicina está a ocorrer principalmente em torno de universidades, que, nos Estados Unidos, são como distritos do Partido Democrata. Penso que há muito dinheiro a entrar nessas áreas, muita convergência entre a biomedicina e o Partido Democrata. O Partido Democrata é agora o círculo eleitoral da biomedicina.

    Por exemplo, em Portugal, podemos ver neste momento um forte movimento nos media para pressionar o Governo a comprar medicamentos relativos ao vírus sincicial respiratório [denunciado pelo PÁGINA UM]. Vemos médicos que são consultores de farmacêuticas, as quais vendem medicamentos para esse vírus, a falarem a jornais para pressionar o Governo a comprar, mas sem revelarem as suas ligações ao vendedor do medicamento…

    Não há indústria por aí que seja mais corrupta… Eles têm muito dinheiro para gastar, e o que fazem é muito sofisticado. Há muitos médicos, muitas escolas médicas, grandes revistas de Medicina, que estão comprados pela indústria farmacêutica: O nível de sofisticação e a quantidade de dinheiro são provavelmente inigualáveis no planeta. Eles conseguem o que querem.

    woman wearing white lab coat holding brown bottle and glass tube

    Ficou surpreendido com este tipo de pressão? E com a censura e as ligações entre Governo, redes sociais e a comunicação social?

    Nos Estados Unidos, o Governo não pode dizer directamente a um meio de comunicação social que não pode publicar algo. Isso é inconstitucional. O que está a fazer é pressionar. O mesmo está a ser feito com as empresas que operam as redes sociais. Quando comecei a publicar sobre haver censura, tive jornalistas, amigos jornalistas, a dizerem que não era possível estar a acontecer aquela censura. Vi jornalistas a fazer campanha a favor do Governo. Eram avessos à possibilidade de estar a haver censura com intervenção do Governo. Quando os documentos [do Twitter Files] começaram a sair, ainda se via essa negação de que isso estava a acontecer. Ainda há essa negação. Um jornalista do Washington Post, por exemplo, escreveu um artigo com um balanço de seis meses sobre Elon Musk. No artigo não tem nem uma referência aos Twitter Files. Como se faz um balanço de seis meses da actuação de Elon Musk e não se menciona os Twitter Files? Como se faz isso e se chama a si próprio jornalista? Não faz sentido, e não é jornalismo. E é por isso que olhei para esses documentos e divulguei essas duas histórias. Elas ajudam a explicar como e por que isso está a acontecer. O que está a acontecer é que muitos desses jornalistas tinham elos de ligação muito próximos com o Twitter, e esses laços evaporaram-se quando Elon Musk o comprou. Eles perderam o acesso especial que tinham, perderam os seus privilégios especiais.

    Qual é a sua opinião sobre o facto de um candidato à presidência dos Estados Unidos, Ron DeSantis, ter feito o seu anúncio no Twitter. Eu ouvi o anúncio no Twitter Spaces e era como ver a história acontecer em directo.

    Bem, quero dizer, essa é uma maneira de olhar. Mas então veja-se os media norte-americanos. Não fizeram nada mais além de criticar o que aconteceu, como se fosse a pior coisa de todos os tempos. Só falavam das falhas técnicas e de como o anúncio correu mal… Essa é a forma como os media caracterizam Elon Musk e DeSantis… Depois, há a sondagem de Harvard que apontou que, na política, Elon Musk é o mais popular agora na América. DeSantis é o número três. Isso é incrível. E depois questionamos: porque é que os meios de comunicação social são assim tão desconectados com o resto do público americano. Os media começam a mostrar que têm vivido numa espécie de bolha. E vivem numa bolha há muito tempo. Os media agora são amigos do Governo. Isso começou basicamente na época de Trump. Sinto muito, estou descendo um elevador. Pode estar cortando essa mudança. Há muitas coisas que não gosto em Trump. Mas, ao mesmo tempo, eu podia ver que muitas das notícias sobre ele não eram justas. Eu disse a um amigo meu jornalista: era preciso inventar tudo isso sobre Putin [de uma alegada ligação a Trump]? O que temos agora nos media norte-americanos é esta história básica: pega-se em Trump, Elon Musk e Ron DeSantis e coloca-se na coluna A, e na coluna B coloca-se Q, antissemitismo, extrema-direita, supremacia branca, anti-ciência, anti-vacina. Depois, tira um da coluna A e mistura com algo da coluna B. E essa é a sua história. Apenas mistura e combina, e isso são os media de hoje. Não é jornalismo, é apenas isso. Como se escrevessem em pânico. E a questão é que eles pensam que estão a ser inteligentes. Mas o público americano vê isso. É por isso que o número de americanos que confia nos media nunca foi tão baixo.

    Tem a sua própria página, a sua newsletter, publica em jornais e escreve sobre os Twitter Files. Como vê a mudança na maneira como as pessoas consomem notícias e informações? Porque hoje podemos ler notícias e grandes peças de investigação fora dos grandes órgãos de comunicação social mainstream. Mas também vemos o aumento do poder das redes sociais e das grandes plataformas de tecnologia no controlo do acesso a informação. Como vê a evolução destas questões? Pensa que vai haver um movimento para travar esta tendência e tentar tornar as coisas impossíveis para jornalistas como você?

    Realmente, não sei. A maioria dos americanos ainda está a receber a maior parte da informação pela televisão. A televisão ainda tem muito poder. Muitos desses jornais, desses meios de comunicação tradicionais, ainda têm muito poder. Eu estou a aproximar-me dos 20.000 assinantes. Estou muito longe do Washington Post. Mas é ótimo, é um óptimo número. Mas eu não estou a competir directamente com esses grandes meios de comunicação social. Há cerca de um mês, vi que o New York Times escreveu algo sobre Anthony Fauci e descobri que havia duas coisas que eles relatavam que eu tinha relatado em Dezembro! Mas é claro que não havia menção ao facto de eu ter relatado essas coisas primeiro. Aquilo que os media fazem é ou negar informação que você escreve, dizendo que é um absurdo, que é desinformação, ou então vão lê-la secretamente e vão roubar a informação. Sei quem são os meus subscritores. Posso ver quando eles se inscrevem, e eu conheço os meus assinantes. Há lá muitos jornalistas de investigação. Há muitos deputados, membros do Congresso, funcionários do Congresso. Eu não tenho muitos assinantes, mas tenho muitos assinantes da elite, leitores da elite. Então, talvez eu tenha mais impacto. Tenho leitores da elite que estão a vir e a ler o que eu tenho para dizer, ou porque estão a tentar estar bem informados, ou porque se trata de um jornalista em algum lugar a tentar descobrir como roubar algo e usar sem me mencionar.

    Jeremy Vine e a jurada Janet Kersnar, editora executiva do Business of Fashion, entregam o prémio de Jornalismo Especializado no British Journalism Awards 2021 a uma colega de Paul Thacker no BMJ.

    No outro dia, ao entrevistar Andrew Lowenthal, ele falava sobre o Complexo Industrial de Censura. Como podemos quebrar isso, e como podemos garantir que no futuro não iremos viver numa ditadura, onde não existe liberdade, incluindo liberdade de imprensa e de expressão?

    Bem, eu não posso falar a partir de uma perspetiva portuguesa porque eu não sei como os media portugueses funcionam ou o Governo português. Posso falar do ponto de vista norte-americano e dessas histórias sobre o que está a acontecer, com as pessoas a serem censuradas, a serem expulsas das redes sociais, a ser-lhes negado o direito a ter uma voz e uma perspectiva. Penso que foi isso que chamou definitivamente a atenção. Esses repórteres do Post e do New York Times estão a negar o que está a acontecer. Mas todos, todos os seus leitores, sabem o que está a acontecer. Eles estão a ler e não são estúpidos. Eles estão a ver os documentos [Twitter Files]. Membros do Congresso também estão a ver. Funcionários do Congresso também. Ligam-me e perguntam-me sobre o que está a acontecer. E eu penso que mais relatórios sobre o que está a acontecer, e como isso está a afectar a nossa capacidade de ter uma democracia decente e uma política decente. Eu penso que são importantes os processos [judiciais] que estão a avançar nos Estados Unidos para expor e impedir que isso suceda novamente. Penso que, no Congresso, podemos começar a retirar financiamento às organizações que estão envolvidas nesse tipo de comportamento contra os americanos. Quando um Governo começa a fazer censura com seus próprios cidadãos, é assustador. E a incrível magnitude de influência e envolvimento nesta área, da censura, por parte das universidades… As universidades estão muito envolvidas na censura; criaram esses centros académicos sobre desinformação, especialistas em desinformação.

    E na Europa, temos a Comissão Europeia com novas leis, novos regulamentos para os meios de comunicação social e também para as redes sociais, e aplicará multas enormes se as redes sociais permitirem aquilo a que chamam desinformação e discurso de ódio. E isso incluirá o Twitter. Está preocupado com o facto de, na Europa, o Twitter poder estar condicionado por este novo regulamento, porque vimos o que aconteceu na Turquia.

    Quer dizer, estou preocupado com um continente que tem um historial forte de fascismo. Em Espanha, temos o caso do jogador de futebol do Real Madrid que foi alvo de comentários racistas. Em Portugal, provavelmente também há quem chame nomes racistas a jogadores negros. E não podemos permitir isso e precisamos fazer algo para limitar a capacidade de pessoas fazerem isso. E isso todos percebem. O problema é o que está a acontecer nos bastidores com vista a limitar a capacidade de as pessoas terem debates abertos e opinião.


    N.D. Leia, sobre esta entrevista, o editorial de Pedro Almeida Vieira intitulado “O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa“.

  • ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    Andrew Lowenthal tem uma vasta carreira na defesa dos direitos humanos no mundo digital e na defesa da privacidade online, tendo sido co-fundador da EngageMedia, uma organização sem fins lucrativos. O autor e investigador australiano tem colaborado na divulgação dos ‘Twitter Files’. O seu trabalho está focado no estudo e denúncia do crescente autoritarismo digital. É investigador no Institute for Network Cultures da Universidade de Amesterdão e escreve na sua página Network Affects, na plataforma Substack. Lowenthal foi um dos oradores presentes na Conferência Internacional “Saúde Mental e Propaganda”, que decorreu em Fátima, no passado fim-de-semana. Em entrevista ao PÁGINA UM, o investigador falou sobre o “Complexo Industrial de Censura”, o qual se tem vindo a formar a nível global, e que tem vindo a investigar junto com o jornalista Matt Taibbi, entre outros. Sobre os ‘Twitter Files’, revelou que Elon Musk “não está a dar acesso a novos documentos” à equipa de jornalistas e escritores que têm estado a conduzir a investigação aos documentos internos daquela rede social. Mas a investigação prossegue aos documentos já disponibilizados e vão surgir mais revelações. Os ‘Twiter Files’ – que pode acompanhar AQUI no PÁGINA UM – têm vindo a revelar a sinistra máquina de censura instalada no Twitter – e que abrange também outras redes sociais e Big Techs – no tempo da anterior gestão do Twitter.


    Tem uma longa carreira na defesa da privacidade digital, liberdade de expressão e direitos humanos em plataformas online, mas vejo que também foi um pouco apanhado de surpresa com o que se passou nos últimos anos, com o forte aumento da censura. Durante o seu percurso, alguma vez esperou que chegássemos a este ponto, com toda a censura que tem existido?

    Não, não esperava. É interessante porque, de certo modo, todo o trabalho que eu fazia era sustentado na ideia de que não actuavamos, particularmente, em relação ao poder corporativo e aos media e à tecnologia, e que podíamos acabar numa situação muito má. Mas, na verdade, nunca imaginei que essa situação pudesse ser assim tão má. Algo fez com que isto se desenvolvesse de uma forma muito mais autoritária do que eu alguma vez poderia imaginar, portanto, não, de facto nunca esperei. Eu receava que, de forma geral, as coisas piorassem, mas não radicalmente, como aconteceu desde a covid.

    Escreveu sobre a existência de um “Complexo Industrial de Censura”, que tem mobilizado milhares de milhões de dólares e de euros. Afinal, em que é que consiste este ‘complexo’, quem é que o detém? E como é que se chegou até aqui?

    Bem, é um conjunto de vários grupos com diferentes interesses. Este sistema ao qual chamamos “Complexo Industrial de Censura” envolve associações filantrópicas, financiamento governamental e organizações governamentais, académicos, think-tanks (grupos de reflexão), organizações não-governamentais, e os media. E, portanto, há diferentes áreas onde existe uma grande coordenação. Sabemos que há um projecto intitulado Virality Project, que estava a controlar a informação que circulava sobre a vacinação contra a covid, e que admitiu explicitamente visar também histórias verdadeiras que encorajassem hesitação vacinal. E eles colaboravam de perto com o Facebook, o Twitter, o TikTok, e outros. Por isso, eu não penso que haja uma única entidade central neste complexo, mas há, sem dúvida, vários núcleos que têm procurado exercer muita influência na forma como as pessoas percepcionam o mundo.

    E há muito dinheiro envolvido nessa indústria…

    Sim, muito dinheiro. Dinheiro que vem de associações filantrópicas privadas, de entidades governamentais… Nalguns casos, há fortes ligações a serviços de informação e às Forças Armadas, algo que ficou claro com os ‘Twitter Files’, que não é uma teoria da conspiração que as pessoas imaginam, acontece mesmo na realidade. Então, sim, em certos casos, há contractos como aquele que foi feito com a Peraton, na ordem dos mil milhões de dólares. Muitos dos grupos que vimos são mais de dimensão pequena a média – bem, e grande também –  como académicos e think-tanks, mas os seus orçamentos variam entre 3, 4 ou 5 milhões e 40, 50 milhões de dólares. O Instituto Aspen em particular coloca muito dinheiro neste tipo de “trabalho”, dezenas de milhões de dólares. Portanto, sim, é mesmo um projecto com um financiamento massivo, tudo sob o pretexto da “desinformação”. E a desinformação existe, mas a ameaça que representa foi exagerada essencialmente para servir de justificação para a censura.

    Então, a desinformação foi vista como uma oportunidade para se censurar?

    Sim, sim. De forma geral, esse é também o meu pensamento em relação à pandemia; é que há pessoas espertas que veem certas oportunidades e agarram-nas, a não ser que estejamos particularmente vigilantes.

    E falamos de algumas empresas, como as grandes farmacêuticas que, depois da pandemia, têm agora ainda mais dinheiro para patrocinar os media e muitas destas entidades que actuam sobre a “desinformação”. Portanto, é um problema que está em crescimento?

    Sim.

    E como é que vê a sua evolução? Porque o problema está a crescer, as entidades por detrás deste complexo industrial de censura estão a tornar-se maiores, é uma indústria gigante… Por isso, como é que nós enquanto cidadãos podemos desmantelar isto, o que é que podemos fazer?

    Acho que a primeira coisa é mostrar às pessoas que existe, e que há ainda muita coisa que nós não sabemos também sobre o nível de censura que os sistemas de controlo de informação criaram. Outro passo é lutar contra muita da legislação recente que tem sido aprovada, na União Europeia, e a nível nacional, no Reino Unido, na Austrália, nos Estados Unidos, e por aí fora, e que está realmente a tentar institucionalizar a censura com o pretexto da desinformação e do discurso de ódio. E acho que criar órgãos de comunicação social independentes é fundamental, porque alguns canais de media foram tão “capturados”, e o debate é tão abafado… A democracia significa as pessoas dizerem o que pensam e a pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas, porque havia um custo social por dizerem aquilo que pensavam. Eu também estive calado durante algum tempo, acho que a maior parte das pessoas esteve, mas é crucial que deixem de estar.

    Para nós europeus, o que vimos passar-se na Austrália durante a pandemia foi um choque total e um horror. Como é que foi para si ver o que se estava a passar na Austrália, e na Nova Zelândia?

    Acho que muitas das pessoas na Austrália não faziam ideia que estavam assim tão fora do que era o “normal” das coisas… E, também, muitas das pessoas lá não tinham grande contacto com o exterior. Para quem não estivesse, por exemplo, em Melbourne, a vida era bastante normal em muitos sítios. Não se podia sair do país e talvez do Estado, mas, na verdade, não se sentia que fosse assim tão diferente. Penso que as pessoas em Melbourne e Sydney tiveram uma experiência muito distinta. E o facto de estarem muito desconectados do resto do mundo, por estarem muito longe, faz com que não se perceba bem o quão autoritárias as coisas se estão a tornar. E isso ainda acontece. Quando eu falo com os meus amigos, acho que eles não veem o quanto a Austrália se afastou das normas ocidentais. Claro que foi mau em Portugal, Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas a Austrália e a Nova Zelândia levaram mesmo a coisa a outro nível. Acho que há cada vez mais quem queira sair da Austrália e comparar as realidades, mas a Austrália é uma sociedade muito orientada para a segurança, por isso procura sempre minimizar riscos. É um país que não lutou pela sua independência para se tornar numa nação, por isso a maioria da população, pelo menos, não sabe o que é tomar grandes riscos ou lidar com grandes ameaças.

    Mencionou o autoritarismo e, nos últimos anos, temos vindo a seguir esse caminho, com uma nova ideologia nesse sentido a capturar o Ocidente. E isto pode ser algo cíclico, tal como já aconteceu no passado. Acredita que é possível que passemos mesmo a viver numa sociedade autoritária e que se perca a democracia?

    Sim, quer dizer, isso cabe às pessoas decidir. Infelizmente, parece que, neste momento, há muita gente que está bastante feliz a viver numa sociedade autoritária. Acho que muito poucos diriam que não desejam uma democracia, mas em muitos casos penso que o disseram, na verdade. Porque muitas destas insistências vieram do espectro “liberal” progressista da esquerda – que foi onde eu me inseri duas décadas da minha vida –, e acho que eles não o veem como autoritarismo, mas como um acto de consideração pelos outros, e cuidar dos outros com um sacrifício necessário em prol dos mais vulneráveis. Portanto, acho que eles não veem o autoritarismo, e isso é assustador. Eles acreditam mesmo nisso. E talvez também tenha sido assim comigo durante algum tempo. Mas, convencer as pessoas que existe um custo-benefício nestas coisas, e que perder liberdades e até segurança ao ceder demasiado poder ao Governo e às empresas, que essas mesmas pessoas de esquerda costumavam pôr em causa…

    Sim, e isso é muito estranho. Porque, do ponto de vista da esquerda, dos liberais, há uma década ver-se-iam estas grandes empresas – Big Pharma, Big Tech, os bancos – como egoístas e sedentos de lucro, capitalistas. Portanto, o que é que mudou, o que é que aconteceu à esquerda? Já não acham que estas instituições querem lucro e guerras?

    Sim, eu sei, esta é a pergunta de um milhão de dólares que toda a gente quer descortinar. Eu acho que, essencialmente, as pessoas trocaram liberdade por segurança.

    Mas não é uma segurança real. É uma grande farsa.

    Não, eu concordo, não é segurança, verdadeiramente. Mas acho que devido a esta troca de prioridades, decidiram que valia a pena fazer este “pacto com o diabo”, com as pessoas mais poderosas da sociedade. E creio que o crescimento do populismo de direita e esta polarização, retirou, essencialmente, a nuance e a sofisticação à crítica. Ou se formavam alianças com o poder corporativo liberal, ou sofria-se as consequências do populismo de direita. Portanto, penso que algumas pessoas se colocaram dentro destas opções limitadas, e decidiram escolher ou uma ou outra, em vez do que deveriam ter feito, que era criar mais opções.

    E há uma terceira opção, que é a dos cidadãos e da sociedade civil, com pensamento crítico. Não temos de estar divididos apenas em duas fações. Há uma terceira alternativa…

    Sim, há uma terceira alternativa, que é não escolher nenhuma das duas opções. Mas sim, penso que obviamente tem a ver também com as redes sociais e o medo da exclusão social. Mas este tribalismo, a limitação do espaço político e a polarização contribuíram para este fenómeno, e é por isso que acho que a existência de mais espaços heterodoxos e diferentes é algo fundamental nesta altura, em vez de se aderir a uma das duas “tribos”.

    A sua vida, trabalho e finanças melhoraram ou pioraram nestes últimos anos? Porque mencionou que durante muitos anos, tinha amigos mais conectados com o espectro liberal, de esquerda… De repente, está rodeado de pessoas que não concordam consigo e que o veem como uma possível ameaça. Isso afectou-o pessoal, profissional ou financeiramente?

    Sim, sem dúvida, mas talvez de uma forma diferente em comparação com outros activistas. Eu “liderei” devagar, não fui cancelado nem fiz nada abruptamente. Também porque eu queria, pelo menos, manter-me em contacto com as pessoas de mente mais aberta no espaço da esquerda ‘liberal’. Sem dúvida que houve pessoas durante a pandemia que não queriam falar comigo, porque eu tinha opiniões “erradas”. Financeiramente, tive sorte, de certa forma, porque há uma espécie de nicho e um espaço – embora não muito grande – para pessoas com ideias mais heterodoxas. Mas certamente que já não estou como estava quando conduzia uma ONG e em que tinha um excelente financiamento. Poderia lá ter continuado e estaria numa posição muito confortável. Portanto, sem dúvida que, voluntariamente, escolhi uma situação financeiramente mais precária, porque senti que estava a fazer parte de uma coisa que, não é que fosse totalmente desonesta, mas que certamente pactuava com desonestidades, com uma mentalidade cada vez mais autoritária.

    E qual é a sua visão relativamente ao Twitter e aos ‘Twitter Files’, que têm sido um marco em termos de mudar algumas opiniões em torno da censura. E o que é que pensa sobre a contratação da nova CEO do Twitter, que é uma executiva do World Economic Forum?

    Pois, não posso dizer que esteja entusiasmado, não é a escolha que eu gostaria de ter visto. Quer dizer, ainda não vi muita coisa sobre ela, mas pelo que vi, não é o que eu esperava que acontecesse. Parece que estamos a voltar ao ponto em que estávamos antes. Talvez possa ajudar a equilibrar as coisas, porque o Elon Musk parece muito errático e não um decisor consistente, o que talvez não seja um problema quando se constrói carros. Mas quando se está a dirigir uma rede social, as pessoas precisam de saber mais claramente quais são as regras. E não se pode saltitar de um lado para o outro e mudar as coisas, porque confunde muito as pessoas. Na construção de carros, um pode ser amarelo e o outro vermelho, e o público não participa nessas decisões, por isso não o confunde… Enfim, não sei, mas não é a escolha que eu teria esperado.

    E ainda está a trabalhar com os ‘Twitter Files’, ainda poderemos esperar novas histórias suas sobre o Twitter?

    Sim. Musk já não está a dar acesso a novos documentos, mas temos outros documentos sobre os quais ainda não se escreveu, por isso haverá mais.

    Participou numa conferência em Portugal sobre a pandemia e toda a propaganda a que assistimos. Qual é a sua visão sobre o que se tem passado na comunicação social e a propaganda à volta dos temas relacionados com a pandemia? Porque há alguns temas que são nocivos para as pessoas, pela forma como os media os têm transmitido…

    Sim, essencialmente, acho que houve uma quantidade enorme de propaganda. Por vezes, é difícil para as pessoas utilizarem esta palavra, porque fá-las pensarem nos anos 20 ou 30 do século passado, e talvez não seja a palavra mais adequada para os dias de hoje…

    Qual é a palavra que escolheria?

    Não sei, quer dizer, trata-se de controlo de percepção da informação. São campanhas de relações públicas muito sofisticadas. Penso que as pessoas entendem melhor assim. Se falarmos em propaganda, acho que corresponde mais à verdade, é factualmente correcto. Agora, se é ou não a palavra que fará as pessoas que estão mais à margem passarem para o nosso lado, é outra questão… Mas acho que houve claramente imensa propaganda. Foi altamente sofisticada, foi de um outro nível. Estávamos mais seguros no caso da guerra no Iraque. Porque, na altura, acho que as pessoas conseguiram perceber a manipulação, e foi por isso que houve muita contestação. Enquanto que, no caso da pandemia, acho que eles aprenderam muitas lições com a guerra no Iraque, sobre a necessidade de uma maior sofisticação na forma como os governos ou as empresas passam a sua mensagem à população. Precisa de ser muito mais social. Tínhamos Internet em 2003, mas era algo mais aberto e livre. Mais uma vez, acho que o Virality Project nos mostra quanta manipulação se engendrava e como se coordenavam os governos e as grandes tecnológicas e, infelizmente, a sociedade civil [na pandemia]. Muitos deles pensavam que estavam a fazer a coisa certa, e que estavam preocupados com a sociedade… Quando pensavam na vacina [contra a covid-19], imaginavam uma vacina tradicional – e eu ainda sou defensor das antigas vacinas – mas isto era outra coisa, e é muito difícil convencer as pessoas disso. Muitas pessoas ainda não se convenceram. No geral, as pessoas estão a tornar-se mais cépticas. Quase ninguém se tornou menos céptico ou mais crente de que o Governo fez a coisa certa. Portanto, isso dá-me alguma esperança de que as coisas estão a direcionar-se para um maior cepticismo, e acho que eventualmente uma massa crítica se irá formar.

    glass, hands, palm

    Está, então, esperançoso num despertar da população em relação a estas campanhas de “relações públicas”, e espera que estejam mais atentos e vigilantes quanto a este “Complexo Industrial de Censura”…

    Bem, estou esperançoso, mas com cautela, porque definitivamente que não está a acontecer tão depressa como seria necessário.

    E, quanto ao trabalho: quais são os seus planos para um futuro próximo? Porque agora está a escrever mais sobre outros assuntos, e a Humanidade enfrenta outros desafios, como o dinheiro digital centralizado que está a chegar, e as cidades dos 15 minutos que estão a começar a ser testadas… São muitos os desafios. Quais são os seus projectos para o futuro?

    Está em desenvolvimento.. Uma das coisas é que continuo a trabalhar com Matt Taibbi nos ‘Twitter Files’. E, depois, estou no processo de estabelecer uma nova iniciativa que aborda os totalitarismos digitais, portanto, trata de censura, moedas programáveis, privacidade, este tipo de questões. E, na verdade, alguém está a trabalhar no lugar em que eu estava, no âmbito dos direitos humanos digitais que, de certa forma, colapsou porque foi [uma área] cooptada pela Big Tech. Por isso, estamos a tentar perceber como é que podemos reconstruir ou renovar este papel [da defesa dos direitos humanos online] que perdemos na sociedade civil.

    Isso dá-nos esperança, porque vimos, com choque, algumas ONGs no campo dos direitos humanos e das liberdades civis em conluio com os governos e com todo o autoritarismo a que assistimos. Portanto, está a dar-nos esperança.

    Farei o meu melhor.

  • Twitter denunciou (e cumpriu) exigência de Governo turco para censurar opositores antes das eleições

    Twitter denunciou (e cumpriu) exigência de Governo turco para censurar opositores antes das eleições


    Hoje, no 125º episódio de Caramba, ó Galamba, a jornalista Elisabete Tavares comenta a denúncia feita pelo Twitter sobre a exigência feita pelo Governo turco para que fossem censurados conteúdos antes das eleições recentes. Elon Musk explicou que a exigência foi dirigida a todas as empresas de Internet mas que o Twitter foi o único a denunciar aquele acto de censura. Ainda assim, o Twitter foi alvo de críticas por ter cumprido com a exigência turca. Este tipo de censura ocorre em outros países e abrange grandes tecnológicas, mas a população não tem conhecimento da situação, a não ser quando surgem provas, como aconteceu no caso de censura no Facebook pela “mão” do Governo da Nova Zelândia.

    Acesso: LIVRE

    Subscreva o P1 PODCAST para garantir a ampliação do trabalho do PÁGINA UM.


  • Vai o Twitter voltar a ser manipulado e regressar à antiga era de desinformação e censura com a nova CEO?

    Vai o Twitter voltar a ser manipulado e regressar à antiga era de desinformação e censura com a nova CEO?


    Hoje, no 124º episódio de Caramba, ó Galamba, a jornalista Elisabete Tavares comenta o anúncio de Elon Musk de que contratou uma nova presidente executiva para liderar a parte operacional do Twitter. Trata-se de Linda Yaccarino, até agora executiva na NBC e líder de uma área no Fórum Económico Mundial. Além disso, a executiva defendeu medidas do chamado falso consenso durante a pandemia, que não têm base na evidência. Por isso, a sua contratação levanta receios sobre se o Twitter vai voltar a ser uma rede social onde impera a desinformação e a censura e manipulação para fins políticos, como acontecia na era pré-Musk. Mas Elon Musk garante que não.

    Acesso: LIVRE

    Subscreva o P1 PODCAST para garantir a ampliação do trabalho do PÁGINA UM.


  • ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    Jornalista veterano, professor universitário – leccionando ética e deontologia no Jornalismo –, Paulo Martins é um nome incontornável na Imprensa em Portugal. É também o autor do livro “O Bairro dos Jornais”, que reúne o património histórico sobre a concentração da imprensa no Bairro Alto, em Lisboa, precisamente o local que é hoje a casa do PÁGINA UM. Numa entrevista, dada na redacção do PÁGINA UM, na véspera do primeiro aniversário do jornal, Paulo Martins fala da História do Jornalismo em Portugal, mas também partilha a sua visão sobre os actuais desafios da classe e a grave crise do sector. Defendendo a ideia do apoio público aos media, critica porém o “mimetismo” que grassa no sector, com os órgãos de comunicação social a fazerem todos as mesmas notícias, com o mesmo ponto de vista. E avisa que a pressa em publicar notícias pode contribuir para a desinformação. Sobre a dificuldade no acesso a informação pública, Paulo Martins ainda alerta: “fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos”. Pode ouvir a entrevista integral (não editada) no PODCAST do PÁGINA UM.


    Foi difícil preparar esta entrevista, porque temos tantos temas que poderíamos abordar. Mas começo por te perguntar: de facto, este património da História do jornalismo parece-te estar protegido hoje? Agregaste isso neste livro [O Bairro dos Jornais, publicado em 2018] mas, de resto, parece um pouco disperso e poucas pessoas sabem dele…

    Pois, eu acho que os poderes públicos esquecem-se que têm aqui um património importante, até do ponto de vista turístico. Porventura, noutro país em que a imprensa tivesse tido este significado num espaço que basicamente é o Bairro Alto e o Chiado, com uma enorme concentração de jornais, seguramente que já haveria visitas guiadas a antigos espaços. Não faltam aqui na zona edifícios que receberam gerações de jornais sucessivamente, desde o século XIX. Enfim, o Diário de Notícias, naturalmente, porque teve várias publicações, o Grupo do Século… mas outros edifícios, como por exemplo um que fica no Largo de Camões, recebeu pelo menos 20 jornais ao longo dos anos; de curta duração ou de maior duração. Eu acho que esse património devia ser transmitido, isto é, esta é a pátria da imprensa em Portugal. Não há outra, há pouco mais do que isto em termos de dimensão. Infelizmente, já estão poucos títulos aqui e felicito-vos por terem escolhido este espaço para reatar com a história tão nobre do jornalismo no Bairro Alto.

    Paulo Martins, anteontem, na Rua do Diário de Notícias, no coração do Bairro Alto, momentos antes de conceder entrevista ao PÁGINA UM

    E uma das questões que referes no teu livro, e que ressalta para quem é jornalista, é aquela ligação forte que existia entre política e jornais e jornalistas. Andavam de mão dada. Como é que era antes, e como é hoje?

    Há vários “antes”. Dois ou três dados sobre isso. No século XIX, um senhor que foi dos mais dinâmicos jornalistas desta zona, o Rodrigues Sampaio, que tinha o Revolução de Setembro, e depois criou outros jornais, andou com a imprensa de um lado para o outro, a fugir às autoridades e a escapar à censura… Quando teve ele próprio a oportunidade de ser ministro, impôs uma lei da rolha e passou a ser atacado pelos jornalistas, porque seguiu esse caminho. No tempo da ditadura fascista, aconteceu basicamente o mesmo, não é? Talvez seja importante nós percebermos o contexto geográfico. A minha ideia no livro foi partir da geografia para a ocupação do espaço pela imprensa. Estamos a falar de quase 600 jornais que eu identifiquei desde 1850, quando os jornais passaram a ter uma referência específica à redacção, porque até aí não tinham; tinham, eventualmente, a tipografia. E portanto, nesse período, todos os jornais vão-se concentrando aqui. Mas, por exemplo no Estado Novo, tinhas também a Casa da Imprensa, que é aqui na zona, existe ainda hoje, e ainda bem que existe; é uma associação mutualista da área da comunicação. O Sindicato dos Jornalistas, que não é muito longe, na Rua dos Duques de Bragança, portanto ao pé do Chiado. E os serviços de censura, que ficavam em frente do República, ao lado de onde é hoje a Associação 25 de Abril, que teve os jornais do regime – o Diário da Manhã e a Época –, e tinha tido antes um jornal ferozmente republicano chamado O Mundo, que os opositores monárquicos chamavam “imundo”, porque era de uma violência inaudita contra a monarquia. Portanto, há vários momentos de relação com a censura ou com a situação, não é? No pós 25 de Abril, juntaram-se aqui vários jornais, além dos jornais que já existiam, sobretudo vespertinos: O Diário de Lisboa, A Capital, O Diário Popular… foram criados aqui alguns jornais do “contra” no sentido de serem jornais saudosistas do anterior regime, no mesmo espaço onde estavam os jornais claramente colocados no lado oposto do espetro político. E o que mais me chamou a atenção, nesse período do Estado Novo, foi que as cumplicidades e a camaradagem entre jornalistas se sobrepunham às posições políticas. Quer dizer, ninguém aceitava a censura, mesmo os jornalistas que eram próximos do regime, mas havia jornalistas que eram próximos do regime e outros que não eram, e conviviam, passavam material uns aos outros. Isto é, a cooperação sobrepunha-se à competição, sendo que cada um tinha de competir. Posso contar-te, a esse propósito, um episódio muito interessante. Um administrador do Diário da Manhã, que era um jornal financiado pelo Governo do Salazar – portanto, era financiado pelo Estado –, mandou uma carta precisamente a Salazar a dizer que estava com problemas financeiros, porque ninguém comprava o jornal e os poucos que compravam escondiam-no, e que até já tinha tido necessidade de pedir papel ao República, que ficava do outro lado, na rua da Misericórdia, e que era da oposição. E o jornal República fornecia o papel, porque era necessário [risos]. Isto é uma coisa difícil de compreender fora desse contexto, da tal partilha do mesmo espaço. E isso é nítido nas memórias dos jornalistas que eu usei como fonte neste livro, porque não havia nada sistematizado, e o que há é sobretudo livros de memórias dos vários jornalistas.

    Paulo Martins, e o seu livro O Bairro dos Jornais, na redacção do PÁGINA UM, com os jornalistas Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira

    E escreves também sobre jornais que nasceram com propósitos políticos, digamos assim.

    Claro, claro. Sobretudo no século XIX… E já não falo sequer dos jornais da chamada propaganda republicana, que a partir do ultimato de 1880 passaram a ser ferozmente anti-regime de uma forma que nós hoje ficaríamos impressionados com a ética que poderiam ter, se é que tinham alguma [risos]. Portanto, eram de uma violência enorme contra a monarquia; espalhavam boatos e aquilo a que nós hoje chamaríamos “desinformação”, que sempre existiu. Mas os jornais nessa época, no século XIX, eram, em grande parte, jornais criados por partidos ou por tendências dentro dos partidos, que muitas vezes eram criados para conduzir um deputado ao poder, por exemplo, e depois desapareciam. Há um episódio que me contam, em que o jornalista em causa, que se chamava Alberto Bramão, confessa nas suas memórias que a certa altura lhe mandaram escrever um texto violento contra um político, que era director de outro jornal. E ele escreveu, e nem sequer assinou, porque na altura não se assinava. Depois descobriu que era mentira, e ficou revoltado por ter escrito uma coisa que lhe encomendaram e que era mentira, e então demitiu-se do jornal. É uma coisa espantosa, porque ele não tinha sequer de assumir aquilo, não assinou, não é? Mas, a certa altura, ele dizia uma frase fantástica sobre o episódio, que era: “o capitão manda e o marinheiro obedece”. Portanto, ele estava disponível para escrever por conta de qualquer tendência política, era o ganha-pão dele.

    Mas há uma ideia, se calhar, em algumas pessoas, de que, antigamente, havia um jornalismo puro, e que hoje é que está muito diferente… Só lendo o teu livro e a história do jornalismo se percebe que não era assim. O jornalismo caminhou muito e hoje tem qualidade [em comparação].

    Não era assim nem tem de ser. Eu acho que a discussão é um bocadinho diferente. Eu costumo defender, até do ponto de vista académico, que a independência do jornalismo não é todos fazermos de conta que não temos partido nenhum. É assumirmos as nossas posições, e sermos julgados com base no conhecimento público dessas posições.

    Aliás, há jornais que editorialmente se assumem…

    Exactamente, e assumindo-se editorialmente como sendo de uma área política ou de outra, não significa que sejam menos profissionais. Podem seguir as mesmas regras, e devem seguir as mesmas regras. O jornalismo é, basicamente, como dizem dois autores americanos, uma disciplina de verificação. É um método, e se cumprimos todos o método havemos de chegar a resultados semelhantes, não iguais, porque isto não é matemática. Felizmente, não é? [risos] Mas não tem nada a ver com o posicionamento político; quer dizer, a ideia de que somos muito independentes e, portanto, não tomamos posição nenhuma… O facto de não tomarmos posição é, em si, uma posição. Portanto, não faz sentido fazermos de conta que somos independentes. O que é que eu quero dizer com isto? Que, basicamente, eu prefiro os poucos jornais que na fase democrática da nossa História, desde 1974, assumiram posições [políticas], claramente do ponto de vista editorial; por exemplo O Independente. Era claramente um jornal à direita e assumia-o. Eu trabalhei n’O Independente e sempre fui de esquerda e nunca me ocultei, e ninguém me obrigou a ser diferente. Do ponto de vista editorial, seguia a sua linha, e os jornalistas faziam o seu trabalho. E depois O Diário, que era próximo do Partido Comunista e assumia essa condição. E as pessoas compram, ou lêem, e acreditam… Ninguém é independente, ninguém está “de fora”… Nós somos cidadãos também. Em tempos, um jornalista chegou a dizer que era tão independente que nem sequer votava. Isso é um disparate absoluto, não é? Eu prefiro os jornalistas que assumem a sua posição, clubística, política, partidária, se a têm. E depois nós julgamos em função disso; não vale a pena fazermos de conta. E nessa altura ninguém fazia de conta, porque todos tinham essas posições mais ou menos marcadas.

    E contas também como havia todo um rol de publicações satíricas e de crítica, ou seja, havia uma multiplicidade de exemplos que não têm muito a ver com aquela ideia de jornalismo puro e objectivo, que se calhar existe numa camada da população que não conhece a História do Jornalismo.

    Não, os jornais muito cedo se estratificaram internamente. O repórter era o coitado que estava à porta da esquadra a ver se conseguia alguma coisa, e que tinha uma arte específica para isso, que não era a mesma que a do redactor. Ele levava o material e o redactor escrevia em português. Ou seja, basicamente dava forma jornalística às informações dispersas. Mas há outro aspecto muito interessante, do qual eu tomei consciência quando investiguei para o livro, e eu digo isto um bocado na brincadeira, mas é verdade: só mais tarde é que surgiram os vespertinos, mas, logo no século XIX, os escritores trabalhavam nos jornais para ganhar dinheiro à tarde, e de manhã escreviam contra os jornais [risos]. Por exemplo, Eça de Queiroz tem belas peças contra os jornalistas, pelos quais ele não tinha grande consideração, mas ele escrevia para os jornais para ganhar dinheiro. Sei lá, o [historiador e político do século XIX] Oliveira Martins foi director de um jornal… Repare, o caso do Oliveira Martins é muito interessante, porque o jornal estava no edifício onde fica hoje uma seguradora, no Chiado, em frente à boca do metro, do outro lado. E eu tive muita dificuldade em perceber onde é que, afinal, era o jornal, porque na época, toda aquela rua era a Rua Garrett. E agora aquela parte é o Chiado, não é? E esse jornal tem uma história giríssima, precisamente no período em que Oliveira Martins era director e acontece o Ultimato inglês, e os jornais todos – monárquicos e republicanos – tomam posição contra o Governo por se ter posto de cócoras perante a Inglaterra. E o jornal chamava-se Repórter. Então, eles decidem que o jornal deixa de chamar-se Repórter, porque não pode ter um nome inglês [risos]. E muda de nome, e muda-se para o Bairro Alto. E o jornal era muito afirmativo em termos políticos. Montes de escritores de renome escreveram nos jornais. Depois, mais tarde, na fase do Estado Novo e da Primeira República, foi a mesma coisa. Por exemplo, uma grande figura do Estado Novo, que é aliás o ideólogo do ponto de vista cultural, que é o António Ferro, escreveu em vários jornais, incluindo O Diário de Lisboa. A memória que temos d’O Diário de Lisboa é que era um jornal contra o regime, mas nos primórdios tinha o António Ferro entre os seus colaboradores. O Almada Negreiros… enfim, essa é outra vertente, que é, tínhamos muitos jornais humorísticos, como O Sempre Fixe, O António Maria. Os jornais do Bordalo Pinheiro foram quase todos no Bairro Alto. Ele escreveu, fundou e fechou vários. O António Maria era do nome António Maria de Fontes Pereira de Melo, que era o ministro, que queriam criticar e militantemente criticavam sempre nos seus desenhos. Mas depois tinhas os jornais sindicais, por exemplo. Entre os jornais humorísticos, O Sempre Fixe, que era propriedade d’O Diário de Lisboa, era desse pequeno grupo, onde o Stuart Carvalhais foi dos mais geniais a escrever, e depois, mais tarde, o João Abel Manta. Portanto, também temos uma geração de caricaturistas que eram jornalistas, não eram uns tipos que sabiam umas coisas de desenho. Eram jornalistas que se exprimiam de outra forma. Uma das coisas mais fantásticas que descobri foi sobre a Rua da Barroca. A certa altura, no início da República, havia dois jornais anarquistas, que se digladiavam entre si a propósito das linhas do anarquismo. Eu não consegui perceber qual era a diferença, mas eles percebiam [risos]. E eram muito violentos nos editoriais, um contra o outro. A certa altura, os dois directores tornaram-se amigos, porque A República, como definitivamente rompeu com o movimento operário, meteu os dois na prisão do Limoeiro; e eles tornaram-se amigos, depois de terem sido presos [risos]. Portanto, há esses episódios interessantes que mostram como as coisas foram evoluindo nesse sentido… Por exemplo, um jornal que existia mesmo no largo do Chiado, chamado A Verdade, era assumidamente salazarista, o director era salazarista, mas onde escreveu, ainda bastante tempo, um senhor chamado Humberto Delgado, na fase em que ele próprio era salazarista. Nesse mesmo edifício, entre 1918 e 1922 ou 1923, existia um jornal chamado Imprensa da Manhã, que militantemente incentivou a Noite Sangrenta de 1921. Claro que não tinha a noção de que ia dar no que deu, mas incentivou, fez reportagens juntamente com os assassinos, uma coisa inacreditável. E, como as coisas correram mal, no fim os assassinos foram à redacção do jornal dizer: “então, como é que é agora?”. E eles tentaram tirar-se de fora, mas tinham escrito várias reportagens, não só a incentivar, como a acompanhar a Noite Sangrenta. O redactor-chefe, como se chamava na altura, desse jornal era o Esculápio, que ficou conhecido como um dos grandes repórteres. E era, de facto, um grande repórter, mas foi quem incentivou aquilo tudo. Era uma história que não se conhecia. Eu é que, digamos, juntei peças, e é um caso em que um jornal activamente tem uma posição política, que dá em sangue; claro que eles não previam isso. Imagina o que é fazeres uma volta com um side-car a acompanhar as pessoas que estão a apanhar os políticos que estão à mão, na casa deles. É uma coisa terrível.

    Era, nesse sentido, a minha pergunta. Porque hoje há qualidade, na medida em que há regulação, cursos universitários para jornalistas. Estamos num mundo completamente diferente desse jornalismo, e existe um código deontológico. Há aqui uma série de travões, digamos assim, para que algumas coisas não possam voltar a acontecer?

    Há, mas vamos lá ver: o código deontológico é de adesão voluntária, não há sanções, aparentemente. Eu gostava de chamar a atenção para isso, porque ouço muitas pessoas das ordens profissionais… Ou seja, melhor dizendo: em regra, as ordens profissionais – não estou a generalizar, porque seria injusto –, quando actuam do ponto de vista disciplinar por razões deontológicas, é porque já houve notícias sobre os casos, o que eu acho gravíssimo, porque têm condições para serem transparentes, e dizerem que estão a investigar este médico ou este advogado. E ninguém sabe. Eu posso ir a um médico que está a ser punido pela Ordem, e não sei, não é? Sabem eles, entre eles. No jornalismo não há uma Ordem, felizmente; eu fui dos que batalhei contra a Ordem. Não há nenhuma sanção directa sobre o exercício profissional, sobre o salário, não se pagam multas. Mas se eu, enquanto jornalista, for objecto de uma queixa ao conselho deontológico do sindicato, e o conselho deontológico apreciar e confirmar que eu violei uma norma, publica no site do sindicato: “o Paulo Martins violou o código”.

    E isso afecta a credibilidade.

    Isso é pior do que uma multa! Porque uma multa, eu pago e ninguém sabe; ali, o meu nome profissional fica marcado e ninguém sabe. Portanto, eu gostava que esse exemplo fosse seguido por outras entidades que tanto falam. Não é de originalidade portuguesa, é assim em vários países. A maior parte dos sindicatos tem instrumentos deste género. Depois, há a lei, mas a lei precisa de alguns aperfeiçoamentos. Mas também é preciso termos em conta uma coisa que “baliza” a intervenção regulatória: nós estamos a falar de um campo muito sensível. Não é a entidade reguladora do sector eléctrico, não é? Qualquer intervenção de uma entidade reguladora na área da comunicação pode ser sempre encarada como uma intervenção censória, mesmo que não queira ser. Portanto, é mais delicado, é mais difícil intervir. Ou então acontecem coisas como este absurdo da decisão sobre o Ricardo Araújo Pereira, que não tem o mais pequeno sentido. Primeiro, o Ricardo Araújo Pereira convida para o programa dele quem ele quiser. Segundo, a SIC não tem que andar à procura de quem aceite entrevistar alguém, porque as pessoas têm autonomia para o fazer, não é? Eu acho que o Ricardo Araújo Pereira respondeu bem, se ele fosse jornalista tinha o dever de ouvir todos e de falar com todas as áreas; para aquilo convida quem ele quer. E tem esse direito, aquilo é um programa de entretenimento. Portanto, isto para dizer que é fácil intervir em programas de entretenimento, dizendo estas coisas sem jeito [risos]. Intervir nos conteúdos, obviamente que não pode acontecer. Ou seja, há aqui sempre alguma limitação.

    Tu és um jornalista com muita experiência, um veterano que conhece o sector por dentro na sua versão moderna e pós-democrática, e também tens muita experiência no jornalismo desportivo, que se calhar ainda é o que agrega muito do que era o jornalismo de uma certa época...

    Isso tive há 30 anos [risos].

    Mas, hoje há, de facto, uma globalização; há esta força que é a Internet, as redes sociais, e a forma como as agências de notícias tiveram de se adaptar. E surge o churnalism, ou a reciclagem de notícias, com o risco de uma notícia não rigorosa, de repente, ser espalhada por todo o lado. Uma vez que também és professor investigador, o que te surge quando vês a forma como tudo isto funciona, sem haver balizas? Porque todos os dias nós vemos notícias replicadas assim…

    [pausa] Os jornalistas, se continuarem a privilegiar a rapidez na difusão da informação em vez do rigor, vão sempre contribuir para a desinformação, ainda que involuntariamente. Eu acho que, ao contrário do que acontecia, se calhar há 20 anos, não há nenhuma justificação para nós sermos rápidos a transmitir. Repara: uma coisa é teres uma grande investigação e quereres divulgá-la. É a tua investigação, promoves, muito bem. Outra coisa é eu ter uma notícia e querer transmiti-la a correr, e não sei se ela está confirmada. Isto não faz nenhum sentido, porque tu hoje tens muitos mais meios de acesso à informação. Hoje não falta informação; falta é garantir que é verdadeira. E, portanto, a nossa preocupação deve ser transmitir só quando tivermos a garantia de que posso “dar a cara” por esta informação. Os jornalistas que ficaram na História por causa do caso Watergate têm um princípio muito interessante: o jornalista deve apresentar a verdade disponível no momento – que é: o que hoje é verdade, e eu tenho condições para dizer e pude chegar a esta conclusão, amanhã pode não ser, porque houve uma evolução ou há um dado que eu não conhecia. Mas eu tenho é de ter a honestidade de dizer: até aqui é isto que eu sei. E não tenho nenhuma necessidade de correr. Para que é que eu corro? Para escrever que uma pessoa morreu, e afinal não morreu, como ainda recentemente aconteceu? Isso não tem nenhum sentido. Antes, nós dizíamos “li no Diário de Notícias”, ou “vi na RTP” ou na TSF, seja o que for. Hoje dizemos “vi na Internet”. E isto é destruidor para o jornalismo. Repara, eu não tenho nada contra as pessoas hoje se informarem de outra maneira, o papel está em desaparecimento, temos outros meios de transmitir a informação.  Mas o único antídoto que eu conheço para a desinformação não é de quem emite, é de quem recebe. O destinatário é que tem de confirmar, ver outros sites, porque mesmo os órgãos de comunicação mais prestigiados também estão vulneráveis à desinformação. Hoje, para se fazer desinformação eficaz usa-se precisamente o órgão prestigiado, porque as pessoas acreditam. Eu costumo usar este exemplo quando falo com os meus alunos, para se perceber que este fenómeno não é novo, só ganhou volume. Quando as forças da chamada coligação internacional invadiram o Afeganistão, o The Guardian, prestigiado jornal inglês, publicou na primeira página uma fotografia de um soldado inglês no Afeganistão que tinha sido enviada por um leitor benemérito. A fotografia era fortíssima, fantástica. Então, descobriu-se que tinha sido propositadamente enviada, que era um Action Man, e que a fotografia tinha sido tirada em cima de uma mesa com um bocadinho de musgo à volta para fazer de conta que estava num cenário de guerra. E o jornal desfez-se em desculpas. Porque é que se vai atrás do leitor que enviou? Hoje todos vão. O dito jornalismo do cidadão. Tu publicas fotos das cheias, mas não tens a certeza se as fotos são de hoje ou de há 10 anos, mas é o contributo do leitor. Então, e se a coisa der para o torto? É o jornal que divulga, e é o leitor que é responsável? Se calhar o leitor usa um pseudónimo [risos].

    Agora, todos os meios de comunicação social replicam notícias de agências, que podem até conter incorreções graves, mas também “lavam as mãos”; dizem que isto é da agência, que não lhes cabe confirmar, só replicam. Como investigador, vês uma forma de sair deste modo de fazer jornalismo? O jornalismo passa por verificar, não?

    Estamos a falar de duas realidades diferentes. Uma agência tem como missão enviar informação para os seus clientes, que são os órgãos de comunicação. E, portanto, se os órgãos de comunicação cumprem o seu dever de dizer: “isto é uma informação que veio da agência”, estão a imputar a uma fonte que consideram credível. O problema é quando usam material da agência sem o citar, e se a coisa dá para o torto dizem que foram os outros. Como aconteceu precisamente com a notícia da morte do historiador José-Augusto França, em que órgãos de comunicação, que foram atrás do que o Público escreveu – e antes de o Público ter pedido desculpa, e bem, pelo erro que tinha cometido –, não o citaram, e depois disseram “nós dissemos o que o Público disse”. Isto não é aceitável. Mas o problema de fundo é que os órgãos de comunicação estão a atravessar uma crise financeira, de tal modo, que têm de inventar receitas. E convencionou-se a ideia de que um título muito chamativo é mais replicado… e infelizmente nós estamos a contribuir para as pessoas terem como actividade replicar títulos, em vez de lerem notícias. Nós, jornalistas, contribuímos para isso, e contribuímos há muitos anos. A certa altura começou a dizer-se, e bem, que se escrevia imenso e que as pessoas não tinham tempo para ler tanta coisa, que tinha que se procurar escrever menos, sintetizar. Muito bem. A certa altura, sintetizamos tanto que já não dizemos nada que possa ser mais do que hard news.

    E visões diferentes. Hoje sente-se falta de visões diferentes. Tirando algumas excepções, há uma sensação de que é tudo muito parecido?

    É mimetismo. Mimetismo que, infelizmente, se incentiva os jovens a jornalistas a terem, porque os órgãos de comunicação criaram um sistema, e não é só cá, que é: “estamos todos a marchar no mesmo sentido”. Se um marchar fora da linha estabelecida vai ter de justificar por que não está a marchar como os outros. E, portanto, o mais cómodo é: “eu vou atrás”. E estamos todos a contribuir para visões uniformes da realidade; se cometermos um erro, os outros também cometem, porque estamos a caminhar no mesmo sentido… aquilo que mais me preocupa é isso. Talvez fosse a hora dos poderes públicos perceberem que nós temos que olhar para o jornalismo como um bem público. De cada vez que se fala em apoio público, é do Estado, mas não é do Governo. Há sistemas de apoio à imprensa na Europa que são completamente transparentes. Por exemplo, na Áustria é em função do número de jornalistas, ninguém pergunta qual é o partido ou a área política do jornal. Mas nós temos essa relutância, não queremos apoios do Estado, a começar pelos directores. Mas porquê, se o Estado apoia tanta coisa? Se apoia a Web Summit, e áreas da Economia que entende que são importantes, porque não apoiar a imprensa? Isso está mais do que assumido, por exemplo, naquilo que nós tanto queremos seguir, que são os países nórdicos. Todos os países nórdicos têm modelos de apoio à imprensa, porque entendem que é um bem público e portanto tem que ser apoiado.

    Se calhar há aquele receio da politização, mas que acontece na mesma, sem os fundos [risos].

    Acontece, por exemplo, com a publicidade institucional que é distribuída, aí sim, arbitrariamente pelos Governos. Que pode haver – não digo que haja – a suspeita de que beneficiam quem é benigno para o Governo, e prejudicam quem não é benigno. Estas acusações não são novas, são muito velhas [risos].

    Era melhor haver algo que tornasse mais transparente, digamos assim…

    A transparência é sempre a melhor receita. Qual é o problema de um jornal dizer “nós recebemos do Estado este dinheiro”? Toda a gente fica a saber, e se eu, enquanto consumidor da informação, achar que o facto de receber do Estado torna o jornal menos sério ou menos independente, o que é que hei-de fazer? Não compro. Eu costumo dizer que a independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa, porque no limite sou eu que vou a tribunal se as coisas correrem mal, não é o director nem o proprietário. Porque se eu não dependo do Estado, eu dependo do anunciante. Em que medida é que o anunciante influencia o meu trabalho? Pode não influenciar directamente, mas o jornalista pode não ter consciência de que está a fazer um trabalho que foi previamente encomendado por alguém.

    E sobretudo quando há jornalistas cada vez mais jovens nas redações; aquele jornalista veterano já é uma espécie rara…

    Sim, isso desapareceu… Voltando ao livro O Bairro dos Jornais, porque é que havia relativamente pouca concorrência na altura do Estado Novo? Porque os jornalistas tinham, do ponto de vista laboral, obrigação de trabalhar cinco horas para poderem trabalhar no Jornal da Tarde e no Jornal da Manhã ao mesmo tempo. Isto é, de manhã trabalhavam para o da tarde, e à tarde trabalhavam para o da manhã, cinco horas em cada sítio para terem um salário minimamente digno. Depois as coisas evoluíram. Nos anos 1970 já os salários tinham evoluído positivamente e avançaram bastante. Mas, nessa altura, era assim. O grupo dos jornalistas não era assim tão numeroso. Aliás, há uma história que eu não resisto a contar e que tem a ver com essa cumplicidade que se criava nos jornais. A certa altura, no tempo do Estado Novo, há um caso ou outro de jornalistas que foram punidos ou presos pelo que escreveram. Regra geral, não era por isso, mas porque estavam envolvidos em actividades consideradas subversivas e tinham problemas com a polícia por causa disso. Então, um dia, a PIDE foi buscar ao Diário Popular o Mário Ventura Henriques, que era da oposição, do Partido Comunista. Portanto, levou-o preso, e o administrador do jornal chamou um outro jornalista e disse-lhe: “vais à secretária do Mário Ventura Henriques e tiras tudo o que possa comprometê-lo, e levas tudo para o Diário da Manhã, que aí a PIDE não vai porque é do regime”. Isto foi o administrador que disse! Ou seja, isto é a solidariedade que se sobrepõe ao resto. Os jornalistas que foram presos por razões políticas, foram libertados, voltaram aos jornais, e durante o período de ausência os jornais continuavam a pagar-lhes os salários. O que era mal visto pelo regime, mas continuavam. E era assim, naturalmente. Portanto, as solidariedades sobrepunham-se às divisões políticas. Por exemplo, um jornalista que era o Félix Correia, que era admirador do Hitler, e era do regime naturalmente, tem dois episódios interessantes. Um é no dia em que um jornalista n’O Diário de Lisboa tinha acabado de ser libertado, no tempo do fascismo; e, quando chega ao jornal, a primeira pessoa que lhe vai dar um grande abraço é o Felix Correia, que era do regime. Então, o Félix Correia escreveu vários textos apologéticos do nazismo, do Hitler e do Mussolini n’O Diário de Lisboa, antes da guerra. Depois da guerra, o regime quis distanciar-se, naturalmente, do nazismo e do fascismo italiano. E resolveu compilar em livro as crónicas que tinha publicado n’O Diário de Lisboa e a censura disse: “não dá”. E ele disse: “mas eu já publiquei isto e agora foi à censura?”; e disseram-lhe: “sim, mas as coisas mudaram, portanto agora não podes publicar o livro” [risos]. Eu acho uma coisa muito curiosa. No pós-guerra, o regime quis aproximar-se dos Aliados, e, portanto, não dava jeito nenhum.

    Voltando à memória nas redações. Eu tive a sorte de trabalhar com jornalistas que cobriram a passagem para a democracia, o que é de uma riqueza incrível. Tu também conheces bem as redações de hoje, que são muito diferentes. E os jovens jornalistas encontram hoje pouca memória. E, mesmo pesquisando no Google, não se encontra toda a informação e não se vai aos centros de documentação onde antes tínhamos que ir buscar a informação.

    O problema é que os jornalistas jovens chegam à redacção e não só não têm a memória dos mais velhos como não têm quem os apoie. São logo atirados às feras. Passam logo a ter que escrever várias notícias por dia sem apoio nenhum. Eu sou membro da direcção editorial da revista Jornalismo & Jornalistas, que está disponível online, e na edição que está mesmo prestes a ser disponibilizada, nós entrevistamos o Fernando Dacosta, que é este ano o Prémio Gazeta do Jornalismo. E ele conta como lhe dava prazer ser orientador dos estagiários, porque achava que aprendia sempre qualquer coisa nova com a malta que aparecia. Isso já não existe. Quem é que ajuda um estagiário hoje em dia? Quer dizer, aquele estagiário passa por ali, depois vem outro também muito barato, e o que interessa é encher páginas. Isso é muito preocupante para a democracia, porque nós precisamos de jornalismo interventivo e que ajuda à reflexão. Jornalismo que trabalhe para o interesse público e que satisfaça o direito de todos nós à informação, que no fundo é, basicamente, ajudar-me a tomar decisões. Ora, eu não consigo ser ajudado a tomar decisões quando as notícias são feitas sem contemplarem várias vertentes e visões, que, aliás, é uma exigência deontológica, tal como o rigor, já agora. O Código Deontológico fala em rigor, e convinha que fosse preservado. E, portanto, nós estamos, de facto, a alimentar um negócio que obviamente está em crise. E eu não estou a defender que os jornais não devessem dar lucro, claro que têm de dar lucro, não é? Ter um jornal como o Público, que é alimentado por um grupo e que dá sempre prejuízo, é inédito e não acontece com frequência. Felizmente, tem um mecenas, enfim. O Fernando Dacosta, já agora, também conta nessa entrevista – ele foi um dos fundadores do Público, também – uma história. Numa reunião, num espaço público, ou seja estavam várias pessoas, questionaram o Belmiro de Azevedo, o líder histórico da Sonae, proprietária [do Público], sobre o dinheiro que ele estava a gastar ali, e ele respondeu qualquer coisa como: “antes de eu ter um jornal, eu era conhecido pelo Belmiro dos supermercados, agora, com o jornal, eu sou convidado para as universidades e passei a ser uma pessoa importante. Ora isso também custa dinheiro!”. Portanto, para ele era um investimento social, sem precisar de meter a unha no jornal, de fazer censura. Repare, o jornal diz, sempre que escreve sobre a Sonae, que é proprietária do Público, e muito bem! Sempre a transparência, lá está.

    Temos tido dificuldade, como jornalistas no PÁGINA UM, em encontrar, sim, transparência em algumas entidades, até da Administração Pública. Era expectável que no século XXI, quando deveríamos poder ter acesso a mais informação, houvesse este fechar do acesso de jornalistas a informação por parte de entidades públicas?

    Não é só os jornalistas, é também os cidadãos. Os jornalistas, pela sua função, têm de ter. Nós, em Portugal, temos uma tradição de fechamento, de ocultação, da ideia de que a Administração Pública não tem de divulgar informação. E, do ponto de vista legislativo, fomos caminhando, felizmente no sentido contrário: tudo é público, excepto aquilo que não pode ser divulgado por razões de privacidade, segurança nacional. O problema é que, na prática, a teoria é outra, como alguém dizia. Por exemplo, o meu querido amigo José António Cerejo, um extraordinário jornalista de investigação, já teve problemas, várias vezes, em ter os documentos que formalmente deveriam estar no Portal Base, mas depois está rasurado aquilo que importa. Ele chegou ao ponto de ter, por exemplo, um contrato de uma Câmara Municipal com uma empresa e o que estava rasurado era o nome da presidente da Câmara e o nome da empresa. Portanto, isto não é nenhuma transparência, isto não é divulgar informação; é escondê-la. Mas a União Europeia fez a mesma coisa, quando forçada a divulgar informação sobre os contratos de compra das vacinas [contra a covid-19] e a quem tinha comprado as vacinas, divulgou o contrato menos o valor. Ou seja, o valor ficou apagado! Ou seja, nós gostamos muito da transparência, mas é quando é com os outros, connosco não dá. Eu acho isso preocupante. Repara: hoje, nós podemos fazer extraordinários trabalhos jornalísticos, apenas com dados públicos, que são cruzados. Não estamos a ir por debaixo da mesa, nem às escondidas, não, são dados públicos. Nós sistematizamos porque é esse o nosso trabalho, enquanto jornalistas. Se alguém percebeu que, quantos mais dados públicos tem, mais prejudicado pode ser, isto é preocupante. Porque é para o cidadão! O Portal Base existe para todos nós, incluindo os jornalistas, mas não só.

    E no Portal Base é muito comum estarem os contratos, mas sem os respectivos cadernos de encargos. Ou seja, o contrato remete mais informação para o caderno de encargos, o qual não está acessível.

    Exactamente. Nós fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos. Não temos, de todo. E, pior do que isso: depois, mesmo quando os tribunais decidem num determinado sentido, as entidades continuam a ignorar, continuam a fazer de conta.

    E recorrem das sentenças.

    Recorrem e desrespeitam mesmo, no limite.

    E recorrem usando dinheiros públicos. Como é um jornal pode ir continuando a gastar…

    Essa é a maior arma do poder, seja ele qual for, pode, o poder económico, político, clubístico, já agora – têm muito poder. Essa é a maior arma: processos por difamação, a pedirem 20 milhões de euros de indemnização.

    Para silenciar.

    Para silenciar. Isso rebenta com um jornal. Nós, felizmente não temos jornalistas presos por difamação como até há pouco tempo até na União Europeia existia. Até na União Europeia, casos desses existiam. Nós não temos casos desses. Mas depois temos essa arma: eu meto um processo de 20 milhões de euros, obrigo o órgão de comunicação social a contratar uma equipa de advogados caríssima sem garantias de sucesso. É muito complicado.

    É o chamado SLAPP [Strategic Lawsuit Against Public Participation].

    É uma forma de pressão como outra qualquer. E é normalmente de pressão mais silenciosa. Eu gosto de ouvir quando há uma reportagem, alguém vir anunciar que vai processar porque é sinal de que não vai processar coisa nenhuma. Anunciou e depois não processa coisa nenhuma, não há processo judicial. Os que ficam calados e vão fazer esses pedidos de indemnização brutais é que sabem que estão a… Aliás, convém dizer que um antigo presidente do Supremo Tribunal defendia abertamente isso: “vão onde lhes doem”, disse uma vez publicamente. Quando se sentirem afectados pela comunicação social, peçam indemnizações brutais que aí é que lhes dói – para destruir a comunicação social, objectivamente.

    Falando de silenciamento, de repente muitos jornalistas descobriram que existe censura nas redes sociais. Houve agora o caso no Twitter mas também há casos no Facebook. Eu, por exemplo, tive a minha conta bloqueada durante um dia e agora está escondida durante um mês por partilhar uma notícia de um jornal português sobre uma sentença de um Tribunal em Portugal. É uma forma das “big techs” destruírem a reputação de um jornalista ou de um órgão de comunicação.

    Elisabete, isso dava outra entrevista. Faço um ponto prévio, que é uma declaração de interesses: não faço parte de nenhum desses clubes, não sou do Facebook, nem do Twitter. Porque não resistiria a não participar em debates, a responder, e depois não fazia mais nada na vida, portanto, não faço parte. Mas salvaguardo o seguinte: o Twitter, o Facebook – agora, a Meta -, são empresas privadas. Na casa dos privados entra quem os privados querem. É o mesmo princípio do Ricardo Araújo Pereira. Eu percebo o desconforto de jornalistas que escreveram contra o Elon Musk – e independente do que penso do que Elon Musk possa estar a fazer ou não no Twitter, não é isso que está em causa  –  o Twitter tem o direito de dizer que só queremos estes sócios. Não é uma entidade pública, é uma entidade privada. Tinha acontecido o mesmo com Trump. Têm todo o direito de fechar. Se quisessem, podia fechar a porta a Ronaldo ou a outro qualquer. Nós não podemos exigir liberdade de expressão a uma empresa privada. Quer dizer, não se trata sequer de ter liberdade de expressão ou não. Trata-se de fornecer um dispositivo tecnológico para tu te expressares. Esse é que é para mim o problema de fundo, que é quem fornece a plataforma para tu te expressares não tem nenhuma responsabilidade sobre o que tu publicas. Tu, eu. Como é que podes responsabilizar alguém que transmitiu discurso de ódio, desinformação – desinformação já matou gente, como sabemos. Como é que podes responsabilizar se as plataformas que dão a bicicleta para pedalares, dizem: dou a bicicleta, mas não tenho nada a ver com o pedal. Isto não pode ser. Em algum grau – e estão a discutir isso nos Estados Unidos – as plataformas têm de ser responsabilizadas porque senão, no limite, nós não conseguimos responsabilizar ninguém porque vamos descobrir um perfil falso, uma pessoa que usou um pseudónimo,… não vale a pena. As redes sociais, genericamente, essas plataformas, nasceram com aquela ideia muito nobre de que “agora temos aqui uma plataforma de opinião e de participação cívica e de participação cidadã”. E hoje têm a participação cidadã, o discurso de ódio, a mentira. Incluindo, por exemplo, nos comentários dos órgãos de comunicação – a mesma coisa. O jornal Público criou um novo sistema de moderação dos comentários em que primeiro as pessoas são testadas. Rapidamente se percebeu – e eu gostaria que o Público reponderasse isso – que aquele espaço já esta lixo como os outros todos. Porque quem quem fazer isso, primeiro porta-se bem, e durante algum tempo, para depois fazer o que lhe apetece: racismo, xenofobia, discurso de ódio, tudo passa por ali. O Público pode dizer: “não tenho nada ver com isso, é de quem comenta”. Eu olhos para aquilo e a maior parte não são nomes verdadeiros, são nomes inventados para participar, vou responsabilizar quem?

    Já para não falar dos bots que é um dos grandes problemas das redes sociais…

    Pois, isso já é mais complicado.

    Aí já estamos a falar de máquinas, de uma indústria totalmente diferente.

    E o que isso causa. Eu, numa das disciplinas de que sou responsável, no segundo semestre, vou começar a dar agora em fevereiro, que é precisamente “Fundamentos do Jornalismo”, eu começo por mostrar um vídeo de “deep fakes”, ou seja, estás a ver uma pessoa que está a dizer aquilo que nunca disse. Como é que a maior parte das pessoas, que não tem o mínimo conhecimento tecnológico, já não é literacia mediática sequer, mas conhecimento tecnológico, pode perceber que aquilo não é verdade. “Não é verdade? Eu vi a pessoa a mexer o lábio, como não é verdade?”.

    Até mesmo jornalistas que vejam um…

    Vi uma giríssima que era Trump a falar açoreano, português dos Açores. É fantástico, como brincadeira. Agora, como é que a maior parte das pessoas olha para aquilo? Olha como sendo autêntico. Pode pôr na boca de quem quer que seja uma mentira descarada e acreditas. Estás a ver um vídeo.

    E com a inteligência artificial, que pode inclusive substituir jornalistas – daria para outra entrevista -, o Chat GPT…

    Vivemos tempos muito desafiantes. Depois, não é só a sociedade que está à mercê disto, são os próprios políticos das varias áreas que hoje vulgarizam o uso das redes sociais para transmitir opinião, para transmitir decisões.

    Para fazerem anúncios. Eu aderi as redes sociais porque políticos estavam a fazer anúncios nas redes sociais.

    É muito difícil tu travares isso. Claro que não travas, a Internet é, por natureza, libertária. Não dá. Só dá para nós nos protegermos enquanto cidadãos. Eu tenho é que desconfiar daquilo que me estão a dar. Agora terminas a entrevista e tu pões aqui, com a minha voz, eu a dizer mais não sei quantas coisas que eu não disse, não é.

    Poderia, mas não vou fazer [risos]…

    As pessoas têm que estar alertadas para esta possibilidade, isto pode acontecer. Não é só a reportagem escrita que dizem umas mentiras, é um vídeo em que as pessoas estão a dizer aquilo que nunca disseram e isso é preocupante.

    Fotografias: André Carvalho

    Transcrição: Maria Afonso Peixoto


    Oiça a entrevista no PODCAST do PÁGINA UM (actualmente de acesso livre)

    Se desejar, pode subscrever, desde já, os podcasts do PÁGINA UM, aqui, como forma de apoio ao desenvolvimento do nosso projecto de áudio.

  • ‘A era da democracia está praticamente no fim’

    ‘A era da democracia está praticamente no fim’

    O que acontece quando Boštjan Videmšek, um dos melhores jornalistas de investigação do mundo, se especializa na crise ambiental grave que vivemos? Um dos resultados é o livro ‘Plano B – Como manter a esperança em tempos de crise climática’, que conta com fotografias de Matjaz Krivic, e que estreia agora a sua edição em português, pela mão da Editora Perspectiva. A obra, que estará disponível nas livrarias na próxima semana, conta com um prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e um dos mais reputados especialistas portugueses em alterações climáticas. De visita a Lisboa, Videmšek concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM e abordou não só a actual crise ambiental, mas também o eventual iminente fim da democracia no mundo ocidental e a grave crise no jornalismo, que foi observada durante a pandemia de covid-19. Além de jornalista de guerra premiado, Videmšek é também embaixador do European Climate Pact da União Europeia na Eslovénia, activista do clima, assessor do presidente da Eslovénia para o Clima, European Young Leader e atleta de ultra-maratonas. Como jornalista, cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998. Especializou-se em refugiados, migração e, mais recentemente, na crise ambiental e nas consequências provocadas pelas alterações climáticas. O reputado jornalista escreve no prestigiado diário esloveno DELO e em várias publicações europeias e norte-americanas. Nesta entrevista, Videmšek não tem papas na língua nem põe paninhos quentes: diz que a era da democracia já acabou e estão a regressar regimes autoritários ao Ocidente; está desapontado com a má qualidade dos media mainstream, que alinharam na propaganda e na cultura de cancelamento, promovendo ‘monotemas’ sucessivos. Defende que “é impossível combater a crise climática sem democracia” e que “todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade”. Até porque “sabemos quem são os grandes emissores” de CO2.


    Fez uma grande mudança na sua vida, de repórter de guerra para algo completamente diferente. Foi fácil?

    Sim, foi muito fácil fazer a mudança [risos]. Porque, depois de mais de 20 anos a trabalhar como repórter de guerra, quando iniciei este livro e este projecto, pela primeira vez, em muitos anos, senti-me seguro e confortável. Não tinha de me preocupar com a minha segurança, nem de ter constantemente olhos nas costas por causa de questões logísticas para chegar ao fim do dia são e salvo. Para além disso, não houve um desfasamento cognitivo em relação ao tópico, porque é praticamente o mesmo. É sobre crises. Mas esta é, na minha opinião, de longe, a crise mais importante, não só para o nosso tempo como para as gerações vindouras. Portanto, a abordagem foi mais ou menos a mesma, mas claro, sem a preocupação com a segurança. Foi simplesmente ir a sítios, falar com as pessoas e pesquisar – com tempo e recursos limitados, claro. A última parte do livro foi escrita já durante a crise da covid-19 e isso acabou por alterar o conteúdo. Alguns capítulos não ficaram, porque foi impossível viajar a partir de Março de 2020.

    Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM. (Foto: Paulo Alexandrino)

    Então, sobrou material para um novo livro…

    Sim, já está disponível em The Last Two – Os dois últimos rinocerontes brancos do Norte e as espécies funcionalmente extintas –, que é um livro sobre salvar as espécies e é muito parecido com Plan B: How Not to Lose Hope in the Times of Climate Crisis. É muito virado para soluções e respostas. Claro, questiona constantemente, mas também dá respostas. Penso que se tivermos experiência suficiente, conhecimento, tempo no terreno, jornalistas para falar com o público e canais abertos para contar as histórias… se somos reconhecidos publicamente como contadores de histórias, então temos a responsabilidade de oferecer também respostas e soluções, e não apenas perguntas. E essa é a principal premissa ou lógica por trás de Plan B e de The Last Two.

    Foi desafiante planear e materializar o livro, logisticamente?

    Depois de 20 anos a ser repórter de guerra, tudo é fácil. Passei para uma zona de conforto. Comparando com a experiência anterior, foi como passar de maratonista para ter um trabalho tranquilo à tardinha. Muito mais fácil. Claro que envolveu muitas viagens, e tudo o mais… Mas já não estava num cenário onde as pessoas poderiam querer matar-me! Foi do género: “boa, aqui ninguém me vai dar um tiro! Até me recebem bem!”. Houve alguns casos estranhos em que não fui tão bem-vindo, mas faz parte do trabalho. Se tivermos motivação suficiente, as coisas são fáceis. E se estivermos seguros a trabalhar. No livro, as fotografias, tiradas pelo co-autor, Matjaž Krivic, são de uma beleza incrível. Visitámos sítios muito bonitos. E é gratificante, depois de ver tantas áreas destruídas, cidades arrasadas e caixões, poder ver falésias na Noruega, ilhas incríveis… é completamente diferente.

    Um alívio, portanto…

    Tenho que dizer que, para mim, pessoalmente, e também como jornalista, foi um escape gigante. Não foi meramente uma decisão profissional, também foi uma necessidade de fazer algo mais calmo. Contudo, falar de escapismo e relaxamento no contexto de uma crise climática é uma grande ambiguidade ética. Por isso, aqui estamos nós numa dissonância cognitiva, que é omnipresente. Especialmente agora, que o foco mudou e foi totalmente destruído. Porque saltámos de um tema para o outro: primeiro, foi a covid-19; depois, a guerra na Ucrânia; e, este ano, está a ser o mais quente e seco. Ontem, no meu país, Eslovénia, tivemos uma temperatura média, durante o dia, de 26.1 graus Celsius. E estamos a falar da Europa Central. Ainda esta manhã, estava a ler as notícias da Grécia, que é o meu segundo país, e as manchetes diziam: “25 graus no início de Novembro”! Isto é um problema. Nós vemos estas temperaturas como uma coisa agradável: assim podemos ir à praia. Mas, na verdade, devíamos estar profundamente preocupados. As mudanças estão a acontecer tão rapidamente que nem conseguimos compreendê-las, e não me refiro só às alterações climáticas. Evolutivamente, não estamos adaptados para estas mudanças, o nosso ADN não é capaz. E é por isso que parecemos tão estúpidos, como espécie.

    (Foto: Paulo Alexandrino)

    Há décadas que ouvimos falar de uma crise climática, da necessidade de proteger o ambiente, e da poluição, especialmente em países pobres. E também do problema do desperdício. Mas não temos visto grandes mudanças no que toca às políticas. O que é que o leva a crer que será possível fazer algo e conciliando a salvaguarda da democracia e dos direitos humanos com o ambiente e a economia?

    Já deu a resposta: é impossível combater a crise climática sem democracia, sem o conceito de direitos humanos e justiça climática. É completamente impossível abordar esta crise alarmante sem a chamada culpa de primeiro mundo, sem responsabilidade… Alguns são mais culpados do que outros, mas todos sofremos as consequências – oficialmente, diz-se que todos sofremos de igual modo, mas não é verdade. É impossível descrever o sofrimento em Sahel, por exemplo, ou das Ilhas baixas do Pacífico. Para nós, que estamos em Viena ou em Lisboa, a situação não é igual. Para nós, o tempo está um pouco mais quente e seco – vai piorar ainda mais, é claro –, mas neste momento ainda estamos numa zona de conforto. Várias partes do mundo já estão a viver aquilo que vai ser o futuro do clima. E este devia ser o nosso principal foco. Mas, ao vermos o que está a acontecer, não estamos a reagir porque ainda existe uma réstia de “pensamento mágico”, de romanticismo e de acreditar que “tudo vai ficar bem”. Mas que raio? Não, não vai ficar tudo bem!

    Já existe muita informação, há décadas, mas falta acção.

    Temos todos os dados e relatórios a dizer que estamos à beira de um grande colapso. Os últimos relatórios de várias agências das Nações Unidas, da semana passada, dizem exactamente isso. É praticamente impossível atingirmos o objectivo dos 1.5 graus. A este ritmo, estamos a caminho de um aumento global da temperatura entre 2.5 a 2.7 graus, e isso já significa um colapso climático total. E, OK, temos o novo Green Deal e o European Climate Pact, mas é “dinheiro de helicóptero”, foi durante a covid-19 e agora já está meio esquecido, e voltámos aos combustíveis fósseis. O gás natural, que é a principal arma de Vladimir Putin, foi escolhido como o “substituto verde” pela União Europeia, a par com a energia nuclear! Se esta é a solução, então estamos mesmo tramados. Irremediavelmente tramados. E merecemos estar.

    Sobretudo, porque existem tecnologias, energias “limpas” que podemos usar.

    Sim. Está tudo ao nosso dispor, a tecnologia já nem é uma questão. A energia solar é 10 vezes mais barata e eficiente do que era há 10 anos atrás. A energia eólica… Claro que todas estas tecnologias têm efeitos colaterais, mas nós não estamos em posição de arranjar problemas para todas as soluções. Porque é muito fácil, na nossa zona de conforto, dizer que esta ou aquela solução não são boas o suficiente. Mas isto é uma guerra, e em tempo de guerra não se limpam armas. E toda a gente tem de estar envolvido, até os “culpados” e as grandes corporações. 

    (Foto: Paulo Alexandrino)

    Para mim, que nasci nos anos 70, começar agora a ver-se defender a energia nuclear é um choque total, porque não era algo em que pensássemos, as pessoas da minha geração. E, ainda mais, com a tecnologia que temos hoje. Como é que vê esta solução que está a ser posta em cima da mesa?

    Já foi posta em cima da mesa há anos atrás. Não podemos esquecer que França, por exemplo, sempre esteve muito virada para a energia nuclear. Tal como os Estados Unidos, a Coreia do Sul… os pequenos reactores nucleares são um grande negócio, agora. Não me surpreende, porque nós estamos sempre à procura de soluções rápidas. E há os lobbies nucleares. Dizer que é baixo em emissões, é verdade, mas não é de baixo risco. Falar-se em baixo risco no que diz respeito à energia nuclear é preocupante; e os resíduos radioactivos… Na União Europeia, a Alemanha foi sempre a protagonista das políticas verdes. E agora, os Verdes alemães estão a pedir o retorno do carvão a apoiar totalmente a venda de armas. Claro, a Ucrânia precisa de armas, mas temos que salientar que o partido verde mais importante da Europa foi formado numa perspectiva anti-nuclear e anti-guerra e agora estão a fazer tudo ao contrário. Quer dizer, as coisas mudaram. E não haveria Ursula Von der Leyen [na presidência da Comissão Europeia] só não fosse Ska Keller [deputada no Parlamento Europeu] e ‘Os Verdes’ europeus. Isso foi um grande sucesso para os Verdes na Europa, mas onde é que eles estão agora?

    Outra coisa que me espantou tem a ver com os carros eléctricos na Europa. Porque, para mim, o que faria sentido seria investir nos transportes públicos e reduzir o número de carros a circular. Mas as políticas dizem que as pessoas têm que substituir o seu carro por um eléctrico, o que significa mais desperdício, para além de implicar a produção de baterias, que é algo que não sabemos como é que podemos reciclar. Comprar um novo carro será a solução? Como é que se pede aos cidadãos para mudarem de hábitos, quando se continua a priorizar o consumo e o lucro das empresas?

    Concordo em absoluto com o que disse. É assim que penso também [pausa]. A solução é menos, e não mais, claro! Há vários problemas da mobilidade eléctrica que não estão a ser abordados. Para mim, a questão principal é de onde vem a electricidade. Se vier de centrais eléctricas a carvão ou de energia nuclear, então, é contraproducente. Depois, claro, há o preço. O preço de uma grama de lítio aumentou em 400% no último ano. E isso afecta directamente o preço de um carro eléctrico, cujo custo principal é o da bateria. Os carros eléctricos não estão ao alcance de toda a gente, são caros. É verdade que depois a manutenção é praticamente zero e implica menos gastos, mas em tempos de crise – e vivemos em tempos de crise sob todos os prismas possíveis –, as pessoas não vão optar por um carro eléctrico quando têm de se preocupar em como vão manter as suas casas. É uma má altura para fazer a transição, eu diria.

    Então, não são uma solução…

    Por outro lado, as grandes petrolíferas estão a viver o melhor momento das suas vidas. A Shell e a Total Energies quase duplicaram os seus lucros nos últimos três meses. Ambas tiveram um lucro de 10 mil milhões de dólares, o que é um recorde absolutamente histórico. E toda a indústria fóssil arrecadou 4 biliões de dólares nos primeiros nove meses deste ano. É o valor mais alto de sempre. Os combustíveis fósseis são os únicos vencedores do conflito russo-ucraniano, e não é apenas no curto prazo. Antes da pandemia, já se conseguia sentir e ver uma transição na União Europeia, com as políticas verdes, havia muito dinheiro a ser alocado… Depois, tivemos Joe Biden a tornar-se presidente, e o New Deal americano. Havia uma ideia de que esta transição podia resultar. Mas nós perdemos o foco com a pandemia, que passou a ser o monotema, e agora temos o monotema da guerra. E eu acho que a crise climática vai dominar as nossas vidas, mas nós não vamos dominar as políticas.

    (Foto: Paulo Alexandrino)

    Sobretudo, porque os governos, como em Portugal, estão a lucrar com o enorme consumo de combustíveis, por exemplo, e não querem abdicar disso. Os políticos não ganham com o abdicar disso.

    Depois de termos tido o ano mais quente na História, não sei o que mais precisamos de saber ou de ver…

    Mencionou o lítio. Em Portugal, temos algumas empresas que querem iniciar essas explorações, mas não é fácil, devido aos impactos nas populações e na vida animal. Qual é a sua visão sobre isso. Pensa que pode ser uma solução?

    O projeto de exploração de lítio que é abordado no livro, que fica na Bolívia… as duas principais fontes de água foram privatizadas por empresas chinesas que estão lá a trabalhar. Temos estas histórias más sobre o lítio por todo o mundo. Acho que o que se passa na Sérvia também é semelhante com o caso de Portugal: quiseram fazer explorações de lítio mas as populações contestaram. Vemos que esse ativismo na Sérvia foi forte e eu gosto disso, as pessoas não foram na “conversa” porque sabem que não ganham muito com esta transição para a mobilidade eléctrica. Mas há poucos casos assim. O maior problema é que, neste momento, cerca de 70% do fornecimento de lítio é controlado pela China. Portanto, não se trata de uma preocupação ecológica ou ambiental, mas política. A China está a controlar o mercado do lítio. Nestes primeiros estágios de uma Nova Ordem Mundial, isto pode afectar as nossas vidas a todos níveis e não só em termos da mobilidade eléctrica, porque o lítio está presente em todos os nossos aparelhos electrónicos. A história dos chips e de Taiwan… Parece que toda a tecnologia está dependente do que se produz em apenas um ou dois sítios. A globalização tem efeitos colaterais e está a atuar em reverso agora. Vivemos tempos muito interessantes. Este livro foi escrito há dois anos e não o considero muito atualizado em alguns aspectos. Claro que foi escrito na altura em que foi e está feito, mas, sob a perspectiva actual, mudaria certas coisas que escrevi. Eu não tinha como prever a covid-19, nem a questão dos chips. A transição tecnológica agora está num intervalo, e veremos se haverá uma segunda parte.

    Boštjan Videmšek e o fotógrafo Matjaz Krivic, co-autores das reportagens que integram o livro Plano B.

    E a pandemia trouxe a questão da produção local de bens. Na União Europeia, devem ter percebido que, se calhar, deviam produzir certos produtos, porque seria melhor para o ambiente e também para a economia. Seria mais sustentável e seguro.

    Sim, é por isso que eu digo que a globalização está a reverter-se, porque atingiu um limite e agora está a voltar para trás de algum modo… Mas não de um modo “Make America Great Again”. É um processo natural.

    Acredita que os cidadãos podem fazer muito pelo ambiente, quando temos políticos a dar licenças a explorações de lítio, e a dar incentivos que beneficiam as indústrias para produzir carros eléctricos…?

    Acredito que todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade. Porque sabemos quem são os grandes emissores, e isto de colocar a culpa nos cidadãos… livro Climate Crisis que explica perfeitamente bem como, por exemplo, o lobby do tabaco, através de publicidade, colocou a culpa nas pessoas por fumarem. Primeiro viciaram as pessoas e, depois, é que colocaram o alerta “fumar mata” nos maços, dizendo que era uma escolha que elas faziam. É muito parecido com o que acontece com outras indústrias e com a crise climática, e são indústrias tão poderosas que não podemos fazer nada, é maior do que nós. Isto cria uma ansiedade colectiva e individual, e é a melhor coisa para o status quo.

    Em Portugal, durante e depois da pandemia, as grandes empresas cotadas na bolsa tiveram lucros astronómicos. E foi assim em todo o mundo. Portanto, não parece que estamos numa crise económica, de todo. E mencionou o vício e o tabaco, mas o consumismo também é um vício. Tudo isto é algo difícil com que se lidar…

    Na minha opinião, o maior desafio é que a tecnologia e as redes sociais reduziram o nosso limiar de atenção. Porque, para fazermos alguma coisa e empreendermos uma mudança, precisamos de foco. O foco é necessário para tudo, desde o amor à criação, e nós não temos.

    E a nossa responsabilidade enquanto jornalistas? Porque eu sou jornalista há mais de duas décadas e fiquei muito desapontada com o trabalho dos media, especialmente durante a pandemia. Para mim, foi terrível. E o mesmo com a guerra na Ucrânia… sobretudo os media mainstream, alinham na propaganda e na narrativa dos políticos.

    Concordo absolutamente.

    O que é que nós, jornalistas em todo o mundo, podemos fazer para transmitir a mensagem de que esta é uma crise real e que tem de ser resolvida?

    Primeiro, não podemos fazer cedências a ninguém, nem aos editores nem aos diretores. Se não resultar, paciência. E nunca fazermos de nós a estrela, nesta era da ditadura do eu. Temos que usar o plural tanto quanto possível, para apelar ao conceito de sociedade e de solidariedade. E isso significa estar no terreno com as pessoas, seja na Ucrânia ou num hospital em Bujan. Na minha opinião, temos de estar fisicamente presentes, porque se não estivermos, não pode haver credibilidade. E isso implica correr riscos profissionais, económicos e sociais. Até mesmo culturais, riscos muito pessoais, em que sabemos que, à partida, nestes tempos de opiniões rápidas e de glorificação instantânea, o trabalho de duas ou três semanas de investigação não pode competir com a opinião de trolls. Temos de ignorar isso.

    Matjaz Krivic e Boštjan Videmšek

    Pensa que a democracia pode ficar em risco mediante algumas medidas que possam ser implementadas para alegadamente combater a crise climática e ambiental? Em muitos países, incluindo países da União Europeia, como Portugal, vimos políticos a aproveitar para reforçarem poderes com a desculpa da covid-19 e a democracia foi afetada em muitos países, como Portugal.

    De forma irreversível.

    Qual é a sua perspectiva sobre este tema?

    Espero que a covid-19 não tenha sido um ensaio. E vivemos tempos que que os regimes totalitários e autoritários estão a regressar. Consegue-se sentir. É extremamente perigoso. A ideia de que boas coisas estão a acontecer na China que afectaram muito a mentalidade ocidental. E temos que admitir que a janela de sociedades abertas, da democracia, das sociedades liberais, é muito pequena. Desde o final da Segunda Guerra Mundial… No meu país, a Eslovénia, é um período de 32, 33 anos. É um período histórico muito curto. Não é a única verdade sobre quem somos. Talvez estes regimes autoritários que estão a voltar a estar vivos de novo, estão mais enraizados do que estamos preparados para admitir. Voltando para a pergunta sobre a situação atual no Jornalismo, estamos na linha da frente para lutar por uma sociedade livre e aberta e para educar. Está completamente certa sobre o que aconteceu na pandemia e aceitámos esta uniforme – não verdadeira – narrativa. Nós (jornalistas) não fizemos perguntas suficientes e, definitivamente, não fizemos as perguntas certas. Por outro lado, sobre a guerra na Ucrânia, com a crise climática, é similar.

    E tivemos censura, com cientistas de topo. Pode, de novo – como foi na pandemia de covid-19 –, a Ciência ser desviada por visões ideológicas e políticas no combate à crise climática, no futuro?

    Vejo muito disso. Penso que algo horrível está a acontecer. No meio científico. Penso que as redes sociais, através de algoritmos, temos agora a narrativa anti-crise climática a regressar. A solução é uma auto-educação muito agressiva. Não temos tempo agora. É uma batalha, é uma guerra.

    Boštjan Videmšek, à esquerda, no Iraque, em 2006. Ao centro, o seu melhor amigo,
    o jornalista David Beriain, que foi morto no Burkina Faso em 2021. (Foto: Jure Eržen)

    Com as medidas implementadas na covid-19, os jornalistas fizeram o oposto, na minha óptica, especialmente sobre a vacinação obrigatória, com os confinamentos, porque existiam cientistas a fazer alertas para os riscos e a apontar que não havia soluções rápidas e fáceis. Muitos media alinharam com a censura, até aos dias de hoje.

    E a cultura de cancelamento. E também aconteceu no mundo académico.

    Podemos ter a verdadeira Ciência de volta, a racionalidade de volta, e o Jornalismo verdadeiro de volta? Ou vamos permanecer neste lodo?

    Não quero mentir. Nesta altura não estou realmente optimista. Sobretudo com a guerra na Ucrânia, o que vejo é que a empatia, a solidariedade, o interesse humano, já não existe. Por outro lado, por exemplo, o Iémen saiu completamente do mapa. Penso que o que aconteceu na covid-19 foi – o que chamo no meu novo livro – a “Revolução Anti-social”. Este é o sucesso de toda a ambição totalitária. É uma prenda para os opressores porque é necessária a sociedade, a solidariedade, para se lutar. Durante a covid-19, vimos a loucura global e, ao nível político, o que vejo é a vontade cada vez maior de oprimir e oprimir cada vez mais. Penso que a era da democracia está praticamente no fim.

  • ‘Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes’

    ‘Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes’

    A psicóloga Laura Sanches foi, durante a pandemia, uma das vozes mais activas em defesa das crianças e de medidas baseadas na evidência. Esteve contra restrições prejudiciais para as crianças, como o encerramento de escolas e a imposição do uso de máscaras. A Ciência deu-lhe razão, mas continua, ainda hoje, a enfrentar dois processos na Ordem dos Psicólogos, devido a duas denúncias, uma das quais que a acusa de afirmações que nem fez. Apesar disso, a Ordem abriu-lhe um processo na mesma. O seu activismo não espanta: é filha da magistrada Maria José Morgado, rosto do combate ao crime e à corrupção em Portugal, e do fiscalista Saldanha Sanches, falecido em 2010. Nesta entrevista intimista ao PÁGINA UM, também realizada a pretexto do livro que publicou recentemente, Como educar crianças desafiantes, Laura Sanches fala dos muitos desafios que as mães e os pais enfrentam, nos dias de hoje, e ainda aborda a sua decisão de adoptar um estilo de vida mais equilibrado e saudável, que lhe permite acompanhar de perto os filhos.


    Existe a máxima de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Pareces ser alguém que segue mesmo essa máxima. É mesmo assim?

    Sim, eu acho que tento fazer aquilo que prego, como se costuma dizer. E sim, tento tomar todas as opções que, no fundo, acho que me trazem mais qualidade de vida e que poderiam contribuir também para a qualidade de vida dos outros.

    Trabalhas na cidade, mas tens um estilo de vida que procura ser mais equilibrado e sustentável, não é?

    Sim, as escolhas que fiz… Aliás, eu venho a pé para o trabalho, porque consigo, tenho esse privilégio. Também tive algumas vantagens que me permitiram construir isso, obviamente. Mas todas as opções que fiz também foram em função de conseguir manter isso. Sempre tive consciência que não queria trabalhar por conta de outrem, porque uma das coisas que era importante para mim era estar com os meus filhos em casa. E consegui realmente ficar com o primeiro até aos três anos e com o segundo até aos quatro. Porque tenho essa vantagem, também porque o meu marido consegue articular os horários dele com os meus e, portanto, ou ficava um ou o outro; fomos sempre conseguindo organizar-nos nesse sentido. E isso realmente é uma coisa que eu sempre tive muita consciência, que queria fazer, e felizmente tive essa possibilidade.

    E isso interferiu com objectivos profissionais e de carreira?

    Sim, atrasou umas coisas [risos]. Mas isso faz parte, não é? Eu, por exemplo, tive duas gravidezes muito difíceis, com enjoos, portanto, foram alturas em que eu fiquei quase completamente parada. Com o meu primeiro filho, consegui estar mais de um ano sem trabalhar mesmo, sem fazer absolutamente nada. Nada, quer dizer, cuidava dele, que já é muito [risos].

    Ou seja, na altura não tinhas rendimento.

    Sim, tive essa possibilidade. Obviamente, isso depois tem algumas consequências económicas, e não só. Mesmo escrever, por exemplo, eu gostava de escrever muito mais, e às vezes era impossível, o tempo não chega para tudo. Mas eu acho que são opções que, no fim da vida, são as correctas para mim, pelo menos [risos].

    E tu, como mãe, estás satisfeita por teres tomado essa decisão. Como profissional e psicóloga, tu vês que, de facto, foi uma boa opção, e sentes que mais mulheres gostariam de ter essa possibilidade?

    Sim, sim. A mim, chegam-me muitas mães que conseguiram fazer essa opção – por vezes, lá está, com grandes custos financeiros e até emocionais, porque, apesar de tudo eu tive muita sorte em conseguir articular tudo com o meu marido e, portanto, nunca fiquei completamente isolada. E aquilo que eu vejo é que há muitas mulheres que realmente fazem essa escolha, e que têm de optar entre a carreira e o ficar com os filhos, mas há um lado da vida delas que fica para trás. Eu nunca precisei de fazer isso, porque voltei a trabalhar quando quis. Enquanto eles eram pequeninos, ia trabalhando menos, mas ia trabalhando. Mas há pessoas que têm de desistir completamente, e isso é um peso muito grande. A forma como organizamos a vida, hoje em dia, põe sobretudo em cima das mulheres a escolha entre os filhos e o trabalho. Na maior parte dos casos, não dá para conciliar as duas coisas, e há mulheres que sofrem muito com isso.

    E isso depois vê-se na forma como vivem a maternidade e no relacionamento que têm com os filhos?

    Claro, porque a certa altura, há mães que ficam completamente esgotadas, cansadas, deprimidas, por só estarem a cuidar dos filhos. Naturalmente, estão menos disponíveis. Antigamente, as coisas eram feitas com muito mais harmonia, num certo ponto de vista. Em alguns aspectos eram muito mais difíceis, mas noutros aspectos, apesar de tudo, havia uma comunidade que suportava as crianças. As mães iam voltando aos seus afazeres com muito mais naturalidade, à medida que os filhos também iam procurando mais essa presença e apoio da comunidade. Essa comunidade perdeu-se. Temos mulheres que ficam isoladas no seu apartamento o dia inteiro, com o marido que chega a casa às 20 horas, com quem às vezes já nem conseguem comunicar, porque estão ali submersas naquele mundo solitário que, hoje, é a maternidade. Estão tão desesperadas quando o marido chega. Por vezes isso também põe um peso tremendo no casal. E, claro, depois as crianças também sofrem, porque têm uma mãe muito mais cansada e menos disponível, esgotada.

    E nas empresas, sentes que tem havido uma mudança? Porque houve uma época em que as empresas tinham creches para os filhos dos trabalhadores, mas parece ter havido um retrocesso. Vês algumas mudanças que possam permitir que mulheres que trabalhem a tempo inteiro, tenham uma forma de estar mais com os filhos?

    Sim e não. Na verdade, eu contacto com uma população muito privilegiada. As mães que me chegam tiveram, apesar de tudo, possibilidade financeira de optar por ficar com os filhos e, portanto, enfim, são uma fatia privilegiada da população. Eu vejo realmente cada vez mais mães a tirarem uma licença sem vencimento de dois anos, que é aquilo que é permitido, para poderem estar esse tempo com os filhos. Às vezes, isso tem consequências no regresso ao trabalho. Nem todas as empresas encaram essa opção de ânimo leve. Mas quero acreditar que sim, que apesar de tudo, está a haver alguma mudança. Já vou tendo cada vez mais mães que conseguem ir mantendo aquele horário reduzido, porque antigamente conhecia muitos casos de mulheres que sofriam grandes pressões por quererem trabalhar apenas seis horas diárias, enquanto os filhos eram bebés. Agora, até já conheço casos de mães com crianças que já têm mais de um ou dois anos – porque enquanto a mãe está a amamentar a lei permite essa redução de horário – e, de facto, há empresas onde isso já vai sendo aceite, embora muitas vezes aquilo que as mães me transmitem é que nessas seis horas têm de fazer o mesmo trabalho que fazem nas oito! Não sabem muito bem como [risos], mas enfim, têm de espremer ali tudo, porque a responsabilidade não lhes é tirada, não é? É esperado o mesmo delas. Mas, pelo menos, isso já vai sendo permitido. Se calhar, há uns dez anos atrás, nem isso era. Por isso, eu acho que há um progresso, mas ainda pouco para aquilo que era preciso.

    A pandemia introduziu medidas, como o teletrabalho, que, apesar de tudo, ajudam os pais e mães que queiram acompanhar mais de perto os filhos. Vês essa mudança como positiva?

    Sim e não, depende muito dos casos. Ou seja, em alguns casos, por exemplo pessoas que tenham que fazer uma deslocação grande até ao local de trabalho, é positivo, pois ganham ali às vezes até duas horas por dia. Com o tempo que as pessoas perdiam, isso sim, é excelente, claro que sim. E até há casos em que lhes dá mais margem de manobra nos horários, porque não têm de estar na empresa a uma determinada hora, e isso é uma vantagem. Por outro lado, também se cria a ilusão de que, por exemplo, se a pessoa está em teletrabalho e o filho está doente, não tem desculpa para não trabalhar, porque estão ambos em casa. E, realmente, cuidar de crianças pequenas e trabalhar… E depois o que acontece é que as mães fazem esse trabalho à noite, quando as crianças estão a dormir, com grande peso para a sua saúde mental e física.

    Para as crianças, tu vês uma diferença significativa quando têm a possibilidade de ter um dos progenitores a acompanhá-los durante os primeiros anos, em casa, em comparação com as outras, que têm de passar às vezes 10 horas numa creche ou numa escola?

    Sim. Mas também depende das escolas. É muito importante para as crianças conseguirem ter essa presença dos pais sobretudo nos primeiros tempos de vida. Nós temos, enfim, problemas que, se calhar, não precisariam de existir se os pais tivessem maior disponibilidade para estar com os filhos. Em Portugal temos um grave problema: somos o país da Europa onde as crianças passam mais tempo na creche. Há crianças de um ano a passarem 10 horas na creche, e isso não é bom.

    Que tipo de vínculo as crianças podem criar com os pais quando passam 10 horas num local em que eles não estão?

    Há um autor que eu cito sempre, que é o Gordon Neufeld, e que tem um conceito que é muito relevante para esses casos: o conceito da orientação para os pares. O que ele diz basicamente é que as crianças nascem com esta grande necessidade de construir vínculos, de criar relações. E, à partida, essas relações devem criar-se com um adulto, mas para isso o adulto tem de estar presente e disponível. Algo que nas escolas nem sempre é possível, porque com crianças pequenas, se há muitas crianças para um adulto, é impossível o adulto responder a todas as solicitações. E aí quem acaba por estar mais disponível são as outras crianças. E então gera-se aquilo que se chama a orientação para os pares, que significa que passam a ser os outros jovens – isto vê-se muito na adolescência – a grande referência daquele jovem ou daquela criança. E isto vem com uma série de problemas, porque para já, um jovem não é um bom modelo para outro jovem, não é? Hoje em dia nós até vemos que os ídolos da juventude são outros adolescentes. E isto não é um bom modelo de desenvolvimento, porque um adolescente também ainda é imaturo, naturalmente. É suposto que os jovens admirem os adultos, para quererem ser como eles, de certo modo. Se eles vão admirar outros que são tão imaturos como eles, não se ganha muito em termos de desenvolvimento. E depois, por outro lado, os jovens e as crianças nunca podem ser uma boa base de segurança para outras crianças. As crianças até dizem muito: já não és meu amigo, já não gosto de ti, já não vou brincar contigo. O que é que isto faz? Vai provocando algumas feridas, e se aquela criança é a pessoa mais importante da minha vida, vou ter de começar a adoptar uma série de comportamentos defensivos para que aquilo não me magoe tanto. E depois, ao mesmo tempo, isto também faz com que se crie uma distância entre o jovem ou a criança e o adulto, sendo que são os adultos que têm capacidade para ajudar a criança ou o jovem a lidar com as suas emoções, enfim, a sentir-se minimamente seguro. E depois dá origem àquele comportamento, que hoje se ouve muito, de que os jovens já não respeitam os adultos. Nas escolas, um dos grandes problemas é que já ninguém respeita os professores. E é verdade, porque quando o adulto deixa de ser uma referência, eu já não quero agradar ao adulto, quero é agradar aos meus colegas. Quero lá saber do que o professor pensa! E aí gera-se toda uma série de comportamentos… Até aqueles vídeos que eles põem no Youtube, que nós não percebemos. Mas por que raio alguém quer filmar uma coisa destas e pôr no Youtube? Porque agrada aos outros jovens, eles já não estão a tentar agradar aos adultos, não é? A referência deles já não são os adultos, são outros jovens. E isso dá origem a uma série de comportamentos que são prejudiciais.

    Ou seja, passou-se do 8 para o 80. Na minha geração, por vezes temíamos os adultos. Era um querer agradar para não ser castigado. E hoje nem se teme, nem se respeita.

    Exactamente. Este autor até diz que começou mais ou menos nos anos 60 ou 70 do século passado, este fenómeno de orientação para os pares assim em peso, e agora temos, pela primeira vez, uma geração em que a maioria está completamente orientada para os pares. Antigamente, havia esse problema, por vezes com peso excessivo, da autoridade. Mas, apesar de tudo, isso também tinha alguns benefícios e algumas vantagens. De facto, passámos para o outro extremo, e isso não é bom.

    Em termos civilizacionais, estamos a caminhar para uma sociedade mais ou menos orientada para a família? Como é que vês a evolução, sentes-te optimista?

    Eu sou optimista sempre. Às vezes digo que sou uma optimista incorrigível [risos]. Tenho esperança que as coisas melhorem, e que a sociedade se torne mais orientada para a família, porque estamos a começar a perceber os problemas de não o sermos. Neste momento, não somos. Somos uma sociedade orientada para os pares; até nós, adultos, já crescemos muitos de nós nessa cultura de orientação para os pares. Hoje, temos adultos que preferem passar tempo com os seus pares do que estar em família e a educar os filhos. A realidade é esta, neste momento. E isso, de facto, não é positivo.

    Então, de onde é que vem o teu optimismo?

    Porque, pela primeira vez, também estamos a reconhecer esse problema. Ou seja, foi preciso reconhecer que descarrilámos em algumas coisas; noutras coisas também ganhámos, obviamente. Antes, as mulheres não tinham opção de escolher uma carreira sequer; agora sim, e isso é uma coisa positiva. Não quero que as mães voltem todas para casa outra vez sem opção. Mas, de qualquer forma, acho que estamos a começar a perceber também muitas das coisas que se perderam; e a ter essa capacidade de perceber que nos desviámos e descarrilámos em algumas coisas. E, portanto, se calhar há algumas coisas que precisam de ser recuperadas, e há outras que não, que ficaram para trás e que não fazem falta nenhuma.

    Mas se calhar também caminhamos para isso porque muitas pessoas, sobretudo nos últimos anos, se despediram, simplesmente porque perceberam que querem ter outro estilo de vida. Vês que em Portugal há esse movimento ou sentes que é do lado das empresas que há mudanças?

    Tenho mais consciência do que se passa com as pessoas do que propriamente com as empresas. Mas, de facto, aquilo que eu vejo é as pessoas muito insatisfeitas com este modelo clássico de trabalhar, ganhar dinheiro… As pessoas já procuram mais, querem outras coisas. Estão mais insatisfeitas nesse papel, e julgo que isso também vai originar alguma mudança, as empresas terão de se adaptar. Agora, eu acho que aqui em Portugal há um problema grave: as pessoas têm poucos meios financeiros para fazer mudanças reais na sua vida. A nossa margem de manobra é muito curta em relação a outros países, onde existem mais apoios. Aqui, apesar de tudo, a maior parte das pessoas ainda está a tentar pôr comida na mesa no fim do mês. Portanto, isto também limita a capacidade de pensarmos um bocadinho mais além.

    Há pouco referiste a importância de jovens e crianças terem modelos nos adultos. Acontece que temos também adultos muito doentes em termos psicológicos e emocionais. Como vês essa situação? Temos adultos disponíveis para serem modelos e exemplos para os mais jovens?

    Se calhar também não temos muitos, não é? Se calhar, porque muitos de nós já crescemos nessa sociedade de orientação para os pares. Aliás, isso viu-se nesta história toda da covid-19. As crianças não foram protegidas, foram atiradas para a linha da frente. A realidade é essa. As crianças tinham de ficar quietinhas para não matarem os avós.

    E com máscara.

    Exactamente. Não houve preocupação com o impacto que isto ia ter em seres que são mais frágeis, porque estão em desenvolvimento, e não lidam com as coisas da mesma maneira que um adulto. Um adulto até pode cumprir determinadas medidas, sem isso ter um grande peso na sua vida, mas numa criança a mesma medida pode ter um peso brutal. Não houve essa capacidade de dizer: ok, vamos criar algumas medidas para os adultos, se for necessário, e vamos proteger as crianças. Não, o que se disse foi que as crianças tinham de salvar os avós. E a questão até mais chocante de todas se calhar até é a das vacinas, na forma como as crianças foram vacinadas. Em Portugal, felizmente, que eu saiba, a maior parte [menores de 12 anos] não foi, mas a ideia era que as crianças deviam ser vacinadas para uma coisa que não as punha em risco, só para protegerem os adultos. Depois, soube-se que não protegiam nada; mas, enfim, era isso que constava. Portanto, isto é revelador de uma sociedade que não está bem; que está já a deixar de estar em contacto com os seus valores, porque é fruto de uma sociedade orientada para os pares. Uma sociedade que está bem, e em contacto com os seus valores, sabe que precisa de proteger as crianças antes de qualquer outra coisa. As crianças deveriam ser prioritárias. Em todas as medidas, o seu bem-estar devia ser o primeiro a ter-se em conta, e isso não aconteceu.

    Houve então uma inversão de valores? Porque numa sociedade saudável, não deviam ser as crianças a proteger os adultos, mas sim o contrário…

    Exactamente, porque desde o início que se sabia que as crianças seriam muito pouco afectadas pelo vírus em si; havia era o debate sobre se as crianças podiam transmitir aos adultos, e muita gente que dizia que não, que as crianças nem sequer eram grandes transmissoras. Mas, no entanto, havia toda esta ideia de que se as escolas estivessem abertas, e se as crianças vivessem livremente, trariam o vírus para casa e depois os mais velhos seriam afectados. E, de facto, isso é sinal de uma sociedade que não está muito saudável. A partir do momento em que nós sabemos que há coisas que fazem falta na vida das crianças, que lhes podem deixar marcas…

    Aliás, saíram agora notícias que apontam que pessoas morreram devido aos confinamentos, e que, no caso das crianças e jovens, há uma epidemia de saúde mental, para além de tudo o que perderam, em termos sociais e de aulas.

    Sim. Eu ainda ouço constantemente pessoas que vêm à consulta das crianças, que têm este ou aquele problema e depois dizem:”Ah, ela também nasceu no meio da pandemia…”. Pois, claro, houve crianças que passaram os dois primeiros anos das suas vidas completamente isoladas.

    Não é algo que te revolta? Porque, de facto, as crianças na Suécia tiveram a benção de estar na Suécia, e de não ter sofrido o que as portuguesas sofreram.

    Eu acho que nos países nórdicos, em geral, e também na Noruega, há uma outra capacidade de proteger as crianças. São países que até têm já licenças de maternidade um bocadinho mais prolongadas.

    Ou seja, já têm uma cultura voltada para a proteção da família e das crianças…

    Eu acredito que sim; há um bocadinho mais essa valorização.

    Aqui não se valorizam as crianças e os jovens?

    Neste caso, eu sinto que não se valorizaram muito, de facto. A partir do momento em que nós temos este problema de ter crianças pequeninas que passam 10 horas ou mais por dia na creche, realmente temos de dizer que não há uma grande valorização da infância. Nos países nórdicos, os pais saem mais cedo do trabalho, vão buscar as crianças à escola. Nós aqui, o normal é vermos os pais a irem buscar as crianças às 19 horas. Isto não é saudável, não é bom para ninguém.

    Como jornalista, no início da pandemia, até 2021, senti resistências em poder trabalhar em regime de teletrabalho, quando tinha os filhos muito pequenos, apesar de, muitas vezes, as minhas funções e a tecnologia o possibilitarem. Encontrei uma atitude compreensiva e flexível da parte de alguns editores e directores em relação a poder trabalhar em casa quando os filhos estavam doentes. Era muito difícil conciliar o trabalho a tempo inteiro na redacção com as rotinas da vida familiar. E houve resistência de alguns pares, o que me surpreendeu. Reclamavam se, por exemplo, alguém trabalhava em casa porque um filho estava doente.

    É uma coisa que eu ouço muito, de mães que, por exemplo, têm horário reduzido, e que lidam, por vezes, com a pressão dos colegas, porque saem mais cedo e eles ficam lá. Há pessoas que levam isso a mal e ficam chateadas.

    Também é um pouco desta cultura, em que a mulher quase é penalizada se está a cuidar de filhos ou se quer ter uma vida familiar.

    Da mulher ou do homem. Porque os homens também podiam sair mais cedo e não o fazem porque, de facto, há muito essa pressão. Colocamos muito o trabalho como um valor máximo. Uma pessoa boa é uma pessoa trabalhadora, é uma pessoa que se esforça e que está ali todos os dias… E, realmente, será que isso é o principal?

    Ou seja, alguém que gosta de estar com os filhos e que se quer dedicar aos filhos e levá-los ao médico, em vez de ser o avô ou a empregada a levá-los. Essa pessoa é mal vista.

    Sim, em Portugal temos muito essa noção. Eu lembro-me até de um estudo, há uns anos, que dizia que em Portugal o part-time é uma coisa muito mal vista. Também com os nossos ordenados, é difícil viver com meio ordenado. Mas a verdade é que, mesmo na mentalidade das pessoas, quem quer trabalhar em part-time é porque é preguiçoso. As próprias empresas não querem contratar ninguém em part-time, porque acham que isso é contratar preguiçosos. Enquanto lá fora, é uma das realidades: quem tem filhos pequenos, às vezes escolhe trabalhar em part-time, justamente para poder acompanhar mais os filhos. E nós cá, nas empresas, nem pensar.

    Sim, e apesar da lei prever algumas medidas, há mulheres ou homens que recorrem à lei mas são penalizados nas empresas, e passam a ser tratados como maus trabalhadores. Isso não é justo…

    De todo. Nós precisamos de perceber que, para já, quem está em casa a cuidar dos filhos não está de certeza de férias, não é preguiçoso [risos]. Dá trabalho cuidar de uma criança. E sim, precisamos de mudar essa mentalidade.

    Como se caminha para mudar estes valores de glorificação do trabalho e de sacrifício 24 horas por dia?

    Isso é uma coisa muito portuguesa, aquela ideia de que é preciso estar no escritório das 8 horas da manhã até às 20 horas.

    E até pode não se estar a trabalhar…

    Exactamente. Por vezes, as pessoas estão lá e não estão a fazer grande coisa. Já tive pessoas que se queixam que estão constantemente a ser interrompidas, porque temos esta cultura de perguntar tudo e marcar reuniões para tudo, e as pessoas sentem que constantemente há interrupções de tudo e mais alguma coisa. Isso é uma coisa muito cultural. Se formos mais para o norte da Europa, já não existe tanto esse problema. As pessoas vão para trabalhar, não vão para conversar ou para conviver, e só estão lá as horas que são necessárias. Aqui, achamos que é preciso dormir no trabalho, quase.

    E o optimismo de que falavas há pouco, também é por veres que as novas gerações de pais já têm outra atitude?

    Sim, eu acredito que sim. Nunca estivemos tão preocupados com a infância, e com a nossa responsabilidade como pais como hoje em dia. Isso eu acho inquestionável. Agora, até há imensos livros sobre como educar crianças. Por um lado, porque as pessoas também estão muito aflitas, mas também porque, apesar de tudo, têm consciência da sua responsabilidade e do seu papel. Isso, à partida, será bom. Agora, é preciso também que aconteça alguma coisa. Neste momento, acho que ainda estamos, se calhar, um bocadinho na transição de perceber que isto não está a funcionar, mas ainda não somos capazes de perceber o que é que vamos fazer diferente.

    E apesar de haver uma muito maior participação da parte dos pais, a esmagadora maioria ainda continua a ser a mulher que trata das refeições, da logística da casa e das crianças.

    Sim, e que falta ao trabalho quando as crianças estão doentes, por exemplo. Eu já ouvi mães que me dizem que o marido até ficava em casa, mas depois chega ao trabalho e perguntam-lhe porque é que não é a mulher a ficar. Quer dizer, isso não pode ser …

    Pois, é a questão cultural. E tu publicaste agora um livro, Como educar crianças desafiantes. Existem crianças desafiantes ou pais desafiantes?

    Existem dinâmicas desafiantes, podemos dizer [risos].

    Porque muitas vezes se leva crianças ao psicólogo, porque têm problemas e mau comportamento na escola, e quando se vai a ver, o problema está mesmo é nos pais.

    Exactamente, está na dinâmica que se gerou. Na verdade, aquilo que eu procuro fazer no livro é responsabilizar os pais para perceberem que não são os filhos que têm o problema, mas sim aquela dinâmica que não está a funcionar por algum motivo. Uma boa parte do meu trabalho passa muito por isso. Eu digo sempre que prefiro trabalhar com os pais do que directamente com a criança. Principalmente, quando são crianças pequenas, não faz muito sentido trazer a criança ao psicólogo. E menos sentido ainda faz nós assumirmos que é ela que tem um problema, e que é ela que precisa de mudar alguma coisa; porque se nada mudar em casa, o problema da criança nunca vai ficar resolvido.

    E isso acontece muito, ou se calhar mais frequentemente, por exemplo, em situações de divórcios ou de grandes mudanças familiares, como nascimento de irmãos.

    Sim, pode acontecer. Grandes transições às vezes são das coisas que causam muita angústia e alguma instabilidade na família. Por isso, às vezes os pais procuram apoio para saber como é hão-de lidar da melhor maneira com isso. Mas não necessariamente. Hoje, há muitas condicionantes que não ajudam, e de facto, por vezes, instalam-se relações entre pais e filhos que não funcionam. E a nossa forma de lidar com isso só vai, em alguns casos, cristalizando cada vez mais essa dinâmica que já não está a funcionar. Por vezes, de algum modo, o nosso próprio comportamento vai alimentando o problema e agravando a situação.

    E o adiar também de algumas questões. Escreveste algo que me tocou: “As emoções são um potencial de acção que precisa de ser executado, e quando não podemos fazê-lo na altura certa, é como se o nosso organismo fosse acumulando essa informação, que vai precisar de descarregar mais cedo ou mais tarde, e nem sempre da maneira mais adequada”. Esta passagem serve para situações de crianças pequenas e jovens adolescentes, mas também de adultos.

    Sim, claro. Nós, adultos, também acumulamos e deslocamos, muitas vezes, as nossas emoções. Aliás, muitos casos de ansiedade estão associados, de certo modo, a essa falta de capacidade de ir descarregando as emoções.

    Mas também porque não há tanto uma conexão com as emoções e até com o próprio corpo.

    Exactamente. Na infância aprendemos que certas emoções são perigosas. E isto pode acontecer por muitos motivos: ou porque nunca tivemos ninguém que nos ensinasse a lidar com essas emoções, ou porque os nossos pais reagem muito mal de cada vez que as demonstramos, ou ficam com medo de cada vez que aquela emoção é expressa. Então, vamos aprendendo que há determinadas emoções que não são aceitáveis, e isso coloca-as na caixa das emoções que são “perigosas”. E isso faz com que nos vamos desligando delas, e depois há determinadas emoções que também nos trazem para um estado de vulnerabilidade muito grande. E se tivermos medo dessa vulnerabilidade, então vamo-nos desligando daquela emoção. Para nos desligarmos da emoção, precisamos de nos desligar das sensações que ela provoca no corpo; portanto, esse desligar vai-se acentuando.

    As dores de barriga nas crianças, por exemplo…

    Sim, por vezes acontece. Se vamos sempre ignorando, chega um momento em que o corpo precisa de nos dar um sinal mais forte de que alguma coisa não está bem. E isso, em várias situações, traduz-se em sintomas físicos, como dores de barriga ou de cabeça. São as coisas mais comuns.

    three children holding hands standing on grasses

    Da tua experiência profissional, vês que vai sendo mais fácil para as famílias terem ajuda psicológica, ou não?

    Vai sendo mais fácil, no sentido em que se retirou um bocadinho o estigma e o peso. Há uns anos, só ia ao psicólogo quem estava muito desesperado; hoje, felizmente, já não acontece. Por outro lado, em Portugal temos ainda um grande problema económico. Apesar de tudo, já há alguns seguros que comparticipam as consultas de Psicologia, coisa que antes não acontecia. E antigamente, se alguém conseguisse uma comparticipação, era preciso ter um papel do médico de família. Agora, já não acontece. Mas temos ainda muito poucos psicólogos no Serviço Nacional de Saúde e, portanto, consultas gratuitas as pessoas nem sempre conseguem. E as que conseguem… Já vi coisas absurdas, como pessoas com uma depressão pós-parto que tinham uma consulta por mês. Não faz sentido. Nessa fase da vida daquela mulher, numa altura tão decisiva e tão importante, uma consulta por mês não é nada.

    Qual a razão para a saúde mental e emocional não ser vista como prioridade?

    Eu acho que começámos a perceber já a sua importância, mas tem sido descuidada. É sempre relegada para segundo plano, porque no fundo os sintomas também não são assim tão óbvios e visíveis. Se eu tiver uma dor de barriga muito forte, é impossível eu ignorá-la. Se eu tiver uma doença qualquer que me provoca sintomas graves, também não consigo viver. Mas se eu tiver ansiedade ou depressão, se calhar vou vivendo, vou conseguindo funcionar mais ou menos. Por isso, é fácil ir varrendo para debaixo do tapete e fingir que aquilo não está ali.

    A Direcção-Geral da Saúde tem estado a esconder dados sobre saúde. Alguns só estão disponíveis até 2019, por exemplo sobre as causas de morte e a evolução de suicídios. Noutros países, os dados que existem mostram que tem havido um aumento. Portanto, as pessoas que estão a sofrer do ponto de vista mental podem estar em risco de vida…

    A Psicologia ainda é uma ciência muito recente. A verdade é essa. A Medicina, que trata das coisas físicas, é muito mais antiga. Portanto, ainda há aqui algum caminho a percorrer.

    Laura Sanches é autora do blog Parentalidade com apego.

    Mas estás optimista, também aqui?

    Sim. Nunca se falou tanto destas questões, nunca lhes prestámos tanta atenção. Isso, à partida, é bom sinal. Alguma coisa há-de sair daqui.

    Em termos civilizacionais, talvez se comece a olhar para esta área com maior acuidade. Durante a pandemia, foste uma voz muito activa, mas também tiveste custos. Sentes que o que aconteceu foi grave, sobretudo relativamente às crianças e jovens?

    Muito grave, sim.

    Ficaste surpreendida que outros colegas teus não tenham vindo a público defender as crianças? Muito faziam em privado e em grupos de Whatsapp, mas não publicamente. Nem junto da Ordem dos Psicólogos tiveram qualquer tipo de iniciativa.

    Sim, muita gente me falou em privado. Aliás, no início quando saíram as normas para as escolas, e tive acesso àquilo que ia ser feito, fiquei logo muito preocupada e consegui reunir com algumas pessoas que eu nem conhecia. As maravilhas das redes sociais! Escrevi um artigo no Público [com Zulima Maciel e Ana Rita Dias, em Julho de 2020] e consegui recolher assinaturas de alguns colegas, mas também de algumas pessoas que não conhecia, e a partir daí conseguimos até enviar uma carta para a Ordem dos Psicólogos. Foram mais de 100 assinaturas, que reunimos num dia ou dois; foi uma coisa muito rápida, porque a situação era de urgência. Portanto, muita gente estava apreensiva e com medo das regras que iam ser impostas e dos seus impactos. Depois disso, parece que as pessoas se começaram a querer proteger primeiro a si próprias, e, de repente, houve um ignorar daquilo que toda a gente estava a assumir que era muito grave. Aliás, na altura falei com toda a gente com quem conseguia falar, até deputados. Todos me diziam que aquilo não fazia sentido nenhum, e que era absurdo submeter as crianças a estas regras; davam-me razão. E, depois, afinal, nada aconteceu, e não se passou nada; foi uma coisa que me deixou completamente estupefacta! Eu cheguei a participar numa reportagem em que a jornalista veio falar sobre as regras que iam ser impostas; eu comecei-lhe a explicar que aquilo não fazia sentido e o impacto que eu achei que ia ter, e ela no fim disse-me: “pois, realmente tem razão, eu nunca tinha pensado sobre isso”. Mas não se passou rigorosamente nada, apesar de as pessoas todas concordarem que não podia ser. Acho que depois, entrava a questão do egoísmo. Isto agora até está um bocadinho na moda, mas havia um autor que dizia que vivemos numa sociedade de narcisistas, e parece que foi um pouco isso que aconteceu. As pessoas ficaram tão preocupadas com o seu umbigo, que aquilo que lhes parecia um absurdo tão grande e que era tão óbvio que ia ter impacto, afinal já não importava, porque afinal era preciso que ninguém tivesse covid-19. Houve até uns investigadores que diziam que todos os efeitos secundários provocados pelas medidas passaram a ser mais aceitáveis do que qualquer morte por covid-19. Tornou-se mesmo uma questão moral; de repente, deixámos de conseguir reflectir e pensar friamente sobre o assunto.

    pink and white plastic container on brown wooden table

    Surpreendeu-te também terem sido tomadas medidas sem base nem evidência?

    Sim, claro, embora não fosse bem isso que se dizia, não é? Logo no início, quando isto tudo começou, lembro-me de um artigo da Lancet que dizia justamente isso, que nunca tinha sido tentado assim um confinamento à escala global, mas havia exemplos de pequenos confinamentos, em regiões afectadas pelo Ébola, em que as pessoas ficaram contidas.

    Sim, mas no caso do Ébola, a taxa de letalidade era acima dos 50%… Na covid-19, a taxa de letalidade é, em média, de 0,03%, e de 0,07% no caso dos idosos. E são dados do período anterior à campanha de vacinação…

    Sim, claro. Mas o artigo concluía que isso tinha um custo tão elevado para a população que só mesmo em situações extremas, e muito limitadas no tempo, contendo pessoas de uma população, muito específica; e mesmo um peso gigante para as pessoas que eram submetidas a isso. Mas, de facto, todos fecharam os olhos e já não interessava nada o que se sabia. Mesmo em relação às crianças. Aqui faço um parênteses na questão das evidências, porque obviamente que não havia estudos que comprovassem os efeitos das máscaras nem do “ficar em casa”. Também não precisamos de estudos para tudo, quando temos modelos. Se temos o modelo de desenvolvimento das crianças, e sabemos as suas necessidades, isso dá-nos alguma previsibilidade. Portanto, se vamos cortar-lhes uma necessidade, isso terá algum impacto, e isso também não foi tido em conta. Esquecemo-nos de tudo.

    Desapareceu a evidência científica e os modelos do bom senso. Tivemos campanhas grotescas, como aquelas da DGS a empurrar as crianças para a vacinação, com os trágicos desenvolvimentos a que nós estamos a assistir hoje, com os efeitos adversos e excesso de mortalidade. E criticaste isso, mas tiveste custos pessoais, como se verificou com a postura da Ordem dos Psicólogos contra ti.

    Na verdade, sobre as vacinas nunca falei em público, porque nunca considerei ser a minha área, pelo que não acho que tenha muito o direito de me pronunciar sobre isso. Embora, hoje em dia, acho que é do domínio comum que as vacinas não faziam falta nenhuma às crianças. Mas aqui, enfim, é senso comum. Agora, em relação aos efeitos psicológicos das vacinas, sim; aí realmente eu sentia que alguma coisa tinha de ser dita.

    girl in blue shirt looking at the window

    Também escreveste artigos, incluindo no Observador.

    Sim, sim, escrevi alguns artigos. Sobre as consequências que eu tive… Acho que houve outras pessoas que, apesar de tudo, foram muito mais prejudicadas. Houve aquela altura em que parecia que tínhamos a peste, porque éramos rotulados de “negacionistas”, mas, enfim, acho que se fez uma selecção. Claro que algumas pessoas se afastaram, mas tudo bem, não é coisa que me tire o sono. Apesar de tudo, eu acho que fui até bem recebida pelas pessoas, no geral. Eu participei, por exemplo, no movimento “Assim Não é Escola”, que teve uma boa aceitação, porque as pessoas percebiam que estávamos a tentar proteger as crianças. E isso não estava a ser feito. Portanto, mesmo assim, eu não fui muito atacada; houve pessoas que sofreram muito mais.

    Na área da Pediatria e Obstetrícia, mas mais uma vez em privado, houve de facto várias pessoas que apoiaram bastante esse movimento…

    Sim. Falei com imensos pediatras, que estavam preocupadíssimos, porque viam o que estava a acontecer nos hospitais. Até pediatras que trabalhavam em urgência, e viam o estado em que as crianças apareciam, e estavam muito preocupados. Mas, de facto, na Ordem dos Psicólogos foi um bocado surpreendente. Porque, no início, quando eu escrevi o artigo no Público, e fizemos a carta aberta, até tivemos uma reunião com eles, e concordaram com tudo. Até depois escreveram uma carta à DGS, mais ou menos focando os mesmos pontos que nós focávamos.

    Mas depois…

    Depois, abriram-me um processo. Ou, na verdade, dois. E abriram-me dois processos com base em queixas completamente absurdas. Uma, em que o meu nome nem sequer era mencionado, por fazer parte de um grupo, e pelos vistos não podia fazer parte desse grupo. E outra, por uma pessoa que alegava que eu tinha dito coisas nas redes sociais, que eu nem sequer tinha dito.

    boy in black crew neck shirt

    Mas na Ordem dos Psicólogos abrem-se processos sem averiguar a veracidade dos factos?

    Pelos vistos, abrem-se, e isso é uma coisa perfeitamente chocante. Eu fui ouvida na Ordem e aquilo para mim foi completamente surreal. Ainda está em aberto; eu nem deveria falar sobre isso, porque supostamente vem lá a ameaçazinha na convocatória. Se eu falar sobre isto podem pôr-me outro processo, porque isto ainda está em segredo. Mas eu acho que isto é sobre mim; portanto, se há alguém que pode decidir se eu posso falar ou não, sou eu.

    Mas vês isso como uma forma de tentar dissuadir-te de falar em público, de continuares a defender as crianças?

    Sinceramente, não percebi qual foi a intenção deles. Aquilo que me disseram foi que tinham de averiguar se todas as comunicações são feitas com base científica, e de forma fundamentada.

    Deviam começar pela DGS e verificar se as medidas aplicadas nas escolas têm base científica…

    Exactamente, a DGS fez muitas comunicações que não tinham base científica. Mesmo isso da base científica é, enfim, uma falácia, de certo modo. Porque lá está, há muita coisa em Psicologia que não tem base científica e continua a ser usada e aplicada, porque funciona com base em modelos. A Psicologia não é uma ciência exacta, é uma ciência humana. Portanto, também podemos prever as coisas com base num modelo. Os estudos que agora saem estão a dar-me razão. Ainda há pouco, saiu uma notícia no Expresso a dizer que aumentaram até os suicídios em crianças, algo gravíssimo.

    boy in blue denim vest and helmet riding red bicycle

    A Ordem dos Psicólogos, mesmo assim, continua com os dois processos, portanto…

    Estão em aberto. O papel das Ordens nunca deveria passar por policiar aquilo que as pessoas dizem. Para dizer a verdade, eu até tenho as minhas reticências sobre a utilidade da Ordem dos Psicólogos. Não sei se era importante termos uma Ordem. No fundo, serve para quê? Para fazer lobbying. Serve para tentar pôr mais psicólogos no SNS e nas escolas; até são coisas que fazem falta. Mas, enfim, a partir do momento em que servem para policiar o discurso das pessoas, aí perdem toda a razão de ser. Uma coisa é a Ordem investigar algo que se passou dentro do consultório, em que alguém tenha ido a uma consulta com um psicólogo e tenha queixas. Aí, pode haver alguma legitimidade para se investigar. Agora, coisas que eu disse, ou não disse, em público… É esse o papel das Ordens, hoje? Mesmo que haja um psicólogo que vá à televisão dizer uma coisa perfeitamente absurda, até que ponto a Ordem tem legitimidade para intervir? Não sei se tem, muito sinceramente.

    Como vês o desfecho destes dois processos? Estás optimista ou preocupada?

    Não sei. Eu acho isto tão absurdo que nem consigo dizer, honestamente. Não consigo sequer ter uma opinião. Confesso que fui para a audiência completamente descontraída e relaxada, a pensar que era só uma formalidade; pronto, já que me abriram um processo, agora têm de me ouvir. E cheguei lá e percebi que aquilo é uma coisa séria! E aí fiquei um bocado a pensar que estou em algum tipo de mundo paralelo. Isto não está a acontecer.

    Como se tivesses cometido um grande delito…

    Sim, fui interrogada sobre por que tinha dito e aquilo e como é que tinha dito aquilo. Perguntaram-me 30 mil vezes se eu tinha dito algo que não tinha dito. Acho que a pessoa [o denunciante] afirmou que eu tinha falado sobre a hidroxicloroquina, e queriam saber qual era a minha posição sobre isso. E eu, na altura, disse-lhes que nem tinha posição, nunca falei sobre isso na vida, nem investiguei o suficiente para ter uma posição! Poderia ter, pessoalmente, mas como psicóloga não me compete falar sobre isso em público.

    man in black hoodie wearing silver framed eyeglasses

    Mas podias ter uma posição. Ou não. Se calhar essa nova PIDE entende que não.

    Exactamente, poderia ter uma posição sobre isso, mas nem tinha, por acaso. Porque até li algumas coisas sobre a ivermectina, por exemplo. Há dias até estava a ouvir um podcast sobre a hidroxicloroquina. Se calhar, agora já teria uma opinião, mas naquela altura não tinha. Também ainda nem tenho uma posição muito formada, nem tenho de ter, porque não é uma coisa que me diga respeito, ou que interfira no meu dia-a-dia.

    Mas interferiu, deduzo, teres dois processos na Ordem, com a tua serenidade interior, porque ficas preocupada. Pensaste duas vezes se deverias continuar a falar ou não?

    Na verdade, nunca coloquei muito essa questão, porque acho que também não me conseguia calar [risos]. Quando recebi as comunicações dos processos, a primeira coisa que me apeteceu fazer foi escrever um artigo sobre aquilo ou ir falar daquilo para algum lado, porque achei tão surreal e tão absurdo, que me apetecia comunicar ao mundo que aquilo estava a acontecer.

    Até porque há outros psicólogos que têm vindo a falar, e pediatras também, em relação às crianças. Infelizmente, tivemos alguns pediatras que também receberam processos na Ordem, entretanto arquivados. Mas outras figuras mais conhecidas falaram, como a Joana Amaral Dias.

    Apesar de tudo, eu acho que sempre tive muito cuidado. Lá está, nunca iria falar da hidroxicloroquina, porque realmente sinto que não me compete. Não posso tomar posição sobre uma coisa para a qual não estudei o suficiente para conseguir compreender. Portanto, eu sempre falei daquilo que eu senti que conhecia e que era a minha área, e em que eu poderia contribuir.

    person wearing orange and gray Nike shoes walking on gray concrete stairs

    As medidas tomadas, que foram comprovadamente erradas, como o encerramento de escolas, ou o confinamento, ou a imposição do uso de máscara… fica a pairar como sendo possível que se repitam. Até porque estão a ser feitas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e está em criação o Acordo Pandémico, que confere poderes à Organização Mundial de Saúde, e que levantam muitas preocupações. És das pessoas que temem que estejamos a caminhar para uma sociedade cada vez mais totalitária?

    É muito ambivalente, porque, por exemplo, da primeira vez que as escolas fecharam, eu estava completamente crente que, a seguir à Páscoa, reabriam, e não abriram. Pelo menos as do primeiro ciclo, que só abriram em Setembro. Na segunda vez que fecharam, eu não achava que iam fechar. Pensava que nunca o fariam outra vez, e que já se tinha percebido o disparate que foi. E fecharam [risos]. Portanto, já não consigo dar grandes palpites. Já não confio na minha própria opinião.

    Tal como as vacinas e o certificado digital. Também não ia haver vacinas obrigatórias e certificado obrigatório para acesso a certos sítios, mas, na prática, houve.

    Exactamente. A partir do momento em que vivemos um tempo da nossa vida em que não nos era permitido frequentar determinados sítios, porque não tínhamos um determinado papelinho… Acho que passámos uma linha muito grave e perigosa. A partir daí, se calhar, muita coisa pode acontecer. Porque aqui é completamente irrelevante se nós achamos que as vacinas são úteis ou não; não tem nada a ver com o que se passou. Eu podia acreditar que as vacinas eram a melhor coisa do Mundo, mas não tenho o direito de obrigar a outra pessoa a vacinar-se só porque existem todas as evidências de que aquilo é espectacular. Não existiam, por muitas provas que pudessem existir.

    É a tal polícia moral.

    Exactamente. A partir do momento em que nós penalizamos os outros pelas suas escolhas pessoais, e criamos divisões na sociedade com base naquilo em que uma pessoa acredita ou não acredita, passámos uma fronteira muito grave. E pior do que tudo: nós passámos essa linha sem grandes protestos, e sem que muita gente se importasse. Eu cheguei até a ter pessoas a dizer-me que também não se vacinaram, mas que não se importaram de não ir aos restaurantes, e a perguntar qual era o problema. Como “qual é o problema”?! É um problema gravíssimo, não importa se a pessoa está vacinada ou não, isso é completamente irrelevante nesta questão toda. Quer dizer, como é que alguém pode aceitar que uma pessoa esteja a ser barrada de um sítio porque tomou uma opção de saúde diferente daquela que acham que devia ter tomado?

    a person holding a sign that says if vaccines work who needs segre

    Ou a censura de informação verdadeira, por exemplo. Há pessoas que não vêem mal nisso, porque as redes sociais são entidades privadas. Ou mesmo os media, sabemos também que houve e ainda há condicionamento ao nível dos media.

    Claro. Há pouco tempo partilhei uma notícia do Expresso sobre a questão das máscaras, porque afinal, com os estudos, a Cochrane chegou à conclusão de que não havia evidência sobre a eficácia no uso de máscara. E partilhei, porque achei realmente muito curioso que a jornalista fosse buscar um especialista qualquer, que respondeu que sim, que fazem e fizeram uma grande diferença. Mas não era para seguirmos a Ciência, com eles diziam? E depois chegavam à brilhante conclusão que foram 70 e tal estudos analisados, mas os estudos não eram assim muito bons. Quer dizer, então se durante este tempo todo não se conseguiu produzir um estudo de qualidade sobre o tema, vamos partir do princípio que o tema não será “estudável” por estes meios, não é?

    Parece é que não se quer estudar porque já se sabe o resultado…

    Claro, é completamente absurdo dizer que se analisaram 70 e tal estudos e nenhum prestava! Como é que isso é possível?

    Aliás, a própria Cochrane terá sido pressionada à posteriori porque, entretanto, tentou pôr um bocadinho água na fervura, mas não está a resultar.

    Agora, a questão é esta: partilhei no Facebook, com um comentário inocente sobre uma notícia de jornal, e fui censurada, retiraram-me a publicação sem apelo nem agravo. Que sentido é que isto faz? Estamos a tratar as pessoas como tolinhas, que não conseguem filtrar a informação por si mesmas?

    É a questão da infantilização, não é?

    Exactamente, é isso que se está a fazer. Estamos a partir do princípio que as pessoas não são capazes. É como aquela história, há uns tempos, do Trump, que disseram que houve pessoas a beber lixívia porque ele falou nisso. Não podemos partir do princípio que as pessoas são todas burras, não é? Está bem, se calhar pode haver uma ou outra pessoa mais impressionável, que vai fazer disparates, com base em alguma coisa que ouviu dizer. Mas isso até pode acontecer a pessoa estar a dizer uma coisa perfeitamente válida e fiável, e haver alguém que interpreta aquilo tudo ao contrário e vai fazer um disparate.

    És vista agora como activista, mas acabaste por ser englobada, lamentavelmente, por alguns media como “negacionista” ou “anti-vacinas”. Tens uma herança, porque os teus pais, que fazem parte dos heróis que construíram a nossa democracia, não só pela defesa da justiça em prol dos mais fracos, mas também pelos direitos civis e liberdade. Sentes que também estás a dar agora um contributo, como os teus pais fizeram na sua época?

    Eles foram muito mais penalizados, não se pode comparar. Eu não fui presa nem nada que se pareça, o meu pai esteve muitos anos preso. Infelizmente, o meu pai já morreu, por isso nunca saberei o que ele pensaria sobre isto. Mas uma coisa que eu pensava muitas vezes era: “caramba, o meu pai esteve preso tantos anos em luta pela liberdade, para agora de repente estarmos a voltar atrás desta maneira”. Não faz sentido.

    Como é que ele veria estas alterações à Constituição?

    Quero acreditar que seria veementemente contra todas estas coisas.

    Mas sentes que estás um pouco a honrar o caminho dos teus pais, ao fazer a tua parte nesta luta?

    Eu não sei se é honrar, ou se foi alguma coisa que me foi incutida em criança, que quando víamos as coisas acontecer não nos podíamos calar; ou se é qualquer coisa minha, não sei. Certo é que, de facto, estamos a ir em alguns aspectos para um caminho muito perigoso, e acho que não podemos ficar calados. Ainda para mais, se sabemos que houve pessoas que sofreram tanto, e que lutaram com grandes custos para a sua vida pessoal, por esta liberdade que agora estamos a pôr completamente em risco, e a deitar fora e a dizer que não interessa, porque há coisas muito mais importantes… A mim custa-me ficar quieta.

    Laura Sanches,em 2010, a receber a Comenda de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a título póstumo, ao seu pai, Saldanha Sanches.

    Sentes na tua família preocupação pela tua exposição, como uma voz activa, na defesa da liberdade, das medidas com base na evidência e dos direitos das crianças?

    [risos] A minha mãe preocupava-se sempre um bocadinho. Mas, enfim, a minha mãe preocupa-se sempre com tudo. Mas é triste, e é revelador, chegarmos à conclusão de que alguém se deve preocupar só porque outro alguém está simplesmente a dar uma opinião, que foi aquilo que eu fiz, não é? Veja-se ao ponto a que chegámos, para que isso seja preocupante. E, se calhar, em determinadas alturas, também pensava que isso poderia ter algum impacto na minha vida profissional. E, se calhar, em alguns aspectos teve, algumas pessoas talvez me tenham começado a ver como “negacionista”.

    Provavelmente, como a tua mãe também sofreu na pele as suas posições, não queria que a filha passasse por certas situações.

    Claro. Mas, apesar de tudo, pelo menos por enquanto, a coisa ainda não chegou a esse ponto.

    Pensas nos teus filhos quando falas e quando escreves?

    Muito. Pensava que se não tivesse filhos, não sei se isto me importaria tanto, porque para além de os ver a sentir na pele algumas medidas… O meu filho, quando tinha 10 anos, entrou para o quinto ano e tinha de usar máscara. Isso doeu-me, isso custou-me. O mais pequenino, apesar de tudo, estava mais protegido; no primeiro ano estava em casa e depois, quando entrou para a escola, enfim, era uma escola privada; as medidas eram muito mais aligeiradas. Mas houve coisas que me custaram muito. E não só, também pensar no mundo que quero deixar para eles. Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes.

    E se eles um dia ainda tiverem de fazer lutas, como as que estás a fazer, como vais reagir? Vais querer que eles as façam? Se calhar estás a tentar impedir que tenham de as fazer.

    Eles terão que fazer o caminho que tiverem que fazer. Obviamente, nenhuma mãe quer que os filhos sofram. Queremos todos o melhor mundo possível para os nossos filhos, mas tenho consciência de que também escolherão as suas batalhas, e é natural que existam algumas. A vida nunca vem sem desafios, e claro que há momentos mais turbulentos, e há outros que serão mais pacíficos. Mas eu não posso controlar como é que vai ser o mundo quando eles crescerem, não é?

    Com aquilo que se passou nos últimos anos, compreendeste melhor ou viste com outra luz a luta que os teus pais fizeram? É diferente lermos e contarem-nos sobre um tempo, e depois experienciarmos uma retirada da liberdade sem motivo válido como o que se verificou…

    Sim. O impacto maior que eu vi nisto e que me fez mais impressão – e acho que na altura deles também aconteceria – foi este peso social. Só o uso da palavra “negacionista”, uma pessoa sentia-se quase leprosa em determinados contextos. E antigamente quem estava contra o regime, também se sentiria assim. Obviamente, havia algumas pessoas que apoiavam, mas era aquele apoio por baixo da mesa. Às claras, as pessoas eram mal vistas. Para mim, o mais impressionante, e o que mais me marcou, foi a forma como, de repente, toda a sociedade se pode organizar para encarar daquela forma um determinado grupo social.

    E mesmo da parte de pessoas que, em termos intelectuais e de formação, considerávamos civilizadas. Tivemos directores de jornais, editores, jornalistas, a chamar manifestantes e críticos de chalupas. Não têm desculpa para a atitude que tiveram…

    Isso para mim foi o mais chocante. E depois, ainda por cima, havia muitas pessoas com quem eu falava, como em restaurantes, que diziam que concordavam connosco, mas não podia dizê-lo a ninguém. Como é que se gerou este contexto em que as pessoas sentiam que não podiam expressar a sua opinião, porque as tornava uma espécie de párias sociais. Muita gente ficava chocada com esta comparação da Alemanha Nazi, mas, de facto, os processos psicológicos foram similares. Foi perceber como é que os nazis levaram a cabo aquilo que levaram com a conivência da população. E os próprios soldados eram pessoas normais, que só estavam a cumprir ordens. E, realmente, era aquilo que acontecia, as pessoas só estavam a cumprir ordens, inclusive nas escolas.

    Estamos a falar de pessoas que são pais, e que em público são capazes de atacar outras de forma vil, insultá-las e incentivar ao ódio.

    Exactamente; é algo completamente assustador. Por exemplo, em escolas tivemos crianças a brincar em quadradinhos no recreio, porque não se podiam misturar com as da outra turma… E como é que havia adultos a olhar para aquilo e a achar normal, aceitável? Como é que não deram um murro na mesa!

    black video camera

    Em termos psicológicos, a sociedade portuguesa é muito conotada como sendo passiva e obediente.

    Quando certa vez fomos para uma casa de campo, eu vi o caso de uma pessoa que teve covid-19 na casa ao lado. E a GNR ia lá duas vezes por dia, buzinava e o senhor tinha de vir à varanda para mostrar que estava em casa, e depois iam-se embora. Como é possível? No campo! O homem estava fechado em casa sem ter ninguém à volta. Completamente ridículo.

    Para mim, uma situação que me chocou foi receber uma chamada do centro de saúde porque queriam falar com a minha filha adolescente para tomar a vacina. E tem havido essa tentativa de retirar, também com a ideologia de género, a soberania dos filhos aos pais. Isso é uma táctica também muito utilizada em ditaduras…

    Mas isso eu acho que também vem um bocadinho desta orientação para os pares e da desvalorização da família e das hierarquias. A noção de hierarquia também começou a ser mal vista na sociedade. E a hierarquia existe, e existe uma hierarquia de pais para filhos. E a partir do momento em que desautorizamos os pais, também se abrem portas para esse tipo de coisas.

    Fotografias de Laura Sanches: André Carvalho