Autor: Elisabete Tavares

  • Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


    Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

    Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

    Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

    O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    “Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

    “Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

    Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

    A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

    Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

    A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

    Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

    O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

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    A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

    Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

    Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

    Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

    A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

    A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

    O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

    Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
    (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

    Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

    No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

    Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

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    Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

    O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

    Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

    Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

    Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


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  • Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    O plano de acção em futuras pandemias, em discussão na Organização Mundial de Saúde (OMS), sofreu novas e profundas alterações na semana passada, a segunda vez nos últimos dois meses. As novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional incluem importantes cedências aos defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Mas, em compensação, o texto do chamado Tratado Pandémico ‘chuta’ para o futuro muitas definições, o que está a ser visto como perigoso, por ser um ‘cheque em branco’ à OMS. Se não houver adiamento, as propostas podem ser adoptadas já em Maio. Em Portugal, este tema vai ser alvo de apreciação em reunião plenária no Parlamento, por força de uma petição que forçou os deputados e os partidos a debater publicamente um tema que vai afectar todos os portugueses no futuro. Por agora, só o Chega tomou uma posição contrária ao polémico Tratado Pandémico, propondo a não-assinatura pelo Governo português.


    Será bom demais para ser verdade. É assim que defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais estão a ver as recentes cedências que constam das propostas para a criação de um plano que visa preparar o mundo para futuras pandemias e crises de saúde públicas.

    Se as novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, originalmente criado em 2005, traduzem um forte recuo nas polémicas intenções iniciais – e mantêm os direitos humanos e liberdades individuais -, já o novo texto para aprovar um ‘Tratado Pandémico’ – uma espécie de plano de acção concreto – mostra-se vago e perigoso por deixar eventualmente os países sujeitos à ‘politização’ de medidas, que podem ser mesmo adicionadas ‘à la carte’.

    Os receios em torno das propostas que estão na mesa surgem numa era pós-covid-19, em que medidas que foram impostas na generalidade dos países – com a excepção da Suécia – deixaram um rasto de danos e desconfiança. Medidas como confinamentos, fecho de escolas, imposição ou pressão para a vacinação e adopção de um passe de ‘segregação’ deixaram um rasto de excesso de mortalidade e outros efeitos negativos na população, sobretudo os mais frágeis, além dos danos causados na economia.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o Tratado e as emendas ao Regulamento sejam aprovados já em Maio, mas há dúvidas sobre as propostas que estão na mesa e sobre a pressa na sua aprovação.

    As novas propostas ao texto do Tratado, saídas das reuniões do ‘Intergovernmental Negotiating Body’ da OMS, foram colocadas ‘preto no branco’ a 13 de Março. Este organismo está encarregue de negociar e definir o texto do futuro Tratado que, por agora, é denominada “Convenção da OMS, Acordo ou outro Instrumento de Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias”. A ideia deste Tratado surgiu no auge da pandemia e já foram realizadas nove reuniões formais, sendo que a última reunião foi suspensa e será retomada na próxima segunda-feira, prevendo-se a sua conclusão em 10 de Maio.

    Em todo o caso, apesar de alguns recuos em propostas iniciais que davam demasiado poder à OMS – um organismo não-democrático e permeável aos lobbies farmacêuticos, políticos e de financiadores e investidores –, mantêm-se as críticas ao novo texto. “É, na prática, um cheque em branco que é passado à OMS”, defendeu Marta Gameiro, autora da petição que pede um referendo à adesão de Portugal ao Tratado, e que será amanhã debatida em plenário no Parlamento português.

    Curiosamente, mesmo a indústria farmacêutica aponta críticas ao texto. “Temos três preocupações chave que podem levar a incerteza e iriam beneficiar de critérios claros científicos e de evidência científica para evitar politização”, afirmou hoje a International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations (IFPMA) em comunicado. Entre as suas preocupações, esta federação considera, por exemplo, serem “excessivamente vagas” as definições de conceitos como “Pandemias”.

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    Quanto às novas propostas de alteração ao Regulamento, foram conhecidas apenas na passada quarta-feira, dia 17, sendo que durante esta semana decorrerá a última reunião do Grupo de Trabalho que se debruça sobre o novo texto do Regulamento.

    Das alterações propostas são evidentes algumas cedências, como a manutenção de conceitos como os “direitos humanos” e “liberdade fundamentais das pessoas”, nomeadamente no Artigo 3º. Por outro lado, fica garantido que as recomendações da OMS serão “não vinculativas” (‘non-binding’) para os países. Ou seja, cada país mantém a autonomia de aceitar as recomendações do organismo nacional sem temer quaisquer penalidades se definir uma estratégia própria – como, aliás, fez a Suécia na pandemia da covid-19.

    Contudo, o actual texto em discussão mantém diversas propostas polémicas, nomeadamente a necessidade dos países reforçarem “capacidades” para prevenir e combater riscos para a saúde pública, onde são incluídos “riscos de comunicação” e “desinformação”, não se sabendo sequer quem define o rigor científico que por definição, é dinâmico.

    Recorde-se que, durante a pandemia de covid-19, foram classificados como sendo ‘desinformação’ factos e estudos científicos verídicos e foi censurada informação verdadeira, incluindo em torno de temas como a imunidade natural ou a vitamina D. Por isso, alguns críticos ficam de pé atrás e aplicam o ditado ‘gato escaldado de água quente tem medo’, já que, numa futura crise ou pandemia, consideram que pode ficar aberta a porta a uma nova politização da crise e a perseguição e repressão de informação verídica, mas que não é ‘aprovada’ pela OMS ou ou outras autoridades de saúde ou governos.

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    Ainda há outros temáticas que levantam celeuma, nomeadamente em torno de questões como financiamento específico, incluindo aos países mais pobres. Os críticos da medida falam em ‘novo colonialismo’ e desconfiam da ‘bondade’ na disponibilização de dinheiro para a aplicação de recomendações na área da saúde. “No fundo, teme-se que estas alterações venham, sobretudo, permitir às farmacêuticas criar um gigante mercado, usando fundos públicos para escoarem os seus produtos”, disse Marta Gameiro.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos fundamentados e sólidos.

    Para já, em Portugal, onde a questão do Tratado Pandémico e o poder da OMS pós-pandemia da covid-19 passou ao lado do debate eleitorial nas recentes legislativas, tem sido a sociedade civil a obrigar os políticos a falarem deste assunto. Amanhã será, aliás, apreciada em reunião plenária na Assembleia da República uma petição para referendar a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico da OMS, uma iniciativa dinamizada pela médica dentista Marta Gameiro e que contou com quase 7.500 assinaturas. Esta petição foi analisada na comissão de Saúde, no Parlamento, em 16 de Fevereiro do ano passado, então com fraca adesão dos deputados. Apesar disso, Marta Gameiro defende que “o objectivo da petição foi cumprido, porque queríamos ver os partidos a debater o tema” e isso foi atingido”.

    Nos últimos meses, o Chega tem mostrado um maior interesse sobre estas matérias, e na próxima quarta-feira será mesmo debatido um seu projecto de resolução para “recomendar que o Estado português não adira ao Tratado Pandémico. André Ventura até prometeu constituir uma comissão de inquérito sobre os efeitos da pandemia e o excesso de mortalidade, embora já não possa ‘obrigar’ tão depressa o Parlamento a ‘concordar’, através de um direito potestativo, uma vez que já gastou até ao próximo ano essa possibilidade com o caso das gémeas luso-brasileiras.


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  • Stella Assange envia mensagem a Biden: “Faça o que é correcto. Deixe cair as acusações” contra Julian

    Stella Assange envia mensagem a Biden: “Faça o que é correcto. Deixe cair as acusações” contra Julian

    A esperança de que Julian Assange possa ser libertado renasceu hoje, após a declaração do presidente dos Estados Unidos de que o país está “a considerar” deixar cair as acusações contra o jornalista e fundador da WikiLeaks. A declaração, feita em resposta a uma pergunta de um jornalista, surge na véspera de Assange completar cinco anos desde que está detido numa prisão de alta segurança no Reino Unido. Reagindo ao anúncio de Biden, Stella Assange, activista e mulher do jornalista, escreveu na rede social X uma mensagem dirigida ao presidente dos Estados Unidos, pedindo-lhe que “faça o que é correcto” e que “deixe cair as acusações” contra o seu marido, seguida de “#FreeAssangeNOW”.


    Na véspera de Julian Assange completar cinco anos de encarceramento numa prisão de alta segurança no Reino Unido, a sua mulher, Stella Assange, reagiu à declaração do presidente dos Estados Unidos de que o país está “a considerar” desistir de processar o jornalista e fundador da WikiLeaks. Stella Assange, escreveu uma mensagem na rede social X dirigida a Joe Biden: “Faça o que é correcto. Deixe cair as acusações”.

    O presidente dos Estados Unidos disse, hoje, aos jornalistas, na Casa Branca, estar a considerar o pedido da Austrália para que deixe cair as acusações contra Assange, que tem cidadania australiana e se encontra detido no Reino Unido. O caso tem sido um embaraço para os Estados Unidos e para o Reino Unido, por envolver a detenção de um jornalista.

    Julian e Stella Assange. (Foto: D.R.)

    Há mais de uma década que os Estados Unidos tentam processar o jornalista por a WikiLeaks ter publicado documentos confidenciais que, inclusivamente, expuseram crimes de guerra cometidos pelo país.

    Julian Assange tem lutado contra o pedido de extradição dos EUA enquanto se encontra detido em isolamento numa prisão no Reino Unido, tendo o seu estado de saúde física e mental vindo a deteriorar-se devido às condições em que se encontra detido e à incerteza quanto ao seu futuro.

    Numa conferência de imprensa hoje, na Casa Branca, num dia em que Biden recebe o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, o presidente dos EUA foi questionado sobre o pedido de deixar cair as acusações contra Assange. Biden respondeu: “estamos a considerar”.

    Na rede X, a activista e mulher do jornalista, Stella Assange, escreveu uma mensagem dirigida a Biden: “@POTUS (President Of The United States) Faça o que é correcto. Deixe cair as acusações. #FreeAssangeNOW (liberte Assange agora)”.

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    (Foto: Samuel Regan-Asante)

    Faz amanhã cinco anos que Assange se encontra detido na prisão de alta segurança de Belmarsh, no Reino Unido.

    Em entrevista exclusiva em Portugal ao PÁGINA UM, em 5 de Março deste ano, Stella Assange descreveu as condições em que o jornalista e fundador da WikiLeaks se encontra detido e disse que “ao longo de 21 a 22 horas por dia, Julian Assange está confinado a uma única cela de seis metros quadrados”.

    No dia 26 de Março passado, a Justiça britânica reconheceu que o pedido de extradição do jornalista por parte dos Estados Unidos viola o direito à liberdade de expressão, expõe o fundador da WikiLeaks à pena de morte e também à possibilidade de ser prejudicado no julgamento devido à sua nacionalidade. O tribunal deu aos Estados Unidos até ao dia 16 de Abril para apresentar garantias de que aqueles receios não se cumpram.

    Apesar da declaração de Biden aos jornalistas ter trazido esperança de que possa estar para breve o fim do calvário e a libertação de Assange, há quem tenha ficado cauteloso e colocado a dúvida se a afirmação corresponde uma possibilidade que está na mesa ou se foi mais um deslize de Biden, que tem cometido várias gaffes e demonstrado ter problemas de falta de memória. Um apresentador e jornalista partilhou na rede social X o vídeo da conferência em que Biden fez a afirmação e questionou: “Ele teve a intenção de dizer isto? Ou foi outro deslize?”.

    Entrevista de Stella Assange concedida ao PÁGINA UM no passado dia 5 de Março.


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  • Carta aberta aos nascidos nos anos 70 e 80

    Carta aberta aos nascidos nos anos 70 e 80


    Num vídeo, que se tornou viral, um rapaz mostra-se a bater com o ombro numa porta e imita as reacções ao acidente conforme as diferentes gerações. No caso dos nascidos nos anos 70, depois de irem contra a porta, prosseguem indiferentes. Os nascidos na década de 80 entram em confronto verbal com porta. Os nascidos nos anos 90 levam a mão ao ombro com dor ligeira e reviram os olhos. Os nascidos depois dos 2000 fazem um drama, caem no chão e aproveitam para tirar uma selfie com muitos # de vitimização. Certamente que alguns fariam hoje um vídeo curto sobre o ‘acidente’ para o TikTok.

    Mas este tipo de vídeos e memes, apesar de poderem ser engraçados, estão longe de representar a triste realidade: grande parte da corajosa malta nascida nos desafiantes anos 70 e 80 transformou-se, rendeu-se e traiu a sua geração (e as suas promessas).

    Estas gerações que assistiram ao nascimento e infância da democracia em Portugal, no pós-25 de Abril, que assistiram à queda do Muro de Berlim e ao fim da Guerra Fria, estão, na sua maioria, em silêncio perante o regresso da cultura de censura e repressão. E estão em silêncio, na sua maioria, perante o regresso do poder dos senhores que promovem (e lucram) com as guerras.

    Uns ter-se-ão esquecido quem são devido ao conforto do carro na garagem do condomínio, aos centros comerciais gigantescos, à era do consumo, do smartphone e da Netflix. Outros sentem-se derrotados por décadas de baixos salários, empregos precários e por não verem a luz ao fundo do túnel. E estes também esqueceram quem são.

    Outros, estarão doentes, cansados, desanimados. Mas todos estão rendidos e renegaram, sem saber, às suas promessas de juventude.

    Mas, quer estejam aburguesados, doentes, ou desanimados, assisto, triste, a muitos da minha geração parados, impávidos perante o assalto à democracia e à liberdade que estamos a sofrer na Europa. Em vez de lutarem contra os fortes ataques à democracia em Portugal e na Europa, entretêm-se a publicar quase só fotos de gatinhos, a pôr likes em posts de celebridades e influencers e a encher os seus bolsos pagos pela publicidade encapotada. Em vez de lutarem pela defesa da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, apoiam aqueles mass media que estão em perseguição dos que estão a defender a liberdade de expressão, a democracia e a lutar contra a censura.  

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    Muitos da minha geração pensam mesmo – imagine-se – que em Portugal se vai mesmo celebrar os 50 anos de Abril. E acreditam que os comentadores que nas TV falam sobre as cinco décadas da Revolução dos Cravos são mesmo, na sua maioria, defensores da democracia. Muitos da minha geração ignoram o que se está a passar. Ignoram que muitos dos comentadores são pró-censura e pró-leis tiranas. E pró-guerra e pró-condicionamento das liberdades civis e dos direitos humanos, ‘pelo bem de todos’.

    Não entendo. Custa compreender.

    Quando me perguntam, por exemplo, porque tantos jornalistas têm estado em silêncio e pactuado com a censura e a cultura de tirania pró-ditadura (reflectida em leis e políticas de governos ocidentais), respondo: “porque são jornalistas espertos”. São espertos porque defendem o seu ganha-pão, o seu sustento. Sabem que estamos a viver numa era em que regressaram as tendências pró-ditadura – agora disfarçadas sob capas de combate à desinformação e luta contra a ‘extrema-direita’.   

    Já nem falo das estrelas de cinema que tanto me desiludiram nos últimos anos, ao defenderem a censura, nomeadamente nos Estados Unidos, ou a violação da soberania sobre o próprio corpo. Já nem falo das estrelas do rock e da pop que deram concertos apenas a audiências segregadas, apoiando uma cultura ignóbil de discriminação entre seres humanos.

    Falo aqui das pessoas comuns, as que, como eu, frequentaram os bailes ao ar livre nos anos 90, em Lisboa. As que iam ao cinema sempre que podiam. As que sabem de cor os diálogos de ‘The Breakfast Club’ ou do ‘Assalto ao Arranha Céus’. As que ouviram vezes sem conta ‘Get up, Stand up’, de Bob Marley. É para elas que escrevo este texto. Onde estão? O que vos aconteceu?

    Na Europa, a antiga ministra da Defesa da Alemanha, a Sra. Von der Leyen, arrasta o nosso Continente para uma guerra sem fim. O anúncio de uma ‘Economia de Guerra’ na União Europeia não despertou a minha geração para a acção?

    Onde estão os pacifistas da minha geração? Onde estão os pacifistas em geral, os que sabem que as guerras são monstros para alimentar lucros de multinacionais e os bolsos dos políticos (e dos seus filhos) que as promovem?

    Onde estão os pacifistas portugueses? Onde estão os pacifistas europeus? Onde estão os pacifistas do Ocidente? Onde estão os pacifistas do Mundo? Estarão enfiados em shoppings a comprar o último iPhone ou a viajar pela América do Sul? Estarão entretidos a lavar o seu novo carro eléctrico ou a fazer like no seu influencer preferido? Estarão a assistir todo o fim-de-semana aos inúmeros jogos das diferentes Ligas? Estarão distraídos a ver (de novo) ‘aquela série’ da Netflix? Ou estão quebrados por doenças e a sentir-se vítimas de uma vida ‘que os tem maltratado’?

    Onde estão os corajosos, lutadores e destemidos ‘jovens’ da geração de 70 e 80? Onde estão os jovens inspirados a fazer um bypass ao status quo depois de ver o ‘Clube dos Poetas Mortos’? Onde estão os apaixonados e utópicos ‘jovens’ que têm ainda a cassete VHS com o filme (que viram no cinema) sobre ‘Cyrano de Bergerac’?

    E os jovens que gravavam as cassetes com as músicas das rádios pirata? Onde estão?

    Não estranham que, ao fim de tantos anos, não se consiga acabar com os sem-abrigo, a fome e a pobreza, mas que haja sempre milhares de milhões para armas, bancos, ‘a economia’ e as guerras?

    bokeh photography of man wearing shirt

    Não estranham que tenham sido aprovadas, nos últimos tempos, leis na Europa que condicionam a liberdade de imprensa e de expressão? E não estranham que haja em Portugal movimentos de grandes partidos no Parlamento para mutilar de forma impensável a nossa Constituição? Não estranham que esteja a ser desmembrado o conceito de direitos humanos nas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional da Organização Mundial da Saúde que estão a ser negociadas por países, incluindo Portugal?

    Não estranham que políticos supostamente de esquerda sejam a favor da censura e da repressão e estejam a perseguir ‘opositores’? (É ler este artigo sobre a reacção de Musk à repressão em curso no Brasil).

    Não estranham que haja censura em 2024 e que tudo o que seja ‘contra o regime’ é ‘desinformação’ e ‘extrema-direita’ (na pandemia eram negacionistas e anti-vacinas’)? Não estranham que muitos dos mass media apoiem a censura e sejam hoje máquinas de propaganda?

    Malta: a torre Nakatomi está em chamas e a nossa geração anda a pôr likes em selfies?

    Nós vimos John McClane descalço, ferido, sozinho, a dar cabo dos assassinos gananciosos e com ar sofisticado! E vimos centenas de filmes com heróis a defender a democracia, a liberdade, a lutar contra os maus!

    (Foto: D.R.)

    Alugámos dezenas de cassetes de vídeo de filmes em que se lutava contra corruptos e a ganância. Vimos ‘Erin Brockovich! Vimos ‘Alien’ e a pobre da Sigourney Weaver a matar ‘bichos viscosos e feios’ atrás de ‘bichos viscosos e feios’.  

    Vimos Mulder e Dana nos ‘X- Files’. No entanto, não estranhamos que nos dias de hoje cada vez mais se perseguem pessoas que fazem alguns alertas sobre as novas leis, chamando-os de ‘teóricos da conspiração’?  Vimos ‘Matrix’ com o Neo. (E, se calhar, continuamos à espera desse ‘The One’ que nos virá salvar.)

    Ouvimos Nirvana, U2, Queen, Metallica, Pink Floyd (e mais todos aqueles que não admitimos que ouvimos, como Def Leppard e Europe). Ouvimos música com sintetizadores. E também músicas com letras sobre liberdade, amor e paz.

    Como é que aceitamos que se difamem e cancelem pessoas, acusando-as de ser da extrema-direita (ou outro nome pejorativo qualquer) porque defendem… a paz, a liberdade e a democracia? É isso que está a acontecer, hoje.

    Nós somos a geração do Ferris Bueller! Vamos deixar que os que têm tiques de ‘bufos’, os censores e a repressão vençam? Que a nova tecno-ditadura se instale? Que o jornalismo seja substituído pela propaganda de mass media amigos do poder (que também lucram com políticas anti-democráticas e a com a tecno-censura)?

    (Foto: D.R.)

    Nós somos a geração de ‘The Breakfast Club’. Vamos deixar que as próximas gerações vivam sem liberdade de expressão e sob repressão constantes? Vamos permitir que a guerra avance e Von der Leyen, os donos da indústria de armamento, as grandes multinacionais e magnatas pró-censura das Big Techs vençam? Vamos deixar que os mass media pró-guerra e pró-ditadura vençam?

    Vamos permitir que todos os que gritam ‘paz’, ‘liberdade’ e ‘democracia’ sejam perseguidos e difamados com acusações que se tornaram cliché, de tão comuns?

    Vamos poder ser quem queremos ser, vamos poder viver em liberdade? Vamos poder expressar a nossa verdade? Vamos poder fugir aos ‘carimbos’, à segregação (por género, etnia, nome de família, conta bancária, ….) e procurar viver numa sociedade que se baseia em valores e princípios mais elevados?

    Lembram-se da carta que Brian Johnson escreveu naquele Sábado de detenção n’ ‘O Clube’, num famoso dia 24 de Março? Começa com “Dear Mr. Vernon” e termina assim: “You see us as you want to see us: in the simplest terms, in the most convenient definitions. But what we found out is that each one of us is a brain, and an athlete, and a basket case, a princess, and a criminal. Does that answer your question? Sincerely yours, The Breakfast Club.”

    Não interessa como (nos) vos vêem. Sabemos quem somos. E nós somos a geração de 70 e 80. E não sabemos apenas ‘quem’ somos. O mais importante é que sabemos o que podemos fazer. Juntos.

    carnation, flowers, red

    O que quero acreditar é que, apesar do conforto e do aburguesamento, apesar da doença ou da pobreza, ou dos shoppings, da Netflix e do carro-na-garagem, ainda há ‘jovens’ genuínos dos anos 70 e 80, por aí.

    Não falo só da malta que andava com joelhos e os cotovelos feridos de jogar na rua e no asfalto. Não falo só da malta que não se detém perante o embate em portas. Falo da malta que tem a liberdade no sangue, a democracia nos genes e a rebeldia nas células. Falo da malta que tem a poesia da música na alma e no coração. Da malta que se inspirou em Gandhi, que leu Pessoa, que leu Espanca.

    Acredito que muita dessa malta que tem estado adormecida, embalada com as selfies, o futebol, as férias no paraíso (a crédito, às vezes), o conforto do carro na garagem, ainda têm um pouco de rock em si e se lembram quem são.

    Acredito que muita dessa malta que pode estar doente, sem dinheiro, triste, ainda tem muita garra e coragem para ‘dar e vender’.

    people, friends, together

    São os da geração que viu Sarah Connor e John McClane. São vocês, aí. E estão a tempo de ser os heróis das gerações futuras, se lutarem contra os novos censores, os senhores (e senhoras) da guerra e a cultura pró-ditadura.

    Podem até fazê-lo com selfies e com gatinhos. Ao som de rock ou de pop. Ao estilo de Ferris Bueller ou de Mulder. Mas façam-no. Porque não acredito que “quando se cresce, o nosso coração morre”, como disse Allyson. Pelo menos, espero que não.

    Elisabete Tavares é jornalista


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  • Julian: A longa e dolorosa espera de um jornalista preso no Reino Unido

    Julian: A longa e dolorosa espera de um jornalista preso no Reino Unido

    A Justiça britânica reconheceu, esta terça-feira, que o pedido de extradição do jornalista Julian Assange por parte dos Estados Unidos viola o direito à liberdade de expressão, expõe o fundador da WikiLeaks à pena de morte e também à possibilidade de ser prejudicado no julgamento devido à sua nacionalidade. O tribunal deu aos Estados Unidos até ao dia 16 de Abril para apresentar garantias de que aqueles receios não se cumpram. Na sequência desta decisão de hoje, o PÁGINA UM republica a entrevista a Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, divulgada no dia 5 de Março. Na entrevista, Stella afirmou não ter dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, disse que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?

    Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.

    Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM.
    (Foto: PÁGINA UM)

    Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?

    Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.

    Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?

    Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.

    Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.

    Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.

    Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)

    E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?

    Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.

    Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.

    Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.

    Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.

    a picture of a burger with a free assange sign on it

    E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.

    Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.

    Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.

    E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?

    Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…

    Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)

    Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?

    Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.

    É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.

    Entrevista traduzida e editada para português


    A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube


  • Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste

    Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste


    Vimos, na passada quinta-feira, uma classe em greve. Muitos jornalistas pararam. Muitas notícias não foram publicadas ou emitidas nas TVs e rádios. Muitos eventos não tiveram cobertura da imprensa.

    A greve dos jornalistas surgiu num momento particularmente triste para a imprensa em Portugal. O Diário de Notícias (DN) está num ‘buraco’, tanto financeiro como de credibilidade.

    Já escrevi várias vezes sobre a minha ligação afectiva ao DN, um jornal que entrou no meu coração quando, na infância, fiz uma visita de estudo à redacção do jornal e vi como era impresso. Guardo comigo a placa com o meu nome que trouxe de lá.

    Quando assinei notícias e entrevistas no DN, não era eu quem assinava. Era a miúda que se apaixonou pelo jornal naquela visita de estudo.

    (Foto: D.R.)

    Isso não me impede de ver como o jornal foi destruído ao longo dos anos, sobretudo nos anos mais recentes. As péssimas decisões de (má) gestão e a explosão da Internet e das redes sociais não explicam tudo. Também directores do jornal e jornalistas se sentaram ‘à mesa’ com o poder político e económico, com quem tinha poder, esquecendo o que era o DN e esquecendo o que é ser jornalista.

    Isto aconteceu também em outros meios de comunicação social. Tem sido mais visível, nos últimos anos, a grande quebra na qualidade da informação difundida pela imprensa. A precariedade, os baixos salários (para muitos, não para todos) e a praga do churnalism não explicam tudo. Também tem sido mais visível o enviesamento, a falta de rigor, a colagem ao poder político, económico e financeiro. Mas já existiam antes, talvez não fossem tão óbvios. Hoje, o enviesamento, está em níveis estratosféricos, ao ponto de muitos jornalistas nem perceberem que deixaram, há muito, de se comportar como jornalistas e são apenas meros papagaios.

    Em geral, os jornalistas e as direcções dos jornais acompanham o ambiente de cultura de cancelamento, censura e condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão que é promovida, hoje, pelas grandes tecnológicas como a Meta (dona do Facebook) e a Google (dona do YouTube). Foi evidente na pandemia. Tem sido evidente no tema da guerra na Ucrânia. Tem sido evidente no conflito em Gaza.

    Jornalistas e directores podem ter ganho amigos poderosos com isso. Podem achar que assim são bem vistos e aceites pela generalidade dos pares. Mas os leitores vão percebendo que isso não é compatível com o Jornalismo. Daí ter também surgido o termo ‘jornalixo’ – que abomino.

    Muitos jornalistas portugueses vivem numa bolha. Pensam que são ‘especiais’ por serem jornalistas e pensam que são donos da verdade e que são ‘o farol da democracia’. Nada podia estar mais longe da verdade. A falta de humildade, de isenção, de pensamento crítico e rigor de muitos jornalistas dos grandes grupos de comunicação social são asfixiantes. Não se respira verdadeiro Jornalismo nas redacções dos grandes grupos de media portugueses, hoje, em geral (com raras excepções).

    Por outro lado, os jornalistas que querem fazer bom jornalismo não conseguem. Têm sido inúmeros os relatos que me chegam de jornalistas que não têm tempo para investigar e são pressionados a fazer notícias ao segundo. Outros não têm sido autorizados a fazer determinadas investigações, reportagens, entrevistas e notícias. Outros, já nem se ‘atrevem’ a propor alguns temas. Preferem salvar os seus postos de trabalho (para já).

    Nos media, como no mundo académico, está instalado um ambiente pútrido e podre de caça à opinião ‘divergente’ e de bullying e difamação em relação ao ‘dissidente’. Os factos, a verdade e a democracia pouco são para ali chamados. Quem diverge das ideologias e visões da moda é classificado como sendo militante de ‘extrema-direita’, ‘radical’. Dependendo do tema, o bullying e a difamação envolvem os mais diversos insultos e nomes pejorativos.

    É um ambiente de perseguição mas também de discriminação. Basta lembrar a discriminação e o discurso de ódio promovido nas TVs, jornais, revistas e redes sociais por alguns jornalistas e directores de órgãos de comunicação social durante a pandemia.

    Alguns desses jornalistas e directores são os mesmos que afirmam ser “totalmente” contra qualquer tipo de “discriminação”, contra “todo” o “discurso de ódio” e que dizem defender a “soberania sobre o próprio corpo”. Isto não se inventa. Isto é o populismo em acção.

    play figures, green, blue
    (Foto: D.R.)

    O mesmo ambiente de falta de rigor informativo, falta de isenção, enviesamento e perseguição é visível, hoje, na cobertura das eleições legislativas.  Além da falta de pluralismo, em geral, com partidos de ‘primeira’ e partidos de ‘segunda’. (Daí o PÁGINA UM ter levado a cabo uma iniciativa única na imprensa, a rubrica HORA POLÍTICA, para dar voz aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal.)

    Não votei num partido do espectro da direita. Mas farei tudo para que os portugueses e os europeus possam votar no partido que bem entenderem. Democracia é também isso. E é igualmente respeitar a decisão de quem vota.

    E, como jornalista, não posso – não devo – fazer uma cobertura diferente dos partidos consoante sejam de esquerda ou extrema-esquerda, de centro, de direita ou extrema-direita, ou partidos que assentam no princípio de serem formados por cidadãos independentes.  

    Democracia não é só quando ganha o “meu” partido. Mas, nestas eleições legislativas, ficou claro que, para alguns – incluindo jornalistas –, mudou o conceito de ‘democracia’.

    Desde logo, com a reacção ao queimar de um cartaz de um dos partidos – do Chega –, um acto que foi bem visto, em geral, na imprensa. Tivesse acontecido com um partido que se diz de esquerda ou de extrema-esquerda e caia o Carmo e a Trindade. Depois, com a forma claramente enviesada, deturpada e indigna como a maioria da comunicação social trata o Chega e André Ventura.

    (Foto: D.R.)

    A forma como a maior parte dos jornalistas e da imprensa trata o Chega e Ventura não é mau para Ventura nem para o partido. É mau para o Jornalismo e para a imprensa. E para os jornalistas.

    Aliás, com a má imagem que muitos portugueses têm dos jornalistas, quanto pior a imprensa tratar Ventura e o Chega, mais votos terão.

    Agora, é comum ver-se na imprensa notícias e artigos e entrevistas que difundem ideias sobre os perigos do populismo na Europa e da ascensão da extrema-direita (mas, para os media, quase tudo hoje que não é de esquerda é ‘extrema-direita’). Mas são a imprensa e os partidos no poder que têm sido decisivos para o crescimento dos votos em partidos de direita, populistas e de extrema-direita.

    É difícil encontrar notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre um outro facto muito concreto e perigoso: a grande ameaça para a Europa, a democracia e a liberdade tem sido protagonizada pelos políticos que têm liderado a região nos últimos anos.

    Os relatórios que mostram um enorme recuo no nível de democracia nos países do Ocidente são claros. Os alertas de jornalistas, de activistas dos direitos humanos, de políticos e de reputados académicos e cientistas acerca da crescente censura e do condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão são claros.

    white and black typewriter on green grass

    Não têm sido ‘partidos populistas’ ou a ‘extrema-direita’ que têm aprovado leis e regulação que constituem uma ameaça à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão, aos direitos humanos e aos direitos civis. Tem sido a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e governos que têm tido o apoio de partidos que se dizem de ‘esquerda’, como é o caso de Portugal.

    O mesmo se passa em países como o Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Brasil. Nestes países, a liberdade de expressão, os direitos humanos e civis estão sob séria ameaça. Por isso, na Europa como em outras regiões, a população ‘abandona’ partidos que, se afirmando de ‘esquerda’, estão cada vez mais com tiques totalitários e de tirania (e de perseguição dos jornalistas isentos e não comprometidos com o poder).

    Não são partidos ‘populistas’ ou de ‘extrema-direita’ que estão a promover e que pretendem subscrever na íntegra – sem negociar – as alterações perigosas e desumanas ao Regulamento Sanitário Internacional. São partidos como o PS e o PSD. É a Comissão Europeia.

    Não são partidos ‘populistas’ e de ‘extrema-direita’ que apoiam e aprovam gigantescos desvios – de milhares de milhões de euros – de dinheiros públicos para entregar às poderosas indústrias de venda de armas para a compra de armamento e equipamento militar, para criar uma “economia de guerra”. (Aliás, pergunto-me onde andam os pacifistas da ‘esquerda’ em Portugal e outras países na Europa).   

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    (Foto: D.R.)

    Mas os jornalistas portugueses ignoram tudo isto. Se assistirmos aos noticiários, se lermos revistas, jornais e sites dos media, a ameaça é o Chega, os partidos populistas e a extrema-direita.

    Nenhuma notícia ou opinião (tirando uma ou outra excepção) sobre como as forças, os interesses e os políticos que têm estado no poder em Portugal e a nível comunitário têm colocado em risco a liberdade de imprensa, a democracia e os direitos humanos e civis. (E a paz e a defesa do meio ambiente, a meu ver.)  

    Isto só acontece porque os media estão capturados por interesses políticos e económicos. E porque há jornalistas que esqueceram o que é ser jornalista. Apropriaram-se da ‘verdade’, mas difundem notícias enviesadas e carregadas de ideologia. Pensam ser um ‘farol da democracia’ e fazem um trabalho sem o mínimo pensamento crítico, rigor e busca pela isenção.

    O Jornalismo é, para mim, uma das profissões mais belas. É uma Arte. E é fundamental para manter os poderosos sob escrutínio. Para o Jornalismo viver é preciso que haja jornalistas, profissionais com vontade de cumprir escrupulosamente os princípios que regem a profissão, incluindo o rigor, a isenção, a independência. Ter pensamento crítico, literacia em diversas áreas e cultura geral ajudam. Mas, se os jornalistas seguirem as regras de base no Jornalismo, também farão um trabalho competente.

    Mas, por enquanto, muitos jornalistas portugueses preferem continuar a viver na bolha. A bolha em que preferem ignorar que os media são coniventes com os poderes políticos e económicos. A bolha em que os jornalistas se sentem especiais, deixaram de ser humildes, e vivem agarrados às suas ideologias, crenças e preconceitos, agarrados à moda dos slogans do wokismo e dos slogans dos spin-doctors pagos pelos grandes partidos e pelas indústrias e lobbies. Os mesmos que, depois, pagam as parcerias comerciais com os grandes grupos do sector da comunicação social, como a Global Media, que é (ainda) a dona do DN.

    (Foto: D.R.)

    Enquanto a esmagadora maioria dos jornalistas, e quase todos os directores dos principais órgãos de comunicação social, viverem na bolha, a democracia continuará em risco e o Jornalismo também. Porque ser jornalista é a melhor profissão do mundo, mas também acarreta uma enorme responsabilidade: a de se ser independente, rigoroso e isento. De fazer escrutínio dos poderes. E de ser livre de amarras feitas em almoços e jantares com políticos, banqueiros, comentadores comprometidos, ‘almirantes-aspirantes-a-Presidente-da-República’ e lobistas de toda a espécie.

    Os jornalistas podem continuar a querer viver na sua bolha. Mas enquanto não fizerem greve aos fretes, às ideologias, às conferências pagas, aos podcasts patrocinados (encomendados) e aos almoços e jantares com poderosos, a democracia e o Jornalismo continuarão em risco.

    Pode já não se conseguir salvar o DN. Mesmo que venha a ser alvo de perdão de dívidas e de uma mega injecção de dinheiros dos contribuintes (o que não defendo), dificilmente voltará a ser o mesmo de outrora. Mas pode ainda salvar-se o Jornalismo e a profissão de jornalista. Assim, os leitores exijam, os reguladores actuem e os jornalistas queiram.   


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  • TAP investiga ‘voo rasante’ sobre Nice

    TAP investiga ‘voo rasante’ sobre Nice

    Um voo da Portugália Airlines, que pertence ao grupo TAP, registou um incidente na sua descolagem de Nice, no passado Sábado. Num voo com destino a Lisboa, a aeronave, um Embraer, sobrevoou aquela cidade francesa a uma altitude demasiado baixa, de apenas 2.500 pés, ou seja, 762 metros. Também a trajectória do voo não foi usual. Fonte oficial da TAP revelou ao PÁGINA UM que a companhia está a investigar o incidente em “estreita colaboração com as autoridades francesas”. Mas a TAP garante que este incidente não está relacionado com um outro, recente, que envolveu um Airbus numa aterragem em Madrid, cujo caso também levou a uma investigação.


    Um voo da Portugália Airlines, do grupo TAP, fez uma razia sobre a cidade de Nice, no passado sábado, dia 9 de Março, voando a uma altitude demasiado baixa, numa rota não autorizada, o que levou à abertura de uma investigação por parte da TAP e das autoridades francesas.

    O incidente envolveu uma aeronave da Embraer, E190, e ocorreu logo após a descolagem de Nice, num voo com destino a Lisboa.

    Segundo o site de rastreio de voos Flightradar24 – o qual pode ser impreciso –, o voo TAP483 de Nice para Lisboa estaria apenas a 2.500 pés de altitude (762 metros) quando começou a sobrevoar o centro da cidade de Nice. A trajectória do voo aparenta também ter sido algo errática.

    Um Embraer E190 (Foto: TAP)

    O aparelho terá feito uma volta à esquerda após a descolagem, numa manobra não autorizada. Circulou sobre o centro de Nice, alarmando alguns residentes, antes de retomar ao seu plano de voo normal e autorizado.

    O incidente foi reportado pela France 3 Côte d’Azur que indica que o procedimento de descolagem do aeroporto de Nice aponta que uma aeronave, “a menos que autorizada de outra forma pelo ATC (Controle de Tráfego Aéreo), não sobrevoe a terra abaixo de 5000 pés (1500 metros)”.

    Fonte oficial da TAP afirmou ao PÁGINA UM que a companhia “já desencadeou um processo de investigação relativamente ao alegado incidente em questão e que envolve um voo da PGA, no sábado, dia 09MAR (TP483), à descolagem de Nice”. Segundo a mesma fonte, “o referido processo está a ser conduzido em estreita colaboração com as autoridades francesas”.

    Trajectória do voo TP483 sobre Nice, com uma manobra não autorizada e a baixa altitude.
    (Foto: Captura de imagem no site Flightradar24)

    A Autoridade de Aviação Civil (DGAC) francesa está também a investigar o incidente, disse Nicolas Boulay, director de navegação aérea da DGAC Sud-Est, ao Nice Matin, confirmando também que os pilotos não tinham autorização para efectuar a manobra sobre a cidade, tendo sido uma escolha do piloto ou erro do piloto.

    “Fomos imediatamente notificados. Essa trajetória está longe de ser compatível (com o plano de voo normal). O piloto teve que fazer a opção de não cumprir as obrigações por causa de problemas com as condições de voo, talvez o clima, como uma massa de nuvens, mas ainda não tivemos resposta”, disse a mesma fonte, citada pelo Nice Matin. “É muito cedo para dizer. Essa descolagem está a ser analisada e vamos ter conversas com a empresa para tentar entender o que aconteceu”, sublinhou.

    O incidente sobre Nice gerou relatos de algum espanto e alarme por parte de residentes, incluindo nas redes sociais. Um utilizador partilhou na rede X (antigo Twitter) uma imagem da manobra do voo da PGA no Flight Radar com a nota: “Que avião comercial é este [?] que passou a baixa altitude de oeste para leste sobre as colinas?”.

    Questionada sobre se este caso pode estar ligado a um outro, recente, que envolveu um Airbus A321LR, numa aterragem em Madrid no dia 3 de Setembro de 2023, a fonte oficial da TAP garantiu ao PÁGINA UM que “este alegado incidente não tem relação com qualquer outro”.


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  • O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM

    O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM


    Campanhas eleitorais trazem sempre muito convívio com o povo, arruadas, comícios. E beijinhos. Muitos beijinhos. Muitos abraços. Tudo sem álcool-gel, sem distanciamento de dois metros, sem máscaras cirúrgicas ou de pano, daquelas com bonecos. Já ‘não há’ covid-19. Já não há testes (não dariam jeito nenhum). Já não há quarentenas. Agora, é beijinhos atrás de beijinhos. (Viva a Ómicron!)

    Pois esta jornalista, não comparecendo em comícios, fugindo de arruadas e de qualquer tipo de ajuntamento de caça ao voto, não conseguiu escapar de uns beijinhos de um candidato.

    Miguel Guimarães, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia.

    O próprio candidato também não se deve ter apercebido, até agora, a quem deu dois beijinhos de cumprimento em plena campanha eleitoral. Se soubesse quem eu era, ter-me-ia cumprimentado com tanto entusiasmo? Com aquele entusiasmo de candidato em campanha? Desconfio que… não.

    Isto porque o candidato em questão é, nada mais nada menos, do que Miguel Guimarães. Esse mesmo. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual cabeça de lista no círculo do Porto na coligação Aliança Democrática (AD), que junta o PSD, o CDS-PP e o PPM.

    Para quem não sabe, ou se tiver esquecido, pode ficar a saber mais sobre a ‘relação’ entre Miguel Guimarães e o PÁGINA UM nesta notícia AQUI ou esta AQUI e ou ainda AQUI (e há tantas outras). O PÁGINA UM intentou três processos de intimação contra a Ordem dos Médicos por informações escondidas por Miguel Guimarães, e por três vezes o Tribunal Administrativo de Lisboa deu-nos razão. Em troca, Miguel Guimarães – em conjunto com a Ordem dos Médicos, o pneumologista Filipe Froes e o pediatra Luís Varandas – processou o director do PÁGINA UM. Aliás, o processo acabará mesmo em tribunal, porque agora, mesmo que Miguel Guimarães queira desistir da queixa, Pedro Almeida Vieira já manifestou formalmente a sua oposição.

    Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e candidato pela coligação AD. (Foto: AD)

    Mas, pergunta, e bem, o leitor: em que circunstâncias é que a jornalista foi ‘apanhada’ no meio de um evento de caça ao voto de Miguel Guimarães?

    Passo a explicar. Tudo aconteceu no dia em que o PÁGINA UM foi fotografar Joaquim Rocha Afonso, presidente do partido Nós, Cidadãos. A sessão fotográfica foi combinada para o mesmo local onde tinha entrevistado aquele mesmo líder partidário, no dia anterior: o Clube Militar Naval, na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa.

    O edifício apalaçado é belíssimo e os interiores prestam-se a sessões fotográficas. As diferentes salas, a decoração, os ambientes, a escadaria, os vitrais…

    Ora, acontece, que nesse dia, estava agendado um jantar-debate com a presença de Miguel Guimarães. Eu sabia que estava marcado um jantar-debate, mas desconhecia que o candidato da AD seria um dos presentes.

    Assim, estava eu no hall no rés-do-chão, a aguardar pelo presidente do Nós, Cidadãos, quando passa por mim Miguel Guimarães, em passo apressado, a caminho de subir a escadaria para o primeiro andar.

    Com aquele gesto automático de político em plena campanha, que lhe terão ensinado, Miguel Guimarães olha para mim com um largo e simpático sorriso – como se tivesse gostado muito de me ver – e toca a cumprimentar-me com dois rápidos beijinhos no rosto, bem à português (obviamente, o português ‘normal’, não o português com tiques de aristocrata ou da linha de Cascais).

    Nem tive tempo de reagir. Inicialmente, pensei que se dirigia a mim porque nos conhecíamos (como jornalista, conhecemos muita gente, mas a minha memória já teve melhores dias e não guarda todas as caras e nomes).

    Depois, quando vi o enorme sorriso, desconfiei (imaginem a cena em câmara lenta, mas a acontecer, na realidade, em milésimos de segundo). Pensei: “está a sorrir em demasia, não deve saber que sou a jornalista Elisabete Tavares, do PÁGINA UM”.

    Sede do Clube Militar Naval. (Foto: D.R.)

    Quando, por fim, me cumprimenta com dois beijinhos, entusiasticamente, tive a certeza: “não sabe quem sou e pensa que sou uma participante do jantar-debate”.

    Foi tudo tão rápido que apenas me saiu um automático: “Como está?”. Fiquei a sentir-me mesmo parva por não ter travado o candidato da AD para me apresentar convenientemente. Ao mesmo tempo, chega o Joaquim Rocha Afonso e Miguel Guimarães já ia escadaria acima, apressado. É que ainda havia muitos abraços, cumprimentos e beijinhos a dar. E vírus a espalhar.


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  • ‘Ao longo de 21 a 22 horas por dia, Julian Assange está confinado a uma única cela de seis metros quadrados’

    ‘Ao longo de 21 a 22 horas por dia, Julian Assange está confinado a uma única cela de seis metros quadrados’

    Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, não tem dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, afirma que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. A decisão na Justiça britânica será conhecida em breve, enquanto o estado de saúde físico e mental do jornalista se deteriora devido às condições de detenção. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?

    Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.

    Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM.
    (Foto: PÁGINA UM)

    Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?

    Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.

    Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?

    Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.

    Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.

    Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.

    Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)

    E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?

    Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.

    Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.

    Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.

    Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.

    a picture of a burger with a free assange sign on it

    E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.

    Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.

    Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.

    E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?

    Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…

    Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)

    Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?

    Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.

    É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.

    Entrevista traduzida e editada para português


    A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube


  • ‘A grande emergência nacional é o aumento geral e significativo dos salários’

    ‘A grande emergência nacional é o aumento geral e significativo dos salários’

    O Partido Comunista Português (PCP) foi o primeiro partido a ser inscrito junto do Tribunal Constitucional, no pós 25 de Abril de 1974. Paulo Raimundo, 47 anos, assumiu o cargo de secretário-geral do PCP em Novembro de 2022, sucedendo a Jerónimo de Sousa naquela função. Como é habitual, nas eleições legislativas, o PCP integra a coligação CDU, junto com o Partido Ecologista Os Verdes. Depois de o partido ter ficado com apenas seis deputados na Assembleia da República nas últimas eleições – com o PEV a deixar de estar no hemiciclo –, o PCP pretende ver reforçada a sua representação parlamentar. Mas também já pensa nas eleições europeias, e Paulo Raimundo defende que será com mais eurodeputados comunistas que a Europa pode enfrentar a ascensão da direita e de partidos populistas. Esta rubrica do PÁGINA UM teve como objectivo conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal. A entrevista com Paulo Raimundo é a última publicada no âmbito desta iniciativa, em que apenas cinco partidos estiveram ausentes: Livre, Bloco de Esquerda, PS, PSD e PPM.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE PAULO RAIMUNDO, SECRETÁRIO-GERAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Têm afirmado que pretendem eleger mais deputados nestas eleições e voltar a ter uma posição mais forte no Parlamento. Nesta altura, até tendo em conta também as sondagens, que sabemos que nem sempre acertam, o que nos pode dizer dos vossos objectivos?

    Em relação às sondagens, nós temos afirmado – e é uma convicção profunda que tenho e, aliás, comprovada em todos os actos eleitorais – que elas condicionam muito e acertam pouco. Tem sido sempre assim e foi assim também há bem pouco tempo, na Madeira e nos Açores. Também diziam que nós íamos desaparecer e foi tudo ao contrário. A CDU cresceu, de forma mais expressiva na Madeira, e de forma menos expressiva nos Açores. Mas ficámos a 85 votos de eleger um deputado – que tanta falta fazia ao povo açoriano.

    Mas, voltando à sua pergunta, aquilo que achamos que o nosso povo, os trabalhadores e o país precisam é que a CDU se reforce – que tenha mais votos e mais deputados. E estamos muito convencidos de que é possível; não para nós ficarmos todos contentes no Domingo à noite, a agitar as nossas bandeiras – porque não é esse o objectivo – mas porque achamos que mais votos e mais deputados da CDU determinará o caminho futuro a partir do dia 11 de Março.

    Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP. (Foto: D.R./PCP)

    E porque considera importante que haja mais deputados do PCP na Assembleia da República [AR]?

    Eu vou responder-lhe de forma sucinta, com exemplos concretos. Uma boa parte das nossas propostas – que são isso mesmo, propostas, e não um conjunto de promessas vãs e ocas – , nem são grande novidade. Nós levámo-las, neste mandato, à Assembleia da República; nomeadamente medidas sobre os salários, as pensões, o reforço do Serviço Nacional de Saúde, medidas concretas para pôr a banca a pagar o aumento das taxas de juro, o travão para as rendas e os direitos dos trabalhadores por turnos.

    Nós propusemos um conjunto de medidas, e vamos voltar a propô-las; e elas só não foram aprovadas porque nós não tínhamos a força necessária para as fazer aprovar e para impor a sua concretização. E se nós tivéssemos tido a força necessária para isso, a vida das pessoas hoje estaria diferente – e a ideia que temos é que estaria melhor.

    E a razão de fundo é que nós precisamos de mais votos e mais deputados, porque é isso que vamos decidir no dia 10 de Março: é número de deputados que cada força elege, e é a partir dessa correlação de forças que se determinará cada uma das propostas e cada uma das soluções. E nós nunca faltaremos às soluções positivas, nem para convergir e para propor – como fizemos nestes últimos anos. Mas precisamos de mais força para que elas se concretizem. Esse é que é o grande objectivo. E não é indiferente nós termos mais ou menos deputados, porque isso condicionará as respostas que são necessárias, desde as pensões, ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] à habitação e a uma coisa que nós estamos a dar uma grande e justa centralidade, que é os direitos dos pais e das crianças. E essa é uma grande vantagem daqueles que confiam na CDU.

    Depois, na situação que enfrentamos, é de salientar que não há força mais consequente ou com mais experiência acumulada e mais provas dadas de combate à direita do que a CDU, e em particular o PCP. E mesmo para aqueles que estão a apelar ao voto para combater a direita, convenhamos que essa garantia é dada pela CDU e pelo PCP de uma forma incomparável em relação aos outros partidos.

    (Foto: D.R./PCP)

    Falou em algumas medidas e, de facto, o PCP e a CDU têm apresentado propostas muito concretas, nomeadamente, como referiu, o travão das rendas. Há muitas famílias em Portugal a passar muitas dificuldades pelo aumento das taxas de juro e do custo de vida. Quer recordar aqui duas ou três propostas que sejam cruciais, no ponto de vista da CDU, para melhorar a vida dos portugueses?

    Aquilo que nós temos colocado como a grande emergência nacional, e a primeira medida que é preciso responder, é o aumento geral e significativo dos salários – esta é a grande questão central para dar resposta. E tem de ser um aumento geral e significativo, agora, e não só para 2028 ou 2030 – é agora que faz falta, para fazer duas coisas. Desde logo, para responder aos problemas que mencionou: o aumento do custo de vida e a pressão brutal da grande maioria. E, depois, para responder a uma questão elementar, que é a justiça – e em particular a justiça na distribuição da riqueza que é criada todos os dias. Não podemos viver sabendo que há 3 milhões de trabalhadores no nosso país que ganham até 1.000 euros de salário bruto; com o que isso implica na vida de cada um. E esta é a primeira grande medida.

    Mas, depois, também é preciso responder a outros problemas concretos – alguns que terão possibilidades de resposta a médio e longo prazo, mas onde são precisas medidas concretas agora. Um deles é a habitação, e nós propomos uma lei-travão ao aumento das rendas. Iniciámos este ano com 7% de aumento das rendas, um aumento que soma a tudo o que tudo o que aumentou também, como a electricidade, o gás, e o custo de vida que aumentou de forma brutal.

    E a alimentação também.

    E a alimentação tem um peso determinante, em particular naqueles que têm menos rendimentos, e que gastam cerca de 40% do seu rendimento em alimentação. Veja-se o impacto que tem na vida das pessoas de cada vez que a Sonae – e todas as outras distribuidoras – encaixam mais uns milhões de lucros. Este é um outro problema.

    Mas, como nós dizemos, os lucros da banca deviam suportar o aumento das taxas de juro. Porque com a situação que nós temos hoje, eu até fico pasmado como é que ninguém para além de nós vem ‘a jogo’.  A banca, hoje, encaixa por dia 6,5 milhões de euros, só em comissões e taxas; não é em lucros de operação financeira. Ora, nós propomos que esses 6,5 milhões de euros em taxas e comissões sejam um elemento para suster o aumento das taxas de juro que sejam creditados nas prestações de cada um – no crédito à habitação, mas também em quem tem o seu pequeno negócio. Porque os pequenos e médios empresários também estão muito aflitos.

    Depois, há uma outra medida – esta de médio a longo prazo – para aumentar a oferta de habitação, que é um investimento público musculado, de forma a que cheguemos ao fim dos próximos quatro anos com mais 50 mil habitações disponibilizadas. A habitação pública – que não resolve tudo, mas responde a algumas necessidades que existem… E certamente que assim conseguiremos baixar a especulação.

    É esta conjugação de duas medidas com consequências imediatas e um projecto de futuro a médio e longo prazo que vai alterar o paradigma deste sector, que é o mais desregulado e mais liberalizado da nossa economia, que é a habitação, e que está nas mãos da banca e dos fundos imobiliários.

    (Foto: D.R./PCP)

    De facto, tem-se assistido a uma grande ‘financeirização’ desse sector, apesar de ser fundamental haver habitação para a população Mas hoje, é um sector que os investidores olham como um mero jogo, como se fossem acções na bolsa.

    Sim; é exactamente assim como está a descrever. É um negócio. Transformámos um direito constitucionalmente consagrado, que é o direito à habitação – ‘transformámos’, salvo seja – num negócio de milhões. E a grande questão com que estamos confrontados neste caminho, e que é preciso interromper, é que hoje é assim com a habitação, amanhã é a saúde, e depois é tudo. E a nossa grande prioridade é interromper esse caminho.

    E está disponível para apoiar algum governo do PS? Até porque muitas das medidas que está a mencionar provavelmente vão encontrar resistência, sobretudo à direita.

    Como se costuma dizer, essa é a questão de um milhão de dólares, porque essa pergunta tem de ser devolvida com outra: vamos convergir para quê? Qual é a política? Quais são as respostas, as soluções, e as medidas concretas? E a experiência que nós temos, em particular nestes últimos dois anos, é que a maioria absoluta do Partido Socialista não deu resposta a nenhuma destas questões de que falámos: nem nos salários, não na saúde, nem na habitação e nas outras.

    Portanto, para nós, há uma coisa que é evidente: o PS, por sua iniciativa, nunca dará as respostas que são necessárias. Daí a nossa ideia de que a única possibilidade de trazer o PS para as soluções, não é dando força ao PS – é dando mais força à CDU, com mais votos e mais deputados. E, como aconteceu naquele tempo, ainda que limitado, em que travámos o percurso desastroso do PSD e do CDS,  e recuperámos uma parte muito roubada ao nosso povo – não recuperámos tudo, é verdade, mas fomos mais além nas creches, nos manuais escolares gratuitos, no passe de transportes – uma medida de grande dimensão –, no aumento extraordinário das reformas, no fim do PEC [pagamento especial por conta] para os pequenos e médios empresários. Tudo isto onde fomos mais além não foi por vontade própria do PS – que não só não tinha vontade, como resistiu. A única forma de isto ter sido garantido – e voltamos sempre à primeira questão – foi a correlação de forças, o número de votos e de deputados que a CDU teve, e a força que obrigou o PS.

    Portanto, é como lhe digo: nós não descartamos nenhuma possibilidade de convergência, mas não passamos cheques em branco, por um lado, e não falamos nisso no abstrato, falamos no concreto.  Se é para aumentar salários, não falharemos; se é para reforçar o número de profissionais e respeitar os profissionais do SNS, não falharemos; se é para pôr a banca a cobrir o aumento das taxas de juro, não falharemos. E por aí fora. É no concreto.

    (Foto: D.R./PCP)

    Temos as eleições europeias à porta e também tem-se assistido a grandes recuos na Europa em termos do nível de democracia, e a uma ascensão de medidas mais de direita, com grandes multinacionais com grandes lucros. Olhando para estas eleições europeias, quais são as pretensões do PCP?

    Nós enfrentamos de facto grandes perigos. Por que razão cresce esta ou aquela força, ou esta ou aquela tendência mais extremista e perigosa? Cresce porque as políticas não dão resposta à vida das pessoas. E esse é um problema que é nacional, mas é um problema também à escala das nações e da União Europeia. Porque aquilo a que temos assistido é, como disse, é a uma brutal e constante concentração da riqueza às mãos de uns poucos, das grandes multinacionais; e à perda constante de soberania dos países.

    Temos o caso da TAP, por exemplo. Até acho extraordinário o que aconteceu. Veja o ponto a que chegámos: a UE permitiu que o Estado português pegasse em dinheiro, que é de quem trabalha no nosso país, para salvar TAP – como aconteceu com todas as empresas de aviação do mundo –, mas com uma condição. O Estado português só podia pôr dinheiro público na sua empresa pública se, no fim do processo, fosse no sentido da sua privatização. Ora, isto é o fim da picada. É o fim da soberania total, e não há nenhuma possibilidade de nós nos desenvolvermos assim.

    Há uma coisa que nós sabemos: há grandes perigos, de facto, mas também há grandes potencialidades. E, tal como em todos os momentos da História – seja no nosso país, ou em todos os países deste mundo fora e da União Europeia – em última instância, o povo terá a força suficiente para alterar este rumo. Porque este rumo não serve os povos; pode servir as multinacionais, o Banco Central Europeu, e os grandes negócios, mas este caminho que está em curso não serve os povos. E os povos, mais cedo ou mais tarde, vão ter de travar isso. E eu estou convencido que é possível, também no quadro da batalha para o Parlamento Europeu, dar um sinal nesse sentido – e era um sinal de grande importância, que nós precisávamos todos; cada um dos povos nos seus países, a União Europeia no seu conjunto, e naturalmente, também nós aqui no nosso país.

    Transcrição de Maria Afonso Peixoto.


    Veja AQUI a página na Internet com informação do PCP e programa da coligação CDU.