Verão não é Verão sem festança na ‘aldeia’. Neste caso, a ‘festança’ tem sido em Portimão, dura dois dias (ou noites) e promete sempre ser de arromba, com espectáculos de música e luzes. De arromba é também o preço, pago com dinheiros públicos: 1.648.200 euros por duas edições deste evento designado por ‘Noitada‘.
A organizadora é uma empresa com sede em Paço de Arcos, Oeiras — a New Sheet, Brand Activation —, que, depois de ter conseguido ‘vender’ o evento ao executivo camarário de Portimão em 2024, voltou a conseguir novo contrato este ano. Ambos os contratos foram adjudicados por ajuste directo, alegando-se direitos de autor.
O município realizou a primeiro edição de ‘Noitada Portimão’ nos dias 26 e 27 de Julho de 2024. / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo de promoção do evento
O primeiro ajuste directo foi efectuado há um ano, tendo a autarquia presidida pelo socialista Álvaro Miguel Bila pago 738 mil euros (com IVA) pela organização do evento ‘Noitada’. O evento decorreu nos dias 26 e 27 de Julho de 2024, no âmbito das celebrações do centenário da cidade. O evento contou com seis palcos, 23 pontos de animação, 20 instalações de luz, e mais de 100 artistas itinerantes.
No palco principal, na Praça da República, actuaram os HMB, Pânico, Para Sempre Marco e Bateu Matou, entre outros, acompanhados de DJ sets como os de Nikky e do grupo Rebel Kidz Show, havendo também um palco dedicado ao fado. Para além da componente musical, o festival apostou fortemente na dimensão estética e sensorial, com espectáculos de video mapping a cada meia hora na Praça 1.º de Maio e laser shows sobre a Ponte Velha.
Este ano, voltou a repetir o ajuste directo à New Sheet, mas por um valor mais alto, de 910 mil euros. A segunda edição do evento vai decorrer nos próximos dias 25 e 26 de Julho, mas ainda não foi divulgado o programa.
A edição deste ano promete ter, segundo o caderno de encargos do procedimento, “uma mistura de arte, design, espectáculo, entretenimento e arquitetura que visa trazer vida ao centro da cidade durante duas noites, pretende criar uma movida pelo centro da cidade, numa rota que percorrerá as principais artérias e pontos de interesse no centro da cidade”.
A edição deste ano contará com “6 palcos, 23 pontos de animação na cidade, 20 instalações de luz, 80 artistas itinerantes e 100 artistas itinerantes”.
Em resposta a questões do PÁGINA UM, a autarquia fundamentou o facto de não ter efectuado concursos para a organização das duas ‘Noitadas’ com o facto de estarem em causa “direitos de propriedade intelectual”.
Foto: Captura de imagem a partir de vídeo de promoção do evento ‘Noitada 2024’
Segundo o gabinete de comunicação da autarquia, “o conceito do evento ‘A Noitada’ foi apresentado ao município de Portimão em março de 2024 por iniciativa da empresa New Sheet, Brand Activation Lda., que detém os direitos de propriedade intelectual sobre o mesmo, devidamente registados”. Explicou que, “face à originalidade do conceito e à titularidade exclusiva desses direitos, a única forma legalmente admissível de contratualizar a sua realização foi através de ajuste directo”.
Segundo o município, a primeira edição do evento “revelou-se um enorme sucesso, atraindo milhares de visitantes”. A autarquia afirma que decidiu fazer a segunda edição com base num estudo que encomendou a investigadores do CiTUR – Universidade do Algarve, o qual concluiu que “a primeira edição gerou uma nova receita direta na economia local de 2.641.407 euros, agregada entre residentes e visitantes”.
A autarquia garante que, “à semelhança de 2024, todas as despesas associadas à realização do evento “A Noitada 2025″ são da exclusiva responsabilidade da empresa promotora”, sendo o contrato concebido para o fornecimento de serviços do tipo ‘chave-na-mão’.
Mas como não há duas sem três, o município não exclui voltar a contratar esta empresa para nova ‘Noitada’ em 2026. A decisão vai depender do “novo estudo de impacto relativo à edição de 2025, cujos resultados fundamentarão a decisão quanto à eventual continuidade da colaboração com a entidade detentora do conceito”. Dependerá também das eleições autárquicas que se realizam este ano e que poderão ou não alterar a configuração do executivo daquela autarquia.
Seja como for, com mais ou menos luzes e artes cénicas, estamos perante um festival musical e de entretenimento, ou seja, existem dúvidas sobre se se aplica o conceito de propriedade intelectual.
Com efeito, a propriedade intelectual divide-se em dois ramos: a propriedade industrial, que compreende as invenções (patentes), as marcas, os desenhos e modelos industriais e as denominações de origem, enquanto os direitos de autor abrangem as obras literárias e artísticas.
Ora, segundo a Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), não são protegidos e não podem ser registados os conceitos, as ideias, os processos, os sistemas e os métodos operacionais. Isto é, com a mesma ou outra denominação, um festival com música e outros espectáculos não pode ser considerado ‘propriedade’ exclusiva de uma empresa, logo não pode ser feito sem concorrência.
Em todo o caso, estes dois grandes ajustes directos já ‘estão no papo’ da New Sheet. E não são os únicos. A autarquia fez outros dois ajustes directos no ano passada com esta empresa de Oeiras, embora com valores mais pequenos.
O primeiro, no valor de 98.400 euros (com IVA), consistiu na ‘aquisição de serviços para o projecto ‘100 anos, 100 sardinhas’. O outro, no montante de 81.075 euros foi justificado com a ‘aquisição de serviços para a contratação de artistas para animação musical ‘Celebrações Passagem de Ano 2024/2025′”.
Estes montantes estão mais em linha com os restantes contratos que a New Sheet obteve junto de outras autarquias. Desde 2019, quando conseguiu o primeiro contrato público, a empresa de Oeiras já obteve 40 contratos, no total. Com a excepção das duas edições de ‘Noitada’ com o município de Portimão, os valores dos restantes contratos oscilam entre os 6.300 euros e os 90.000 euros (sem IVA).
Ou seja, a autarquia de Portimão garantiu à New Sheet, em apenas dois contratos, cerca de 60% da facturação total que a empresa já registou junto de entidades públicas nos últimos sete anos. Isto em duas ‘noitadas’ de festa e animação. A ressaca, se houver, essa fica sempre para os contribuintes.
Portimão fez quatro ajustes directos com a New Sheet em menos de um ano. No total, o município pagou 1,8 milhões de euros à empresa. Fonte: Portal Base
Por fim, não se diga que falta animação a Portimão, e mais gastos públicos. Tanto no ano passado como este ano, pois dias passados do fim da ‘Noitada’ vem o Festival da Sardinha, com mais espectáculos ‘grátis’ que custam centenas de milhares de euros. A edição do ano passado ocorreu entre os dias 30 de Julho e 4 de Agosto, ou seja, começou três dias depois da ‘Noitada’.
Nesse caso, a autarquia foi mais ‘comedida’, e fez adjudicações com várias empresas,que custaram, no total, cerca de 350 mil euros com IVA.Mas, pelo menos foram seis dias inteiros de festa, que incluíram concertos com Aurea, Marisa Liz, Richie Campbell, Anjos e Delfins.
Encurralado pela Justiça, Luís Delgado, dono e gerente da Trust in News (TIN), encontrou no plano de insolvência para a sua empresa de media o ‘bilhete’ para tentar salvar-se da prisão e também de processos de execução que tem ‘à perna’. O plano de insolvência da TIN, dona das revistas Visão e Exame, já terá colhido o apoio dos principais credores — a Autoridade Tributária e a Segurança Social —, mas aguarda ainda a ‘luz verde’ do Tribunal.
Mas o empresário e comentador político ainda não está a salvo de ainda ser acusado de insolvência dolosa por prejudicar credores, uma vez que o passivo da Trust in News, com um capital social de apenas 10 mil euros, supera já os 30 milhões de euros. Para ser processado por insolvência dolosa, punida com uma pena até cinco anos de prisão, será necessário previamente que o Tribunal considere que houve uma “insolvência culposa”. Ora, a juíza do processo de insolvência concedeu, no passado dia 14, mais seis meses para serem apresentadas provas que indiciem culpa dos gerentes no descalabro financeiro do grupo que detém mais de uma dezena e meia de títulos de media.
Luís Delgado na audição parlamentar de 18 de Dezembro de 2024 sobre a situação em que se encontra o grupo de media. Foto: Captura de imagem a partir de um vídeo da audição
Uma das várias dúvidas sobre a contabilidade da TIN prende-se com a existência de cerca de 14 milhões de euros em activos que Luís Delgado atribui a receitas futuras. Esse montante está registado na rubrica “Outras contas a receber”, subsistindo dúvidas quanto à sua correspondência a um activo real, ou seja, que possa efectivamente ser convertido em receitas — e, em última instância, em dinheiro. Caso não tenha existência real, esta rubrica terá apenas servido para ‘embelezar’, nos últimos anos, a calamitosa situação financeira do grupo, uma vez que evitava o reconhecimento de resultados líquidos negativos da ordem dos milhões de euros.
O pedido de prolongamento do prazo foi iniciativa do actual administrador judicial, como medida de cautela e prevenção, já que ainda não há nenhum plano de insolvência aprovado. Com a eventual aprovação do plano, o administrador judicial não deverá, por agora, recorrer a essa figura legal. Contudo, permanecerá sempre aberta para os credores lesados.
Em paralelo, as grades estão mais próximas de Luís Delgado por outra via. Como o PÁGINA UM noticiou em Setembro do ano passado, o antigo jornalista e os outros dois gerentes da Trust in News, viram o Tribunal da Relação confirmar a condenação a uma “pena de 2 anos e 1 mês de prisão” pelo crime de crime de abuso de confiança fiscal, mas suspensa por cinco anos sob condição de “pagamento da dívida”.
Revista Visão (Foto: PÁGINA UM)
Luís Delgado compartilha a gerência com Cláudia Serra Campos. Um terceiro membro, Luís Mendes Passadouro, renunciou em 15 de Abril de 2023, mas o facto só foi registado oficialmente no dia 9 de Dezembro de 2024. Em todo o caso, na ficha técnica continuam os três referidos como gerentes, o mesmo sucedendo no Portal da Transparência dos Media, sob gestão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. A passividade e mesmo conivência do regulador dos media na evolução financeira da TIN tem sido, aliás, manifesta.
A pena de prisão refere-se, contudo, apenas a uma pequena parcela (828 mil euros) das dívidas fiscais TIN, constituída em Dezembro de 2017, para comprar as publicações ‘tóxicas’ da Impresa, dona do Expresso e da SIC, que já se encontrava em dificuldades financeiras. Após a decisão do Tribunal da Relação, o PÁGINA UM sabe que já transitou em julgado e o processo retomou ao Tribunal Judicial de Lisboa Oeste para a aplicação da sentença.
Luís Delgado (à esquerda) ficou com o portfólio de revistas da Impresa, activos que se revelaram tóxicos. O valor acordado foi de 10,2 milhões de euros, tendo o Novo Banco estranhamente financiado a arriscada operação. Agora, o comentador e dois outros gerentes da Trust in News arriscam pena de prisão por abuso de confiança fiscal e pelo crime de abuso contra a Segurança Social. (Foto: D.R.)
E o cerco aperta porque, entretanto, como confirmou o PÁGINA UM no portal Citius, corre desde Fevereiro deste ano, um recurso de Luís Delgado, Cláudia Serra Campos e Luís Mendes Passadouro junto do Tribunal Tributário para tentar contrariar uma execução do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social por dívidas da Trust in News no montante de mais de 9,4 milhões de euros por não pagamento de comparticipações à Segurança Social.
Além disso, Luís Delgado enfrenta pelo menos um outro processo de execução, accionado pela gestora do Taguspark, a empresa QDF, onde a Trust in News tem a sua sede e as publicações. Em causa está uma dívida de 85.435,29 euros respeitante a rendas não pagas.
O processo de insolvência da Trust in News é, assim, a derradeira tábua de salvação não tanto das revistas do grupo mas sobretudo do próprio Luís Delgado, que está a tentar não haver execução das dívidas que, em caso de não serem pagas, resultarão em prisão efectiva. Recorde-se que o processo de insolvência arrasta-se desde finais de Novembro do ano passado, tendo que o administrador judicial encontrado uma situação de limite, em que até as receitas correntes do mês já estão ‘cativadas’ para pagar despesas dos meses anteriores, através do serviço de ‘factoring‘).
Luís Delgado recorreu, em Fevereiro deste ano, junto do Tribunal Tributário de Lisboa, de um processo de execução da Segurança Social por dívidas da Trust in News. / Imagem do portal Citius A Qdf, SA, que gere a Quinta da Fonte, onde se situa a sede da Trust in News, executou Luís Delgado por uma dívida de 85.435,29 euros relativa a rendas da Trust in News. / Imagem do portal Citius
Luís Delgado anunciou, entretanto, um plano de insolvência que, segundo a imprensa, terá a aprovação por parte dos principais credores, a Autoridade Tributária e a Segurança Social. O plano envolverá o pagamento em prestações das dívidas ao Fisco e à Segurança Social e uma injecção faseada no grupo num valor até 1,5 milhões de euros por parte de Luís Delgado.
Esta aprovação ainda não é conhecida formalmente e falta a homologação da eventual aprovação do plano de insolvência da Trust in News por parte da juíza do processo, Diana Campos Martins.
Com todo este histórico, resta saber como vai ser financiada esta injecção milionária prometida pelo accionista único da TIN, já que o grupo não tem acesso a crédito e Luís Delgado está sob acções de execução e arrisca mesmo um prisão efectiva. Além disso, o seu património pessoal é reduzido.
Levantamento do Novo Banco ao património de Luís Delgado e às suas empresas.
Segundo uma análise do Novo Banco, elaborada para avançar com uma possível penhora, Luís Delgado apenas terá, em seu nome, um “duplex com arrecadação na cave e logradouro, com uma área de 47,68 metros quadrados” na freguesia de Alcântara, em Lisboa, com um valor global de 500 mil euros. Mas está já sob hipoteca e penhora.
Pelo meio, subsiste a dúvida sobre se prosseguem na Justiça outros processos pendentes contra os gerentes da TIN por abuso fiscal e de Segurança Social, os quais, a prosseguir, resultarão, provavelmente, em novas condenações dos gerentes do grupo de media.
N.D. O PÁGINA UM foi o primeiro órgão de comunicação social a alertar para a dívida astronómica da TIN ao Estado e a expor a situação financeira grave em que a empresa de encontrava já em 2023. Na altura, Mafalda Anjos, então directora da Visão, rotulou os artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Leia todas as notícias e artigos sobre a crise na TIN (AQUI, AQUI e AQUI).
Já diz o ditado que não há duas sem três. E um outro adágio acrescenta que quem vai para o mar avia-se em terra. Pelo terceiro ano consecutivo, há uma iguaria da gastronomia portuguesa que vai parar à mesa do programa de celebrações do Dia da Marinha: porco no espeto.
O célebre prato da gastronomia portuguesa tem andado nas ‘bocas do mundo’ devido à tentativa — frustrada e considerada provocatória — do partido Ergue-te de o levar até ao Martim Moniz. Esta praça lisboeta, bem como as suas imediações, como a Rua do Benformoso, é bastante frequentada pela comunidade muçulmana, para quem o porco é considerado um animal impuro e o seu consumo é estritamente proibido pela lei islâmica (sharia). A rejeição do porco é, em muitos casos, um marcador de identidade religiosa, funcionando como gesto de fidelidade à fé islâmica.
Mas para os portugueses, o ‘porto no espeto’ constitui sobretudo um símbolo de convívio com barriga cheia. E na Marinha, não vai faltar o petisco nas celebrações que decorrem entre 14 e 20 de Maio, segundo as indicações de um contrato por ajuste directo para a aquisição de 8.235 euros desta iguaria. A preços de mercado serão entre 15 e 20 porcos.
Esta será o terceiro ano consecutivo, atendendo aos registos do Portal Base, que a Marinha decide confraternizar com porco no espeto, e escolhendo sempre o mesmo fornecedor: a empresa unipessoal Sónia Marisa Pereira Santos, com sede em Lourosa, no concelho de Santa Maria da Feira. A empresa foi criada em Junho de 2021 e não tem qualquer outro cliente público.
No ajuste directo deste ano, celebrado na sexta-feira passada, no valor de 8.235 euros (sem IVA incluído), não há contrato escrito pelo facto de o valor ser inferior a 10.000 euros. Por esse motivo, ignora-se quantos porcos foram adquiridos nem o local de entregue nem se haverá assadores e pão e vinho.
/ Foto:D.R.
Esta prática repetiu-se nos dois anos anteriores. No dia 10 de Maio de 2024, a Marinha fez um ajuste directo com a empresa de Lourosa, pagando 6.020 euros. No ano anterior, a 16 de Maio, também foi celebrado um ajuste directo pelo valor de 5.530 euros.
O PÁGINA UM enviou um conjunto de questões sobre estas aquisições de porco no espeto ao gabinete de comunicação do Chefe do Estado-Maior da Armada, Nobre de Sousa, mas não obteve qualquer reacção. Fica-se assim sem saber quantos vão dar ao dente no porco comprado com o dinheiro dos contribuientes nem sequer onde o repasto vai suceder.
A tradição destes ajustes directos para a compra de porco no espeto para ser servido no âmbito das comemorações do Dia da Marinha, que foi iniciada em 2023 quando a Marinha era liderada por Gouveia e Melo. E nem se pode dizer que seja uma prática comum nas entidades públicas. Desde 2020, além dos três contratos da Marinha, apenas surgem mais seis contratos para aquisição de porco no espeto: um do município do Crato, dois de Mafra e três de Oeiras. Neste último caso, a autarquia liderada por Isaltino Morais fez contratos, desde 2021, que já ultrapassam os 100 mil euros de porco no espeto, fornecido em contínuo.
A Marinha bateu recorde de ajustes directos sob a liderança de Gouveia e Melo e foi sob o seu comando que se iniciaram os ajustes directos anuais para a compra de porco no espeto . / Foto: D.R.
De resto, os ajustes directos são também uma tradição da Marinha. Como o PÁGINA UM noticiou, sob o comando de Gouveia e Melo, a Marinha bateu em 2024 o máximo de, pelo menos, seis anos, na adjudicação de contratos sem concurso público.
A despesa em compras por ajuste directo no ano passado ultrapassou (até Novembro)os 18,1 milhões de euros, num total de 703 contratos, dos quais 66 acima de 50 mil euros. Só estes últimos atingem, no total, 13,3 milhões de euros.
Os ajustes directos serviram para comprar tudo: desde peças para navios até serviços de limpezas, passando até por chouriços e farinheiras. Entre 2022 e 2024, sob completa responsabilidade de Gouveia e Melo, os ajustes directos em contratos acima de 50 mil euros rondaram os 30 milhões de euros. Nem o ‘puxão de orelhas’ à Marinha, seguido de perdão, por parte do Tribunal de Contas, serviu para mudar a tradição dos ajustes directos.
Mas há excepções para a tradição do ajuste directo. Veja-se o caso da compra de bacalhau pela Marinha no valor de 113.791 (com IVA incluído à taxa de 6%), num contrato celebrado no dia 9 de Maio após a realização de um “concurso público urgente”. O contrato indica que foi pago um preço de 11.30 euros por cada quilo de bacalhau fornecido.
Não se sabe se o bacalhau irá ser servido com o porco no espeto nas celebrações do Dia da Marinha. Mas são ambos, sem dúvida, pratos bem nacionais e capazes de ‘chamar’ novos recrutas para o serviço militar.
Eleição após eleição, o caso repete-se: num país que se orgulha pelo mais de meio século de regime democrático, os partidos sem representação parlamentar são ‘enxotados’ para uma ‘segunda divisão’ pelas televisões para uma espécie de ‘debate individual em simultâneo’ com direito a uns meros ‘minutos de glória’, respondendo sobretudo ao jornalista. E ficam assim arredados dos debates com os oito partidos com deputados, mesmo se o PAN tenha apenas um.
No ínicio de Abril, o partido Alternativa Democrática Nacional (ADN), liderado por Bruno Fialho e que terá Joana Amaral Dias como cabeça-de-lista em Lisboa, decidiu apresentar uma a providência cautelar com o objectivo de ainda conseguir, através de uma decisão urgente do Tribunal Cível de Lisboa, ser integrado nos debates com os ‘grandes’. O partido, que sucedeu ao PDR, fundado em 2014 por Marinho e Pinto, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, não tem assento parlamentar, mas conseguiu 1,58% dos votos nas eleições de Março do ano passado, com 102.132 votos, obtendo a partir daí subvenção pública.
Porém, apesar do carácter urgente, sucedeu o que sistematicamente sucede em Portugal com a Justiça: a urgência é um termo teórico, e a acção em ‘banho-maria’, impedindo assim que houvesse uma decisão judicial a tempo das eleições do próximo domingo.
Agora, o ADN decidiu processar o Estado por denegação de Justiça, mas não pretende ficar-se por aqui. O partido promete também processar as principais estações de televisão pelos “prejuízos” causados, alegando ter ficado em desvantagem face aos partidos que puderam participar nos debates, que lhes aumentou a capacidcade de transmitir mensagens a mais eleitores.
Joana Amaral Dias, cabeça-de-lista do ADN por Lisboa às eleições legislativas de 18 de Maio, e Bruno Fialho, presidente do partido e cabeça-de-lista pelo Porto. / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo do ADN
O partido só poderia avançar para a Justiça, “após a comunicação por parte das estações televisivas de que o ADN não será incluído em nenhum dos debates agendado”, apesar de “apresentar candidaturas válidas em todos os círculos eleitorais do território nacional e reunir os mesmos requisitos formais de outros partidos incluídos, como o Livre, PAN ou Iniciativa Liberal”.
Mas o Tribunal, que tem poderes para decidir em prazos muito curtos, mesmo sem ouvir as televisões, somente esta semana cntactou o ADN, questionando sobre se pretendia prosseguir com a providência cautelar. “Respondemos que não, porque já não faz sentido, dado que as eleições são no domingo e o Tribunal só poderia agendar uma audiência, na melhor das hipóteses, para a próxima semana”, disse Bruno Fialho, presidente do ADN, ao PÁGINA UM.
Foto: D.R.
O também cabeça-de-lista do ADN pelo Porto, adiantou que caso o ADN prosseguisse com a acção, além dos custos envolvidos, incorria no risco de ser condenado, eventualmente por má-fé, por estar a ocupar Tribunal com uma matéria que sabia que já não teria efeito prático, dado que a decisão judicial só seria tomada após a realização das eleições.
De facto, um dos pressupostos da caducidade da providência cautelar é a extinção do “direito ou interesse a cuja tutela a providência se destina”: Ou seja, se aquilo que estava em causa era a participação de debates eleitorais na campanha para as eleições legislativas de 18 de Maio, nenhum efeito produziria uma sentença nas próximas semanas.
Mas dada a ausência de uma decisão judicial atempada, o ADN diz que não ficará de braços cruzados. “Vamos processar o Estado por não ter havido uma decisão atempada em relação a esta providência cautelar. Vamos também, em paralelo, processar as estações de televisão pelos prejuízos”, afirma Bruno Fialho, que se mostra, mesmo assim, confiante de eleger um deputado. “, mas “Até podíamos eleger mais se tivéssemos podido participar nos debates, como os partidos que participaram”, admite.
Joana Amaral Dias, cabeça-de-lista do ADN por Lisboa, diz também não ter dúvida de que aa ausência de uma decisão atempada por parte da Justiça prejudicou o partido. “Não há Justiça”, disse ao PÁGINA UM.
Debates a dois nas televisões só entre partidos com deputados.
Esta questão da participação dos debates televisivos continua a ser, de forma inexplicável, um dos problemas mais candentes do regime democrático português, que colide com o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento entre candidaturas, consegrada na Lei Eleitoral da Assembleia da República. A lei determina que “as televisões estão obrigadas a garantir tratamento equitativo durante o período eleitoral, o que inclui o acesso aos debates”, mas tal nunca se verifica, quer para o ADN quer para outros partidos pequenos, o que configura uma discriminação.
Em Portugal, a única chance dos pequenos partidos elegerem deputados tem sido, geralmente, nos distritos de Lisboa e Porto, cque elegem 48 e 40 deputados, respectivamente. Exceptuando os partidos históricos(PS, PSD, PCP e CDS), todos os partidos com assento parlamentar (Chega, IL, Livre, Bloco de Esquerda e PAN) estrearam-se na Assembleia da República com um único deputado, em Lisboa. Nestas eleições existe a forte possibilidade de surgir uma excepção a esta regra: o partido regionalista Juntos Pelo Povo (JPP) garantirá um representante, podendo chegar mesmo aos dois deputados, se conseguir uma votação próxima dos números obtidos nas recentes eleições regionais da Madeira.
Há bens que surgem de males. No caso da instabilidade política, há quem lucre e bem. Que o digam alguns órgão de comunicação social generalista que, em pouco mais de três anos, receberam nos seus cofres cerca de 5,7 milhões de euros dos contribuintes como compensação pela alegada perda de receita devido aos tempos de antena dos partidos políticos na corrida às eleições legislativas.
De facto, se a ‘normalidade’ democrática prevalecesse, as eleições seguintes à vitória de António Costa em 2019 teriam ocorrido em 2023, às quais sucederiam novas apenas em 2027. Mas não, menos de seis anos após as eleições de 2019, já se realizaram três em vez de uma. As eleições previstas para 2023 foram antecipadas pela queda do Governo minoritário em finais de 2021, com Costa a garantir para o Partido Socialista uma maioria absoluta em Janeiro de 2022. Mesmo com esse ‘poder’, o Governo socialista não aguentou um escândalo político, e Luís Montenegro venceria por uma ‘unha negra’ novas eleições antecipadas em Março de 2024. Aguentou apenas um ano, estando agora marcadas novas eleições, novas campanhas e novos direitos de antena para todos os partidos.
O primeiro-ministro, Luís Montenegro, em campanha para as eleições legislativas de 18 de Maio de 2025. / Foto: D.R./PSD
Quem ganha sempre com o antigo modelo de tempos de antena, e o famoso relógio ‘countdown’, têm sido os órgãos de comunicação social com características de serviço público, nomeadamente televisões generalistas e determinadas rádios. A SIC, do grupo Imprensa, foi o canal que mais tem esfregado as mãos de contente: contabilizando as três eleições legislativas (2022, 2024 e 2025) recebeu mais de 2,2 milhões de euros para passar as campanhas partidárias no seu canal. Só em compensação pelo tempo de antena no âmbito das eleições de 18 de Maio deste ano, a estação recebe 793.492 euros dos contribuintes, segundo o despacho que autorizou a despesa. Sem a instabilidade política a marcar o panorama nacional desde 2022, receberia apenas cerca de um terço dos 2,2 milhões.
Na lista dos beneficiados segue-se a TVI, do grupo Media Capital, que auferiu de 2,1 milhões de euros graças à realização de três eleições à Assembleia da República. Pelo tempo de antena do acto eleitoral que está a decorrer agora, a estação recebe 779,392 euros. O mesmo raciocínio (e montante recebido) se aplica se não houvesse instabilidade política.
No caso da estação pública, a RTP, coube-lhe receber 1,3 milhões de euros de compensação em três períodos eleitorais das legislativas, sendo que 470.618 euros lhe foram atribuídos pelas eleições que agora decorrem. Saliente-se que pagamento das compensações surge na sequência do leilão de atribuição de tempos de antena que, no caso das actuais eleições legislativas, decorrer no dia 30 de Abril.
Compensação paga pelo Estado aos canais generalistas de televisão e estações de rádios pelos tempos de antena nas eleições legislativas de 2022, 2024 e 2025. / Fonte: Diário da República / PÁGINA UM
Mas não são só as televisões que beneficiam da instabilidade política. As principais rádios generalistas também lucram com a realização de eleições e respectivos tempos de antena. Segundo o despacho publicado em Diário da República, e feito pelo ministro dos Assuntos Parlamentares no dia do ‘apagão’, a Rádio Renascença é a que mais beneficiada, cabendo-se agora quase 320 mil euros. Somando os três actos eleitorais encaixa 913.740 euros de compensação do Estado.
Segue-se a Rádio Comercial, que recebe 697.701 euros em três legislaticas, sendo que a verba que lhe cabe nestas eleições é de 255.133 euros. Por fim, coube à RDP a verba de 212.387 euros de compensação pelos tempos de antena dos partidos, no conjunto dos três últimos actos eleitorais para a Assembleia da República.
A estas despesas juntam-se valores mais pequenos (95.486 euros) pagos às rádios TSF, M80 e Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal pelo tempo de antena nas eleições legislativas deste ano. Saliente-se que, no âmbito das eleições na Madeira, do passado dia 23 de Março, os contribuintes pagaram 77.972,11 euros ao Centro Regional da Madeira da Radiotelevisão Portuguesa, Antena 1 e Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal.
Tempo de antena do PS nas eleições para a AR de 18 de Maio de 2025. / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo do tempo de antena do PS
Contas feitas, no total, as três estações de TV e as três rádios generalistas encaixaram mais de 7,5 milhões de euros de compensação dos tempos de antena referentes a eleições para a Assembleia da República desde 2022, rondando assim um custo de 2,5 milhões de euros por cada acto eleitoral. Se considerarmos que desde 2019 somente deveria ocorrer um acto eleitoral, estes órgãos de comunicação social tiveram ‘receitas extraordinárias’ de cerca de 5 milhões de euros.
É caso assim para dizer que, para estas televisões e rádios, a crise política é mesmo uma oportunidade de negócio, porque, além de a instabilidade gerar mais notícias para preencher noticiários e ‘encher chouriços’ na programação, acumulando comentadores, também serve para encher os cofres com uma receita fácil. É só receber a ‘fita’ gratuita e mandar a factura.
Rodrigo Costa, João Faria Conceição e Gonçalo Morais Soares. São estes os três gestores que têm nas mãos a segurança energética do país, já que são responsáveis pela gestão executiva da REN-Redes Energéticas Nacionais, a empresa monopolista à quem cabia prevenir o recente ‘apagão’ histórico que deixou Portugal ‘às escuras’ durante longas horas.
Apenas estes três gestores custaram à REN, em salários fixos e variáveis, um total de 11,4 milhões de euros nos últimos cinco anos, de acordo com um levantamento do PÁGINA UM, resultando num valor médio anual de 2,3 milhões de euros.
Rodrigo Costa, presidente-executivo e presidente do conselho de administração, levou para casa 4,4 milhões de euros em remunerações fixas e variáveis, desde 2020. No ano passado, o seu salário fixo bruto anual foi de 413.615 euros, a que acresceram remunerações variáveis de curto e médio/longo prazo de 223.815 e 210.822 euros, respectivamente. Em termos médios, Rodrigo Costa amealhou por quase 63 mil euros em cada mês dos últimos cinco anos, ou seja, mais de 70 salários mínimos nacionais.
Gonçalo Morais Soares, Rodrigo Costa e João Faria Conceição, membros da comissão executiva da REN. / Foto: D.R./REN
O antigo gestor da Portugal Telecom foi vice-presidente do grupo de telecomunicações, junto com Zeinal Bava, quando a ‘telecom’ era liderada por Henrique Granadeiro. Costa dirigiu o negócio da rede fixa da PT e foi presidente da PT Multimédia, que detinha a TV Cabo. Isto numa altura em que o Grupo Espírito Santo (GES) e Ricardo Salgado tinham, junto com o Estado, o ‘comando’ não mão no que toca à gestão da PT.
Antes de ingressar na REN, em 2015, Rodrigo Costa foi ainda presidente da NOS e da Unicre. Na REN, o gestor acumula diversos pelouros: recursos humanos; serviços jurídicos; relações com os media; sustentabilidade e comunicação; coordenação estratégica; e inovação.
João Faria Conceição é membro da comissão executiva e do conselho de administração da REN desde Maio de 2009. O antigo assessor de Manuel Pinho e ex-consultor do Boston Consulting Group (BCG), mantém-se actualmente como administrador da REN, apesar de ser um dos arguidos no processo da EDP/CMEC pelo crime de corrupção.
Foto: D.R./ REN
Na REN, Faria Conceição é o responsável máximo pela gestão do sistema tanto de electricidade como de gás. Tem também a seu cargo as áreas de planeamento de rede, gestão de activos e engenharia, entre outras.
Entre 2020 e 2024, este gestor ganhou 3.486.350 euros em remunerações brutas fixas e variáveis de curto e médio/longo prazo. Em 2024, por exemplo, auferiu 327.669 euros de salário bruto fixo anual e ainda 177.308 euros de remuneração variável de curto prazo e 167.014 euros de remuneração variável de médio/longo prazo, num total de 671.991 euros.
A mesma verba foi paga, naquele período, a Gonçalo Morais Soares, o administrador financeiro da REN. Este gestor também passou pela PT, onde foi director de Planeamento e Controlo entre 2003 e 2007, e foi administrador da ZON, sucedânea da PT Multimédia e actual NOS.
Foto: D.R.
Na REN, Morais Soares tem a seu cargo a gestão financeira e, entre outros pelouros, é responsável pelos sistemas de informação do grupo, pela Rentelecom, Renfinance e a Transemel, no Chile. Al+em disso, estes administradores da holding também os conselhos de administração das diversas subsidiárias do grupo.
Estes três gestores integram o conselho de administração da REN, que é composto por um total de 15 membros, embora com salários mais baixos e sem prémios de desempenho. Desde 2020, a REN a despesa da REN com a remuneração dos seus administradores ascendeu a 14,5 milhões de euros, incluindo os três gestores executivos.
No conselho de administração estão representantes de accionistas da REN, que é controlada em 25% pela estatal chinesa State Grid Corporation of China, em 12% pela espanhola Pontegadea Inversiones, em 7,7% pela Lazard Asset Management, em 5,3% pela chinesa Fidelidade e em 5% pela Redeia Corporación.
José Luís Arnaut. / Foto: D.R.
Um dos administradores da REN é José Luís Arnaut, que está no conselho de administração da empresa desde 2012. O conhecido advogado e ‘facilitador’ de negócios lidera a sociedade de advogados CMS Rui Pena, Arnaut & Associados e é Presidente do Conselho de Administração da ANA – Aeroportos de Portugal (Vinci Airports) desde 2018.
Apesar de ser administrador da REN, a sua sociedade de advogados também presta serviços à empresa e tem facturado milhares de euros com a REN.
Apenas duas encomendas garantiram à pintora Graça Morais a façanha de facturar meio milhão de euros em cinco meses. E engana-se quem pense que se trata de encomendas feitas por bancos ou outros patronos ricos do sector privado. O gasto é público e é superior ao valor investido no ano passado pelo Estado na compra das 12 peças de arte proposta pela Comissão para a Aquisição de Bens Culturais para os Museus e Palácios Nacionais, que envolveu 428 mil euros.
No caso das encomendas à pintora de 77 anos, membro da Academia Nacional de Belas Artes, os mecenas que abriram generosamente os cordões à bolsa são duas entidades públicas: o Município de Oeiras e a Provedoria da Justiça, que vão desembolsar 420 mil euros, que com o IVA ultrapassarão meio milhão de euros.
Graça Morais / Foto: Egidio Santos/Centro de Arte Contemporânea Graça Morais
A primeira encomenda, e a mais valiosa, no valor de 300 mil euros (excluindo o IVA), foi feita pela autarquia liderada por Isaltino Morais. Por ajuste directo, assinado a 22 de Novembro do ano passado, o munícipio assume a despesa milionária para a “aquisição da prestação dos serviços para criação, aquisição e trabalhos de um Mural Artístico em Caxias/Oeiras, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril”.
Como é habitual, o caderno de encargos deste ajuste directo não está disponível na plataforma de contratação pública, o Portal Base, contrariando a legislação e as melhores práticas de transparência. Assim, não são conhecidos todos os contornos e condições da encomenda, cujo contrato é válido por 289 dias. O ajuste directo foi justificado com o facto de ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“. Mas não é referido como foi seleccionado o nome da pintora.
Em Abril do ano passado, a autarquia divulgou uma publicação nas redes sociais sobre as iniciativas do município relacionadas com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Nessa publicação, destaca “o mural ‘Passeio da Democracia’, em homenagem à Revolução do 25 de Abril, dedicado aos presos políticos que estiveram no Forte de Caxias, da autoria da artista Graça Morais” e avança que “este mural irá gravar os 10 mil nomes de homens e mulheres que por ali passaram”.
Isaltino Morais num discurso sobre as iniciativas de Oeiras no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. / Foto: Captura de imagem de vídeo da autarquia de Oeiras
Na mesma publicação, é divulgado um vídeo com o edil de Oeiras, Isaltino Morais, a afirmar que “a Graça Morais vai fazer um monumento escultórico, um mural alusivo à revolução e depois vamos ter um grande mural, um painel, um memorial, onde irão ser gravados os nomes de 10 mil homens e mulheres que passaram pela prisão de Caxias”.
No contrato consultado pelo PÁGINA UM é referido que a encomenda artística será paga através da dotação orçamental com a classificação económica “artigos e objectos de valor” e “sistemas de solidariedade e segurança social”. Refere ainda que “a repartição plurianual de encargos no presente contrato foi autorizada por deliberação da assembleia municipal”.
Em representação da pintora no contrato com a autarquia de Oeiras a assinatura é do advogado Francisco Teixeira da Mota. Da parte da autarquia, Emanuel Gonçalves, vice-presidente da Câmara Municipal de Oeiras. O PÁGINA UM apurou que a primeira tranche do contrato, no valor de 60.000 euros (73.800 euros, incluindo o IVA), foi paga à pintora na altura da adjudicação, com a factura-recibo emitida com data de 5 de Dezembro de 2024.
Cinco meses depois, a pintora voltou a ‘cair nas graças’ de uma entidade pública. Desta vez, foi a Provedoria de Justiça que decidiu fazer uma encomenda a Graça Morais. O contrato por ajuste directo, no valor de 120 mil euros (excluindo o IVA), foi celebrado a 15 de Abril e visa a “aquisição de serviços de produção de obra de arte”, tendo um prazo de execução de 168 dias. Neste caso, a justificação para ter sido efectuado o ajuste directo é o facto de o “objeto do procedimento” ser “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico“.
Tudo indica que a encomenda foi feita no âmbito das comemorações dos 50 anos da existência da Provedoria de Justiça. Outra hipótese, menos provável, seria a encomenda de um retrato para a galeria de retratos de antigos provedores, que foi inaugurada a 18 de março de 2015, graças “à generosidade da Fundação Engenheiro António de Almeida, presidida por Fernando Aguiar-Branco, e ao traço do pintor João Freitas”.
Mas não foi possível confirmar o motivo da encomenda porque o caderno de encargos deste ajuste directo também não está disponível ao público, com a Provedoria de Justiça a incorrer na mesma falta de transparência de que padecem muitas entidades públicas que omitem detalhes de contratos do Portal Base. A Provedoria de Justiça, contactada pelo PÁGINA UM, também se escusou a explicar o motivo da encomenda e como foi escolhido o nome da pintora.
A provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, numa audição na Comissão Eventual para o Acompanhamento Integrado da Execução e Monitorização da Agenda Anticorrupção no Parlamento, em Fevereiro de 2025. / Foto: Captura de imagem a partir do vídeo da audição
Na secção ‘Observações’ no Portal Base, a Provedoria de Justiça justificou que a aquisição da encomenda à pintora foi efectuada “por total ausência de número de trabalhadores e de competências internas para a realização do serviço em causa”. No caso desta contratação, a pintora recebeu 48.000 euros na assinatura do contrato e receberá a verba restante aquando da entrega da obra encomendada, segundo os termos do contrato.
Curioso é facto de, apesar de ser uma pintora muito conceituada, no Portal Base apenas se encontram estes dois contratos feitos directamente com Graça Morais, desconhecendo-se se haverá outros adjudicados à pintora mas em nome de uma empresa, ou se possam ter sido feitos mas não terem passado pela plataforma de contratação pública.
No entanto, pelo menos duas obras de Graça Morais foram já compradas por entidades públicas: em 2023, a Direção-Geral do Património Cultural comprou por 60 mil euros a pintura ‘O Bordel’, para expor no Museu do Côa; e em 2013 a autarquia de Loulé comprou uma obra de arte não especificada por 10 mil euros.
A provedora de Justiça numa visita à galeria de retratos de antigos provedores com a presença do então líder do PSD, Rui Rio, durante a Semana da Justiça. / Foto: D.R.
Sendo actualmente a pintora ainda no activo mais valorizada em Portugal, os 420.000 euros (516.600 euros com IVA incluído à taxa de 23%) que Graça Morais vai arrecadar em apenas duas encomendas, a desenvolver em menos de seis meses, aparenta ser ‘obra’. Com efeito, em diversos leilões realizados nos últimos anos em Portugal, apenas algumas das suas pinturas ultrapassam a fasquia dos 10 mil euros, sendo um dos casos a pintura ‘Sophia e o Anjo‘, um acrílico sobre papel vendido por 18 mil euros em 2018.
No Centro de Arte Contemporânea de Bragança, que tem o seu nome, está exposta uma parte importante do seu espólio artístico constituída por mais de 120 obras. Em 2021, a pintora transmontana, nascida em Vila Flor, doou um conjunto de 70 pinturas a este centro, atribuindo ao lote um valor de meio milhão de euros, ou seja, um valor médio um pouco acima de sete mil euros.
Vila Real, outrora apelidada de ‘a Corte de Trás-os-Montes’, celebra este ano o centenário de elevação a cidade e vai ter uma festa digna de marajás. A autarquia decidiu abrir os cordões à bolsa e os gastos com a ‘festa’ já vão em meio milhão de euros – e ainda faltam contratos. A autarquia, aparentemente, nem colocou um ‘tecto’, porque, nem sequer indicou ao PÁGINA UM o valor orçamentado.
A celebração, que ocorre em ano de eleições autárquicas, vai contar com mais de 100 eventos “gratuitos” – pagos pelos contribuintes -, designadamente lúdicos, culturais e desportivos, que inclui até a contratação da banda britânica ‘James’ para realizar um concerto no dia 5 de Julho.
Só na contratação desta banda inglessa liderada por Tim Booth – tio da actriz portuguesa Maya Booth -, a autarquia liderada pelo socialista Rui Santos vai gastar 194.832 euros, segundo o contrato adjudicado ontem por ajuste directo à empresa Malpevent. Este montante inclui IVA.
A banda britânica ‘James’ vai arrecadar uma grande fatia dos gastos do município liderado pelo socialista Rui Santos com a celebração do centenário da elevação de Vila Real a cidade.
Para justificar esta contratação milionária, a autarquia referiu, em respostas enviadas ao PÁGINA UM, que, tratando-se da celebração do centenário, “deveria haver um concerto distintivo, diferente da programação habitual que acontece no concelho, sempre com bandas nacionais”. Por isso, “foi decidido contratar uma banda de dimensão internacional, que permitisse atrair a atenção da região e até do país para a comemoração do centenário da cidade de Vila Real e, simultaneamente, proporcionar aos vila-realenses uma nova experiência no seu território”.
Quanto à escolha, em concreto, desta banda, “prende-se com uma auscultação feita ao mercado das bandas disponíveis, dentro do orçamento definido”, sendo que a “a banda ‘James’ acabou por ser a escolhida por ter disponibilidade para a data pretendida e se enquadrar nos restantes objetivos”.
Saliente-se, contudo, que os James não são já uma banda internacional assim tão distintiva – e não apenas por já terem perdido o fulgor dos anos 90, no seu auge. Na verdade, os James são quase ‘portugueses’, tornando-se banal a sua presença em solo português, mas com cachets muito mais elevados. Há alguns meses, o Expresso contabilizou 45 aparições. No ano passado, passaram pelo Rock in Rio e pelo Crato. Neste segundo concerto, a autarquia norte-alentejana pagou então 140.835 euros, menos cerca de 54 mil do que o município de Vila Real vai pagar.
Mas o concerto em Vila Real do agrupamento britânico é apenas um dos muitos eventos planeados. E com cachets elevados. Na área da música, algumas ‘estrelas’ nacionais farão parte do ‘programa das festas’. É o caso de Rui Veloso, que foi contratado pelo município por 47.908 euros para realizar um concerto no dia 28 de Junho. O montante é elevado, mas mesmo assim muito mais baixo do concerto aprovado pela Assembleia da República em Maio, que vai custar aos cofres do Estado cerca de 140 mil euros.
Rui Veloso. / Foto: D.R.
Diogo Piçarra e Sara Correia também vão actuar nas festas do centenário de Vila Real. O artista vai receber 31.980 euros para realizar um concerto no dia 10 de Junho. Quanto a Sara Correia, vai encaixar 23.370 euros para o espectáculo que vai realizar no dia 29 de Junho.
Incluídos no programa denominado ‘100 anos / 100 momentos’, além destes músicos, cujos contratos foram já assinados, a autarquia também vai contratar outros artistas, designadamente a banda Xutos & Pontapés e Gisela João, cuja contratação ainda não foi formalizada, mas que deverá rondar um valor próximo de 40.000 euros. Em todo o caso, somando todos os contratos detectados pelo PÁGINA UM, incluindo a ópera ‘O elixir do amor, pelo Teatro de São Carlos (quase 32 mil euros) e duas peças de teatro (quase 25 mil), em quase 475 mil euros para uma população de 50 mil habitantes. Em termos proporcionais, o ‘bolo’ seria equivalente a festas em Lisboa de mais de 5,5 milhões de euros.
O socialista Rui Santos (segundo a contar da esquerda) na conferência de apresentação do programa ‘100 anos / 100 momentos’ para comemorar o centenário de Vila Real, enquanto cidade, e que se realizou no dia 13 de Março. O autarca, que vai no seu terceiro mandato, já não se poderá recandidatar este ano, devido ao limite de mandatos imposto por lei. / Foto: D.R.
O socialista Rui Santos, que comanda há 12 anos os destinos do município, deverá terminar assim o seu ‘reinado’ com pompa e circunstância. O autarca já não poderá concorrer a novo mandato devido aos limites impostos pela lei.
A comemoração do centenário da elevação de Vila Real à condição de cidade, no dia 20 de Julho de 2025, já arrancou no passado dia no passado dia 14 de Março e irá terminar no último dia do ano.
Além dos concertos, as celebrações irão incluir várias iniciativas que passam por peças de teatro, conferências, exposições, eventos desportivos, publicação de livros, plantação de árvores e emissão de selos. Em julho, a autarquia vai homenagear “aqueles que ajudaram a construir a sua identidade, com a atribuição das Medalhas do Centenário a figuras e empresas que deixaram marca na história local”.
Mas, apesar da relevância e magnitude da celebração, a autarquia não conseguiu precisar qual o montante global do orçamento previsto para as comemorações. Em resposta a um pedido efectuado hoje por e-mail pelo PÁGINA UM, o município indicou que “quanto ao valor total do orçamento, é muito difícil ser apurado no intervalo de tempo que nos foi dado para esta resposta, uma vez que abrangem iniciativas na área cultural, na área desportiva, ambiental, da educação, de animação, etc, e cada uma delas tem o seu orçamento próprio”.
Por outro lado, Vila Real celebra este ano outra efeméride que irá envolver uma variedade de eventos: os 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco, escritor que viveu naquela cidade transmontana. E, hoje, o que não escreveria Camilo sobre os gastos, a opulência e o ‘status’ desta grande festa que se fará também, mas não só, em seu nome?
A comida dos hospitais pode ter pouco condimento, mas o seu fornecimento, e os estranhos meandos da contratação pública que envolvem, garantem uma deliciosa receita (financeira) para empresas privadas. No caso dos hospitais de Lisboa Norte – Santa Maria e Pulido Valente – a contratação dos serviços de refeições a doentes e pessoal hospitalar tem estado a recair na mesma empresa nos últimos anos, quase sempre por ajuste directo, ou seja, através de contratação de mão-beijada. Apesar de os montantes serem bastante elevados, existem sempre esquemas e justificação, muitas vezes estapafúrdias, para evitar concursos públicos que permitem maior transparência e preços mais adequados.
O caso da empresa ITAU é um dos casos mais paradigmáticos, que acaba de obter mais um ajuste directo, celebrado na passada quarta-feira, no valor de 1.457.696 euros, para servir refeições nos meses de Março e Abril deste ano na Unidade Local de Saúde de Santa Maria (ULS-SM).
Este é o terceiro contrato que esta empresa do grupo Trivalor, sedeada em Carnaxide, obteve este ano com esta ULS que gere os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente e uma rede de centros de saúde de Lisboa. Em Janeiro deste ano, a ITAU já tinha ‘sacado’ dois contratos: um primeiro, por ajuste directo, no valor de 1.457.696 euros, para também para servir refeições em Janeiro e Fevereiro; e o segundo no valor de 7.339 euros, para um serviço de ‘catering’. Curiosamente, este segundo contrato, com um valor irrisório face ao milhões que envolvem a alimentação quotidiana, foi sujeita a uma consulta prévia, o que mostra o absurdo da situação.
No caso do novo contrato, apesar de ‘reincidente’, e haver sempre necessidade de dar comidas aos doentes e pessoal de saúde, recorre ao ajuste directo porque alega “urgência imperiosa”, embora esta somente pode ser alegada “na medida do estritamente necessário” e se for “resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante” e que, desse modo, “não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos [como o concurso público], e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
As relações comerciais entre a ITAU e as diversas administrações que gerem os hospitais da região norte de Lisboa começaram em 2019, mas quase sempre com um ‘aperto de mão’ a selar ajustes directos. O último contrato por concurso público remonta a Abril de 2021. E se se contabilizar os contratos desde essa data, contam-se já 16, dos quais 11 adjudicados por ajuste directo e os restantes através do procedimento de consulta prévia, estes geralmente muito mais baixos, a rondar cada cerca de cinco mil euros. Os ajustes directos servem para os contratos mais chorudos: desde Abril de 2021 já totalizaram cerca de 19,1 milhões de euros, incluindo IVA.
Se considerarmos os contratos desde Maio de 2019, a ITAU conta com 28 contratos com a ULS-SM e as suas antecessoras, encaixou uma receita de 39,2 milhões de euros.
Assim, em 2019, registaram-se quatro contratos, sendo que apenas o primeiro foi por concurso. Em 2020, contam-se cinco, todos por ajuste directo. Em 2021, foram efectuados quatro contratos, sendo que apenas um foi por concurso público. Em 2022, houve apenas um pequeno contrato para um serviço de catering. Em 2023, contam-se quatro contratos, dos quais três por ajuste directo. Em 2024, registam-se no Portal Base sete contratos adjudicados pela ULS-SM à ITAU, todos por ajuste directo.
Em resposta a questões do PÁGINA UM, o gabinete de comunicação da USL-SM destaca sobretudo as dificuldades em realizar ou concluir com sucesso os procedimentos por concurso público, uma vez que, por regras, existem restrições orçamentais por parte do Ministério da Saúde. A USL-SM diz que, “no ano de 2022, o então Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte efectuou um pedido [ao Ministério da Saúde] de assumpção de compromissos plurianuais para o triénio” de 2023 a 2025. Assim, “desde essa data, a USL-SM tramitou três procedimentos por Concurso Público com publicitação no Jornal Oficial da União Europeia”, sendo que “dois procedimentos foram revogados, com a exclusão de todas as propostas apresentadas por não cumprirem os requisitos do concurso, e o terceiro procedimento encontra-se em fase de avaliação das proposta pelo Júri do procedimento”. Ou seja, estranhamente, as empresas do sector, com elevada experiência, não se incomodam muito em perder concursos públicos, mas já se disponibilizam para aceitar ajustes directos.
A ULS-SM garante ainda que, “face aos montantes envolvidos, todos os contratos celebrados ao abrigo de ajustes directos foram sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas”, e acrescenta que, sendo “responsável por cerca de seis mil refeições diárias aos utentes e profissionais à sua guarda, esta é uma área prioritária” para a ULS-SM, sempre “, mas sempre “no respeito escrupuloso pelos requisitos legais e com uma rigorosa análise da qualidade do serviço prestado”.
Saliente-se ainda que a ITAU também tem servido outro núcleo hospitalar em Lisboa. A USL de São José – que abrange seis hospitais da capital e ainda a Maternidade Alfredo da Costa – adjudicou seis contratos a esta empresa ao longo do ano passado, dos quais cinco por ajuste directo e um por concurso público. E, ao todo, já efectuou 41 contratos com aquela empresa.
Saliente-se que só a ITAU, detida pela Trivalor, uma gestora de participações sociais com várias empresas no seu portfólio, já facturou 680,1 milhões de euros em 1195 contratos públicos desde 2008, de acordo com os registos disponíveis no Portal Base.
Entre os seus clientes públicos, além de unidades de saúde, contam-se a CP-Comboios de Portugal, a PSP, o Instituto da Segurança Social e várias autarquias.
Na aparência é uma condenação, mas serve ‘para inglês ver’ – e pior, vai servir para perpetuar esquemas de promiscuidade entre empresas de media e entidades públicas e privadas. Uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), aprovada no início deste mês e divulgada esta semana, aplicou uma coima à Impresa Publishing, dona do Expresso, pelo facto de o jornal ter publicado um artigo publicitário, assinado por uma jornalista com carteira profissional, sem fazer referência de se tratar de publicidade contratualizada.
Mas, apesar desta condenação parecer, à primeira vista, um sinal de que o regulador dos media está, finalmente, a punir actos de promiscuidade por violação da Lei da Imprensa e de comercialização da actividade jornalística, os factos mostram o oposto. A deliberação serve como sinal de que o ‘crime’ compensa e até dá dicas para contornar futuras sanções. Isto porque a coima aplicada (2.000 euros) foi muito inferior aos proveitos obtidos pelo Expresso por essa violação da Lei da Imprensa.
Ou seja, a ERC aplicou, na verdade, uma espécie de ‘taxa de promiscuidade’, que pode muito bem passar a ser encaixada em futuras parcerias comerciais entre media e entidades públicas e privadas, na eventualidade do regulador os voltar a incomodar. E tem incomodado pouco, diga-se, até porque este processo de contra-ordenação demorou mais de dois anos a ser concluído e envolve actividades que ocorreram em 2021.
Na base da condenação da Impresa Publishing está uma notícia publicada pelo semanário, no dia 28 de Junho de 2021, com o título “Taxa de abandono escolar precoce caiu 10% desde 2013“, na rubrica ‘Projectos Expresso’. Trata-se de uma notícia elaborada no âmbito de um contrato de 29 mil euros efectuado entre a Secretaria-Geral de Educação e Ciência e a Impresa Publishing, para a aquisição de serviços para organização, cobertura e promoção de evento para o Programa Operacional Capital Humano (POCH), em 9 de março de 2022. Este contrato foi um dos 56 contratos identificados pelo PÁGINA UM numa investigação sobre promiscuidade nos media, publicado em Maio de 2022. Cinco destes contratos envolviam o Expresso. Cerca de um ano mais tarde, a ERC anunciou a abertura de processos de contra-ordenação a sete empresas de media.
A ERC acaba apenas por sancionar um dos cinco contratos -havendo mais outro que foi analisado, referente ao Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), também revelado pelo PÁGINA UM em Maio de 2022, mas sem quaisquer consequências.
Nesse contrato, que visou promover o POCH, esteve em ‘discussão’ se um artigo ambíguo publicado na secção ‘ Projectos Expresso’ era notícia ou publicidade. Esse artigo foi escrito pela então jornalista Fátima Ferrão, que neste momento não tem carteira profissional, até porque tem vindo a acumular a profissão de jornalista com a de coordenadora de uma empresa que faz conteúdos empresariais, a Mad Brain. Em todo o caso, Fátima Ferrão continua a assinar notícias em meios de comunicação social e a apresentar-se como jornalista, colaboradora do Expresso e coordenadora da Mad Brain, o que constitui uma acumulação de irregularidades.
No decurso do processo de contra-ordenação, a ERC concluiu que, embora assinada por um jornalista e com um formato de um texto jornalístico, não evidenciava, aos olhos dos leitores, tratar-se de conteúdos publicitários. Isto porque a formatação do texto era similar às das notícias jornalísticas, com o mesmo tipo, cor e tamanho de letra e fundo. Porém, estava associado a um contrato para a sua elaboração, ou seja, era um compromisso assumido previamente pela Impresa Publishing perante o pagador, a Secretaria-Geral de Educação e Ciência.
Sede da ERC, em Lisboa. / Foto: D.R.
Para a ‘condenação’ da Impresa Publishing contribuiu, no entanto, apenas o facto de o contrato com a SGEC contemplar, para além da organização de um evento, “a cobertura jornalística […] no jornal Expresso”. A ERC nem sequer considera grave que um evento pago tenha tido a presença de directores e jornalistas do Expresso, cuja participação era exigida também no contrato. Ou seja, o regulador ignora, na decisão final, que um director e um jornalista do Expresso tem mesmo de estar ao serviço de uma entidade externa, neste caso do Governo, para cumprir um contrato. E também realizar entrevistas aos oradores do evento e “cobrir a conferência no caderno de Economia”, e logo na primeira página, como está no contrato. E foi cumprido,
Isto tudo apesar da ERC concluir que, “o jornal Expresso não cobriu a referida conferência porque viu nela interesse jornalístico, mas [sim] porque a sua entidade proprietária se comprometeu a fazer a promoção e cobertura jornalística desse evento num contrato que celebrou” com o Governo de António Costa..
Estranhamente, apesar de se tratarem de casos similares, envolvendo a secção ‘Projectos Especiais’, a ERC entendeu que não existiam provas de que as notícias associadas aos outros cinco contratos tenham violado também a Lei da Imprensa e estavam feridas de promiscuidade. E por uma simples razão: a instituição liderada por Helena Sousa, mesmo com todos os poderes de um regulador, não mexeu uma palha para obter sequer os cadernos de encargos, mesmo não estando no Portal Base.
Assim, a ERC deixou escapar, ou quis deixar escapar, as ‘notícias’ promocionais efectuadas no âmbito de outros contratos, designadamente aquele que foi assinado em Maio de 2022 com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), no valor de 19.500 euros, para a aquisição de serviços de apoio, organização e promoção de eventos associados à iniciativa Missão Natureza 2022. E isto porque não teve acesso ao caderno de encargos. Curiosamente, o PÁGINA UM teve, bastando um pedido ao ICNF. Está aqui.
Sem qualquer sanção ficou também a cobertura ‘noticiosa’ feita pelo Expresso na sequência de um contrato celebrado com a Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (SGTSSS) em Dezembro de 2020, no valor de 19.800 euros, para a aquisição de serviços diversos para apoio à realização do evento anual do Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego – POISE.
Helena Sousa, presidente do conselho regulador da ERC. / Foto: D.R.
Mas o facto é que a ERC assume que, no concerne aos “factos considerados não provados, tal ficou a dever-se à circunstância de, quanto a eles, não ter sido produzida qualquer prova suficientemente consistente”. Melhor dizendo, o regulador não se deu ao trabalho de a produzir, porque nem sequer mostra que pediu às entidades públicas os respectivos cadernos de encargos. Bastaria, talvez, um e-mail.
A ERC teve a ousadia de dizer, na sua deliberação, que não encontrou provas de que a publicação do artigo “Duarte Cordeiro: ‘Esta é a hora de reforçar as ações de proteção da biodiversidade’” “estivesse prevista no contrato celebrado entre o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. e a Impresa Publishing, S.A., para aquisição de serviços de apoio, organização e promoção de eventos associados à iniciativa Missão Natureza 2022, celebrado em 20 de maio de 2022”.
Foto: D.R.
Porém, consultando o caderno de encargos deste contrato, estão claramente descritos os serviços a prestar no âmbito da realização de três conferências, designadamente: “Divulgação do evento num jornal de referência nacional (1 página)”; “Elaboração do resumo das principais conclusões”; e “apresentação das conferências, com recurso a uma personalidade reconhecida de um canal de televisão nacional com elevado número de telespetadores”. A ERC usa o argumento ‘in dubio pro reo‘ para não condenar a Impresa, mas, na verdade, verifica-se que se aplicou a máxima pouco ortodoxa ‘in ignavia iudicis, absolutio sequitur‘, ou seja, na preguiça do juiz, segue-se a absolvição.
O caderno de encargos tem, aliás, uma particularidade que mostra a promiscuidade destes contratos: o ICNF exigia contratualmente a cobertura noticiosa mas concedendo que o Expresso dispunha “de autonomia na prestação dos referidos serviços, designadamente no apoio técnico, streaming, promoção e cobertura dos eventos”. Ou seja, o Expresso podia fazer tudo o que lhe apetecesse, do ponto de vista editorial, desde que não pensasse sequer em ignorar a cobertura noticiosa do evento pago.
Foto: PÁGINA UM
O mais curioso é que a ERC na sua deliberação – e convém referir que existem propostas de deliberação elaboradas pelos seus serviços que podem ser alteradas pelo Conselho Regulador – reconhece ser “convicção do regulador que estes artigos também foram elaborados na sequência dos mencionados contratos, pois os mesmos promovem os eventos visados pelos contratos”.
Mas diz depois que, “dada a natureza híbrida destes conteúdos [‘Projectos Expresso’], que se assemelham a conteúdos jornalísticos, e considerando que os mesmos revestem certo interesse informativo, sem existirem nos contratos cláusulas específicas que prevejam a sua elaboração (que sejam do conhecimento do regulador), poder-se-á admitir que as peças em causa foram elaboradas por decisão da direção de informação do Expresso, dentro da sua liberdade editorial, que decidiu anunciar e descrever as conferências em causa, citando as declarações dos seus oradores”.
E até acrescenta então que se considera “pouco provável essa ocorrência” mas que, face à existência de dúvidas acerca de quem partiu a decisão para elaborar os conteúdos em causa (da direção de informação do Expresso ou se já estavam previstos nos contratos para a organização desses eventos) e da existência de um pagamento pela redação dos mesmos, convoca-se o princípio ‘in dubio pro reo‘ [na dúvida, decide-se a favor do réu], aplicável ao processo de contraordenação”. Dúvidas existenciais da ERC que teriam sido sanadas com a leitura do caderno de encargos, que no caso do ICNF, está aqui. E também na imagem em baixo.
Excerto do caderno de encargos do contrato assinado entre o ICNF e a Impresa Publishing.
Assim, não só a ERC deixou escapar estas notícias à aplicação de coimas, já que são em tudo similares à notícia que gerou a presente condenação da Impresa Publishing, como sugere uma dica preciosa aos media promíscuos: desde que as ‘notícias’ não estejam especificamente previstas nos contratos, escapam a coima do regulador e não serão tratadas como publicidade, apesar de o serem, mas não estarem identificadas como tal aos leitores.
Deste modo, além de aplicar apenas uma coima, e de valor baixo (2.000 euros para um contrato de 29.000 euros), a ERC ainda explica aos grupos de media como podem ‘fugir’ à Lei da Imprensa.
Acresce a demora na análise, porque este caso remonta a Maio de 2023, quando a ERC deliberou instaurar processos de contra-ordenação contra a Impresa Publishing relacionados com “conteúdos referentes aos cinco contratos celebrados entre entidades públicas e a empresa”, no período compreendido entre 26 de fevereiro de 2020 e 20 de maio de 2022.
De resto, essa deliberação inicial só surgiu após uma notícia do PÁGINA UM sobre promiscuidade nos media, que identificava que, desde 2020, tinham sido efectuados 56 contratos de ‘parceria comercial’ entre empresas de media e de entidades públicas.
Normalizou-se na imprensa a publicação de conteúdos promocionais travestidos de notícias, assinados por jornalistas, e sem que reguladores actuem para parar com a promiscuidade e a violação da Lei da Impresa no sector. / Foto: D.R.
Este é mais um caso em que a promiscuidade vence pela inacção e posterior lentidão de actuação do regulador, mas também pela reduzida coima aplicada e demais incentivos a que os grupos de media continuem a violar a Lei de Imprensa, publicando notícias que são, afinal, publicidade.
Recorde-se que, segundo a Lei da Imprensa, toda a publicidade “deve ser identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio, contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”. Mas grupos de media têm criado áreas como a de ‘Projectos Especiais’ do Expresso para publicar notícias que resultado de contratos comerciais.
Na base da presente condenação da Impresa Publishing pelo conselho regulador da ERC está também o argumento de que “os factos ocorreram porque a arguida não procedeu com o cuidado a que está obrigada e de que é capaz, já que não fez uma interpretação correta da Lei de Imprensa”.
O PÁGINA UM detectou, em Maio de 2022, a existência de 56 contratos de ‘parceria comercial’ entre grupos de media e entidades públicas.
A ERC frisa, na deliberação, que “a arguida tinha os meios necessários e a capacidade de compreender que uma peça que promova uma conferência por cuja organização recebeu uma contrapartida económica, estando prevista a sua redação no contrato de prestação de serviços, constitui um conteúdo publicitário, o qual tem de ser identificado expressamente”.
Considerou ainda que “a arguida não revela arrependimento, no sentido da interiorização do desvalor da sua conduta”.
O certo é que, após esta decisão e a coima aplicada pela ERC, fica aberto o caminho para que esta e outras empresas de media continuem a não interiorizar “o desvalor da sua conduta” quando publicam notícias ou entrevistas ou reportagens como se se tratasse de conteúdo informativo e não de publicidade encapotada.