Autor: Diogo Cabrita

  • Cemitérios e abandonos

    Cemitérios e abandonos


    Uma realidade que existe em vários países é a da manutenção da posse dos terrenos e o usufruto das construções apenas se se der uso, e este se mantiver digno. Em Portugal, isso aplica-se, por exemplo, nos cemitérios.

    Assim, se possuir um jazigo e não lhe fizer obras, não o limpar, a Câmara Municipal pode retomar a posse e colocar em hasta pública a edificação por cima da terra, pois a terra é sempre da Câmara.

    woman statue near green trees during daytime

    Esta tradição de nunca vender o terreno tem tradição na Holanda e na Inglaterra – e, portanto, terminados os sinais de vida, acrescido um prazo tido por de bom senso, o Estado faz-se gestor de tudo o que está sobre os seus terrenos.

    Esta ideia devia mostrar-se válida também para os terrenos abandonados há décadas – as florestas, os campos, e claro, propriedades espalhadas por todo o Portugal. Devemos acrescentar as edificações herdadas, e sobre as quais as famílias desavindas deixam degradar e que se desfazem sem qualquer resolução.

    Também há os terrenos de instituições do Estado que vão ficando abandonadas. Conheço dezenas de antigos quartéis, escolas decadentes e em estado de vergonha – Anadia é um exemplo maior –, e velhos hospitais, e antigas instalações de colégios.

    Portugal insiste em construir em terrenos nunca antes construídos para evitar as decisões de expropriação compulsiva, ou mesmo a retoma dos terrenos pela governação.

    Às autarquias também compete o levantamento do edificado e o conhecimento dos seus proprietários. E a elas compete notificar os proprietários sobre a degradação e insalubridade. Se não se faz nada por incapacidade financeira, pode-se decretar a venda, ou envolver-se em negociações de parceria. O abandono é intolerável.

    Nos cemitérios, sabe-se que o terreno nunca é pertença do dono do edificado. No final, não é ele realmente dono; é sim usufrutuário sob condições contratuais e de tradição. Todos os anos inúmeros jazigos vão para a hasta pública e são comprados.

    A verdade é que as Câmaras têm departamentos de conservação e organização dos cemitérios que permitem a sua persistência ou muitos eram lugares sombrios e impossíveis para visitas. Nos cemitérios ainda não estão os sem abrigo a fazer companhia aos que dormem a eternidade. Ninguém joga cartas ou fala das janelas, não se pedem pequenos-almoços e não é frequente ver restos de alimentos.

    angel statue

    Porém, infelizmente, os cemitérios vivem a decadência do desinteresse, da falta do valor da tradição e, portanto, estão a empobrecer as suas construções, a perder o emocional e o romântico das obras que durante centenas de anos foram gáudio de famílias abastadas e outras esforçadas. 

    A tradição destas instituições pode ser uma boa estratégia para salvar os centros das cidades, para trazer população para a zona antiga. Portugal precisa de governação que inove, que cumpra com uma visão de navegar ao longe. A política do dono da terra pode ser importante para muitas coisas e há muita experiência que nos vem dos mortos – podia lá eu imaginar!

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os muros do medo e da intolerância

    Os muros do medo e da intolerância


    A convicção como fundamento da prova é um assunto muito discutido no direito e teve como grandes opositores os iluministas que entendiam ser esse um abuso do poder dos juízes. “Eu acho que tens cara de ladrão, logo vais preso até se investigar!”

    A prova do crime era livre e arbitrária, e permitia-se que o juiz entendesse como suficiente o que lhe parecia ser, dando origem ao encarceramento ou à limitação de liberdade. A obrigação de fundamentação das provas veio mais tarde, e tornou-se a opção dos países democráticos.

    No pico da crise pandémica, e no advento da coação para silenciar os que pensavam diferente – aqueles que então eram denominados negacionistas ou chalupas; os incrédulos para a Igreja Pandémica, que os entendia como inimigos – valia toda a força discriminatória, e valia o antecipar a pena pelo delito não julgado.

    O pressuposto é o de que a Comunicação Social deve ser um meio de influência, deve cercear garantias, deve ajudar o populismo penal dos novos fascistas que militam nos partidos, nas facções e nas falanges da nova política.

    John Locke (1632-1704) coraria de espanto. Voltaire (1694-1778) rasgaria os seus conselhos aos jornalistas. A pandemia construiu-se de um drama pessoal, com uma banda sonora épica e “amordaçante” que transporta o medo e a insanidade que dele resulta.

    Não somos capazes de controlar o vento, não podemos dominar o mar, não conseguimos destruir o avanço dos vírus e a sua relação com a predisposição genética e a sua incorporação na nossa vida. Devemos e tentamos reduzir o custo do seu avanço, mas o seu percurso é como o do mar que quer levar a praia – leva e depois talvez a deixe regressar.

    abstract painting brick wall

    A pandemia trouxe-nos de volta a 1640, com a acusação fundamentada na convicção. Sabemos pouco de quase tudo e a diversidade de actuações permite-nos contradições chocantes. Sabemos que é a primeira pandemia com preferência pelos ricos, pelos doentes bipolares, pela obesidade (que não controlámos em tempo útil).

    Sabemos que a morte não dizimou as favelas do México, nem de Luanda, nem de Bombaim.

    Sabemos que os resultados da surpreendente Suécia ombreiam, para muito melhor, com os nossos, apesar do que fizemos mais convictamente. A realidade não paga tributo a convicções nem a crenças.

    Sabemos que os jovens do futebol foram testados incessantemente e não conhecemos nenhum caso em cuidados intensivos.

    man in brown coat wearing white face mask

    Sabemos que foi permitido ao Facebook filtrar expressão, invocar verdades como regra de discurso. O fascismo das multinacionais foi pedido e advogado por cientistas incultos; foi júbilo quando taparam a boca a Trump.

    Está legitimado agora pela esquerda o seu próprio silêncio quando o poder mudar de mãos. Aqui bate todo o erro para o qual Agamben, Slavoj Žižek, e vários outros pensadores, têm alertado nesta deriva autoritária que o medo – a emoção primária – justifica.

    Neste contexto se enquadra o discurso que ouço quase de queixo caído aos que querem prender os que recusam vacinas, os que querem cercas sanitário-políticas aos opositores, que pretendem tornar asséptica a vida.

    Embebidos em medo construído por perigosos servidores da convicção como as televisões e alguns jornais, eles defendem obrigações de separação – muros, portanto, legislação penalizadora do incumprimento, a recusa de tratamento em quem não pensa como eles.

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    Não lia nada tão fascista desde a minha infância!

    Amanhã mandam prender os diabéticos tipo II, exigem chicotadas aos fumadores, recusam internamento aos alcoólicos, tudo gente merecedora do castigo por não se absterem!

    Vai ser difícil despir máscaras aos medrosos, aos assustados, aos convencidos. Mesmo se, por exemplo, a realidade numérica diz que morrem três milhões de tuberculose por ano e 2,5 milhões de covid por ano… Vantagem para a tuberculose, e pior ainda foi a enorme vantagem das mortes por doença vascular (AVC, enfarte) no mesmo período.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dor alheia

    Dor alheia


    Não me importava de não ser médico quando vejo o António. Ele fala, de um modo pouco perceptível está consciente, responde ao estímulo verbal enquanto o corpo inerte, anquilosado de forma fetal, se enche das feridas da cama.

    Não sei se é a família que exige que o salvem, não sei se é a Medicina encarniçada que sente necessidade salvífica.

    António é uma desgraça enquanto vida e é a montra da inutilidade do SNS. Está vivo, sente dores e aparentemente deixou de se manifestar obnubilado naquela deformidade. Eu matava-o, porque se fosse ao contrário suplicava que me fizesse.

    Eu morro um pouco de o ver chegar de um lar para onde foi depois de um hospital onde o amputaram, onde o medicaram.

    A cama onde tem de ficar é o seu espaço dos horrores porque conduz às escaras. Não tenho serviços que o melhorem. Não tenho soluções de internamento, porque cada dia há menos camas.

    Tenho cuidados continuados amputados de inúmeras funções para serem lugares sem terapêuticas com agulhas. Cuidados continuados na fronteira da falência de cuidados por falta de pessoal qualificado, por falta de capacidade financeira, por gestão medíocre também.

    Tenho famílias limitadíssimas nos seus orçamentos e ele tem uma reforma mínima.

    Há fins carregados de indignidade. Se ele sente, está há meses a passar o que nem Jesus a caminho da cruz. O ridículo e o caricato é ter na sua tabela terapêutica medicamentos para prevenir a aterosclerose, para prevenir o enfarte do miocárdio, para corrigir a diabetes. São os protocolos da insanidade mental a que chegou a medicina.

    man in black shirt sitting on chair

    Há famílias igualmente insanas que pedem pela sua vida quando a morte está ali mesmo a chamar pelo regaço e o conforto. Ser médico não é impedir a morte! Ser médico não é cumprir protocolos e seguir orientações.

    Se fosse um canídeo havia gente ferida e zangada a escrever no Facebook. Dentro de uns anos os cães e gatos passarão pelo mesmo, insanamente em quimioterapias, em cuidados salvíficos, que podiam tirar a fome a milhares de crianças, impedidos de se enroscar num lugar ermo e morrer em paz.

    Aqui, António está só, imóvel numa cama sem colchão anti-escaras, sem apoios para o conforto, e sem vislumbrar o fim porque anda gente atenta a impedir a sua partida.

    Não quero que me chamem médico assim. Queria capacidades de acção, circuitos de dignidade para estes morreres lentos, mas que podiam ser aconchegados, apoiados.

    doctors doing surgery inside emergency room

    O SNS não responde à saúde oral, responde com grande deficiência à saúde mental, está amputado de capacidade nos paliativos, mas distribui prevenção medicamentosa e quatro doses de vacina ao António que mesmo inerte contribui para a fortuna das farmacêuticas.

    A insanidade mental e a incapacidade crítica envergonham-me como clínico, também como político, também como cidadão e talvez por essa razão esteja a chegar o tempo de deixar esse mundo. O ciclo de vida de quem está inadaptado, quem não compreende a evolução. Também nós temos um limite para o sofrimento alheio.

    Quando vejo o António ocorre-me: antes enforcado que tal sorte.

    Diogo Cabrita é médico


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  • IPO de Coimbra: uma oportunidade perdida?

    IPO de Coimbra: uma oportunidade perdida?


    Três décadas após a criação do Instituto Português de Oncologia (IPO) em Lisboa, o Professor Luís Raposo empenhou-se em Coimbra para criar um centro anticanceroso capaz de dar resposta à população do Centro do país. Como se relembra no site do IPO de Coimbra, o seu primeiro edifício sede foi “uma pequena vivenda, adquirida em 1953”. Ao longo das décadas, desde a primeira vivenda, têm-se demolido velhas estruturas , remodelado outras, modernizando equipamentos e espaços, e a instituição não tem parado de crescer.

    O predador ali nascido comeu casas, comeu espaços e foi-se agigantando, sem importar se a rua comportava, se as instalações se humanizavam, se os doentes estavam confortáveis. O PS exigia crescer e o PS mandava – bem ou mal, sem ouvir ninguém foi produzindo esta aberração urbanística que agora vai piorar. A cidade em torno dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e IPO sofre consequências violentas da ocupação do espaço.

    Entretanto, nos anos oitenta, a mando do PSD, construiu-se o HUC em Celas a 100 metros das vivendas do IPO.

    A construção do IPO é uma montra da governação em Saúde que temos tido em Coimbra. O PS lidera todas as administrações e zonas de poder e, desse modo, sem contraditório, aprova reformas e conduz a cidade para um abismo há mais de 40 anos.

    O IPO estava obsoleto em hotelaria, em capacidade de crescimento e obviamente estava a ocupar um lugar inadequado no território urbano. Era uma oportunidade de pensar a cidade. As cidades não precisam de espaços como aquele naquele lugar da cidade.

    O IPO existe a 100 metros do HUC, mas são estruturas que estão de costas voltadas, não se potenciam apesar da proximidade. Carlos Santos geriu uma, e agora comanda a outra. Carlos Santos deve ter feito parte das negociações desta obra bizarra que agora estão a fazer e vai ser pai da outra que querem projectar para o HUC – a Maternidade de Santa Engrácia.

    Danger Construction site signage

    Do ponto de vista arquitectónico, não estamos no século XIX com pavilhões, nem estamos no século XX dos edifícios altos. Aquilo é um meio-termo. Chegado ao seu fim útil de existência, podiam ter optado por construir a unidade nova no Sobral Cid semi-abandonado, ou em Taveiro, perto do retail park.

    O que surgiria tinha sempre espaço de estacionamento, arruamentos adequados, conforto de paisagem envolvente, lugares de verde e de apoio para fontes de energia renovável. Um hospital de hoje não pode estar na Rua Bissaya Barreto.

    Os doentes merecem mais que aquele corrupio de transportes e bombeiros todas as manhãs. Um hospital tem impacto ambiental, impacto social, gera economia e gera ansiedades. Os hospitais do futuro precisam de cuidados paliativos, carecem de lugares aprazíveis de encarar o fim.

    persons left hand with white background

    Os jardins, os estacionamentos, a chegada de mercadorias, tudo pertence à complexidade da estrutura hospitalar. Aliás, recordemos as palavras de Artur Vaz, com larga experiência na administração hospitalar: “A adaptabilidade ao terreno de construção, a capacidade e complexidade técnica, tecnológica e funcional do edifício, a correcta definição das circulações (de doentes internos, doentes externos e visitas), a relação com o espaço público, as condições de conforto e segurança para os utentes e a flexibilidade dos espaços hospitalares constituem os principais parâmetros a ter em conta na programação hospitalar”.

    Por tudo isto, sabemos que devia ser embargada a obra do IPO de Coimbra e pensada a sua realização noutro lado. Também sabemos como na zona urbana em que está esta instalação o valor de terreno de construção é capaz de pagar a nova obra quase toda.

    As obras do edifício principal, facilitadas pela instalação do novo bloco operatório, estão estimadas em perto de 28 milhões de euros e decorrem neste momento as fundações. As obras que vão destruir o trânsito da Biassaya Barreto antes e depois delas, durarão dois anos. Podíamos embargar já.

    Também ouvi falar em fazer uma rotunda para aconchegar o trânsito por ali, mas a arquitectura sabe que mais fluxo é significado de mais trânsito, e não de redução. Os hospitais verdes são uma ideia difundida e aceite.

    Os hospitais preparados para a consulta à distância com imagem, utilizando as novas tecnologias são o futuro. Vamos perder mais uma oportunidade de fazer melhor porque temos escolhido protagonistas errados. O Socialismo e as suas famílias donas de Coimbra governam o seu conforto, a distribuição de empregos e infelizmente são desprovidos de rasgo, de dimensão.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os comentadores que nos “induzem” 

    Os comentadores que nos “induzem” 


    De uma análise recente sobre os comentadores das televisões portuguesas, ficámos a saber que não há comentadores residentes do Chega nem da Iniciativa Liberal. Isto não seria grave se não fosse também assim na televisão pública. 

    Ou seja, na democracia conduzida pelo partido do Governo (em Maio distribuiu 40 milhões de euros pelos media) comprova-se que o Bloco tem um espaço maior de representação nas televisões que os deputados todos do Chega e da Iniciativa Liberal. Também o PCP e o PAN estão à beira do eclipse e afogados no silêncio.  

     

    A democracia é uma coisa diferente disto, e por muito que custe, a representatividade e, portanto a própria democracia, estão em causa neste momento. A opinião, o comentário, deveria ser claro e transparente, indutor de informação e com contraditório, mas nada se passa assim.   

    Em 2011, um primeiro estudo importante sobre comentadores de televisão era também muito esclarecedor. “Concluindo, os painéis de comentadores residentes reflectem, sobretudo, dois sectores da sociedade portuguesa, deixando de fora todos os telespectadores que não se interessem nem por política nem por desporto. Estas áreas são, claramente, as que garantem mais espectáculo televisivo, na medida em que proporcionam confrontos e polémicas. E talvez estes ingredientes estejam a ser mais valorizados do que a preocupação de pluralismo e de representatividade”. 

    Podemos dizer que daqui para o estudo de 2020 nada mudou, e posso afirmar que muitos ainda são os mesmos comentadores residentes.  

    Para termos a noção da importância disto, analisemos a gestão do gosto, a indução do consumidor para um determinado género musical através das playlists.

    Quatro grandes empresas controlam mais de 90% do som que se divulga na rádio portuguesa. “As músicas não são proibidas agora, mas algumas são obrigatórias” dizia Fernando Quinas citado em “Provedor do Ouvinte – relatório de actividades de 2017” por João Paulo Guerra. 

    E basta ler Luís Montez, da produtora Música do Coração e detentor de um grupo de emissoras (Capital, Radar, Oxigénio, Festival, Nova): “A rádio é um bicho vivo, de 24 horas sobre 24 horas, as pessoas que ligam uma rádio esperam ouvir o que estão à espera. Querem que seja familiar, simpático, que corresponda às expectativas. Que seja regular” – e essa regularidade é fornecida pela playlist. Está a falar em seu benefício pois a Música no Coração é das quatro maiores a controlar o que os ouvintes podem ouvir. 

    Os portugueses mais interessados começam a perceber a matrix onde nos estamos a instalar e onde os cidadãos são instrumentalizados para os assuntos, induzidos para as opiniões e controlados no seu universo de possibilidades.

    Tudo está balizado, colorido, aprimorado por discursos com um mesmo foco. Reparem como não há comentadores para a interpretação da responsabilidade do PS no desastre do SNS, na condução da grande noite escura pela DGS entre 2020 e 2022, e ainda na presença de defensores da versão Bolsonaro na eleição brasileira, ou da versão russa da guerra na Ucrânia.

    Nunca aparece um comentador do Braga ou do Vitória de Guimarães, ou do Paços de Ferreira. Reparem como os grandes medalhados de outras modalidades não surgem nos ecrãs. 

    Os donos da informação podem conduzir esta manada sem precisar de muito pessoal. Bastam trinta e cinco construtores de opiniões parecidas e fazedores de medos ou injectores de opiniões não contraditadas. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os comentadores que nos “induzem”

    Os comentadores que nos “induzem”


    De uma análise recente sobre os comentadores das televisões portuguesas, ficámos a saber que não há comentadores residentes do Chega nem da Iniciativa Liberal. Isto não seria grave se não fosse também assim na televisão pública. 

    Ou seja, na democracia conduzida pelo partido do Governo (em Maio distribuiu 40 milhões de euros pelos media) comprova-se que o Bloco tem um espaço maior de representação nas televisões que os deputados todos do Chega e da Iniciativa Liberal. Também o PCP e o PAN estão à beira do eclipse e afogados no silêncio.  

    A democracia é uma coisa diferente disto, e por muito que custe, a representatividade e, portanto a própria democracia, estão em causa neste momento. A opinião, o comentário, deveria ser claro e transparente, indutor de informação e com contraditório, mas nada se passa assim.   

    Em 2011, um primeiro estudo importante sobre comentadores de televisão era também muito esclarecedor. “Concluindo, os painéis de comentadores residentes reflectem, sobretudo, dois sectores da sociedade portuguesa, deixando de fora todos os telespectadores que não se interessem nem por política nem por desporto. Estas áreas são, claramente, as que garantem mais espectáculo televisivo, na medida em que proporcionam confrontos e polémicas. E talvez estes ingredientes estejam a ser mais valorizados do que a preocupação de pluralismo e de representatividade”. 

    Podemos dizer que daqui para o estudo de 2020 nada mudou, e posso afirmar que muitos ainda são os mesmos comentadores residentes.  

    Para termos a noção da importância disto, analisemos a gestão do gosto, a indução do consumidor para um determinado género musical através das playlists.

    Quatro grandes empresas controlam mais de 90% do som que se divulga na rádio portuguesa. “As músicas não são proibidas agora, mas algumas são obrigatórias” dizia Fernando Quinas citado em “Provedor do Ouvinte – relatório de actividades de 2017” por João Paulo Guerra. 

    E basta ler Luís Montez, da produtora Música do Coração e detentor de um grupo de emissoras (Capital, Radar, Oxigénio, Festival, Nova): “A rádio é um bicho vivo, de 24 horas sobre 24 horas, as pessoas que ligam uma rádio esperam ouvir o que estão à espera. Querem que seja familiar, simpático, que corresponda às expectativas. Que seja regular” – e essa regularidade é fornecida pela playlist. Está a falar em seu benefício pois a Música no Coração é das quatro maiores a controlar o que os ouvintes podem ouvir. 

    Os portugueses mais interessados começam a perceber a matrix onde nos estamos a instalar e onde os cidadãos são instrumentalizados para os assuntos, induzidos para as opiniões e controlados no seu universo de possibilidades.

    Tudo está balizado, colorido, aprimorado por discursos com um mesmo foco. Reparem como não há comentadores para a interpretação da responsabilidade do PS no desastre do SNS, na condução da grande noite escura pela DGS entre 2020 e 2022, e ainda na presença de defensores da versão Bolsonaro na eleição brasileira, ou da versão russa da guerra na Ucrânia.

    Nunca aparece um comentador do Braga ou do Vitória de Guimarães, ou do Paços de Ferreira. Reparem como os grandes medalhados de outras modalidades não surgem nos ecrãs. 

    Os donos da informação podem conduzir esta manada sem precisar de muito pessoal. Bastam trinta e cinco construtores de opiniões parecidas e fazedores de medos ou injectores de opiniões não contraditadas. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • SIDA, anos 90 – e nós agora

    SIDA, anos 90 – e nós agora


    Recordo como se fosse hoje a esquiva e as desculpas para não operar os doentes. Recordo as crises emocionais de alguns a quem calhou a sorte de um HIV positivo.

    Tenho a memória de operar em PECLEC (sistema de redução de lista de espera) nos anos 2005 e seguintes, no Hospital de Anadia, doentes de Portugal inteiro que se arrastavam nas suas instituições onde despudorada e desavergonhadamente lhes recusaram assistência.

    A SIDA teve uns artistas televisivos, uns médicos que se prestaram ao discurso de um certo Cavaquismo (governava o PSD com maioria absoluta) e a um ministro Arlindo de Carvalho que distribuiu milhões de escudos que chegavam da Europa para associações e instituições onde se acumulavam amigos e companheiros.

    Antes eram escudos, os euros vieram em 2002.

    De 1987 (começavam a morrer vedetas da música, cabeleireiros, gente associada ao mundo gay) até 2004, quando irrompem os retrovirais dando confiança, a falta de respeito e a perfídia reinava em português.

    – São paneleiros!, diziam com desprezo.

    person holding white ceramic heart shaped ornament

    Falo de gente directora de serviço, de gente directora de hospitais, de enfermeiros-chefes. Eu vi. Eu testemunhei, surpreso e contundido.

    Sim, meus amigos, essa geração reagiu ao medo de um modo descompensado e deselegante.

    Organizei, com o Cesário Andrade Silva e o Luís Taborda, e com subsídio atribuído pelo ministro Couto dos Santos, e depois pelo secretário de Estado Martins Nunes, o “SIDA anos 90”. Foi o primeiro congresso internacional sobre SIDA que se fez na Europa.

    Tivemos as vedetas da TV, a Laura Aires e a Odete Santos Ferreira – já falecidas e que, na altura, desempenhavam o papel do Froes e do Carlos Antunes de agora, os proprietários das Associações criadas para receber os fundos europeus, os amigos do Estado. Tivemos imposições para alguns estarem nas mesas, nomes do nepotismo nacional, rolhas que sempre sobrenadam.

    Revista da Ordem dos Médicos de Junho de 1990.

    Pontificava, no mundo, um português de sua graça Luís Champalimaud, que tinha identificado e isolado o HIV2 na Guiné. Esse colega não ia à televisão, não era membro das comissões de luta contra a SIDA, não tinha voz activa nas decisões do Estado. Não tinha palco! Era o patinho Torgal daquela altura.

    Nós éramos a Associação Nacional de Jovens Médicos, fundada pelo Álvaro Beleza, e que eu prosseguiria com a missão.

    Tivemos outros médicos, que hoje são vedetas políticas, como Miguel Guimarães, Manuel Pizarro, Miguel Leão, mas não incentivaram a ANJM, e não estiveram de alma no Congresso da SIDA anos 90.

    As principais conclusões, e outros textos sobre a temática, foram publicadas na revista da Ordem dos Médicos em Junho de 1990.

    A SIDA foi uma escola para aquilo que hoje estamos a viver. Foi uma lição onde os comportamentos humanos mais impróprios ganharam luz, mas, como não era um vírus transmitido pelo ar, a histeria não cresceu mais.

    Havia os que recusavam os pratos nos restaurantes, os que temiam um beijo, os que recusaram proximidade com doentes da SIDA ou mesmo os seus cuidadores.

    O HIV matava jovens que se fartava – nada comparado com o SARS-CoV-2. Morriam de modo lento, com infecções sucessivas, em angústia e agonia.

    Recordo o filme Filadélfia, em 1993, com Tom Hanks e Denzel Washington, e uma banda sonora maravilhosa. Vejam, e perceberão o que se passa no Mundo agora.

    Eu vi! Eu estive lá!

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A coerência do incómodo

    A coerência do incómodo


    Gostava de ver legalizada a prostituição. Gostava de ver legalizado o casamento múltiplo. Gostava de ver legalizada a venda de drogas e o consumo delas. Gostava de ver diminuir muitas leis que conduzem pessoas à cadeia. Uma coisa é a violência, o desconforto provocado pelos ladrões, pelos bêbados, pelos condutores agressivos, mas outro assunto mais fácil é a fronteira do que é lícito e do que estamos dispostos a tolerar.

    Há uma baliza que nos incomoda quando empurram, quando insultam, quando maltratam, mas depois há uma fronteira nebulosa quando discutimos a linguagem, quando falamos de género em vez de sexo, quando queremos usar terminologia explicativa para profissões de sempre.

    silhouette of three woman with hands on the air while dancing during sunset

    A criada é uma técnica, o cobrador é um oficial, o varredor é um funcionário. Os grandes mestres da nebulosidade estão no Parlamento Europeu a montar leis que nos obrigam, a garantir certificações que nos manietam, a desenhar regras que nos bloqueiam.

    Não queremos um Mundo sem leis e sem regras e sem balizas, mas queremos mais flexibilidade que é julgada e aferida pelos resultados, que é estudada e quantificada pelos registos.

    Há um bom senso que nos permite viver em sociedade, mas não queremos vestir todos com fardas, não desejamos que todos tenham guias orientadoras, que tudo se baseie em definições padrão. Não queremos as maçãs todas iguais e do mesmo vermelho, não queremos bananas sempre curvadas do mesmo modo. Não queremos batatas redondas e sem terra.

    man in black jacket standing near body of water during daytime

    A produção gerada por esta ideologia da concentração destruiu a mercearia em favor do supermercado, matou a Baixa das cidades para criar centros comerciais, impediu-nos de ser auto-suficientes na energia, atacou os consultórios para fazer grandes clínicas.

    Gostava de ver legalizadas as drogas e esclarecidas as fronteiras do que é o crime sob seu efeito. Gostava de encontrar prostitutas que podiam passar recibos. Gostava de ver a Manuela com os seus três maridos.

    Tudo o que não me prejudica, não interfere comigo, não bule o meu quotidiano, pode e deve ser liberalizado. Tudo o que é conflito, o que nos perturba o dia a dia, deve ser bem esclarecido.

    A venda de álcool tem de ser aferida com os comportamentos dos utilizadores. Deve haver pessoas a quem não se pode vender, e que só por consumir são penalizadas. Penalizar para mim é trabalho, é deslocação, é redução de salário, não tem de ser cárcere.

    two yellow and red wooden doors

    Retirar pessoas dos seus espaços de conforto, deslocalizar, reduzir salário, mudar de funções, tudo pode ser caminho de castigo para quem ultrapassa a fronteira. Há um gigantesco abismo entre esta opção e a realidade certificadora de hoje.

    A fronteira deve ser defendida pelos cidadãos, e por isso defendo a denúncia para aferir o nevoeiro, objetivando o que são as zonas de desconforto. Construir uma baliza a partir da análise da coerência do incómodo. Isto daria trabalho, mas permitia entender o limite com base na tradição e na tolerância. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A idade e o senso

    A idade e o senso


    A construção da lei obedece a um negócio entre parceiros que usam esse poder de modo discricionário para se proteger e ajudar os seus amigos e construir necessidades onde constroem os seus negócios. A legislação sobre a idade dos trabalhadores do Estado é um exemplo da incoerência política.

    Por um lado, os sindicatos lutam pela reforma, os trabalhadores descontam a vida toda para a obter, equiparamos o mais possível o valor da pensão ao salário do trabalhador, e vai daí, permitimos que a Administração Pública contrate funcionários para lá da jubilação.

    man and woman sitting on bench facing sea

    Mas quem quer trabalhar depois da reforma? Porque damos lugares a pessoas com setenta e vários anos, na função pública? Na privada é frequente, e há inúmeros cidadãos que mantêm as suas empresas para lá dos oitenta, e alguns gerem os negócios mesmo aos noventa. Sinto-me útil, dirão alguns. Não sei o que fazer se sair – ouvi outras pessoas. O problema desta desconstrução está na imagem que fazemos de nós: sinto-me jovem! 

    A idade não se manifesta na auto-observação e nas nossas circunstâncias. Por esta razão, é difícil ver políticos deixarem a cena de moto próprio. Nunca chegam ao seu fim. Mandela, Gorbachov, o Papa emérito são excepções raríssimas que abdicam.

    Nas carreiras da função pública há inúmeros exemplos que se arrastam durante os últimos seis ou dez anos apenas porque sim. Não arranjaram entretém, não construíram sossego, não são capazes de se tornar associativos, ou ter funções beneméritas, ou ser opinativos. O que me entristece é a sua colocação em lugares de liderança na Administração Pública com salários opíparos.

    red green and yellow flag

    Esta insistência rompe o ciclo da renovação, a exigência da evolução e, sobretudo, prejudica o futuro. Ver homens de oitenta aos saltinhos num palco, convencidos de que são roqueiros surpreende-me as artroses, deixa-me com apertos na próstata.

    Há tanta coisa para ser, tanta realidade para viver. Não sou insensível ao mau gosto e parece-me desapropriado o avô a fingir que tem vinte anos. Também me indigna a parva decotada a visitar igrejas. Sou um conservador, já se vê.

    Por estas razões, não percebo o que fazem tantos reformados na gestão de empresas do Estado. Não percebo porque transitam pela administração os funcionários dos partidos, sem limite e sem vergonha. Presidente da Mesa da Assembleia Geral do SUCH, temos Correia de Campos. Na direcção da ADSE lá está João Proença, um camaleão de todas as funções possíveis. Na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), o curriculum de Rogério da Carvalho é típico dum transeunte do poder.

    grayscale photo of person holding glass

    Mas os reformados da Administração Pública pululam em fundações, Santas Casas, entidades financeiras. Há lugares dourados para encaixar inúmeras figuras, num Estado que se multiplicou em instituições que competem nas funções e se anulam na acção.

    Na gestão dos investimentos privados não me meto, mas na gestão de institutos, fundações, IPSS que recebem milhões da governação, acho ilícito que quem se reforma do trabalho público regresse a funções para as quais devíamos ter construído a rotação benéfica e eficiente.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Animais de estimação

    Animais de estimação


    Não vou falar da Márcia e da Né. Elas adoram animais – e, se todos fossem como elas, era uma alegria para mim e uma melhoria para o Mundo. Animais carecem de tempo, disponibilidade, interligação, compromisso. Elas são 20 valores.

    Falo dos outros. Ter cães que não passeiam está errado. Ter animais que se deixam ao deus dará é um desastre social e ecológico. Ter animais por esterilizar ou por educar é contra um mundo melhor. Os gatos são predadores naturais e definem seus territórios de caça onde matam sem quartel. Não ficam ninhos, não sobrevivem insectos grandes, ratos e outra fauna.

    Se uma cidade como Coimbra tiver trinta mil gatos, os pássaros vão fugir daqui. A Nova Zelândia descobriu como os gatos abandonados dizimavam os papagaios e teve de tomar medidas importantes.

    Ter animais de estimação é uma responsabilidade social e não “uma coisa fixe” ou uma tonteira para alegrar dois ou três meninos que não os passeiam, não os lavam, não lhes dão de comer. Cão e gato, coelho ou cobra, ou mesmo iguana, carecem de uma regulamentação para que fiquem em casa, sejam domésticos e não selvagens.

    Para serem felizes carecem de espaço, carecem de companhia, são exigentes na dedicação. Os animais são relógios de rotinas. Todos os animais sabem as suas horas de comer, de sair, de entrada dos donos. As vacas têm de ser mungidas à mesma hora, encontrar a palha no mesmo lugar, repetir os mesmos gestos todos os dias. Este compromisso com o tempo é mandatório a quem deseja ter pets.

    woman and cat joining hands

    Se o teu cão passa a vida a latir, algo está errado. Se o teu cão deixa fezes na minha porta, és tu quem tem culpa. Se o teu pet fede, é porque és um porco e um preguiçoso, a não ser que tenhas adoptado uma doninha. Se há tantos cães e gatos mortos nas estradas, a culpa é tua que libertas o bicho para ir de férias. É uma questão também de ética.

    O que é brutal hoje é que um discurso crítico ao negócio do amor de estimação é silenciado pelo poder das empresas que controlam a alimentação, os produtos infinitos para mimosear os bichos de casa, as associações defensoras dos animais. Dizer que os animais de estimação têm um custo ecológico elevado, são mais uma fonte de poluição e de morte é uma brutalidade para os fanáticos.

    Infelizmente, os supermercados estão a encher-se de secções de negócio animal, comida mais cara que a ração dos esfomeados de África, mais dispendiosa que a diária das penitenciárias. 

    Se formos ao Google vemos milhares de virtudes em ter estima por animais, encontramos resmas de discursos que potenciam o negócio. Mas, claro, nem todos podem criar animais de estimação – tem de haver regras. Os gatos e cães devem estar esterilizados nas vossas casas. Para serem domesticados sofrem uma contracção da sua essência, e por essa razão há uma grande discussão sobre este tema.

    selective focus photography of brown hamster

    Depois há animais que são donos de objectos com patas e os levam para cenários violentos, os transportam para jogos de morte e de diversão com barbaridade acrescida. Tudo isto carece de observação, legislação abrangente e sobretudo vertida de uma discussão aberta, sem filtros, culta, informada por técnicos e cientistas.

    Não fosse a Márcia e a Né, eu defenderia que os pets fossem proibidos, sem ser em condições excepcionais, mas elas demonstraram-me à saciedade como posso não ter razão e concordaram comigo em muito do que disse atrás.

    Afinal, eu gosto dos bichos e eles espantosamente, aproximam-se despudoradamente de mim.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.