O SARS-CoV-2 foi uma “bênção” para a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Um apoio europeu de 12,6 milhões de euros para vender testes à covid-19 ao preço de mercado e as contínuas “injecções” de subsídios públicos, permitiram à associação humanitária acumular lucros de 26,6 milhões de euros em 2021 e 2022, depois de dois anos de prejuízos no meio de suspeitas e investigações policiais. Para salvar a CVP, o Estado, e sobretudo com transferências dos Ministérios, a CVP encaixou 80 milhões de euros em subsídios e doações apenas entre 2020 e 2022, valor que contrasta com menos de 27 milhões no triénio anterior. Agora, António Saraiva, recém nomeado presidente da CVP, tem um duplo desafio: manter os resultados da instituição à tona de água e esclarecer as muitas dúvidas que se mantêm numa organização cada vez mais dependente dos contribuintes portugueses.
Os alarmes financeiros soaram em 2020, primeiro ano da pandemia. E eram bem vermelhos. Apesar de um reforço de quase 11,2 milhões de euros de subsídios públicos face ao ano anterior, a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) – uma organização não-governamental de utilidade pública mas financiada fortemente pelo Estado –, acabou o segundo exercício fiscal com resultados negativos.
A solução foi quase draconiana, como se a instituição tivesse seguido para uma “unidade financeira de cuidados intensivos”: em 2021 e 2022, o Governo injectou ainda mais dinheiro e permitiu-se que a CVP maximizasse – ou seja, comercializasse com bom lucro – um subsídio de 12,6 milhões de euros da União Europeia para a compra de testes para a covid-19. E o “milagre” aconteceu: a CVP passou de dois anos de resultados negativos (2019 e 2020) de quase 1,7 milhões de euros para lucros estonteantes de 18,9 milhões em 2021 e de 7,7 milhões de euros no ano passado.
O “milagre”, convenhamos, foi alcançado em grande medida à custa dos contribuintes. Com efeito, antes da pandemia, os rendimentos da CVP provinham sobretudo de vendas e serviços prestados – que têm sempre associados custos (mercadorias, serviços externos e gastos administrativos e com pessoal) –, e só muito marginalmente de subsídios, doações e até mesmo heranças. Por exemplo, no quinquénio 2014-2018, os subsídios e similares atingiram uma média anual de 6,6 milhões de euros, representando um pouco menos de 10% dos rendimentos totais.
Em 2019, já com sinais preocupantes nas contas, a CVP, então gerida por Francisco George, ex-director-geral da Saúde, recebeu um reforço de subsídios públicos, embora insuficiente para colocar os resultados líquidos em terreno positivo. Nesse ano de 2019, só os diversos Ministérios, sobretudo o da Segurança Social, transferiram mais de 4,7 milhões de euros para as contas da CVP, o que confronta com pouco mais de 3 milhões em 2018.
Mas os subsídios de todas as entidade públicas ainda foram bem superiores: 8,4 milhões de euros no total. Sem esse apoio extraordinário (quase mais 2 milhões de euros do que em 2018), o ano de 2019 teria sido catastrófico, bem pior do que os prejuízos de 931.497 euros então apresentados.
Com a pandemia, o peso do Estado fez-se sentir ainda mais nas finanças da CVP. Em três anos, entre 2020 e 2022, os subsídios de entidades públicas totalizaram quase 63,2 milhões de euros, ou seja, uma média de 21 milhões por ano. Só o Governo, propriamente dito, através dos Ministérios, canalizou quase 49 milhões nesses três anos. Por exemplo, no ano passado foram transferidos 20 milhões.
Mas um dos maiores “balões de oxigénio” da CVP acabou por ser, em 2021, também um subsídio da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho no valor de 12,6 milhões. Este subsídio surgiu no âmbito da candidatura da CVP, “em Julho de 2020, a um projeto financiado pela União Europeia com a Direção Geral para a Saúde e Segurança Alimentar (DG Santé)”, e tinha como objectivo concreto “aumentar a capacidade de testagem à covid-19 nos Estados Membros da União Europeia”.
Deste modo, a CVP pôde montar uma estrutura comercial, fortemente concorrencial, de venda de testes, que, na verdade, não lhe custaram nada. E assim, se em 2020 a CVP apenas realizou cerca de 107 mil testes à covid-19, no ano seguinte, após receber os 12,6 milhões de euros, conseguiu vender 849 mil testes. Esta capacidade de vender com alto lucro teve reflexos imediatos no valor das vendas desse ano: quase 82,6 milhões de euros, que contrasta com os 58,5 milhões no ano anterior. E isso, mais o reforço dos subsídios públicos, explica um desempenho elevado, com lucros de 18,9 milhões de euros.
Evolução dos subsídios doações e legados à exploração e das vendas e serviços prestados (em euros) pela Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)
O desempenho do ano passado não foi tão bom – descendo os lucros para 7,7 milhões de euros, apesar do aumento em mais 4 milhões nos subsídios públicos –, deveu-se em parte à redução no número de testes à covid-19. Em 2022, a CVP realizou pouco mais de 100 mil, grande parte dos quais concentrados no primeiro trimestre.
O histórico líder da CIP-Confederação Empresarial de Portugal, a que presidiu entre 2010 e Março deste ano, foi nomeado em Junho, mas tomou posse apenas em meados do mês passado, sucedendo a Ana Jorge, antiga ministra da Saúde de dois Governos socialistas, que ocupou a liderança da CVP a partir de Novembro de 2021. António Saraiva é também presidente do Taguspark e administrador da Global Media, empresa de media dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, entre outros órgãos de comunicação social.
A antiga governante acabou assim por apanhar dois anos muito favoráveis – depois do prejuízo de 2020, onde estão reflectidas perdas pela venda de uma participação na Sociedade Gestora do Hospital da Cruz Vermelha –, mas a descida dos lucros entre 2021 e 2022 dão sinais de que o “balão de oxigénio” trazido pelas receitas da pandemia pode ter-se esvaziado por completo.
A própria CVP reconhece no seu mais recente Relatório e Contas que “no decorrer do ano de 2022 a atividade (…) teve um decréscimo, apresentando em algumas atividades valores aproximados a pré-pandemia covid-19”.
Com efeito, analisando as demonstrações de resultados, o lucro bruto (antes de descontados juros, impostos e amortizações), diminuiu 11 milhões de euros em 2021 para 14 milhões de euros em 2022. As receitas totais desceram 18% para 101 milhões de euros. Note-se que em 2021, as receitas tinham aumentado 41% para 123,5 milhões de euros com o aumento de actividade devido à pandemia.
Evolução dos resultados líquidos (em euros) da Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)
Segundo a CVP, em 2022, as prestações de serviços desceram 22,7% para 63,3 milhões de euros “face ao ano anterior por via da diminuição de atividade essencialmente na área da saúde”. Por outro lado, os subsídios, doações e legados à exploração recuaram 25% para 25,4 milhões de euros devido a “protocolos específicos atribuídos em 2021 e atenuado pelo registo dos subsídios da Segurança Social nesta rubrica”.
Na área de “Emergência”, a CVP registou no ano passado um decréscimo superior a 25% na actividade, “justificado pela saída gradual de um contexto pandémico, período em que houve a necessidade de reforçar a capacidade de resposta nos serviços de emergência médica, nomeadamente por via da realização de testes covid e de transportes urgentes”.
Mas não é só o recuo das receitas e do lucro que provoca apreensão quanto ao futuro. O passivo aumentou 14,5% para 73,4 milhões de euros, o que gerou um alerta do Conselho Fiscal da instituição, indicando que a evolução do passivo deve merecer “uma atenção cuidada”.
Além disso, há desconforto com a incapacidade de a sociedade revisora de contas auditar as contas que, além da sede, englobam toda a rede de 159 delegações e estruturas locais da CVP.
António Saraiva com Ana Mendes Godinho, titular do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tem sido um dos principais financiadores da CVP.
O facto de as diferentes estruturas e delegações não terem uma contabilidade integrada num aplicativo contabilístico comum “condiciona a abrangência dos procedimentos de auditoria, bem como a validação das práticas de controlo contabilístico ao nível de cada uma das estruturas”, alerta uma nota do Conselho Fiscal no Relatório e Contas da CVP.
A sociedade revisora de contas, por sua vez, alertou que “o aplicativo contabilístico existente (SAGE ERP X3), abrange até ao momento apenas cerca de 55% do total de unidades que compõem o universo da entidade, sendo a contabilidade das restantes estruturas efetuada com utilização de outros aplicativos, na maioria dos casos com recurso a gabinetes externos de contabilidade, impedindo a integração automática da informação contabilística, a qual apenas é efetuada com referência ao final do ano”.
Indicou que esta situação “foi ainda agravada no exercício em análise, em que não foi assegurada a integração da totalidade das estruturas locais através do SAGE ERP X3, tendo-se optado, por razões relacionadas com a necessidade de apresentação de demonstrações financeiras dentro dos prazos legais estabelecidos, por proceder à integração da informação relativa a algumas estruturas fora daquele aplicativo informático”.
O primeiro-ministro, António Costa, com Ana Jorge, anterior presidente da CVP, numa visita.
O Conselho Fiscal também questionou, por outro lado, a opção de manter em caixa mais de 50 milhões de euros, os quais podiam ser usados para abater dívida ou para beneficiar do aumento das taxas de juro nos bancos.
Ao PÁGINA UM, a CVP evitou responder às questões mais prementes, preferindo destacar que “pela primeira vez”, a instituição “fechou atempadamente o relatório e contas”, acrescentando que “esta melhoria ao nível da contabilidade deve-se à aposta em reforçar a sua profissionalização, com vista a tornar a instituição mais sólida e eficaz, mas também valorizando o seu capital humano”.
E diz ainda que “foi precisamente nesse sentido que se assistiu, pela primeira vez na história da CVP, a um ajustamento salarial dos seus colaboradores”, o que, segundo a administração, “procurou equiparar os salários dos colaboradores da instituição aos da Administração Pública, uma vez que eram significativamente inferiores”. Saliente-se, no entanto, mais uma vez, que a CVP é uma instituição humanitária não-governamental, de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, com autonomia face ao Estado (embora estatutariamente com a obrigação de ser por si apoiada) em obediência aos princípios e recomendações do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Em todo o caso, a “ingerência” governamental é evidente, tanto assim que não se mostra possível a eleição do seu presidente, através de um Conselho Supremo, sem a concordância do Governo, que é quem formalmente nomeia o eleito, através de um despacho.
Ao PÁGINA UM, a CVP recusou detalhar quantos trabalhadores viram os seus salários serem aumentados ou qual o montante envolvido. Também não quis esclarecer se foram melhorados salários de trabalhadores com cargos de direcção ou gestão. Em todo o caso, os gastos com pessoal aumentaram globalmente quase 9% entre 2021 e 2022, passando de quase 43,4 milhões para 47,2 milhões de euros. Antes da pandemia, em 2019, os gastos com pessoal totalizaram 38 milhões de euros.
Sobre os alertas apontados pelos auditores, a CVP diz que se devem ao facto de as várias delegações da CVP utilizarem diferentes programas informáticos de contabilidade” e que “a CVP está a uniformizar o sistema informático, que, em breve, será comum a todas as estruturas”.
Já em relação ao elevado montante disponível em caixa, a CVP justificou ao PÁGINA UM que “as verbas que ficam em caixa destinam-se a programas específicos de apoio, não podendo ser alocadas a outros fins”.
Na segunda parte da sua entrevista ao PÁGINA UM, João Palmeiro, o histórico presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, aborda as polémicas parcerias entre os media e empresas e também entidades públicas, que têm colocado em causa a independência e credibilidade do jornalismo. Mas também há tempo para uma conversa sobre as maravilhas da imprensa e as suas histórias. Na verdade, a História da Imprensa é um mundo fascinante, que tem ainda muito para descobrir, e que levaria por certo a mais mil e uma conversas… Poder ler a primeira parte desta entrevista AQUI.
Nos últimos anos, tem começado a aumentar de forma massiva os conteúdos comerciais ou patrocinados, e as parcerias comerciais que muitas vezes são apresentados ao leitor com apoio da empresa X ou Y. E muitas com a participação dos jornalistas, mesmo tendo um contrato comercial por trás. E tudo isto não é claro para o leitor . Como é que vê isto para o futuro da credibilidade da imprensa?
Tenho uma visão muito clara sobre isso. Primeiro, é preciso, cada vez mais, haver provedores do leitor. Pessoalmente, tenho uma experiência de provedor do leitor. Aliás, eu não sou nem nunca fui jornalista, e aceitei ser durante 10 anos provedor de leitor do primeiro jornal regional digital que houve em Portugal, que foi o Setúbal na Rede. Exactamente para poder mostrar que se eu era capaz de o fazer, não sendo jornalista. Um jornalista fá-lo-ia com muito mais competência do que eu. Mas o provedor do leitor não tem que ser um provedor pela publicação. Quer dizer, tem que ser uma instituição a que as pessoas possam recorrer, e que, de uma forma rápida, possa esclarecer. E hoje, com o mundo digital, não há nenhuma razão para que não seja de forma rápida.
Qual modelo, em concreto, que defende?
Aqui [na Associação Portuguesa de Imprensa] temos defendido um modelo de Conselho de Imprensa, que seja uma espécie de um corpo de provedores de leitor, à disposição para esclarecer as pessoas. E que têm também, entre si, o objectivo de ir sinalizando, chamando à atenção e comunicando publicamente os casos em que há desvios, como aquele que está a dizer. Não podemos ficar à espera, em sociedades muito garantistas como a portuguesa, por exemplo, de processos longuíssimos de averiguações disto e aqueloutro. E não é isso também que a maior parte dos consumidores de notícias querem. Os consumidores querem saber: é verdade ou não é? Foi bem feito ou não foi? Se depois disso há um castigo ou não há, isso é com outro agente. Já é com a verificação.
Isso seria suficiente?
Temos essa visão de que o jornalismo exige cada vez mais a intervenção de pessoas que estão à disposição para verificar, e hoje em dia, com os meios que existem, isso pode ser muito fácil de fazer. Segunda coisa: os estatutos editoriais são a garantia daquilo que eu estou a oferecer. São como, nos medicamentos, as bulas, que ninguém lê mas que toda a gente devia ler antes de tomar um remédio. Por exemplo, lemos muitos estatutos editoriais que dizem: “esta publicação defende a Lei de Imprensa”. Não é isso o estatuto editorial. O estatuto editorial é a minha promessa de como interpreto exactamente os conteúdos que vou dar. E é também sobre isso, quando eu falo nos provedores dos leitores: não fazem essa função de uma maneira cega; têm de ir ao estatuto editorial, e é sobre ele que dizem “sim” ou “não”. E a ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social], que de vez em quando anda atrás dos estatutos editoriais, bem podia fazer um trabalho mais decente do que aquele que faz em relação a isso.
Falemos agora de contratos entre empresas de media. No PÁGINA UM temos revelado diversos casos envolvendo praticamente todos os grupos, envolvendo jornalistas e contrapartidas editoriais para execução de contratos de prestação de serviços. Alguns até incluem a possibilidade de pedir a substituição da equipa de jornalistas se as entidades não estiverem satisfeitas com os conteúdos. Ou então a definição de um número determinado de artigos sobre actividades de um centro de investigação universitário, como se viu num contrato com o Público. A questão é, garantimos que as notícias são verdadeiras, mas depois temos situações destas. E o leitor às vezes apercebe-se disso. Em que é que ficamos? Onde é que está a informação e a desinformação?
Os jornais sempre tiveram um problema muito grande – que não é de agora, é de sempre: há os jornalistas, e os outros. Os outros [departamentos de marketing], em muitos casos são pessoas que fazem contratos desses; que ninguém vê, e que escrevem lá coisas que não estão autorizados a escrever. Porque acham que isso os ajuda a vender melhor. Já fui responsável por coisas dessas; não dessas em concreto, mas por coisas nessa área em algumas publicações, e tinha que firmemente dizer: “vocês não podem falar como jornalistas” às pessoas que vendem e que fazem negócios. E a resposta que me davam sempre era: “ah, mas isso é que vende”. Ou seja, se eu for falar com um comercial da não-sei-quê, nem me ouvem, mandam-me embora imediatamente. Se eu for sugerir que aquilo que eu estou a vender é uma coisa que vai ser feita por jornalistas, que vai ter esse retorno maravilhoso que é a aparência jornalística, aí eu vou fazer um negócio.
E é isso que está ser vendido…
Eu sei. Agora, isso não tem uma definição. Por exemplo, esse último caso que falou, das universidades, às vezes têm objectivos tão simples como este: existe uma regra europeia que determina que se forem publicados artigos sobre ambiente, tenho uma diminuição de X por cento na minha pegada de carbono. E, portanto, esse tipo de publicações são altamente apetecíveis, porque eu faço um relatório ao fim do ano, e no ano seguinte tenho X notícias no jornal. E isso é qualquer coisa que eu vou vender aos outros. E quando os outros dizem: “mas essas notícias vocês não podem publicar”; eles dizem; “podemos, podemos, porque isso diminui a nossa pegada de carbono”. Este princípio foi mal transposto em Portugal, e eu tenho alguns jornais em cima de mim a dizer que estão a perder negócio porque não estão a usar esse benefício; porque o princípio foi mal transposto e, aparentemente, os serviços públicos só os aplicam à publicidade. Só quando a publicidade é a favor do ambiente é que fazem as tais contas para descontar; se forem artigos não fazem. Noutros Estados-membros não é assim, e a própria directiva europeia incentivava a que se incluíssem também conteúdos informativos. Nunca se diz conteúdos jornalísticos, mas conteúdos informativos. Aqui em Portugal, eu não faço ideia [como foi], porque segui muito esse processo durante 10 ou 15 anos, e depois de repente, de um dia para o outro, isto apareceu feito sem nos terem dado cavaco. Portanto, isso leva-me, outra vez, à minha ideia cada vez mais alicerçada: a questão fundamental é o acto jornalístico; temos de ser capazes de definir o que é o acto jornalístico e de ensinar aos utilizadores, aos que acedem, que uma coisa é o acto jornalístico e outra coisa é mera informação, por muito bem escrita que esteja. E tem que ser o utilizador a estar também preparado para fazer isto. Vai levar anos. Talvez demasiados.
Mas antigamente, sabíamos que havia apenas a publicidade, e depois passou a haver o conceito de publireportagem…
Porque a publicidade também evoluiu.
Sim, mas a publirreportagem era claramente a identificação. Não havia qualquer dúvida de ser publicidade escrito. Agora é uma ‘misturada’ enorme. Temos jornalistas a assinarem peças comerciais. E até há jornalistas que, de boa fé, fazem notícias sem saber que estão incluídas num contrato comercial.
Isso eu acho insuportável, não posso dizer outra coisa. É uma prática que durante algum tempo pode ajudar à sustentabilidade, mas que no fim, vai destruir a sustentabilidade; destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade comercial. Mas querem ver também outra coisa? O Instituto Nacional de Estatística (INE) fala em investimento publicitário, mas não o que é declarado pelas publicações, mas sim aquele declarado pelos anunciantes. E tem lá várias rubricas: imprensa, rádio, televisão, internet, eventos, outdoors. E depois, de repente, tem “outros”. E nos “outros”, está o terceiro maior investimento. O maior investimento é naturalmente a televisão – quase 400 milhões de euros –, o segundo já é a internet, com 203 milhões de euros, e depois os “outros” são quase 150 milhões de euros.
E o que é “outros”?
Exactamente. Andamos aqui desesperadamente, numa investigação com o INE, a tentar perceber o que é “outros”, sobretudo porque isto vem do lado dos anunciantes; não vem do lado dos meios. Reparem: isto são dados públicos, portanto não tenho problema nenhum em falar nisto. Em 2022, aquilo que se chama “imprensa” recebeu, segundo o INE, recebeu 27 milhões de euros de investimento. Mas do lado da informação remetida pelas empresas diz-se que a imprensa recebeu 72 milhões de euros.
Não bate a bota com a perdigota.
Só uma das empresas declara que, no sector de imprensa, recebeu 31 milhões de euros. Onde está? Quer dizer, eu confesso-vos – e peço desculpa de ser tão directo e tão bruto nisto – que estou muito menos preocupado com a transparência da propriedade do que em perceber isto. O que é isto? Quer dizer, eu vou a qualquer lado público e vejo as pessoas a olhar para mim: “coitado, lá vem ele, o presidente da API, os tipos estão quase a morrer, já quase não têm publicidade, aquilo é uma desgraça”… E realmente, quando eu olho, vejo 27 milhões de euros! Quando, há quatro anos, eram 54 ou 56 milhões de euros. Isto é uma catástrofe, é menos de metade. Mas depois, afinal do lado das empresas os números são outros…
Se calhar são as tais parcerias de que falavamos…
Estamos a tentar saber, porque achamos que a nossa obrigação compreender isto, porque só assim podemos contribuir para que as coisas melhorem.
Vou fazer-lhe uma provocação: julgo que está na presidência da API formalmente indicado pela Impresa.
Exactamente.
Pronto. Verificámos que nos últimos três anos, o caderno principal começou a publicar uma página denominada “Projetos Expresso”. Sabemos que são parcerias comerciais, com conteúdos assinadas por jornalistas com carteira profissional. Só durante a pandemia, em três anos, houve mais de 80 conteúdos apoiados pelo sector farmacêutico. Quando estamos aqui a falar na informação falsa ou verdadeira, também é legítimo perguntar: sem estas parcerias, o jornal teria outra abertura editorial? E de que forma essas parcerias podem condicionar a linha editorial. É legítimo pensar que se alguns temas não saem nos jornais, não é por ser informação falsa, mas porque poderiam afastar parceiros comerciais. Não tenho dúvidas de que grande parte das notícias do PÁGINA UM estariam nos outros jornais, e agora nem sequer são temas abordados…
Vamos ver. Eu não tenho grandes dúvidas de que a entidade que eu represento, no que diz respeito ao cumprimento das regras sobre a verdade, cumpre até à exaustão possível da capacidade humana. A outra questão está num problema que não é de hoje, que é a escolha daquilo que eu quero publicar ou não. Durante muitos anos, a escolha daquilo que se publicava ou não era a do director, que dizia porque não gostava ou não lhe interessava… Quer dizer, isto eram questões atendíveis, tendo em conta a forma como o director interpretava o seu papel com os seus leitores. Hoje, quer pela extensão possível do mundo digital, quer pelas dificuldades que o mundo do papel passou a sentir, tornou-se uma quadratura mais difícil de resolver. Naturalmente, acho que não devemos nunca tentar perceber aquilo que não foi publicado, temos de ter uma opinião com base naquilo que foi publicado. Porque aquilo que não foi publicado, sim, pode haver casos em que não foi publicado por pressões, mas a verdade é que numa sociedade plural e diversa, com vários órgãos de comunicação social, os interesses não podem ser todos tão coincidentes. Em Portugal, temos uma riqueza importantíssima, que são os jornais regionais e locais. Até temos um exemplo interessante, apesar de tudo, que é o da Igreja Católica: tem algumas posições claras, e que diz que disto não se fala, e que este caso não se publica.
Mas já temos casos de queixas de leitores por os jornais não cobrirem determinado assunto. Ou a questionar determinada abordagem. No Público, por exemplo, á habitual o Provedor do Leitor tecer várias críticas…
Mas o provedor está lá dentro do jornal, e portanto sabe, tem de saber, aquilo que é o objectivo e a disponibilidade do jornal. Uma das coisas com que me debato muito é olhar para a diminuição do número de páginas dos jornais. E digo sempre isto: “bom, eu ontem publicava 10 notícias, hoje só posso publicar cinco porque não tenho dinheiro para fazer mais, não é porque há uns senhores que me batem à porta”. Portanto, como é que eu, editor, estou preparado para dizer: “eu não quero publicar estas cinco, só vou publicar estas outras”? Ou “vou cortar todas a meio”?
A redução das notícias não é uma saída em desespero? Porque daqui a nada… Aliás, o PÁGINA UM nasce pela ideia de que as notícias vendem e podem fazer dinheiro, podem er valorizadas pelos leitores e não pelos anunciantes…
Eu sei. Mas eu tenho que ter um espaço de publicação. O espaço digital veio tornar mais fácil resolver este problema. Mesmo assim, ainda há uma escolha sobre o que é que se põe ou não põe no papel. E esta escolha não é igual em todas as publicações e na cabeça de todos os directores. Daí o grande esforço que estamos a fazer na transição para o digital através do Aveiro Media Competence Center, onde o objectivo é ver o papel e o digital como um todo; como a sua relação com os seus públicos. E depois, têm de se saber que há públicos que não tem acesso ao digital, e há públicos que gostam de ter o acesso às duas coisas; e há públicos que só gostam do digital.
A discussão entre o digital e o papel estará ao nível daquilo que a relaçao entre o diário, o semanário e o mensário, que se destinavam a leitores distintos. Até poderiam ser os mesmos, mas os jornalistas devem ser diferentes. O tempo de reflexão e de produção é completamente diferente. No início, as redacções do digital e do papel eram distintas. Hoje, um jornalista de um semanário em papel tem que fazer tudo a todas as horas, durante todos os dias. Portanto, a qualidade decai. O Público faz gáudio de fazer 150 notícias por dia no online. Não sei quantas delas são de agência ou quantas são de qualidade duvidosa. Mas o leitor apercebe-se disso.
Mas pegando nessa sua ideia sobre os diários e os semanários, é verdade. Mas reparem. Se analisarmos a imprensa regional, vemos que temos casos muitos interessantes: os jornais saíam três dias por semana, depois passaram a dois, e depois uma vez por semana. E encontramos sempre o mesmo padrão: a evolução da necessidade de ter jornalistas em sítios onde os jornalistas não podiam estar. Primeiro ponto. Segundo padrão: o conflito latente entre a personalidade do dono ou do editor do jornal, e do presidente da Câmara ou da Junta. Quantos mais próximos estamos, mais importância as coisas têm. Ao longo do tempo fomos caminhando para um jornalismo que, em muitas vezes, está mais dependente de situações pessoais do que de situações de influência política, social ou de dinheiro. Claro que existem algumas, mas são mais de situações pessoais do que aquilo que foram no passado, porque efectivamente as instituições não foram capazes de se distanciarem o suficiente para perceberem qual era o papel de cada um. Recentemente, um pequeníssimo jornal dizia-me assim: “eu quero ter cá uma jornalista a tempo inteiro, mas não lhe posso pagar; ela tem de trabalhar noutro sítio para completar o salário, e eu não lhe consigo dar uma carteira profissional, digam-me lá como é que eu resolvo isto”! Em boa verdade, atendendo a todas as regras e princípios, aquilo que eu tinha de lhe dizer era: “feche o jornal”. Depois, claro, estamos aqui a inventar, e dizer: “porque é que não faz assim ou assado”… Mas se eu lhe dissesse para fechar o jornal, provavelmente haveria alguém na terra a esfregar as mãos para ocupar aquele lugar, e fazer cobras e lagartos. É muito difícil, percebem?
Sobre o domínio da propriedade, que é controlada pela ERC, existe ou não necessidade de tornar essa informação mais transparente? E, já agora, como viu a novela da ERC sobre a nomeação do Conselho Regulador e do futuro presidente?
Sabe, eu como já sou suficientemente idoso, posso dizer algumas coisas como esta: quando vemos que um modelo de funcionamento conduz sempre às mesmas coisas, então estamos petante um modelo que não está bem. Ou seja, a substituição da primeira ERC levou um ano e meio. A substituição do segundo Conselho Regulador levou quase dois anos, e a do terceiro já vai na mesma. Independentemente da novela, é porque há qualquer coisa no sistema que impede que funcione. A 1ª Comissão da Assembleia da República que tem de fazer a nomeação dos quatro membros da ERC chegou ao dia em que fazia os cinco anos e escreveu na sua agenda “eleição dos novos membros da ERC”. E depois ficou à espera que a 12ª Comissão, onde os partidos têm de fazer as propostas e ouvir os candidatos, ouvissem os candidatos. Então, é preciso ir ver onde as coisas não funcionam. E onde é? Os dois maiores partidos dividem entre si – eu acho isto uma coisa injustificada –, as nomeações. Penso que devia ter sido feito um regulamento; não é como isto agora, que toda a gente sabe que é assim, e que toda a gente diz que não devia ser assim. Mas o problema está no quinto membro [da ERC, cooptado pelos outros quatro, para presidir], que não é nomeado oficialmente pela Assembleia da República, mas que os partidos não avançam sem terem o acordo em relação ao seu nome. Portanto, isto não funciona. Então, é preferível dizer assim: numa legislatura, um nomeia três e outro nomeia dois; e na legislatura seguinte trocam. Podíamos dizer que na primeira vez, ninguém sabia bem como é que se fazia. Na segunda vez, podia dizer-se que ainda estávamos a experimentar… Agora, meu Deus, à terceira vez só come quem quer.
Qual seria a solução? Vamos ter outra vez um sinal de estarmos perante uma decisão política?
Eu até acho que nem é uma decisão assim tão política, nesse sentido de política partidária. Será política, mas depois os partidos ligam muito pouco à ERC. Depois, a ERC entrega os relatórios anuais, normalmente 10 meses depois do fim ano… Já alguma vez assistiram a alguma discussão na AR dos relatórios da ERC?
Por acaso, tive curiosidade em ouvir a última, que foi há alguns poucos meses. A grande discussão foram questões laborais internas [risos].
Claro. Se fosse membro da ERC, apresentava lá o primeiro relatório, e da segunda vez que ia lá dizia: “estes tipos não querem saber disto para nada; quer dizer, isto não vale a pena, portanto toma lá qualquer coisa…”. Agora estar a ter trabalho e chatice por causa de uma coisa destas… Todo o sistema enferma deste problema. E pergunta-se: “porque é que os deputados não discutem?” Porque sabem que, na verdade, essa discussão não tem nenhum impacto. Portanto vão às questões como essas [questões laborais], que podem trazer alguma notícia. Acho que vai ser a lei europeia que vai poder mudar alguma coisa neste aspecto, porque isto no futuro, em termos da Europa, será completamente inaceitável. Não vai ser possível.
Mas voltemos à questão da propriedade dos órgãos de comunicação social. Sente ser preciso maior transparência sobre quem são os verdadeiros donos? E, para além dos accionistas, deve continuar a saber-se as dependências que existem, em termos de passivo, e quem tem poder decisório?
Para o bem e para o mal, só em 2019 ficou pronta a Plataforma [da Transparência dos Media]… Nem a Associação [Portuguesa de Imprensa], que convinha saber algumas coisas, conseguia antes saber algo sobre os accionistas e detentores do passivo. E na ERC, a Plataforma só em 2020 e 2021 começou a funcionar. À vossa pergunta, eu respondo que sim, tem de haver transparência. Não posso pedir um tratamento específico para este sector sem dar alguma coisa em troca. E o em troca é preciso dar informação aos cidadãos, a quem estou a pedir que me deem alguma coisa dos seus impostos, sobre quem, como, porquê e de que forma as coisas funcionam e são empregues. Em Portugal temos muito pouco o hábito de fazer isso, mas a transparência tem uma consequência. Não sei se se lembram, mas antes dessa Plataforma havia uma lista de umas 50 empresas de media que tinham de revelar alguma informação. E por que eram essas 50 e não eram outras? Em Portugal, no se gosta de discutir e analisar a regulação, e isso tem de ser feito. Acho que a confiança só existe quando há conhecimento, e às vezes para ter conhecimento, é preciso haver exposição. E essa exposição tem dee ser a mínima para que as pessoas possam ter confiança. Agora, quais são os limites dessa exposição?
Para terminar, há quantos anos está aqui na Associação?
Demasiados. Na direcção, estou há três décadas.
Em 30 anos, mudou muita coisa na imprensa, o digital apareceu em força… A situação financeira mudou e as tiragens desceram muito. Como vê hoje o jornalismo em comparação com o que era há 30 anos, e como antevê o jornalismo daqui a trinta anos? Falar em “daqui a trinta anos” é para dar esperança… [risos].
Olhe, vivi muitas vezes sem tempo para, verdadeiramente, ter uma percepção disso, mas julgo que vivi os anos mais interessantes e mais espantosos na mudança. Acredioto que daqui a 30 anos se dirá do que foi o jornalismo nesta nossa época. Por formação, e por uma quantidade de razões, fui habituado a dar um grande valor à visão histórica das coisas. E penso muitas vezes no jornalismo de há 100 anos, de como era o jornalismo nos outros séculos. Tenho a grande sorte do meu pai ter sido jornalista, entre o fim dos anos 20 e meados dos anos 40. Tenho memória daquilo que me contava, e da maneira como era o jornalismo; que eu consigo reconhecer hoje. Se o meu pai voltasse, veria que hoje o jornalismo em si não seria tão diferente como era na idade dele. Até porque, como foi um dos pioneiros da rádio em Portugal, eu vivi muito anos a ouvir muitas histórias sobre o jornalismo radiofónico, quando aquilo era tudo uma coisa que ninguém sabia muito bem para onde ia. Quando não havia dinheiro, quando era preciso inventar publicidade na rádio…
ET: Eram outros tempos…
No fim dos anos 1940, o meu pai escreveu uma das primeiras novelas radiofónicas comerciais em Portugal, em que Vasco Santana fazia de João Maria, que, na verdade, era eu. Eu sou o João Maria, era o João Maria na cabeça do meu pai. E o Vasco Santana fazia o papel principal, e a minha mãe fazia de cavalo. Relinchava e tudo – é verdade. Portanto, fui educado dentro desta visão, mas depois tomei uma decisão aos meus 14 ou 15 anos: “jornalista não serei nunca na minha vida”. Estava completamente bem informado, e era já nessa altura um leitor diário de jornais, o que era uma coisa única na minha idade. As pessoas hoje dizem: “os jovens hoje não leem”, e eu digo: “não sabe o que está a dizer”. Antigamente, os jovens não liam nada. Uma pessoa como eu era um caso único, extraordinário, resultante de uma educação em casa. Sou um ouvinte de rádio completamente compulsivo por causa disso. Mas praticamente não vejo televisão, e porquê? Porque a televisão só entrou na minha casa quando tinha 12, 13 ou 14 anos. Tenho um irmão 10 anos mais novo que fez tanto barulho que o meu pai lá comprou a televisão. Eu conto esta história para perceberem como olho para estas coisas, para trás e para a frente, nesta base.
E então o que vê?
Primeiro: acho que o jornalismo não vai acabar. Não se esqueçam que no fim da Primeira Guerra Mundial houve algumas tentativas de convenções internacionais para dizer o que era o jornalismo. No fim da Segunda Guerra Mundial houve a Declarações dos Direitos Humanos, que falavam do jornalismo, da liberdade de imprensa e de tudo mais. Estamos agora num momento em que é preciso fazer isso outra vez. Eu estive muito envolvido nas Nações Unidas, sobretudo em 2017 e 2018, numa tentativa de fazer crescer uma coisa destas, mas que acabou pura e simplesmente porque os russos não quiseram que fossem para a frente. Bloquearam a tentativa de lançar esta discussão de uma maneira diferente. Disseram-me também que os chineses tinham ido pela mesma linha, não tenho nenhumas evidências. Acho que, no jornalismo, vevemos reféns de práticas e de modelos que já não se adaptam mais àquilo que são os nossos dias… Se virem as leis de imprensa do fim do século XVIII, princípio do século XIX, percebem que o controlo do poder era feito através das gráficas. A propósito, neste momento, estou neste momento num trabalho que resulta de se ter descoberto, em três bibliotecas do Alentejo, jornais manuscritos. Quando fui ver a data desses jornais manuscritos, achava que eram de 1700. Mas não. São jornais entre 1889 e 1907, quando houve em Portugal as maiores leis de restrição da liberdade de imprensa, ainda no tempo da Monarquia. Portanto, aqueles jornais eram a forma de utrapassar essas restrições – eu, aliás, tenho chamado a esses jornais os blogues do século XIX…
E que passavam depois de mão em mão…
E eram copiados! Eu recebia o jornal, copiava um para si, outro para outra pessoa; vocês copiavam outros dois… Agora, que informação é que existe sobre isto? Muito pouca, porque estes jornais chegaram às bibliotecas há 10 anos.
E se calhar, nessa altura, esses jornais eram considerados desinformação… [risos]
Provavelmente. Só chegaram há 10 anos às bibliotecas, porque pertenciam a pessoas que tinham uns exemplares nas gavetas. Encontrei três em Estremoz, um dos quais teve pelo menos 15 edições. Há um que até tem banda-desenhada! E até tem letra cursiva, e cabeçalho, director, editor, preço!
Exisiam antes referências da existência de muitos desses jornais?
Nunca conheci. Fizemos aqui uma pequena investigação, porque infelizmente tudo foi feito com o tempo que sobra, que é muito pouco. Mas enfim, como já cá estou há demasiados anos, quero que o meu contributo final seja este. E aquilo que descobrimos foi que o Partido Comunista Português e o Pacheco Pereira têm um acervo de jornais clandestinos. Mas desses, sabe-se tudo. Estes, de que vos falo, não. E se se for e ver a Lei de Imprensa então vigor, percebe que estes tipos não queriam ser apanhados.
Ou seja, não havia referências da existência desses jornais da transição para o século XX na Biblioteca Nacional nem na Torre do Tombo…
Eu descobri isto no Alentejo, porque fizemos uma exposição sobre jornais transtaganos, e andei a correr as bibliotecas elentejanas a ver o que se encontrava. E um dia disseram-me “venha cá, que temos uma coisa para lhe mostrar”. Eu vi bibliotecários quase a chorar. E eu dizia: “mas eu preciso disto digitalizado”. E eles sempre muito solícitos. Portanto, um amor, um carinho, uma devoção. Por exemplo, em Beja houve um jornal destes que se chama Violeta, que até tinha banda-desenhada. Violeta é o nome do café onde o Eça de Queirós escreveu quando viveu em Évora. Ainda existe o Café Violeta. Mas nõ sei se o Violeta foi de facto um jornal de Évora, porque osexemplares que noschegaram pertenciam a uma família de Beja. Mas há outras coisas intrigantes. Por que raio enconytrámos três jornais deste tipo em Estremoz? Três! E há mais, tem um em Portalegre, que se chama o “O Leão da Estrela”! E este, depois até passou a impresso, sócom o título de “O Leão”.
Esse mundo é maravilhoso. Num dos meus romances [PAV, Corja Maldita], fiz metaficção, e, às tantas, há uma cobertura noticiosa de uns motins verdadeiros em Madrid na década de 1750 [motim de Esquilache]. E então coloco um jornalista que faz a cobertura desses eventos para o Occulto Instruido, mas esse existe, está na Biblioteca Nacional. No século XIX, houe muito jornalismo, de pendor político, alguns muito efémeros…
Encontrei um jornal em Alcácer, numa associação, escondido. E o jornal chama-se “Terra de Kant”. E eu olhei para o título e disse: “alto! isto não foi feito por um gráfico normal”. Depois estive a ver, tinha o número zero, e aquilo era do nosso fotógrafo principal, o José Manuel Rodrigues, que foi Prémio Pessoa [erm 1999].
É de que ano?
1981. Aquilo teve 10 ou 15 números, era mensal, e de repente passa a ser um jornal a cores, deixa de ser um jornal a preto e branco, e passa a ser um jornal a cores, igual a todos os jornais regionais que pode imaginar, e muda o título. O título passou a ser tipográfico e deixou de ser desenhado. E quem era o director do jornal? Era o Camilo Mortágua. Há uns tempos telefonei à Joana Mortágua, e disse-lhe que tinha de lhe pedir um favor. E ela: “então diga-me lá”. Eu disse-lhe que já tinha perguntado a toda a gente e ninguém se lembrava; “importa-se de perguntar ao seu pai?”. Ela disse que o pai já estava um bocado velhote, mas talvez a mãe se lembrasse. Era o fim-de-semana do primeiro de Maio, e ela ia passar o fim-de-semana com eles. E depois liguei-lhe na segunda-feira, e ela disse que nem um nem outro se lembrava. Acabou-se por descobrir que estes vonte e tal números tinham sido impressos numa tipografia no Porto chamada Aguadouro. Eu olhei para aquilo e disse, isto ou foi feito por uma criança num dia de inspiração total, ou então foi feito por uma pessoa que sabia o que queria transmitir. Isto é uma coisa que eu só sei que não é do Picasso, porque ele nunca fez uma coisa destas, e nunca tinha estado aqui, e não pode ter sido. Isto é verdadeiramente fascinante. Mas os jornais manuscritos, oiça… Eu agora tenho que ver outras bibliotecas ao longo do país.
Essas histórias que nos está a contar, poderíamos imaginar isso num período anterior…
Claro, mas não. São daquele período e a razão para mim é muito clara. Ando a chatear a Universidade de Évora, que estão sempre a dizer que querem escrever uma história do Alentejo, e u digo: têm aqui, vão aos jornais alentejanos, e a partir dos jornais do Alentejo escrevam pelo menos uma sinopse do que pode ser a história do Alentejo. Porque está aqui tudo o que é preciso.
Portanto, estamos perante um maná…
Sim, é fabuloso. Houve ao longo dos tempos, e ao mesmo tempo são jornais ondese vê que aquelas pessoas acreditavam mesmo que aquilo ia mesmo fazer alguma coisa para mudar…
Nome incontornável da História das últimas três décadas da Imprensa em Portugal, João Palmeiro conhece o sector da comunicação social como a palma das mãos. Em vésperas de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Imprensa, que representa 200 empresas de comunicação social cerca de 450 publicações, concedeu uma entrevista de fundo ao PÁGINA UM. O seu vasto currículo e experiência nacional e internacional, onde se destaca a liderança do Fundo ‘Digital Innovation Media’ da Google, permitem-lhe um conhecimento ímpar das potencialidades mas também fragilidades de um sector em contínua crise. Nesta primeira parte da longa entrevista ao PÁGINA UM, no seu último mês como presidente da API, Palmeiro mostra um olhar crítico à regulação dos media, tanto em relação ao funcionamento da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como face ao previsto regulamento europeu para os media, que está a ser finalizado. Mas a transparência das empresas de media, e o seu financiamento, bem como a problemática das fake news são temas que também aborda, sem fugir a qualquer questão.
Numa associação de imprensa, que abrange tantos sectores e diferentes plataformas de várias dimensões, como se consegue conciliar este, chamemos-lhe assim, “saco de gatos”? Ou não estamos perante um “saco de gatos”?
Primeiro, este é um sector altamente regulado, e isso ajuda a responder a algumas das questões, reconhecendo que, de outra maneira, seria praticamente ingerível. Se olharmos para os dados da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), existem cerca de 1.700 empresas inscritas como editores de imprensa. Dessas, existem 70 ou 80 que se chamam televisão de qualquer coisa, e, depois temos uns 50 que são uma espécie de serviços de programas. E, quando eu digo que este é um sector altamente regulado, quero dizer uma coisa que as pessoas se esquecem, muitas vezes: a liberdade de imprensa assenta nessa regulação. Por exemplo, a televisão não só é regulada, como é finita. Ou seja, não pode fazer televisão quem quer. Só faz televisão quem cumpre determinados parâmetros, quer em termos empresariais. Uma empresa deste sector é obrigada a ter 2,5 milhões de euros de capital social. E tem de haver disponibilidade por parte do Estado de dizer que existe uma ou mais frequências vagas, tem de se fazer um concurso onde aparecem outros concorrentes, e depois tem de se ganhar fazendo várias promessas de naturezas diferentes, desde informativa, cultural ou de entretenimento. Tal como a Constituição Portuguesa a descreve, a liberdade de imprensa é, assim, extraordinariamente difícil de ser reconhecida. Naquilo que estamos hoje a falar como imprensa – que é tudo o resto que não depende um alvará para ser utilizado –, esse é outro mundo todo, das cerca de duas mil empresas, da liberdade de se fazer uma empresa para editar qualquer coisa. Sendo que o editar pode ser digital, pode ser uma plataforma.
De facto, é um sector muito regulado, porque temos a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição. Temos, de facto, muitas leis. Mas, quando falamos da ERC ou da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), estas entidades têm instrumentos suficientes para dar garantias de que aquilo que está a ser-lhe transmitido é isento do ponto de vista da informação?
São coisas diferentes. A CCPJ é uma entidade que está entre uma Ordem e uma direcção-geral. Não é uma Ordem, porque a actividade jornalística não é autónoma, ou seja, um jornalista não tem uma autonomia igual à de um médico, que diz: “não faço”, ou “não digo”.
E devia ter essa autonomia?
Na minha opinião, não pode ter. A autonomia do jornalista reside no estatuto editorial, e quem tem o direito de estabelecer o estatuto editorial, e de o alterar, é o proprietário da publicação, que pode não ser jornalista. Portanto, há aqui uma disfunção que, por vezes, se torna esquizofrénica, entre quem tem o direito de dizer qual é o enfoque, e de que maneira as peças devem ser preparadas, e de quem faz as notícias, e a liberdade para o fazer.
Fazendo então um paralelismo com a Ordem dos Médicos: sabemos que um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou mesmo do sector privado, tem uma autonomia. E a própria OM tem ingerência na gestão do sector da Saúde. Mas há uma legis artis que um médico tem de seguir, e se não o fizer é responsabilizado. Esse modelo não poderia aplicar-se também aos jornalistas?
A primeira coisa que temos de perceber é que uma Ordem é uma associação profissional. A CCPJ não é uma associação profissional. E essa associação profissional [Ordem dos Médicos] resulta de uma decisão muito antiga, corporativa, do Estado Novo. Achou que, para não se meter em questões que tinham a ver com certas profissões, das quais precisava para sobreviver e continuar a implantar os seus pontos de vista. Assim, entregou a essas entidades profissionais a regulação das suas actividades. E a regulação dessa actividade começou, e ainda se mantém hoje em dia, na determinação de quem pode ensinar, quem pode fazer cursos, e como podem aceder. É, de facto, uma regulação total da profissão, mesmo sobre o elemento que estava a dizer: a autonomia ou a liberdade de um médico em ter a sua própria consciência.
Sim, mas, por exemplo, um pediatra, dentro destas regras da liberdade e da legis artis, não pode de repente decidir fazer uma operação ao coração.
Não, não, esses são os casos mais simples de resolver, porque a questão que está aqui, na imprensa, é sobre o acto de publicar. Pessoalmente, defendo – e a minha tese de doutoramento debruça-se nisso – o conceito de acto jornalístico. Fui à procura da definição, e comparei o acto jornalístico com o acto médico, e com o acto jurídico. E há uma diferença fundamental: enquanto o acto médico é sobre mim ou sobre si, quando vamos ao médico, já o acto jornalístico não vive só por si, integra-se num conjunto, numa publicação, num noticiário de rádio ou de televisão, ou num blogue. Ou seja, só por si, uma notícia não vale. A notícia só vale integrada num fluxo, seja do semanário, diário, o que nós quisermos. Faz parte de um fluxo. Esse fluxo tem um referencial, que é um título ou o “bilhete de identidade” da publicação, e tem um suporte e um enquadramento, que é o estatuto editorial. Um jornalista tem toda a liberdade e autonomia, igual à do médico ou do advogado, mas só até ao momento em que diz: “isto está pronto para publicar”.
Ou seja, a publicação não depende do jornalista…
A publicação, o direito de publicar, até legalmente, já não lhe compete. Por isso é que há um problema, que não querem discutir nem debater – mas que eu passo a vida a chamar a atenção: quando o jornalista trabalha numa redação, para um editor, e depois chega ao fim do dia a casa e é editor do seu próprio blogue. O que é que pode acontecer? É uma de duas coisas. Eu tenho discutido muito isto com o Sindicato [dos Jornalistas]. No princípio, o Sindicato não gostava de discutir. Hoje já estamos mais abertos. O jornalista pode escrever no seu blogue sobre o mesmo tema que escreveu no jornal de manhã, ou coisas diametralmente opostas ou diferentes, porque é aquilo que ele acha. Só que de manhã não as pôde escrever, porque não cabiam dentro do estatuto editorial da publicação. Ou, fez uma entrevista e usou no jornal 30% dessa entrevista, e depois agarra nos outros 70% e coloca-os no seu blogue. A questão é: quando ele se apresentou perante si ou perante mim para a entrevista, disse: “eu sou o Manuel, jornalista, ponto”, ou disse “eu sou o jornalista que tem o blogue ‘Coitadinha da Ceguinha’”, ou disse “eu sou o Manuel jornalista que venho do Diário de Penacova? É isso completamente diferente para mim, que dou a entrevista, porque eu estou a colocar o jornalista, não só na sua capacidade de pessoa que faz notícias, mas também num sistema de difusão e de divulgação que está aferido a um estatuto editorial. E é tudo isso que o estatuto editorial representa.
E como fica a CCPJ no meio disso?
A CCPJ foi a solução menos má, que foi possível encontrar, para a evolução do sistema anterior – que as pessoas já não se lembram –, que era o Sindicato dos Jornalistas. Era o Sindicato dos Jornalistas que passava as carteiras profissionais, porque no sistema corporativo, os sindicatos passavam as carteiras profissionais das corporações a que pertenciam [durante o Estado Novo]. E estavam incluídas numa espécie de um conselho da corporação, que, no nosso caso, era a Corporação de Cultura e Artes gráficas. E esse Conselho da Corporação tinha representantes de impressores, artistas, cançonetistas… Também tinham uma carteira profissional. A carteira profissional destes todos, que estavam nesta corporação, como os outros que estavam nas outras corporações, eram, por lei, passadas pelos sindicatos.
Isso mudou…
Quando o sistema corporativo acabou, os sindicatos – entre os quais o Sindicato dos Jornalistas –, continuou a passar normalmente as carteiras. Simplesmente, neste sector houve uma alteração que não houve nos outros sectores. Tivemos uma Lei de Imprensa e a Constituição, depois, que veio dar a esta actividade uma protecção especial, e às carteiras um significado e uma responsabilidade na sociedade completamente diferente das outras. Em muitos casos, as carteiras das outras actividades serviam para as pessoas dizerem que estavam vacinadas; para se servir à mesa tinha de se ter uma carteira profissional para se dizer que se tinha feito a BCG [vacina do Bacilo Calmette–Guérin], era o que as carteiras diziam. Não podiam dizer muito mais do que isso. E esta evolução, que as pessoas naturalmente se esquecem, fez com que, quando Portugal entrou na União Europeia, tudo isto tivesse de ser reformulado. Mesmo assim, a actividade dos jornalistas ficou esquecida. Lembrem-se, por favor, que a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas foi a última a terminar. Era como se os jornalistas estivessem fora da normal relação laboral.
Consta que aí, o seu fim, teve a ver também com interesses dos grupos de media, porque a Caixa era financiado por uma pequena parcela da publicidade…
Era também financiada por uma pequena parcela de publicidade, sim, que tinha a ver, sobretudo, com os anúncios nos jornais diários dos cinemas, e de outras coisas assim do género. Mas se houve algum interesse privado, não foi esse de certeza. [O adiamento na decisão de extinguir a Caixa, que ocorreu em 2012] terá sido uma boa vontade de respeito pela última presidente da Caixa dos Jornalistas, e terá sido isso que foi muito importante, com certeza, na época…
Está a falar da mãe do primeiro-ministro [Maria Antónia Palla]?
Se calhar, estou a falar da mãe do ministro da Justiça [António Costa], na altura…
Mas a Caixa até tinha excedente…
Sim. Aquilo que aconteceu foi uma coisa muito simples: a grande função social e de apoio que a Caixa dava foi substituída pela Casa da Imprensa, que teve um período muito difícil. Mas é muito interessante, porque é com o fim da Caixa de Previdência que a Casa da Imprensa se vê obrigada a tornar-se num verdadeiro apoio de solidariedade para os jornalistas: E hoje é uma instituição… Aliás, aqui na Associação Portuguesa de Imprensa temos um protocolo com a Casa da Imprensa, e todos os editores e suas famílias e seus empregados, sejam jornalistas ou não, beneficiam de todos os apoios que a Casa da Imprensa concede.
Regressemos à CCPJ…
A CCPJ é uma cooperação bipartida, mas em que o Estado não tem hoje nenhuma intervenção. Houve, durante alguns anos, a obrigação do seu presidente ser um juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Agora, os quatro elementos que representam os editores são obrigatoriamente jornalistas. E há outros quatro que são eleitos pelos jornalistas.
Mas antes podiam ter carteira profissional, mas nem todos os que eram indicados pelas empresas do sector tinham de ser jornalistas, podiam ser colaboradores ou equiparados.
De acordo com a lei, as carteiras profissionais, desde que válidas, são todas iguais. E isto é uma matéria que está em cima da mesa: Mas isso é a minha opinião, pessoal, que não é trazida para aqui. Mas todas as carteiras que são emitidas pela CCPJ valem exactamente a mesma coisa.
Falemos agora da ERC. Por vezes, é criticada por ter uma postura demasiado hostil para com a imprensa; outras vezes por ser demasiado benevolente.
Primeiro, não podemos olhar para a ERC sem olhar para aquilo que veio antes. A ideia da [concepção] da ERC era que fosse disruptiva em relação ao modelo da Alta Autoridade [para a Comunicação Social], que era um modelo de representatividade: os editores nomeavam duas pessoas, o Sindicato nomeava duas pessoas e os partidos políticos com assento na Assembleia da República nomeavam, cada um deles, um representante. E, depois, no fim disto tudo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomeava um juiz para presidir. Reparem: os juízes nomeados para aqui foram quase sempre juízes que vieram dos tribunais administrativos. Porquê? Porque, do ponto de vista do CSM, estas entidades são entidades administrativas independentes. Não são entidades para dirimir questões como a liberdade da imprensa, que não tem nada a ver com a Administração; são regras que têm a ver com direitos, liberdades e garantias, portanto, com a Constituição. Qual é a parte do direito administrativo que estão nestas entidades? São os registos e toda essa parte. E, portanto, nisso, essas entidades, melhor ou pior, sempre funcionaram.
Mas há um outro lado importante, o da regulação.
Como eu costumo dizer, há um pecado original, que temos de ir vê-lo, lá atrás. E o “lá atrás” é: estas entidades são a consequência da nacionalização da maior parte dos meios de comunicação social em Portugal em 1975. A seguir ao 11 de Março de 1975, houve uma nacionalização geral, da qual só escapou a imprensa regional, para além de um ou outro de âmbito nacional. Tirando isso, houve uma nacionalização total. Esta primeira matriz, da qual a maioria das empresas grandes em Portugal faziam parte, daquilo que era a coisa pública, eram geridas pelo Código Administrativo. Mas, na verdade, não eram, porque uma coisa que as pessoas nunca se lembram é do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas, em 1978-1980. Era igual, na estrutura, ao Contrato Colectivo de trabalho que foi feito para a Administração Pública. A mesma coisa, o mesmo tipo de carreiras e de jornalistas, de primeira, de segunda, de terceira. Onde é que vocês encontram isso? Na Administração Pública, onde há um técnico de primeira e de segunda. Portanto, é a mesma lógica. Os contratos colectivos que não eram de jornalistas, mas que eram dos outros trabalhadores, chegavam a ter 80 categorias diferentes, porque era o cozinheiro de primeira, de segunda, de terceira, o motorista de pesados… Há 10 anos tivemos de acabar com isso tudo, porque não fazia sentido, não tinha nada a ver connosco.
Houve que mudar isso.
Temos de ver que, nessa altura, o Conselho de Comunicação Social – que é o avô ou o bisavô destas entidades – convivia com o Conselho de Imprensa, que era uma entidade de autorregulação do sector, e convivia com uma coisa que eram os Conselhos de Informação, uma espécie daquilo que é, agora, o Conselho de Opinião da RTP e da RDP. E havia um Conselho de Informação para a imprensa, que tratava dos jornais do Estado, um para rádio e outro para a televisão. E, se formos ver o funcionamento e a matriz do funcionamento destas entidades, vai tudo parar ao Direito Administrativo. Em 2005 e 2006 – primeiro com o Governo do Durão Barroso e, depois, do Santana Lopes, quando era ministro o Nuno Morais Sarmento –, fez-se uma primeira tentativa de um novo tipo de contrato de concessão para a rádio e para a televisão, em consequência da directiva AVMS [Audiovisual Media Services], do sistema audiovisual e dos serviços multimédia. Por causa dessa directiva tiveram de fazer alterações na Lei da Rádio e da Televisão, e ao fazer essas alterações, tinham de atribuir à então Alta Autoridade para a Comunicação Social competências que, com a estrutura que detinha, dificilmente conseguiria cumprir. Então, foi criada a ERC na base de os ‘regulados’ não terem nada a ver com a regulação; estão fora. Abandona-se o sistema anterior, a representatividade dos sindicatos e das associações empresariais. Esses ficam de fora. E reduz-se a representatividade dos partidos com assento na AR a quatro representantes. E, depois, esses representantes deviam cooptar, entre si, uma quinta pessoa, que era o presidente. Este foi um sistema que derivava de estudos avançados na Europa sobre o que devia ser a regulação, e como se deveria organizar – não especialmente deste sector, mas em geral. Aplicado num país que tinha detrás toda esta tradição, resultou que, no fundo, os reguladores foram, uma vez mais, vistos como funcionários para executar tarefas administrativas.
De qualquer modo, a ERC já existe há muitos anos. É efectivamente um regulador sem os regulados, e tem sobretudo um peso político-partidário muito forte…
A que se junta uma outra coisa, que é um sistema de financiamento completamente idiota. Idiota é a palavra. É idiota, porque é um sistema de financiamento tríplice, que faz com que os únicos que pagam, verdadeiramente, são os regulados. E que faz com que – voltamos à matriz administrativa –, muitas vezes, a ERC está mais preocupada em sobreviver, arranjando maneira de aplicar as taxas; e nós aqui percebemos isso…
PAV: Está a falar também das multas?
Não, primeiro fazer receber as taxas, e depois as multas. Percebemos isso quando temos aqui entidades reguladas com reclamações sobre: “ah, estão-me a dizer que o título que eu estou a imprimir agora é amarelo e antes era azul”. Ou: “Ah, e que o título no telemóvel sai mais apertado do que aquilo que está lá no não-sei-quê”. Mas em que mundo é que nós estamos? Mas isto é o Direito Administrativo a funcionar, é a deriva administrativa, com a falta de dinheiro. Porque o único sistema que funciona, de facto, no financiamento da ERC, são as taxas que pagam os regulados. A parte do Orçamento do Estado está sempre sujeita a tranches e a duodécimos, e até antes da troika já era assim. E há a outra parte da ANACOM, que está sempre guardada pelo ministro das Finanças. Na verdade, a maior influência político-partidária que existe em relação à ERC é no financiamento, porque é onde o político Governo tem, de facto, uma arma para encostar à parede a independência e a autonomia das pessoas que estão no Conselho Regulador. Se não têm para pagar aos seus funcionários, o que é que lá estão a fazer? A ERC nunca foi capaz de estabelecer os mercados preferenciais, porque não consegue pagar os estudos indispensáveis para estabelecer os mercados preferenciais. Ao não os estabelecer, tudo o que tem a ver com questões de posição dominante, de concentrar muita publicidade, etc., pode ser o que eles dizem; como pode ser o contrário.
Aliás, há pouco tempo, a ERC fez uma análise sobre a distribuição dos montantes da publicidade institucional do Estado no âmbito da pandemia, e chegou uma vez mais à conclusão de que os órgãos de comunicação social regionais estavam a ser preteridos em relação aos nacionais, e de que as televisões estavam a receber mais do que deviam. Mas detectam isso, e depois não acontece nada. As situações repetem-se passado uns tempos, não é?
Existe um relatório que fizemos aqui na Associação, nessa altura, para a ERC, que permitia que pudesse ter dito coisas muito concretas e precisas… Poderia ter tomado uma iniciativa no sentido de melhorar a lei da publicidade institucional do Estado. Não o faz porquê? A ERC não faz supervisão.
Ainda sobre a ERC. Faz sentido haver uma Lei da Transparência dos Media, com um portal gerido pela ERC, e depois haver a possibilidade de pedir confidencialidade dos dados financeiros e económicos?
Quando era presidente da Confederação de Meios, quando foi a transição para a TDT [Televisão Digital Terrestre], fui nomeado, pelas três televisões, o negociador da TDT com a ANACOM. E, a certa altura, na história do concurso – que foi ganho na altura pela PT para os sistemas radiantes para a TDT, etc., –punham-se algumas questões sobre os preços, e sobre a forma como a própria PT queria tratar de elementos que achávamos que eram fundamentais para o negócio, como as boxes e outras coisas do género. E fizemos um requerimento à ANACOM sobre esses dados, e quisemos ver os relatórios que a PT tinha feito. Recebemos 30 dossiês, dos quais 29 tinham as páginas em branco. Diziam “informação não disponível na base dos princípios do sigilo”. A mesma coisa aconteceu-nos com os CTT, quando a ANACOM determinou, talvez há 10 anos, que passasse a haver uma avaliação da qualidade da distribuição postal, e que os CTT tinham de contratar uma empresa independente, que todos os anos fazia a avaliação do serviço. Nós sabíamos que as empresas que contratavam eram de antigos funcionários dos CTT. Também dissemos que queríamos ver os relatórios. Não era 90% que veio em branco, mas cerca de 70% veio em branco.
Mas insisto na questão: há uma legislação sobre a Transparência dos Media e depois pode haver partes confidenciais?
Tenho, como se diz, “mixed feelings”. Porque a Lei da Transparência portuguesa é mais exigente que a lei da CMVM para as empresas. Ou seja, exige mais informação e informação mais detalhada do que a CMVM exige às empresas que estão em bolsa. Portanto, é de facto uma lei muito detalhada do ponto de vista da informação para o cidadão.
Mas por que motivo se fazem leis fantásticas ou exigentes, ou demasiado exigentes, e depois, de uma forma administrativa, porque foi a ERC que fez um regulamento, se criam excepções?
Não, não, não é a ERC que faz o regulamento. O regulamento vem do Direito Administrativo.
Está previsto na lei que cabe à ERC fazer o regulamento sobre os indicadores financeiros e a possibilidade de confidencialidade [Regulamento nº 835/2020]. Às tantas, com as excepções aniquila-se o princípio da lei…
Eu entendo a ERC, na sua recente proposta, que esteve em consulta pública, quando diz que as empresas cuja actividade principal não é a de editor, só têm de dar informação quando a actividade jornalística pesa mais do que 10% da sua actividade. Acho que isto é injusto, por uma razão simples: até 2000, 2001, a Lei de Imprensa, e o regulamento dos registos, dizia que qualquer empresa se podia inscrever como empresa editorial. Qualquer empresa. Portanto, nós tivemos aqui associados como a Siemens, a Ordem dos Advogados. Edita uma revista, inscreve-se na ERC e depois é nosso [associado da API]. A partir de 2000 ou 2001, houve uma alteração aos registos, e os registos dizem que caducam todas empresas que não têm como actividade principal a de editor, mas, no entanto, os registos das publicações continuam válidos. E as empresas proprietárias continuam a ser consideradas empresas editoriais.
Ainda têm os registos das publicações válidos.
Isto quer dizer – e temos tido aqui vários casos – que uma empresa que estava registada e tinha uma publicação periódica, à qual lhe foi cancelado o registo, continua a sê-la, do ponto de vista da edição da publicação… Essa mesma empresa, no entanto, se depois quer editar outra publicação, tem de criar uma empresa à parte para a publicação nova. Aquilo que respondemos foi que as empresas que estavam registadas antes da alteração devem ter um tratamento diferente daquelas que se registaram depois. Porque depois da alteração, não é possível haver empresas editoras que não tenham como actividade principal a edição. Portanto, faz todo o sentido dizer que só se tiver um peso ínfimo não indicam os dados. Enfim este é um sector muito regulado, mas mal regulado. Mal no sentido em que a regulação foi sempre feita para resolver ou problemas que nos foram postos por fora, ou problemas de evolução tecnológica.
Mas quando estávamos a falar na confidencialidade dos dados ou de terem de indicar, não nos referíamos a entidades que claramente não têm actividade jornalística, como, por exemplo, as Ordens profissionais ou os partidos que têm publicações, e que estão no Portal da Transparência. Estávamos a pensar em grupos de media – e houve casos polémicos abordados pelo PÁGINA UM –, que tentam esconder algumas dependências externas ou dívidas. Aí, qual deveria de ser o critério? Um critério em termos de dimensão do volume de negócios ou algo do género, ou deve ser o tal critério de 10% acima disto ou 10% acima daquilo?
A dimensão das empresas que estão inscritas na ERC é um dos maiores problemas para a subsistência do sector, para o desenvolvimento e a transição para o digital e, do meu ponto de vista, para a organização da regulação. De acordo com os dados da Europa e a classificação das empresas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], temos uma grande empresa de media… Uma, neste sector da imprensa. Depois, temos 54 ou 56 médias empresas. E depois, todas as outras mil e não sei quantas são pequenas ou microempresas.
A grande, será a Cofina, e depois o grupo Impresa?
Sim, mas a Impresa, não a holding, porque a SIC é uma empresa separada. A TVI não tem imprensa, portanto não entra nesta linha. O maior drama deste sector é que, neste momento, cerca de 25% das suas empresas não perde dinheiro e há 75% que perde. Mas os 25% que não perde dinheiro, não perde porque está ali nos 0%, 0,1%, 0,2% [de rentabilidade]. E nos 75% em que se perde dinheiro, há gente a perder muito dinheiro.
É normal que grande parte do sector esteja em constante crise e em constante défice?
A maior parte das empresas são pequenas ou microempresas, e para essas as regras são completamente diferentes, quer na gestão quer na forma como estão no mercado. O resultado é, depois feito a partir dos papéis que dão; e os papéis não têm lá essas minudências de relação. Por exemplo, uma das coisas que nos preocupa muito, neste momento, é o projecto europeu de regulação para a área dos media, que prevê, desde o início, que as microempresas não sejam reguladas. Portanto, isto quer dizer que 80% das empresas que estavam na ERC, desapareceriam da ERC. Depois, como é que isso se compagina com a lei portuguesa, com estes anos todos em que estiveram na ERC a pagar uma taxa. Quer dizer, enfim… Este é o primeiro aspecto. Segundo aspecto: há um movimento muito forte europeu de colegas de outras associações que querem também tirar as pequenas empresas. Isso, de repente, faria com que em Portugal haveria, para regular, menos de 100 empresas neste sector. Se calhar, era aquilo que um sector desta dimensão em Portugal deveria ter. Só que não pode perder a riqueza que é a diversidade e o pluralismo de todos os outros. Não sei como é que isto vai acabar. As microempresas estão, desde o princípio, na proposta da Comissão.
Mas essa regulamentação comunitária está concluída?
Não está ainda concluída. Já está muito avançada nas votações no Parlamento Europeu e, quer a Presidência [do Conselho Europeu] sueca, em curso, quer a presidência espanhola – que vem a seguir –, querem fechar estes processos antes de entrar no ano eleitoral, em 2023. Ainda por cima é um regulamento, portanto não tem a mesma latitude de uma transposição, que poderia determinar que as microempresas ficavam excluídas nos próximos 10 anos.
Será a ERC que terá de tomar conta de uma série de novas regras que estão previstas?
Não é só isso. A ERC vai ser integrada num regulador europeu. Quer dizer, é uma coisa completamente diferente que se vai passar.
Um bocado como o Infarmed [em relação à Agência Europeia do Medicamento]?
Sim, e com a ANACOM, e com todos os reguladores. Vão ser integrados num regulador europeu, que já existe, que se chama a ERGA [European Regulators Group for Audiovisual Media Regulators], e que já existe como associação de reguladores deste sector. Habituaram-se a trabalhar uns com os outros, mas vai ser uma mudança imensa. Agora, a questão é se ficam de fora uma quantidade de microempresas e se vingar a ideia das pequenas empresas… Eu até admito que estamos num movimento em Portugal de médias empresas se tornarem pequenas ou microempresas, para fugirem à regulação.
E quais serão as consequências disso? Fala-se muito na desinformação, no rigor informativo e na forma como agora começam a aparecer conteúdos que estão ali num misto entre comercial e jornalístico. Como é que depois isso vai funcionar em termos de regulação? Qual será a entidade externa que estará ali a proteger o leitor?
Teoricamente, as microempresas deixam de ser consideradas como empresas que podem editar uma publicação periódica, seja digital, papel ou o que for. Isto contraria a Constituição Portuguesa, que diz que ninguém pode ser impedido, por razões administrativas, desde que cumpra com os registos necessários. Por outro lado, toda a História da legislação portuguesa sobre comunicação social, desde os anos 1820, teve sempre como principal objectivo determinar como é que era feito e verificado o registo. E depois, quem é que decidia…
Mas num cenário de uma empresa deixar de estar sob regulação, significará que deixa de poder editar?
Não. Pode editar, mas vale é a mesma coisa que um boletim [risos], ou qualquer coisa que é distribuída. Quer dizer, não tem protecção específica.
Quer queiramos quer não, o facto de um órgão de comunicação social estar registado na ERC, de certa forma dá um estatuto diferente…
Dá uma responsabilidade, e dá uma obrigação de cumprimento de regras deontológicas. Cumpra-se ou não.
Se há então esse “risco” de pequenos órgãos de comunicação social poderem ficar desobrigados das regras da ERC, mas também ficam sem o seu cunho. Porque, na verdade, o facto de um jornal poder ser alvo de uma entidade com poder regulador, dá-lhe também uma responsabilidade…
Exactamente, e permite-lhe exigir um respeito de determinados princípios que têm como base a liberdade de imprensa
Portanto, não vê que este novo regulamento seja favorável para o sector.
Acho que o regulamento, da maneira como está, foi muito feito em cima do joelho em Bruxelas, e de modo a ficar pronto a tempo antes das eleições. Não se pensou, não se maturou o suficiente. Nós, em Portugal, temos este problema, mas a Espanha tem um problema completamente diferente. A regulação em Espanha pertence às regiões autonómicas, e não têm regulador nenhum. Zero regulador. Vão ficar dependentes do regulador de Bruxelas de um dia para o outro. Ainda é mais complexo. Agora, o problema deste tipo de coisas é não olharmos para o que ele significa realmente. E esta mudança, que a Europa está a fazer, tem uma base. E foi dita logo pela Comissão desde que tomou posse: temos de estruturar os media europeus de uma maneira forte, organizada, e para que possam concorrer no Mundo inteiro, transmitindo os pontos de vista e as visões europeias sobre os temas mais importantes e mais profundos. Quer dizer que quem tem uma dimensão hiper local, não faz parte deste discurso.
Prevalece o europeu, deixa de lado o local…
E, na maior parte dos países da Europa, porque houve guerra, destruição e fronteiras que foram deslocadas, é muito recente a organização e a implantação dos órgãos de comunicação social. Portanto, já é feita numa perspectiva de uma certa dimensão. Em Portugal, não estamos tal e qual como estávamos em meados do século XIX, porque não tivemos guerra, nem cataclismos… Neste momento, o que pode acontecer é haver um empurrão para um crescimento do acordo do tamanho das empresas. Convencidos de que isto era um benefício, por volta de 2006 e 2007, pedimos ao Governo, e o Governo criou, um apoio à cooperação e ao desenvolvimento empresarial. Mas fica quase sempre deserto. Ninguém concorre a isso, quase. Depois, há muitas razões, na CCDR [ Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] do Norte pedem isto, e na do Sul já pedem aquilo… Há razões dessas que nós conhecemos. Mas, na verdade, não podemos dizer que haja um fluxo das empresas a dizer: “vamos lá aproveitar isto, que o Estado vai pagar aqui alguma coisa para nós aprenderemos a cooperar e a viver uns com os outros”.
Fala-se muito da questão do serviço público da imprensa. Ou seja, como o mercado não consegue ou não quer pagar esses serviços que a comunicação social dá, o Estado deve apoiar. Recentemente, por causa da pandemia, houve critérios um pouco estranhos na atribuição de verbas à comunicação social. Concorda com um modelo de financiamento por parte do Estado? E se sim, esse financiamento deveria ser regular ou apenas pontual, e com que critérios?
Para o bem e para o mal, a Constituição diz assim: serviço público é rádio e televisão, ponto. Por aí, não vamos lá. No entanto, a Lei de Imprensa diz que compete ao Governo acompanhar e verificar as condições económicas do sector, por forma a que essas condições económicas não possam pôr em causa o pluralismo e a diversidade. Portanto, não é pela evocação de que é um serviço público, mas é pela obrigação do Estado, e isso leva-nos aos apoios. É isso que permite os apoios, quando a Europa [União Europeia] impede apoios estatais em sectores.
Quando falo de serviço público, estava mais a pensar no conceito de bem público do ponto de vista da teoria económica. Ou seja, o Estado intervir quando um bem não é suficientemente valorado pelo mercado, mas que é fundamental…
Sim, eu sei, eu sei. Eu digo sempre que se a Constituição não dissesse “serviço público é este”, poderíamos falar assim. Acho que uma vez que a Constituição diz isto, para não haver confusões, é melhor não falarmos de serviço público nem de serviço ao público, porque são coisas confusas. Agora, por outro lado, como a Lei da Imprensa diz isto, e a própria Constituição também reconhece, o Estado tem de se preocupar com esse lado; é isso que permite ajudas do Estado em Portugal. Mesmo assim, ainda temos aí muitos problemas e muitas questões. Agora, a Comissão e o Parlamento Europeu, nos últimos anos, têm recomendado aos Estados que apoiem a imprensa, através da publicidade institucional. Mas o problema da publicidade institucional do Estado é que não tem um significado igual em todos os Estados-membros da União Europeia.
Varia de país para país…
O Estado que tinha este conceito mais avançado era a França, depois a Itália e a Inglaterra. O Governo português seguiu sempre um modelo muito próximo do modelo francês, e portanto, há um sistema de apoio. Depois, criou-se um sistema da publicidade institucional do Estado. Esta publicidade representa, em globo, que o Estado seria o maior investidor publicitário em Portugal. Seria, não: é o maior investidor publicitário em Portugal. E não estou a falar de uma outra coisa, que são as publicações obrigatórias e os anúncios. Isso é algo que, para algumas publicações, conta muito. Quer dizer que vivem com base nisso e têm imensos problemas por causa do código das aquisições públicas [Código dos Contratos Públicos], porque estabelece limites que muito depressa são ultrapassados. A publicidade institucional do Estado, se se cumprissem as regras todas que estão na legislação, deveria funcionar de uma maneira equilibrada. Qual é o problema? A lei foi feita numa altura, na década de 1980, em que eram as agências de publicidade que compravam o espaço para as campanhas que produzia. Não havia centrais de compras.
E as coisas mudaram..
Hoje, os departamentos de Estado têm toda a liberdade de fazer concursos, na base da lei da publicidade institucional, ou só para a criatividade, ou para a campanha completa. Aqueles que fazem só para a criatividade, depois vão ter de fazer outro concurso para comprar o espaço para aquela campanha. E a este concurso, só concorrem as centrais de compras. Os que fazem para uma empresa que oferece tudo, essas empresas, na maior parte dos casos, vão comprar o espaço às centrais de compras. Isto quer dizer que é muito difícil, no procedimento administrativo da compra, distinguir a forma como essa compra influencia, de facto, a distribuição da publicidade do Estado. Os franceses, no fim do tempo do Mitterrand, inventaram uma lei – que deu pelo nome do então ministro das Finanças, o senhor [Michel] Sapin – que obrigava a que, quando o Estado comprava publicidade, as facturas dessa publicidade obedecessem a um descritivo específico, em que havia o preço da publicidade, que é o preço que está na tabela de publicidade, e depois tinha descontos. Toda a gente é livre de fazer os descontos que quer, mas os descontos estão lá. E depois dizia uma coisa: tudo paga IVA. Ou seja, o desconto paga IVA? Paga, sim senhor. Portanto, o desconto pode ser feito, mas tem de ficar claro e tem de se saber a razão desse desconto, e, em última análise, constitui fiscalmente um crime não mostrar os descontos. Bom, isso depois caiu em desuso, e já num dos Governos de Macron, que chamou outra vez o senhor Sapin para ministro das Finanças, repôs-se a lei, há três ou quatro anos. É evidente que não foi tal e qual, como no final dos anos de 1980, com o Mitterrand, mas repô-la em vigor já com adaptações actuais. Portanto, há formas, e há formas actuais – não me venham dizer que são só antigas – de tornar mais transparente as compras da publicidade institucional do Estado.
Mas o apoio do Estado deve ser só através da publicidade, ou pode haver mesmo um mecanismo de apoio automático?
Olhe, nós aqui na Associação temos estudado isso até à exaustão, quer comparando com outros países, quer comparando com a realidade portuguesa. E vou dizer-vos: o mecanismo que salvou a imprensa portuguesa, entre 1983 e 1985, quando houve o primeiro default, em que esteve cá o FMI, foi o subsídio ao papel, que é um subsídio de que toda a gente diz mal. Toda a gente diz que havia aldrabices, roubalheiras e 30 por uma linha. Mas se olharmos efectivamente para a situação, e para o que aconteceu a partir daí, nos anos de 1987 a 1989, que foram anos equilibrados para a imprensa, foi isso que a salvou naquela altura. Portanto, a partir daí, na Associação estabelecemos um programa que se chama PECSIR [Plano de Emergência para a Comunicação Social, Imprensa e Rádio], e já vamos para aí no PECSIR 4 ou 5, porque o vamos adaptando. O modelo era um pouco o mesmo, só que o subsídio não era dado ao papel, era dado às leituras ou às vendas.
Até porque agora praticamente já nem temos imprensa em papel. Aliás, por exemplo, o Público já é maioritariamente um jornal digital, e até o próprio Expresso está nos 50-50 entre papel e digital…
Sim, tem havido uma adaptação, claro.
Através da contabilização da assinatura digital…
Eu costumo sempre dizer que as assinaturas em digital – a palavra “assinatura” – são a prova de que este sector pensa muito pouco e investe muito pouco na universidade ou nos estudos sobre esse tema. Porque eu não compro assinaturas nenhumas, eu compro acessos. E é isso que nós devíamos dizer. Os acessos é que contam, não são as assinaturas. As assinaturas era uma coisa que havia no tempo do papel, não é? Em que nós transferimos, em termos de vocabulário, a palavra “assinatura” de outras actividades que tínhamos.
Em todo o caso, continua-se a falar e a contabilizar as assinaturas. Ainda há tempos, no Portal Base surgia certa Câmara Municipal a comprar umas centenas de assinaturas digitais, durante seis meses, ao Público.
Pois, eu não sei o que isso é. Eu luto sempre. E em situações como estas, digo sempre: não há assinaturas, aquilo que há são acessos. Até porque aquilo que o Governo é obrigado a preocupar-se, face à Constituição, é do acesso dos cidadãos à informação. É isso que lá está escrito! Portanto, são acessos pagos, mas são acessos. Temos na Associação acompanhado alguns projectos que têm tentado resolver isto. Um projecto, não sei se já ouviram falar, o Pay per View, que era um projecto em que existe uma transacção de acessos, e depois quem tem o acesso só tem de determinar o tempo em quer o acesso. Nesse tempo tem a faculdade de dizer: “eu pago”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que gosto”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que leio”, ou mesmo “eu só pago quando tenho um artigo que vou distribuir aos meus amigos”. E então isto obriga-me a pagar. Portanto, tem estas possibilidades todas. Em qualquer circunstância, são acessos. Quer dizer, a pessoa inscreveu-se, digamos assim, para através de uma aplicação poder ter acesso a publicações e, depois, a publicação é que determina: “não, eu só dou acesso se me pagares tanto”, ou “eu dou acesso desde que dês qualquer coisa”. Mas tem o acesso.
Regresso à pergunta inicial: advoga que se adoptem modelos de financiamento mais constantes por parte do Estado?
Se calhar estou há demasiados anos nesta cadeira, e, portanto, é o que os meus filhos me dizem quando discuto isto com eles… Por vezes, o facto de já ter tentado tantas vezes determinadas soluções, leva-me a dizer: “essa já não vale a pena”. Todas as soluções que se baseiam no princípio de dizer às pessoas: “olhe que a liberdade de imprensa não é uma coisa adquirida, é preciso fazer alguma”, batem sempre na parede. Sobretudo as gerações mais novas, acham que a liberdade de imprensa é como o ar, quer dizer, está aí, portanto, porque é que eu tenho de me preocupar com isso? Isto depois tem a ver com a desinformação e todas essas coisas: não tem havido maneira suficientemente forte de chamar a atenção para isso. Portanto, tenho defendido que, de um lado, temos a publicidade institucional do Estado, e do outro lado, isenções fiscais. Estas são as ferramentas seguras para que não haja no meio disto uma tentativa de “eu dou mais a este do que dou àquele”, e de começarmos a discutir coisas intermináveis. Como, por exemplo, estamos agora a discutir por causa da transposição da directiva dos direitos de autor, que é: “como meço aquilo que eu ganho ou não ganho?”. Eu não meço nada, quer dizer, não tenho capacidade para medir nem para analisar. Mas se me perguntarem, eu também não tenho dados para lhes dar [risos]!
Vemos, por exemplo, casos de relações de empresas de media com autarquias, como se viu recentemente com a Câmara de Gaia… Não era melhor haver uma forma de financiamento e apoio ao sector que não passasse por estas “parcerias comerciais”, que acabam sempre por beneficiar os mesmos, os grandes grupos?
Sim. A publicidade institucional do Estado, de um lado, que é investimento, e é investimento que tem a ver com o mérito de quem tem ou não tem leitores, de quem tem ou não tem pessoas que vão ver. E, do outro lado, isenções fiscais, que essa é igual para todos; os que têm mais negócio têm mais, e os que têm menos negócio têm menos.
Mas através do IRC, essa vantagem é quase irrelevante, porque grande parte das empresas paga pouco ou nem paga, quando tem prejuízo…
Não, mas há isenções fiscais em relação à publicidade. Por exemplo, a majoração da publicidade, em relação aos investidores de publicidade. Não estou a falar do Estado, estou a falar dos privados. Quer dizer, você investe 100; no entanto, nas suas contas põe lá que investiu 150 em publicidade.
No caso da imprensa, porque não haver um apoio em função do número de jornalistas ou de notícias? Mas notícias produzidas em exclusivo, ou seja, não é aquilo que acontece agora, que é uma notícia feita por uma agência, e depois temos o churnalism…
Não sou muito fã dessa ideia, por causa da contratação colectiva de trabalho. Só por isso, não sou muito fã dessa ideia. Eu sou um defensor – vencido neste sector, porque a maior parte das pessoas não pensa como eu, e ainda bem – de que não é possível avaliar jornalistas como se avalia outro tipo de trabalhadores. Não é possível. Como é que eu avalio os jornalistas? É que esse modelo levaria a isso. Estamos a seguir há alguns anos, com muito interesse, uma situação que existe na Madeira, que resultou de uma luta que tivemos durante anos contra o Alberto João Jardim [presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015] por causa do Jornal da Madeira, que era subsidiado pelo Governo Regional. Tivemos uma luta que meteu Presidentes da República, quase secretários-gerais das Nações Unidas da época. Mexemos tudo e mais alguma coisa, e já no fim ele [Alberto João Jardim] lá mudou. E em consequência disso, hoje existe um sistema de apoio da Madeira, que se chama o MediaRam: o Governo Regional paga uma parte do salário de cada jornalista, que cada publicação emprega, mais os custos sociais. E isto tem funcionado sem problemas. Temos falado disto muitas vezes aqui no Governo central, e dizem: “é impossível, não podemos fazer, porque a Comissão Europeia cai em cima de nós”. E nós dizemos: “mas na Madeira fazem”. Temos a certeza que não tiveram que pedir o estatuto de região ultra-periférica para poderem fazer isso. Portanto, fazem. E posso-lhe dizer mais: muito recentemente estivemos com o Governo Regional dos Açores, que também está a estudar a possibilidade de passar a fazer isso nesse arquipélago. Portanto, eu penso que sim. Todas essas soluções são possíveis. E volto a dizer: em Portugal esta [solução] está na Madeira.
Estamos a centrar a entrevista muito na parte financeira e de sustentabilidade dos jornais, mas apontam-se muitas culpas às novas plataformas e ao desinteresses dos jovens, e fala-se pouco na qualidade da imprensa. Esse modelo não valorizaria o jornalista?
Daquilo que sabemos das publicações fora de Portugal, as que têm êxito são as que apostaram na qualidade do jornalismo, embora a qualidade do jornalismo seja muito difícil definir – eu passo a vida a dizer isso. No entanto, aquilo que eu digo sempre é que a qualidade do jornalismo é o cumprimento das regras de informação em relação ao assunto que se está a tratar. Não posso deixar o assunto a meio porque ouvi dizer que o meu concorrente está a… Não posso. Portanto, estes elementos de facto só se fazem com jornalistas e com pessoas que sabem o que é que estão a fazer. Além disso, há uma posição muito pouco popular que temos aqui na Associação: entendemos que o salário dos jornalistas não pode ser igual ao salário dos caixas de supermercado ou igual ao salário mínimo nacional.
Mas isso acontece hoje, não é? Há já bastante tempo, aliás…
Sim. Temos a tabela do contrato de 2010, que se aplica às publicações com uma facturação anual inferior a 2 milhões euros; dos valores dessa tabela, metade já foram comidos com o salário mínimo nacional. Portanto, temos esta situação estranhíssima: um estagiário pode ganhar mais do que uma pessoa que entrou para o jornal há dois ou três anos.
No mundo digital é importante não esquecermos as questões de desigualdade de informação e de acesso. Além disso, a difusão nas grandes plataformas seguem critérios próprios sobre desinformação ou fake news. Mas há uma dificuldade de os leitores acederem a informação sobre uma panóplia de temas. Como vê isto no âmbito da liberdade de imprensa?
Primeiro: a liberdade de imprensa, de que estamos a falar, não é a mesma que está nas leis. A liberdade de imprensa que estava nas leis é a do mundo analógico, em que eu posso verificar em determinados tempos – no tempo da notícia –, e posso actuar. A liberdade de imprensa hoje é também a do tempo da tecnologia. Se eu não tiver isso em consideração, seguramente que todos os anos vamos ter uma baixa global – não é só em relação a Portugal –, na percepção que as pessoas têm em relação aos acessos. Portanto, o primeiro problema é esse. Mas depois há um segundo problema, quando eu obrigo as plataformas a serem responsáveis pelos conteúdos que distribuem. Eu digo: “se esses conteúdos forem contra aquilo ou contra aqueloutro, não pode ter”. Essas plataformas não têm como negócio ganhar dinheiro connosco. Sim, nós somos importantes para elas ganharem negócio, mas não é com conteúdos específicos, é com o fluxo geral dos conteúdos. Portanto, essas plataformas não querem arriscar. Preferem ter sistemas automáticos que vão através de leitura de palavras, e cortam.
Mas aí não estamos a assistir a uma crescente erosão da qualidade da informação?
Daí uma velha visão que temos aqui na Associação, e pela qual eu já penei muito, na Europa e até no Mundo: então, eu tenho que estar junto com a plataforma a olhar para isso.
Mas como, se as plataformas são inalcançáveis?
Não; elas são alcançáveis.
Tem conseguido resolver algumas situações?
Sim, temos conseguido resolver algumas situações. Claro que depende muito ainda das relações pessoais, ou seja, de conhecer a pessoa, de falar com ela. É tudo uma questão de organização.
Na sua opinião, o que devem ser conteúdos não autorizados? Isso tem a ver com questões da sustentabilidade também da liberdade de imprensa.
Conteúdos não autorizados são aqueles que são genericamente proibidos pelas convenções internacionais ou pelas leis nacionais, nos casos em que as leis nacionais sejam mais fechadas, como o incitamento ao ódio.
Mas aí estamos a falar de um crime.
Não. O problema é que a plataforma é única, mas as leis não são iguais. Portanto, na dúvida, eu elimino tudo.
Por exemplo, questão da identificação de fake news, há uma questão que salta como argumento: “nunca foi publicado por nenhum jornal, rádio ou tv”. Como jornalista, observo que alguns temas não são noticiados não por serem fake news mas por questões de pressão política ou outra. Não faz com que a história não seja verídica.
Há um estudo anual que devem conhecer, do The Reuters Institute, que faz, há já 13 anos, perguntas sempre sobre essa matéria, nomeadamente sobre o que é qualidade e tudo mais. Os dois temas que os portugueses elegem sempre como pontos críticos são os erros de português e as trocas de referências. Por exemplo, escrever 1495 em lugar de escrever 1945. Ora bem, eu só estou a dizer isto porque os leitores, ou os que acedem à informação, também têm de ser formados. Quer dizer, isto já não é como antigamente que, eu porque sabia ler um jornal, ganhava uma certa cultura. E essa cultura, tornava-me um especialista de leitura de jornal, digamos assim. E, portanto, eu sabia distinguir, sabia ver, sabia analisar o que era um jornal. Hoje, a maior parte das pessoas que lêem notícias, não distinguem. Por exemplo, uma das minhas lutas, muito grandes, com a CCPJ, é esta: a informação não-jornalística tem o mesmo direito da informação jornalística, tem de ser bem escrita, bem tratada e bem-apresentada. Tem é de ser separada da informação jornalística.
O PÁGINA UM consultou em detalhe as contas dos grupos parlamentares dos últimos cinco anos e detectou que a maioria não regista quaisquer gastos com pessoal, incluindo o do Partido Socialista. No total, as subvenções públicas exclusivas para o regular funcionamento dos trabalhos parlamentares, distintas da subvenção por votos nas eleições, ultrapassaram os 4,5 milhões de euros entre 2018 e 2022, mas quase tudo acabou gasto num enigmático “fornecimentos e serviços externos”. Curiosamente, o grupo parlamentar do PSD até foi aquele que assume ter gasto dinheiro com assessoria própria (cinco mil euros, em média anual). Paulo Morais, uma das mais reconhecidas vozes no combate à corrupção em Portugal, diz que o alegado desvio de verbas dos grupos parlamentares para os respectivos partidos é apenas a “ponta do iceberg”. Já o economista João Duque, presidente do ISEG, condena que a imprensa tenha sido avisada para presenciar as rusgas a Rui Rio.
Zero euros. É esta a verba registada por quase todos os grupos parlamentares dos diversos partidos na rubrica “Gastos com o pessoal” nos últimos cinco anos, incluindo o do Partido Socialista (PS). De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM às contas dos grupos parlamentares depositadas na Entidade das Contas e Financiamentos Públicos – um órgão independente que funciona junto do Tribunal Constitucional –, apenas o Partido Social Democrata (PSD), com um total de 25.690 euros, e o Bloco de Esquerda, com 3.500 euros, contabilizaram pagamentos a seus funcionários parlamentares. Os restantes partidos não atribuem gastos com pessoal nas suas contas parlamentares, que têm um regime contabilístico autónomo ao dos próprios partidos.
A lei do financiamento dos partidos políticos estipula que “a cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento“, que corresponde a quatro vezes o indexante dos apoios sociais (IAS). Ou seja, este ano por cada deputado, o grupo parlamentar recebe cerca de 1.922 euros.
No caso dos partidos com maior representatividade parlamentar, estas subvenções podem ser significativas. No último quinquénio, onde se apanharam três legislaturas, o PS recebeu quase 1,8 milhões de euros para encargos de assessoria aos deputados, enquanto o PSD arrecadou um pouco mais de 1,5 milhões de euros. Ou seja, as médias anuais estiveram sempre acima dos 300 mil euros, o que possibilitaria o pagamento de salários de assessores parlamentares fixos.
No caso dos outros partidos, os montantes destas subvenções parlamentares são muito mais reduzidas. Por exemplo, o Bloco de Esquerda recebeu cerca de 422 mil euros no último quinquénio – mas viu a subvenção cair para apenas 58 mil euros em 2022 com a perda de deputados nas eleições do ano passado, enquanto o PCP – rondou os 317 mil euros, estando a receber no último triénio menos de 60 mil euros por ano.
Os restantes grupos parlamentares têm valores ainda mais baixos, mesmo o Chega, que reforçou a sua presença parlamentar em 2022, mas que mesmo assim só recebeu no ano passado 61.250 euros de subvenção para assessoria na Assembleia da República.
António Costa, primeiro-ministro e secretário-geral do PS
Mas se formalmente os grupos parlamentares dos distintos partidos não têm assessores a ser pagos com estas subvenções, o dinheiro acaba por “voar” para outras paragens, uma vez que os partidos não podem fazer transferências de “lucros” no final de cada ano, como sucede nas empresas. E o expediente mais utilizado tem sido, invariavelmente, o “fornecimento e serviços externos”, uma rubrica contabilística onde cai todo o tipo de despesas.
De acordo com a consulta do PÁGINA UM, no último quinquénio, 86% do total subvenções públicas aos grupos parlamentares serviram afinal para pagar a fornecedores e serviços externos, que podem, nestes casos, incluir os próprios partidos e respectivos funcionários, uma vez que são entidades contabilisticamente independentes. Aparentemente, parece ser esse o caso que levou às 20 buscas da Polícia Judiciária desta semana ao PSD, incluindo à residência do seu ex-presidente, Rui Rio.
No caso do PSD, os fornecedores e serviços externos “desviaram” 1,34 milhões de euros no último quinquénio, ou seja, 89% da subvenção parlamentar. Por esse motivo, o grupo parlamentar do PSD até apresenta um prejuízo acumulado de 31 mil euros nos últimos cinco anos.
Rui Rio, antigo deputado e ex-presidente do PSD, está no “olho do furação” por causa de uma prática habitual em todos os grupos parlamentares, mas de duvidosa legalidade e de ética discutível.
Embora relativamente mais baixo, o uso do expediente dos fornecedores e serviços externos é também bastante usado pelo PS. Entre 2018 e 2022, 80% das verbas da subvenção parlamentar serviram aquele propósito, não havendo assim qualquer gasto com pessoal parlamentar, mesmo se há assessores do partido a trabalharem no Parlamento.
Nos pequenos partidos, até há casos curiosos, como os do Bloco de Esquerda e do Chega. No último quinquénio, os bloquistas têm estado a suportar, através da subvenção ao grupo parlamentar (421.755 euros), montantes superiores para pagamento a fornecedores e serviços externos (460.680 euros, no total). Daí apresentarem um prejuízo acumulado de 44.803 euros.
No caso do Chega – que com André Ventura como candidato único até chegou ao fim de 2021 com um lucro de cerca de 48 mil euros –, no ano passado o desvio para alegados pagamentos a fornecedores e serviços externos disparou para os 104 mil euros (tinha sido de apenas 11 mil euros no ano anterior), o que poderá indiciar uma “descapitalização” do fundo destinado à assessoria parlamentar.
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República e antigo presidente do PSD
Apesar da contabilidade ser independente – e da existência de inúmeros casos polémicos no Brasil com assessoria-fantasma, envolvendo mesmo Jair Bolsonaro e também um dos seus filhos –, o Presidente da República veio, entretanto, tentar menorizar o assunto, defendendo que os grupos parlamentares também são “órgãos dos partidos”, considerando ser uma prática legal o desvio das subvenções parlamentares para uso partidário. Mas subsistem dúvidas quanto à legalidade do desvio de verbas.
“Marcelo Rebelo de Sousa fez essas declarações, não para colocar água na fervura, mas para se acautelar, porque sabe como era quando foi presidente do PSD”, diz Paulo Morais, presidente da Frente Cívica e um dos principais rostos do combate à corrupção em Portugal.
Para Paulo Morais, este alegado uso de verbas dos grupos parlamentares pelos partidos “é apenas a ponta do iceberg” em termos de irregularidades que existem em torno do financiamento dos partidos.
Em todo o caso, para o economista João Duque “será difícil provar de onde as verbas foram gastas” porque “o dinheiro não tem cara”. O também presidente do ISEG condena, sobretudo, o facto de ter sido avisada a imprensa para presenciar e noticiar as buscas a Rui Rio. “É algo de inaceitável, seja com Rui Rio ou com quem for”, lamentou.
Ao que o PÁGINA UM observou, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos nunca fez nenhum alerta ou recomendação aos partidos no sentido de não utilizarem verbas dos seus grupos parlamentares para gastos com pessoal nos próprios partidos, nem nunca estranhou o peso demasiado elevado da rubrica dos fornecedores e serviços externos. Contactada, esta entidade presidida pela juíza conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros não respondeu ainda às questões do PÁGINA UM até à hora da publicação desta notícia.
O PÁGINA UM descobriu um prémio para distinguir autarquias, que garantiu, a quem pagou 12.500 euros, que, na pior das hipóteses, levava uma menção honrosa, e, na melhor, uma mão-cheia de “taças” para currículo político. O promotor foi a INTEC, que apesar de se apresentar como Instituto de Tecnologia Comportamental, é apenas uma associação criada em 2007 por um casal de professores do ISCSP. Para a organização de uma gala, no passado dia 3 de Novembro, para distribuição dos galardões, que teve como media partner o Jornal de Notícias e a Universidade de Coimbra como parceira, o INTEC conseguiu convencer 11 autarquias “mecenas” a desembolsarem 12.500 euros, cada, com a garantia de não saírem de mãos a abanar. O estudo, que terá supostamente redundado nos rankings, não foi ainda divulgado. No INTEC, que se apresenta como um centro tecnológico, ninguém atendeu telefone fixo nem telemóvel nem respondeu ao e-mail do PÁGINA UM. Talvez venha a reagir por pombo-correio.
Na aparência, foi um prémio para dignificar as melhores políticas públicas desenvolvidas pelos autarcas portugueses. Organizado pelo INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, intitula-se, muito apropriadamente, “Prémios – Melhores Municípios para Viver”, e há exactamente um mês, no dia 3 de Novembro, teve a merecida gala de luxo na Universidade de Coimbra para destacar, pois então, apenas os melhores entre os melhores, sendo abrilhantada com a presença de muitos sorridentes autarcas. A iniciativa contou também com a participação activa da Faculdade de Direito de Coimbra e, como já se torna habitual em eventos deste género, um media partner: neste caso, o Jornal de Notícias.
Houve prémios para todos os gostos, por serem 10 as categorias avaliadas, com os três primeiros classificados a merecem distinção, e ainda um ranking global elencando os cinco melhores municípios (não houve últimos), ponderados os vários indicadores. Contudo, tendo em conta que Portugal tem 308 municípios, esperar-se-iam muitos premiados, uma vez que, contas feitas, contabilizaram-se 38 galardões, incluindo três menções honrosas excepcionalmente atribuídas pelo INTEC.
Mas não assim. Na verdade, somente 14 municípios, de entre um universo potencial de 308, foram distinguidos (três dos quais com menções honrosas), porque houve imensas repetições na subida ao palco.
O primeiro classificado no ranking global – Lagoa – foi também o primeiro nas categorias do Bem Estar, do Turismo e da Segurança, Diversidade e Tolerância. O segundo do ranking global – Caminha – ficou em primeiro na categoria do Ensino e Formação, em segundo no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância, e ainda em terceiro no Ambiente. E Bragança, o terceiro classificado no ranking global, também amealhou o primeiro lugar no Ensino e Formação, o segundo lugar na Mobilidade e Segurança Rodoviária, e ainda o terceiro lugar no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância.
Em suma, o município de Lagoa sacou quatro galardões, o de Caminha seis, e o de Bragança outros tantos. Além destes, Boticas recebeu três primeiros lugares em diversas categorias; Lisboa dois primeiros e um segundo; Porto, um segundo e dois terceiros; Maia um segundo e um terceiro; e Vila Nova de Famalicão dois terceiros. Parecia os jogos olímpicos. Os municípios de Olhão, Coimbra, Santarém e Montalegre subiram uma vez ao palco, tal como Cascais e Pombal – estes para receberem o quarto e quinto lugar do ranking global. Também Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes tiveram direito a prémio, mas de consolação: menções honrosas.
Lagoa amealhou o primeiro lugar global e mais três primeiros lugares em várias categorias (Bem Estar; Turismo; e Segurança, Diversidade e Tolerância). O município não perdeu tempo a mostrar o “feito” nas redes sociais e imprensa regional.
Porém, esta concentração de prémios acaba por ser bastante suspeita, porque grande parte dos premiados foi, talvez por coincidência, “mecenas” dos próprios galardões que recebeu.
Numa consulta detalhada no Portal Base, o INTEC celebrou, entre Maio e Novembro deste ano, pelo menos 11 contratos com municípios para a elaboração de estudos e para a candidatura dos prémios “Melhores Municípios para Viver”.
Embora até possam ser mais – uma vez que, por vezes, existe um desfasamento de vários meses entre a assinatura e a publicitação no Portal Base –, o PÁGINA UM detectou a celebração de contratos com os municípios de Lagoa, Caminha, Bragança e Pombal – que ocuparam o top 5, sendo que, neste lote, apenas Cascais não regista contrato –, Boticas, Coimbra, Vila Nova de Famalicão, Montalegre, Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes. No total, o INTEC encaixou 137.500 euros, a que acresceu IVA. Nesta lista de 11 municípios, todos receberam galardões. Isto é, ninguém que pagou à INTEC ficou a “chuchar no dedo”.
No caso do município de Caminha – que, repita-se, ficou em segundo no ranking global e foi distinguida em cinco categorias –, o contrato entre o presidente da autarquia, Rui Lages – que substituiu o ex-secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves – e a presidente do INTEC, Patrícia Palma, foi assinado no próprio dia da gala, 3 de Novembro. E o contrato especifica que se destina à candidatura ao prémio. No contrato do município de Lagoa, por sua vez, não surge a garantia de que ganhará prémios, mas nas fases do contrato ficou expresso que os resultados seriam divulgados num órgão de comunicação social nacional de grande tiragem, que acabou por ser o Jornal de Notícias.
Em todo o caso, em comum em todos os contratos entre INTEC e municípios no Portal Base, está a ausência dos cadernos de encargos, ignorando-se assim as contrapartidas fixadas pelos pagamentos.
Independentemente da estranheza que causa um prémio nacional bastante enviesado nos critérios de selecção – porquanto beneficiou, de forma evidente, quem pagou –, ignora-se também quaisquer detalhes das classificações, uma vez que, de acordo com o site do INTEC, os relatórios apenas serão conhecidos posteriormente. Porém, se forem como as edições anteriores – que remontam aos anos de 2007 a 2009, neste caso com o apoio do jornal Sol –, bem se pode procurar, porque nada se encontra. Sabem-se as primeiras posições; jamais se sabe quem foram os últimos, até porque, efectivamente, se ignora quantos municípios estiveram em jogo.
Rui Lages (à direita), presidente da Câmara de Caminha, a receber em Coimbra, no dia 3 de Novembro, um dos galardões, em frente de Patrícia Jardim da Palma, presidente do INTEC. Os dois assinaram, nesse mesmo dia, um contrato no valor de 12.500 euros para pagar a candidatura ao prémio. Foto: página do FB do INTEC.
Mas ainda mais estranho é a própria confiança dos municípios numa entidade organizadora que, embora possua a denominação pomposa de INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, não se encontra associada a qualquer entidade de ensino ou de investigação, mesmo se celebrou, em Setembro passado, um protocolo com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra “com o objetivo de desenvolvimento de projetos conjuntos de interesse comum nos domínios da investigação e das saídas profissionais”.
Na verdade, o INTEC é uma associação privada criada em 2007 por Patrícia Jardim da Palma – que preside desde a fundação – e pelo seu marido, Miguel Pereira Lopes, que ocupa o cargo de presidente da Assembleia Geral. Ambos são professores no ISCSP, que nunca teve qualquer parceria com o INTEC. O terceiro membro fundador da associação é José Luís Soares Ferreira, gestor de negócios da empresa Central Business, com sede no Pólo Tecnológico de Lisboa. O próprio INTEC teve também sede nesse espaço, mas foi saltitando por outros hubs tecnológicos, estando agora localizado na Azambuja.
Antes desta edição lucrativa dos prémios comprados pelos municípios em 2022, a INTEC esteve longos anos quase sem actividade, sobretudo a partir de 2015, pois entre esse ano e 2021 apenas se encontra um serviço prestado ao município de Vila do Bispo com vista à obtenção de uma certificação de desenvolvimento sustentável (ISO 37120). Mas entre o ano da fundação e 2014, o INTEC conseguiu convencer outros municípios a financiarem similares prémios durante três anos, mas não foi actividade tão lucrativa.
Patrícia Jardim da Palma e Miguel Pereira Lopes, ambos professores do ISCP, sacaram 137.500 euros a autarquias, através de contratos com o INTEC (que fundaram em 2007), para conceder prémios e fazer um estudo (ainda não divulgado).
Entre 2009 e 2014, consta no Portal Base um total de 10 contratos da INTEC com municípios no valor global de 173.250 euros – ou seja, uma média anual de 28.875 euros, valor substancialmente inferior ao alcançado no presente ano (137.500 euros). Nas edições anteriores, pelos escassos elementos encontrados, a metodologia usada consistia na mera recolha de dados de diversos indicadores no Instituto Nacional de Estatísticas e da realização de inquéritos telefónicos em concelhos específicos, mas não em todos os 308 existentes em território nacional.
Saliente-se também que os resultados da edição revelada na gala de 2022, que ocorreu há um mês, nem sequer se encontram ainda no site do INTEC. A única fonte de informação acaba assim por ser o Jornal de Notícias. No seu site encontra-se, porém, um documento onde se refere que o passo seguinte à publicação dos vencedores pelo jornal da Global Media seria o “envio de relatório final pormenorizado a cada um dos dez municípios vencedores, com análise específica de cada indicador, com a proposta de planos de melhoria”: Contudo, isso deveria acontecer com a “realização de gala para entrega de prémio”, algo que já ocorreu.
O PÁGINA UM contactou o INTEC – que se apresenta como um centro de desenvolvimento tecnológico – através dos contactos que surgem no seu site: telefone fixo, telemóvel e e-mail para pedir esclarecimentos sobre estas matérias – e sobretudo se era mesmo obrigatório o pagamento de uma taxa para “entrar em jogo”, e também para aceder aos relatórios finais. Contudo, até à hora de fecho desta notícia, ainda não obteve qualquer resposta.
Uma análise a cerca de 900 artigos científicos, feita por uma equipa de investigadores italianos, mostra que a imunidade natural é mais prolongada e eficaz do que a imunidade concedida pelas vacinas. Os autores desaconselham mesmo a vacinação de quem “apanhou” covid-19, porque o risco de ter efeitos adversos pode ser 60% superior em comparação a quem se vacinou sem nunca ter tido contacto com o vírus. Se a estratégia de não vacinar recuperados fosse aplicada, mais de metade dos portugueses não necessitaria de fazer “reforços”.
Numa base de risco-benefício, as pessoas recuperadas da covid-19 não deviam vacinar-se. Esta é a principal conclusão de 12 investigadores e médicos italianos feita após a análise a cerca de 900 estudos publicados em revistas científicas sobre a infecção pelo SARS-CoV e a eficácia das vacinas, e que está em fase de peer review (avaliação pelos pares).
Intitulado “SARS-CoV-2 – O papel da imunidade natural: uma revisão narrativa” (SARS-CoV-2 – the role of natural immunity: a narrative review), este artigo científico de 29 páginas – que tem como primeira autora Sara Diani, da Universidade Europeia Jean Monnet de Pádua – debruça-se sobretudo em analisar a evolução da imunidade vacinal e da imunidade natural, bem como dos riscos das reinfecções e das vacinas contra a covid-19.
Em concreto, esta revisão narrativa analisou a literatura científica sobre a duração da imunidade natural; a imunidade celular; a reatividade cruzada; a duração da proteção imunológica pós-vacinação; a probabilidade de reinfecção e suas manifestações clínicas nos pacientes recuperados; as comparações entre vacinados e não vacinados nas possíveis reinfecções; o papel da imunidade híbrida; a eficácia da imunidade natural e induzida por vacina contra a variante Omicron; e incidência comparativa de efeitos adversos após a vacinação em indivíduos recuperados versus indivíduos virgens de COVID-19.
É porventura a análise mais completa até agora feita no âmbito da pandemia.
Uma das principais conclusões deste estudo – que a ser aplicada acarretaria um forte revés económico para as farmacêuticas, porque as vendas reduzir-se-iam – é de que a protecção natural, adquirida após a infecção por covid-19, é mais duradoura do que a imunidade vacinal, e que, mesmo sendo a vacina eficaz – menos, no caso da variante Ómicron –, quem possuir imunidade natural não beneficia em vacinar-se por causa dos riscos dos efeitos adversos das vacinas.
O destaque para a protecção natural face ao SARS-CoV-2 – que, aliás, é fenómeno habitual em outras doenças infecciosas – advém não apenas da imunidade induzida pelas células B (humoral) mas também pelas células T (celular). “A análise da literatura sobre a imunidade natural pós-COVID-19 destacou uma série de achados que indicam uma boa proteção imunológica na grande maioria dos indivíduos”, dizem os autores, acrescentando que, nos recuperados, a imunidade após a infecção é “tipicamente de natureza humoral mediada por células e parece proteger contra a reinfecção e doença clinicamente grave”.
O artigo menciona diversos estudos onde “foram encontrados anticorpos protectores e células B de memória” após mais de 12 meses da recuperação, e que o nível de imunidade ainda era bastante forte. “Especificamente, um estudo sueco, com um seguimento após infecção natural de até 20 meses, mostrou uma taxa de proteção de 95% à infecção e 87% à hospitalização naqueles que não tomaram vacinas” após uma primeira infecção, apontam os investigadores italianos.
A constatação da menor gravidade nas reinfecções advém de uma avaliação empírica nos hospitais. “Em geral, a severidade dos sintomas de reinfecção é significativamente mais baixo do que a infecção primária, com um mais baixo grau de hospitalização (0,06%) e uma mortalidade extremamente baixa”, salientam os autores.
Isto advém exactamente da “longevidade” da imunidade natural. “Mais de um ano após a infecção primária, as pessoas não vacinadas ainda têm proteção em torno de 70% (69% num grande estudo coorte de profissionais de saúde do Reino Unido)”, salientam. Tal deve-se em grande medida à carga viral nas reinfecções ser “cerca de 10 vezes menor do que a de uma infecção primária”.
Embora os autores sustentem que “uma vacinação subsequente pode aumentar ainda mais essa proteção” – e tem sido essa a justificação das autoridades de Saúde mundiais para vacinar recuperados –, adiantam que numa análise risco-benefício esta pode não ser a melhor solução.
Com efeito, os investigadores confirmam, através da análise a outros estudos, que “a proteção contra a infecção conferida pelo ciclo de vacinação é muito boa após os primeiros 14 dias, mas tende a diminuir rapidamente nos meses seguintes, quase desaparecendo cerca de cinco meses após a segunda dose”.
Mas sustentam que “alguns dados da literatura destacam que numa fase posterior, esta protecção induzida pela vacina contra o contágio e/ou doença grave torna-se menos evidente do que a demonstrada nos indivíduos não vacinados”, mostrando ainda que “alguns investigadores relataram que, após uma infectação com SARS-CoV-2, é improvável que os indivíduos beneficiem da vacinação contra a covid-19”.
Dizem mesmo que, “devido à resposta imune prolongada documentada após a covid-19, a administração adicional de doses de vacina, especialmente a partir da segunda dose, não leva a uma melhora significativa na imunidade”.
Ainda por cima, os recuperados após uma primeira infecção, têm uma maior susceptibilidade a sofrer efeitos adversos decorrentes da vacinação.
Os investigadores italianos, que não têm ligações a qualquer farmacêutica, defendem mesmo que a vacinação de recuperados de uma infecção pelo vírus SARS-CoV-2 “não deve ser indicada”, tendo em conta “que os eventos adversos locais e sistémicos pós-vacina são 40% e 60% mais altos, respectivamente, em indivíduos com histórico anterior de infecção por SARS-CoV-2″, em comparação com os que ainda não tinham sido expostos ao vírus de forma natural.
E concluem: “a relação risco-benefício nesses casos [pessoas recuperadas de uma infecção por SARS-CoV-2] parece não indicar a necessidade de administração da vacina”, sustentando igualmente a realização de mais estudos sobre imunidade híbrida (natural e vacinal), uma vez que, até agora, “os resultados dos estudos são às vezes contraditórios”.
O PÁGINA UM foi olhar para a empresa de consultadoria que Manuel Pizarro garante não ter actividade desde Março de 2020. Mas, na verdade, actividade houve: o ministro fartou-se de indicar o 514710659, o número fiscal da sua empresa, para a carregar de despesas, de modo a obter benefícios fiscais, como a dedução do IVA e possíveis reportes de prejuízos em exercícios futuros.
A empresa de consultadoria de Manuel Pizarro manteve actividade ao longo dos anos de 2020 e 2021, ao contrário das declarações do novo ministro da Saúde ao jornal Público.
Uma análise aos quatro relatórios e contas da Manuel Pizarro Consultadoria, Lda. – criada em 15 de Março de 2018 pelo governante em parceria com Artur Rocha Viana (quota de 30%) – revela que esta sociedade, mesmo não tendo receitas ao longo de 2021, registou sempre as suas despesas nos dois últimos anos do exercício. Ou seja, a empresa do ministro pode não ter facturado nada desde Março de 2021, como declarou ao Público, mas ele nunca se esqueceu de pedir facturas em compras e serviços para as meter como despesas na dita. E não foram poucas.
Manuel Pizarro, ministro da Saúde e actual gerente da Manuel Pizarro Consultadoria, Lda., da qual detém 70% do capital social.
Com efeito, no ano passado, em que não houve receitas, foram apresentadas despesas em fornecedores e serviços externos de 10.217 euros, enquanto em 2020 surge um montante de 17.698 euros, num período em que as receitas foram de 26.000 euros.
O montante destas despesas em fornecedores e serviços externos no ano de 2020 indicia que estas abarcaram também os meses dos segundo, terceiro e quatro trimestres, quando a empresa já deixara de facturar, ou seja, de obter receitas. Em 2018 e 2019, a Manuel Pizarro Consultadoria facturou exactamente 58.000 e 64.000 euros, respectivamente, com despesas em fornecedores e serviços externos de 19.537 euros e 29.135 euros, respectivamente.
Como as despesas com pessoal foram relativamente baixas (cerca de 11 mil euros nos dois anos), os lucros foram razoáveis: 26.361 euros em 2018 e 21.820 anos em 2019. Em 2020 baixaram para 5.710 euros.
Manuel Pizarro declarou ontem ao Público que a “empresa não tem actividade desde Março de 2020”.
E foi esse bom desempenho que permitiu a Manuel Pizarro adquirir o imóvel que o ministro diz agora ser o único empecilho para a dissolução imediata da empresa. O imóvel é, na verdade, uma pequena loja no número 360 da Avenida das Congostas, na freguesia portuense de Ramalde – a poucos metros da residência do ministro da Saúde – com uma área de 51,20 metros quadrados, e não de 31,80 metros quadrados como diz o esclarecimento ontem enviado à imprensa pelo gabinete de Manuel Pizarro.
O ministro da Saúde ainda não respondeu ao PÁGINA UM sobre os contornos desta aquisição, que apenas surge no balanço da sua empresa em 2020, ou seja, no exacto ano em que Manuel Pizarro alega que a sua empresa deixou de ter actividade.
O preço de compra desta loja em 2020 não foi revelado pelo gabinete do ministro, embora esteja reconhecido um montante na ordem dos 35 mil euros nos balanços de 2020 e 2021 da Manuel Pizarro Consultadoria. Nos últimos dois anos, esta zona do Porto beneficiou de uma forte valorização, com os preços por metro quadrado a superarem os mil euros.
Prédio onde se localiza a loja comprada pela Manuel Pizarro Consultadoria em 2020, e que é agora o “empecilho” para a dissolução imediata da empresa
A manutenção de uma sociedade sem quaisquer receitas não é ilegal, e esta pode sempre apresentar livremente despesas. Por exemplo, nada invalida que uma empresa fique dois ou mais anos sem facturar e depois consiga um contrato. Ou seja, a sociedade tem actividade fiscal, embora seja passiva. Aliás, uma empresa como a Manuel Pizarro Consultadoria – que o ministro se apressa a querer dissolver –, tem direito a pedir reembolsos de IVA.
Sem facturar e com despesas, obviamente a sociedade terá prejuízos, como se verificou com a empresa do ministro no ano passado, que apresentou resultados líquidos negativos de 11.855 euros. Porém, como seria o caso da Manuel Pizarro Consultadoria, a dissolução não seria a melhor opção financeira.
Na verdade, se um empresário não necessitar para a sua vida quotidiana dos lucros adquiridos nos anos anteriores – e ficarem acumulados no capital próprio da sociedade –, pode sempre ir desviando para o seu “bolso” o valor das despesas que imputar à empresa, tais como as despesas pessoais compatíveis com actividade profissional (alimentação, alojamento, viagens, etc.).
Os prejuízos acumulados por essa via podem acabar por ser um bónus no futuro. Se a empresa recomeçar a actividade e passar a ter novamente lucros – mesmo que com outros sócios e outra designação – pode usufruir de um reporte fiscal, ou seja, os prejuízos acumulados nos cinco anos anteriores serão abatidos à matéria colectável.
Este estratagema tem sido usado por vários empresários, uma vez que pode mesmo ser bastante lucrativo vender uma sociedade sem facturação e sem passivo relevante (sem dívidas à banca, ao Estado ou a fornecedores, por exemplo) e com alguns anos de prejuízos por força da contabilização de despesas pessoais compatíveis com actividade profissional.
Como nessa circunstância, esses prejuízos “comem” apenas o capital próprio, a empresa acaba potencialmente por valer muito mais do que o capital próprio deduzido do eventual passivo. Por uma simples razão: um eventual comprador (ou os sócios originais, em caso de reactivação da facturação) tem ali uma chance de reduzir a matéria colectável se conseguir colocar a empresa a funcionar com bom lucro. A título de exemplo, os 11.855 euros de prejuízo da Manuel Pizarro Consultadoria apenas no ano passado têm um “valor potencial” de até quase 3.320 euros. Porém, com a dissolução da empresa, Manuel Pizarro (ou o seu sócio Artur Rocha Viana), essa possível benesse extingue-se.
O PÁGINA UM colocou um conjunto de questões ao ministro da Saúde sobre este e outros assuntos relacionados com a sua empresa, mas ainda não obteve resposta.