Autor: Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares

  • Embaixador dos Estados Unidos quer empregada para todo o serviço por 7 euros à hora

    Embaixador dos Estados Unidos quer empregada para todo o serviço por 7 euros à hora

    A Casa Carlucci, majestosa residência oficial do embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, está à procura de uma nova empregada doméstica, mas não se pense que sejam extraordinárias as regalias oferecidas: cada hora de trabalho será paga a cerca de 7,5 euros, o que contrasta com a exigência de um extenso leque de tarefas.

    A nova contratação surge no contexto da chegada do novo embaixador, John Arrigo, que chegará em breve ao palacete da Lapa, sucedendo a Randi Levine, que deixou funções no passado mês de Janeiro. Arrigo é amigo de longa data de Donald Trump, sendo empresário do sector automóvel de West Palm Beach, na Flórida, na região do resort de Mar-a-Lago, detido pelo actual presidente norte-americano.

    A oferta de emprego surgiu quarta-feira na própria página oficial no Facebook da Embaixada dos Estados Unidos, onde se anuncia “a procura de candidatos para o cargo de Housekeeper for Official Residence of the U.S. Ambassador in Lisbon”. Na ligação indicada surge então o vencimento mensal bruto proposto de 956 euros, pagos em 14 meses, o que se traduz num salário líquido que pouco difere do praticado em sectores menos exigentes. Com uma carga horária de 40 horas semanais, a remuneração por hora de trabalho efectivo situa-se assim nos 7 euros, considerando-se o período de férias.

    Além do salário bastante baixo, pouco consentâneo com o trabalho numa embaixada de uma potência mundial, ainda é exigido, como requisito, um horário flexível, porque, apesar de se preverem folgas aos fins-de-semana, pode ser requerida a presença da funcionária — ou do funcionário — para eventos ou outras necessidades do embaixador.

    Em todo o caso, o candidato seleccionado não irá ao engano para a Casa Carluci, porque o anúncio explicita, em detalhe, as tarefas: deverá assegurar, com diligência, a limpeza diária de uma vasta residência, realizando tarefas como aspirar, lavar o chão, limpar cozinhas e casas de banho, fazer camas, tratar de roupa pessoal e de casa, incluindo lavar e engomar. A preparação de quartos para hóspedes será igualmente da sua responsabilidade, bem como a colaboração pontual em eventos oficiais, sendo-lhe até exigido que receba convidados à porta, lave a loiça durante e após os eventos, e até sirva à mesa, se necessário.

    A par destas tarefas, há ainda a expectativa de que colabore com os restantes funcionários da casa, num total de cinco, assegurando substituições quando outros membros da equipa estiverem ausentes. A discrição é uma qualidade considerada fundamental, a par da capacidade de trabalhar em equipa e da proficiência básica em inglês e português.

    Apesar da descrição detalhada e exigente das funções, o contrato não será celebrado directamente com a Embaixada dos Estados Unidos, mas sim com o próprio embaixador, enquanto agente diplomático.

    A residência oficial do embaixador norte-americano, situada numa das zonas mais nobres da capital portuguesa, tem sido palco de inúmeros eventos protocolares e recepções diplomáticas, exigindo naturalmente uma manutenção rigorosa e uma equipa operacional eficiente. No entanto, a remuneração proposta para este cargo suscita dúvidas sobre o equilíbrio entre as responsabilidades atribuídas e a retribuição oferecida, especialmente tendo em conta os padrões salariais dos Estados Unidos. Embora o salário mínimo federal seja de apenas 7,25 dólares por hora, em cidades como Washington, D.C., o mínimo legal ultrapassa os 17 dólares por hora.

    John Arrigo, ao centro, foi indicado em Dezembro por Donald Trump como embaixador em Portugal, mas ainda não apresentou credenciais, estando a Embaixada norte-americana a ser representada transitoriamente por um ‘chargé d’affaires’.

    A diferença abissal entre o que se paga a uma empregada doméstica nos Estados Unidos e o que agora se propõe pagar em Portugal — por funções similares e num contexto diplomático — poderá ser vista como um sinal de desconsideração pelas condições laborais dos trabalhadores portugueses, em particular num contexto em que o custo de vida em Lisboa tem vindo a aumentar de forma significativa.

    A vaga, que deverá ser preenchida até ao final do mês de Maio, exige ainda que as candidatas tenham pelo menos o ensino básico completo, e comprovem experiência anterior em hotelaria, restauração ou funções domésticas similares. As candidaturas deverão ser enviadas em inglês, juntamente com comprovativo de residência legal em Portugal.

  • Em duas eleições legislativas, votos no estrangeiro custam 20 milhões de euros

    Em duas eleições legislativas, votos no estrangeiro custam 20 milhões de euros

    Cada voto concretizado nas Legislativas do ano passado por eleitores recenseados no estrangeiro teve um custo médio de 24,4 euros – e a factura global chegou aos 8,13 milhões de euros. Este montante ainda deverá sofrer um acréscimo significativo nas próximas eleições de Maio: na passada sexta-feira, a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna celebrou um contrato por ajuste directo com os CTT que prevê um gasto de até 11,75 milhões de euros, ou seja, um agravamento do preço de quase 45%.

    No contrato agora assinado – ao contrário daquele que foi estabelecido no ano passado –, não estão discriminados os preços unitários por expedição nem pela resposta sem franquia (RSF), apenas cobrada, neste caso, se o eleitor enviar o seu voto. Em função da taxa de abstenção, que se reflectirá no custo referente aos votos endereçados por RSF, o custo poderá ascender aos 35 euros por voto. O PÁGINA UM ainda não conseguiu apurar a causa para o forte agravamento do preço unitário, tanto mais que o caderno de encargos não consta no Portal Base.

    a person is casting a vote into a box

    De acordo com os números provisórios, existem actualmente cerca de 1,6 milhões de eleitores portugueses no estrangeiro com capacidade de voto, sendo que, de acordo com o contrato celebrado no passado dia 4 de Abril, cerca de 953 mil viverão em países europeus – que elegem dois deputados. Noutros continentes estão recenseados 647 mil eleitores, dos quais 73 mil nos Estados Unidos, que são destacados no contrato por os serviços postais serem substancialmente superiores.

    Para as eleições de 10 de Março do ano passado – cujo contrato somente foi disponibilizado no Portal Base em 26 de Março deste ano –, previa-se um custo de envio dos boletins de voto para todos os eleitores na ordem dos 7,4 milhões de euros, a que acresciam mais quase 2,6 milhões de euros de custos de RSF. Porém, a taxa de abstenção terá sido superior ao esperado, pelo que o contrato acabou por se fixar em quase 8,13 milhões de euros.

    Recorde-se que, nas Legislativas do ano passado, de um universo de 1.546.747 inscritos no estrangeiro, votaram apenas 33.520, ou seja, registou-se uma taxa de abstenção de cerca de 78%. A abstenção no círculo Fora da Europa – que elegeu um deputado da Aliança Democrática e outro do Chega – atingiu quase 84%: votaram apenas 98.866 eleitores num universo de 609.436 inscritos. Em países africanos, a abstenção foi de quase 95% e, mesmo no Brasil, foi de um pouco mais de 78%. No caso da Europa, a taxa de abstenção global rondou os 75%, tendo votado quase 235 mil eleitores num universo de 937 mil, para eleger um deputado do Chega e outro do Partido Socialista.

    Note-se, contudo, que, devido às especificidades para cumprimento da validade destes votos vindos do estrangeiro, as quantidades de votos nulos foram avassaladoras. Apenas são considerados válidos os votos que sejam acompanhados por cópia de um documento de identificação, o qual deve ser colocado dentro do envelope branco, mas fora do envelope verde, que deve conter apenas o boletim de voto. Ora, em imensos casos tal não se verifica, o que leva à anulação do voto.

    Nas Legislativas do ano passado, foram considerados nulos mais de 38 mil votos no círculo Fora da Europa, que corresponderam a 32,4% dos votos enviados. Os votos nulos superaram mesmo a percentagem da Aliança Democrática (22,9%), a força partidária que ficou em primeiro lugar.

    Similar situação ocorreu no círculo da Europa, mas de forma ainda mais agravada: 38,5% dos votos enviados foram considerados nulos – uma percentagem que foi mais do dobro da alcançada pelo Chega (18,3%), o partido mais votado.

    O contrato celebrado para as Legislativas do próximo mês de Maio é o de maior valor celebrado com entidades públicas para prestação de serviços postais pelos CTT, constituindo uma importante fatia de negócio. Mas não se sabe a verdadeira dimensão. De facto, para envio dos boletins de voto e posterior recepção, somente constam no Portal Base os contratos com os CTT para a gestão do envio e RSF das Legislativas de 2024 e 2025, embora se saiba que este serviço foi prestado em anos anteriores pelos CTT.

    Por exemplo, nas eleições Legislativas de 2022, os CTT até acabaram por ter um “bónus” de 4,6 milhões de euros, depois de o Tribunal Constitucional ter mandado repetir as eleições na sequência da mistura de milhares de votos válidos e inválidos. Os juízes detectaram “procedimentos anómalos” no apuramento dos votos daquele círculo, uma vez que a maioria das mesas validou votos sem a obrigatória cópia da identificação do eleitor.

  • Parlamento: Conferência de Líderes ‘salva’ concerto de 140 mil euros de Rui Veloso

    Parlamento: Conferência de Líderes ‘salva’ concerto de 140 mil euros de Rui Veloso

    Vinte e quatro horas antes do Governo Montenegro cair com o ‘chumbo’ da moção de confiança, director de Cultura da Assembleia da República assinou um inusitado contrato de 140 mil euros (IVA incluído) para um concerto de Rui Veloso nas escadarias do Parlamento viradas para a Rua de São Bento. O concerto, por um cachet ‘gordo’ – duas a três vezes o montante habitual cobrado pelo cantor de ‘Chico Fininho’ –, realizar-se-á, ainda por cima, no dia 24 de Maio, ou seja, apenas seis dias após as eleições legislativas antecipadas.

    A confirmação da queda do Governo ainda levou a ponderar-se a suspensão do contrato, mas Aguiar-Branco – colega de liceu e amigo de longa data do músico portuense – e os líderes parlamentares decidiram, na quarta-feira passada, que o concerto vai mesmo avançar.

    Rui Veloso quase perdeu um concerto com um ‘cachet’ de 140 mil euros.

    Embora de forma oficiosa o PÁGINA UM tenha apurado que este concerto está enquadrado ainda nas comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos – mesmo se já depois de se soprarem 51 velas –, certo é que não consta em qualquer programa conhecido do Parlamento ou mesmo da comissão oficial.

    Num programa que consta no site da Assembleia da República sobre iniciativas previstas para este e para o próximo ano no âmbito das comemorações destacam-se, entre outras, a exposição ‘As Primeiras Eleições Livres’, a publicação da antologia ‘A Poesia está na Assembleia’ e do livro ‘Memórias: o Jornalismo e os Jornalistas nos 50 Anos do 25 de Abril’, a produção em parceria com a RTP de documentários, bem como a encenação de uma peça de teatro pelos Artistas Unidos sobre a democracia e a Constituição.

    Nada há, neste programa, sobre um concerto musical, e muito menos se conhecem as razões da escolha do músico do Porto para abrilhantar uma noite de sábado ao preço de 140 mil euros. A preços de mercado, este montante daria para um festival com três ou quatro grupos musicais, opção bem mais democrática.

    Apesar de o PÁGINA UM ter procurado ao longo do dia entender as razões da oportunidade do contrato e, mais em concreto, de Rui Veloso – que será acompanhado pela banda Sinfónica da GNR (sem custos) –, não foi ainda possível obter, apesar de diversas tentativas, comentários do director de Informação e Cultura da Assembleia da República, José Manuel Araújo, que também ocupa há mais de 12 anos o cargo de secretário-geral do Comité Olímpico Português.

    Em todo o caso, a proposta inicial da contratação de Rui Veloso veio da actual secretária-geral do Parlamento, Anabela Cabral Ferreira, desembargadora do Tribunal da Relação que liderou a Inspecção-Geral da Administração Interna entre 2019 e o ano passado. A aprovação passou ainda pelo crivo do Conselho de Administração, que inclui, além da secretária-geral, sete deputados: Emídio Guerreiro (PSD), Eurídice Pereira (PS), Pedro dos Santos Frazão (Chega), Rui Rocha (IL), Joana Mortágua (BE), Alfredo Maia (PCP) e Rui Tavares (Livre). Conforme a acta da reunião, a proposta “foi aprovada por maioria”, com os votos favoráveis dos deputados do PSD, PS, PCP, e do representante dos funcionários parlamentares, a abstenção do Chega, IL e BE, e registando-se a ausência do deputado do Livre.

    Contactado pelo PÁGINA UM no início desta noite, Emídio Guerreiro, que formalmente preside ao Conselho de Administração da Assembleia da República, confirmou a aprovação desta contratação sob proposta dos serviços do Parlamento, embora não se recordando, por não deter os documentos à mão, os motivos para a escolha do músico portuense.

    José Manuel Araújo, director de Informação e Cultura da Assembleia da República, ocupa também o cargo de secretário-geral do Comité Olímpico Português. Foi ele que assinou o contrato na véspera da queda do Governo / Foto: D.R.

    Porém, o PÁGINA UM sabe que, já depois da assinatura do contrato, e sabendo-se já da realização de eleições antecipadas, a secretaria-geral ponderou a suspensão do concerto, decidindo dar a última palavra à Conferência de Líderes. Esta estrutura – formada pelo presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, e dos deputados Hugo Soares (PSD), Alexandra Leitão (PS), Pedro Pinto (Chega), Mariana Leitão (Iniciativa Liberal), Fabian Figueiredo (BE), Isabel Mendes Lopes (Livre), Paula Santos (PCP) e Paulo Núncio (CDS) – acabou por aprovar a manutenção do concerto.

    De um modo formal, não existem indícios de que José Pedro Aguiar-Branco tenha influenciado a escolha de Rui Veloso, apesar da sua longa amizade com Rui Veloso, desde os tempos de liceu. No ano passado, o ainda presidente da Assembleia da República confessou que, por ocasião do seu 50º aniversário, organizou uma festa para a família e amigos e surpreendeu todos com o disco gravado no estúdio da casa de Belas de Rui Veloso. Terão gravado juntos ‘Não Há Estrelas no Céu’ e ‘Porto Sentido’. Ainda não foi possível obter comentários de Aguiar Branco para saber se participará no concerto do amigo.

    Por parte da agência que representa Rui Veloso – a PG Booking, que assinou o contrato como adjudicatária –, foi apenas indicado ao PÁGINA UM que o anúncio do concerto ainda não era público. Os únicos aspectos conhecidos surgem no contrato assinado na passada semana, onde se refere Rui Veloso será acompanhado pela Banda Sinfónica da GNR num concerto de 100 minutos sob oito arranjos musicais de John Beasley, um pianista de jazz norte-americano.

    José Pedro Aguiar-Branco preside também à Conferência de Líderes, onde estão os líderes dos diferentes grupos parlamentares, onde se decidiu esta quarta-feira manter o concerto de Rui Veloso.

    Aos 67 anos, Rui Veloso – que saltou para a ribalta logo em 1980 com o seu disco de estreia ‘Ar de Rock’ – continua a ser um dos músicos portugueses mais requisitados por entidades públicas. De acordo com o Portal Base, desde o início de 2024, o espectáculo na Assembleia da República será o seu 24º concerto alvo de contrato público, embora este seja de longe o de maior valor.

    Em média, excluindo o concerto das escadarias do Parlamento, Rui Veloso cobra uma média de 45 mil euros. Curiosamente, é nos concertos comemorativos do 25 de Abril que Rui Veloso mais tem facturado. No ano passado, no dia 25 de Abril esteve no castelo de Alandroal e cobrou um pouco mais de 71 mil euros. Dois meses depois, também no âmbito da Revolução dos Cravos, pelo  concerto em Alcácer do Sal facturou, através da agência PG Booking, um pouco menos de 60 mil euros. O mais barato foi um concerto em Novembro passado no Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco, que ‘só’ custou cerca de 27 mil, uma vez que já havia palco.

    N.D. Notícia actualizada no dia 15/03/2025 para acrescentar a informação de que a proposta de adjudicação do contrato foi aprovada por maioria, mas com a abstenção do Chega, da IL e do BE, enquanto o deputado do Livre este ausente da reunião.

  • Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    A Força Aérea Portuguesa celebrou, na semana passada, três contratos de meios aéreos de combate aos incêndios rurais no valor de 59 milhões de euros com uma empresa de capitais espanhóis – a Agro-Montiar –, cuja ‘holding’ (Avialsa, hoje Titan) foi condenada em Fevereiro passado num mega-processo judicial envolvendo corrupção, prevaricação, peculato e falsificação.

    O processo conhecido por ‘Cartel del Fuego’ teve o seu desfecho numa sentença do passado dia 5 de Fevereiro, que levou à condenação de doze réus – acusados ​​de formação de cartel em contratos públicos de combate a incêndios no sector de navegação aérea entre 2001 e 2018 – a penas de prisão entre dois anos e três meses e seis meses. De entre os condenados está o ex-delegado do Governo na Comunidade Valenciana, bem como dirigentes de diversas empresas aeronáuticas que concertavam preços.

    Foto: D.R.

    A sentença da Audiência Nacional confirma que, entre 1999 e 2018, um grupo de empresários do sector de navegação aérea de combate a incêndios rurais compartilharam geograficamente as licitações públicas abertas, e que “em colaboração com autoridades ou agentes públicos”, estabeleceram “acordos clandestinos prévios e com fins lucrativos”, impondo “às administrações contratantes preços superiores aos que resultariam de uma concorrência livre e transparente, por meio de repartição fraudulenta de mercado”.

    Em concreto, de acordo com a sentença, a Avialsa – dona da Agro-Montier, através da Aviación Agricola de Levante – liderava uma rede de empresas que coordenavam ofertas em concursos públicos, garantindo que apenas uma delas apresentava proposta vencedora, enquanto as restantes faziam ofertas de cobertura para simular uma falsa concorrência. Além disso, o conluio incluiu falsificação de documentos, pagamento de subornos a funcionários públicos e contratos simulados entre as empresas envolvidas para inflacionar artificialmente os custos.

    O tribunal determinou que o fundador e administrador da Avialsa, identificado na sentença como “D. Salvador”, teve um papel central na organização do esquema, assegurando que os contratos eram distribuídos entre as empresas do grupo. Esta pessoa será Salvador Alapuz, que se manteve sócio da empresa enquanto exercia como funcionário público.

    Primeira página da sentença contra o ‘Cartel del Fueg’ pela Audiência Nacional em 5 de Fevereiro de 2025.

    Foram ainda identificadas práticas de corrupção, incluindo a oferta de vantagens indevidas a responsáveis administrativos das Generalitat Valenciana e Generalitat Catalana para favorecer adjudicações.

    A investigação, que levou à condenação dos responsáveis, foi impulsionada pelo testemunho de um ex-director-geral da Avialsa, que denunciou o esquema às autoridades, permitindo a recolha de provas cruciais. Este caso, considerado um dos maiores escândalos envolvendo contratos públicos em Espanha, ocorreu sobretudo nas Comunidades de Valência e Catalunha, os Ministérios da Agricultura e do Ambiente e, em menor grau, nas comunidades andaluza e castelhano-manchega.

    De uma forma inédita, a Audiência Nacional sentenciou também que as as seis empresas envolvidas sofressem um período de inibição de estabelecer contratos públicos em Espanha durante nove meses. Uma penalidade que pode custar várias dezenas de milhões de euros de facturação e permitir a entrada de concorrentes, causando danos potencialmente irreparáveis. Neste lote de empresas abrangidas pela proibição de contratos estão, além da Avialsa (actual Titan), a Trabajos Aéreos Extremeños (TAEXSA), a Martínez Ridao Aviación, a Servicios Aéreos Europeos y Tratamientos Agrícolas (SAETA), a TA Trabajos Aéreos Espejo, Compañía de Extinción General de Incendios (CEGISA) e a Pegasus Aviacion. Estas empresas também foram condenadas a pagar uma indeminização de 234 mil euros à Administração Geral do Estado. O processo ainda é passível de recurso.

    Foto: D.R.

    Em 2017, uma possível ramificação do ‘Cartel del Fuego’ foi investigada em Portugal, sobretudo porque em 2014 a Avialsa comprou a empresa portuguesa Agro-Montiar, inicialmente com sede no Montijo e que se deslocou depois para Tondela. Logo nesse ano, a Agro-Montiar recebeu um ajuste directo de 1,8 milhões de euros para disponibilizar duas aeronaves à Autoridade Nacional de Protecção Civil. Em Maio do ano seguinte ganharia um concurso público no valor de quase 5 milhões de euros para fornecimento de duas aeronaves para combate aos incêndios rurais por um período de três anos, não sendo reveladas no Portal Base quais as empresas que concorreram.

    Sobretudo a partir de 2018, através da Agro-Montiar, a Avialsa consolidou a sua presença no chorudo negócio do combate aéreos aos incêndios rurais. Nesse ano conseguiu ganhar dois contratos num valor global de 19 milhões de euros. Seria em 2020, porém, que chagariam os contratos mais avultados. O primeiro em Março, no valor de 43,4 milhões de euros, para quatro meios aéreos durante quatro anos, em que terá ‘derrotado’ nove concorrentes. E o segundo, no mesmo mês, no valor de 36,2 milhões de euros, em que ‘derrotou’ 10 concorrentes.

    Porém, em 2022, soube-se que a Agro-Montiar alugou duas das quatro aeronaves a uma das concorrentes que derrotara, a CCB Serviços Aéreos, com capitais de um dos envolvidos na ‘Cartel del Fuego’, Ángel Martinez Ridao, que controla a SAETA e a Martínez Ridao Aviación. No entanto, em Portugal, apesar dos gastos milionários no uso de meios aéreos no combate aos incêndios, com fracos resultados, nunca as autoridades encontraram as mesmas evidências confirmadas em Espanha pela Audiência Nacional.

    Foto: D.R.

    Em 2023 e 2024, a Agro-Montiar obteve mais três contratos similares no valor total de 19,4 milhões de euros. Com os três agora assinados na semana passada com a Força Aérea Portuguesa, a empresa de capitais espanhóis, cuja ‘holding’ encabeçava o ‘Cartel del Fuego’, totaliza contratos públicos em Portugal no valor de quase 186 milhões de euros, que com IVA ultrapassa os 228 milhões de euros. Desde 2020, o valor da facturação foi de 158,3 milhões de euros, que com IVA aproxima-se dos 195 milhões de euros, todos com a Força Aérea.

    O PÁGINA UM aguarda eventuais comentários do Ministério da Defesa sobre os contratos estabelecidos com a Agro-Montiar.

  • Clientes da família Montenegro tiveram lucros anuais de mais de 110 milhões de euros

    Clientes da família Montenegro tiveram lucros anuais de mais de 110 milhões de euros

    Não são pequenas nem remediadas as empresas que atribuem avenças à Spinumviva, a consultora criada por Luís Montenegro e gerida, na sua casa de Espinho, pela sua mulher e dois filhos. Os irmãos Violas – donos da Solverde e da CLIP – e Fernando Pinho Teixeira – dono da Ferpinta – estão no top 30 das maiores fortunas nacionais. E a Rádio Popular, de dois irmãos de Vila Nova de Gaia, é uma cadeia de lojas de electrodomésticos em franca projecção financeira.

    Mais do que olhar para esse status financeiro, aquilo que maior estranheza pode causar é a necessidade de estes empresários recorrerem aos serviços externos de um político no activo – e ainda mais de uma empresa familiar de um primeiro-ministro – se o objectivo fosse somente executar uma simples tarefa de encarregado de protecção de dados. A proximidade geográfica aparenta ser uma explicação, o que configura uma teia de influências também pessoais.

    De entre as clientes da Spinumviva, a que chama mais atenção é a Solverde. Mas embora seja uma empresa bastante lucrativa, com cerca de 14 milhões de euros de resultados líquidos positivos em 2023, este valor acaba por se ‘diluir’ no colosso da ‘casa-mãe’, o Grupo Violas – a SGPS que consolida as contas das dezenas de empresas dos irmãos Manuel e Rita Violas.

    De acordo com as contas consolidadas referentes aos dois últimos exercícios – as contas de 2024 ainda não foram concluídas –, consultadas pelo PÁGINA UM, o Grupo Violas registou uma facturação superior a 962 milhões de euros em 2023, que resultou num lucro de 84,4 milhões de euros. Juntando os dois anos, o grupo familiar acumulou lucros de 163 milhões de euros, com resultados operacionais que ascenderam a quase 362 milhões de euros. Os resultados, contudo, poderiam ainda ser melhores se não fosse o elevado endividamento das diversas empresas, que ‘obrigaram’ a despender mais de 35 milhões de euros em juros em 2022 e 2023, dos quais 21 milhões neste último ano. Todo o Grupo Violas conta com 3725 trabalhadores.

    Os irmãos Manuel e Rita Celeste, cuja fortuna está avaliada em cerca de 939 milhões de euros, encontram-se na 14ª posição da lista dos mais ricos da Forbes Portugal. Só no capital próprio do grupo – detida em partes iguais pelos dois irmãos – estão contabilizados 710 milhões de euros, que obviamente excluem eventuais distribuições de dividendos e recebimentos como administradores.  Tamanho desempenho do grupo deve-se ao conglomerado de negócios e dezenas de participações directas e indirectas em empresas de diversos sectores: dos casinos, às bebidas, passando pelo imobiliário e pela educação, sendo que 53% dos lucros de 2023 vieram de empresas não controladas.

    Apesar da gestão discreta destas actividades empresariais, os dois irmãos de Espinho têm sido atingidos por algumas polémicas.  Em 2021, o Expresso revelou que os irmãos Violas surgiam nos ‘Pandora Papers’ como dono da empresa Marplex Enterprises Limited, criada em 2010 nas Ilhas Virgens Britânicas. Segundo o jornal, a base de dados dos ‘Pandora Papers’ apontava que a Marplex tinha dois beneficiários: Manuel Violas e a irmã Rita Celeste Violas. 

    Manuel Violas / Foto: D.R.

    Na altura, o Expresso questionou o empresário de Espinho, através da assessoria de comunicação do grupo Solverde, mas sem qualquer sucesso. Desconhece-se, assim, se o alegado uso de uma off-shore tinha algum objetivo de optimização fiscal. Em todo o caso, acrescente-se que o Grupo Violas apresenta, nas contas consolidadas de 2022 e 2023, o pagamento de impostos (IRC) de 54,7 milhões de euros ao Estado.

    A segunda cliente mais importante da família Montenegro, o Grupo Ferpinta, pertence ao empresário Fernando Pinho Teixeira com uma fortuna avaliada em cerca de 493 milhões de euros, o que o levou a ocupar, no ano passado, a 26ª posição da lista dos mais ricos da revista Forbes Portugal.

    O denominado ‘rei do aço’ tem o negócio em Oliveira de Azeméis, também no distrito de Aveiro, tendo, nos últimos anos, alargado os negócios para Espanha e África (Costa do Marfim e Guiné-Bissau) e para o sector dos equipamentos agrícolas e para o turismo, já com dois resorts no arquipélago da Madeira. A facturação em 2023, de acordo com as contas consolidadas analisadas pelo PÁGINA UM, rondou os 305 milhões de euros, mas os lucros cifraram-se nos 16,6 milhões de euros, uma queda de 61% face a ano anterior. Em todo o caso, os activos da Ferpinta atingem os 317 milhões de euros e os capitais próprios aproximam-se dos 272 milhões.

    Ferpinta é um dos clientes mais endinheirados da família Montenegro.

    Também discreto, o empresário esteve envolvido numa polémica familiar e fiscal ao ter sido condenado a pagar 2,7 milhões de euros por esconder a fortuna ao Fisco. A condenação surgiu depois de o milionário ter sido apanhado por ter realizado uma operação financeira, que envolveu a passagem para os filhos do domínio do Grupo. Tudo para evitar que a actriz Marina Santiago, nascida de uma relação extramatrimonial, fosse reconhecida como filha. A actriz tinha iniciado uma acção de investigação da paternidade em Janeiro de 2006, situação que recebeu forte oposição do empresário.

    Apesar disso, em 2016, o comendador foi declarado pelo Supremo Tribunal de Justiça como pai da actriz e o milionário viu recusada a pretensão de ser retirado à filha o direito de ser sua herdeira. Nesse processo, o principal acionista da Ferpinta faltou por cinco vezes à realização de testes de ADN no Instituto de Medicina Legal do Porto, e apenas anuiu por ordem do Supremo Tribunal de Justiça. O teste de ADN confirmou a filiação.

    A terceira grande cliente da família Montenegro é a Rádio Popular, com sede na Maia, a conhecida cadeia de 61 lojas de venda de electrodomésticos, detida pelo Grupo Hipotenusa, dos irmãos Ilídio e Edgar Oliveira e Silva. A sede do grupo é em Arcozelo, no concelho de Vila Nova de Gaia, mas os dois irmãos também têm interesses empresariais em Espinho, uma vez que são proprietários da imobiliária Promoespinho.

    Apesar de não serem tão ricos como os irmãos Viola e o comendador Fernando Pinho Teixeira, os irmãos Oliveira e Silva não se podem queixar. Em 2023, a Rádio Popular facturou, de acordo com a análise do PÁGINA UM, cerca de 266 milhões de euros, apresentando lucros de 11,7 milhões de euros. O capital próprio da empresa atingia então os 39 milhões de euros, quase quatro vezes o valor investido pelos dois irmãos accionistas.

    Ilídio Silva (ao centro) / Foto: D.R.

    Por fim, a quarta cliente da família Montenegro – se se considerar que o Grupo Violas agrega a CLIP e a Ferpinta – é a Lopes Barata Consultoria e Gestão, menos conhecida e aparentemente menos desafogada. Fundada em 2016, a empresa tem sido em Arcozelo, no concelho de Vila Nova de Gaiam, sendo detida por Gustavo Barata e a mulher.

    Exercendo actividade no comércio por grosso de produtos farmacêuticos – durante a pandemia chegaram a vender 50 mil euros em equipamentos de protecção individual ao município do Porto –, ignora-se a situação financeira da empresa, porque esta simplesmente nem deposita as contas desde 2017. Em todo o caso, segundo apurou o PÁGINA UM, Gustavo Barata detém sete farmácias e uma parafarmácia, nos distritos do Porto e Braga, através da empresa unipessoal Lopes Barata Unipessoal. A empresa, contudo, não apresentou a Informação Empresarial Simplificada relativa ao ano de 2023.

  • Administração Biden fez mais do dobro dos repatriamentos de Trump

    Administração Biden fez mais do dobro dos repatriamentos de Trump

    A Administração Biden, cujo mandato decorreu entre 2021 e 2024, mais do que duplicou o número de repatriamentos de estrangeiros face aos anos do primeiro mandato de Donald Trump (2017-2020), embora usando um expediente especial – uma lei sanitária de 1944, o Título 42 – que fez baixar artificialmente as deportações formais. Estes dados foram recolhidos e analisados pelo PÁGINA UM nos relatórios do Serviço de Imigração e Alfândega (Immigration and Customs Enforcement) e de uma unidade de estatística do Departamento de Segurança Interna (DHS) dos Estados Unidos, com informação detalhada desde 1996 até finais de 2024.

    Apesar de a recém-formada Administração Trump ter elegido o controlo intensivo da imigração ilegal como uma das suas bandeiras – provocando já celeuma com deportações para o Brasil e a Colômbia –, certo é que, nos últimos quatro anos, os Estados Unidos até impediram um maior número de permanências face aos anos anteriores.

    Criança numa caravana de migrantes a caminho dos Estados Unidos. Foto: AFP

    Considerando todas as tipologias de repatriamento – retornos administrativos e forçados, deportações coercivas e expulsões sob regimes específicos, como o Título 42 –, foram contabilizados 777.590 processos ao longo de 2024. De entre estes, os retornos administrativos – aplicados quando um estrangeiro é intercetado na fronteira ou detetada a sua ilegalidade em inspeções regulares e sai voluntariamente do território norte-americano sem ser sujeito a um processo formal de deportação – totalizaram 92.310 casos, ou seja, 12% do total. No caso dos retornos forçados (‘enforcement returns’) – que não envolvem processo judicial completo, sendo uma forma simplificada de repatriamento –, no ano passado contabilizaram-se 355.290 casos, ou seja, 46% do total.

    Já as deportações coercivas, também denominadas formalmente como remoções (‘removals’) – que implicam um processo legal mais rigoroso, com a expulsão e outras penalidades, baseando-se em violações das leis de imigração –, atingiram os 329.990 casos, representando 42% do total.

    O total de repatriamentos a partir dos Estados Unidos no último ano civil do mandato de Joe Biden supera qualquer dos quatro anos do primeiro mandato de Donald Trump. Mas a contabilidade ainda se torna mais tenebrosa, e altera a perceção, se se contabilizar o período em que se aplicou o regime especial do Título 42, durante a pandemia. Aí, chega-se à conclusão de que, no mandato de Joe Biden, entre 2021 e 2024, foram repatriadas 4.779.640 pessoas – contra 2.001.220 pessoas no primeiro mandato de Trump (2017-2020) –, o que torna este o terceiro presidente que mais repatriou desde o mandato de Eisenhower (1953-1960).

    Expulsões sumárias durante a pandemia, ao abrigo do Título 42, fundada numa lei sanitária de 1944, permitiu ‘mascarar’ ondas de deportações da Administração Trump..Foto: AP.

    Com efeito, tendo a Administração Biden repatriado, por ano, uma média de quase 1,2 milhões de pessoas, só foi superado por Bill Clinton (1,5 milhões por ano) e George W. Bush (1,3 milhões por ano). Na lista dos últimos 13 presidentes, Donald Trump surge, porventura surpreendentemente, apenas na nona posição em termos de repatriamentos totais – e é aquele que menos repatriou nos últimos 50 anos.

    A aplicação do Título 42 foi inicialmente usada pela Administração Trump, em Março de 2020, ‘ressuscitando’ uma lei sanitária de 1944, que permitia assim ao Governo adotar restrições à entrada de pessoas ou bens no país para prevenir a disseminação de doenças transmissíveis. Transposta para desburocratizar expulsões de forma sumária, Trump usou-a bastante para controlo da imigração a partir do México, alegando que a sobrelotação em centros de detenção promoveria surtos incontroláveis. Sem acesso ao sistema tradicional de imigração, incluindo o direito de solicitar asilo – e contrariando assim o direito internacional –, no final do primeiro mandato de Trump, entre março e setembro de 2020, foram expulsas quase 207 mil pessoas, cerca de 34% dos 608 mil repatriamentos daquele ano.

    Este número anual (608.380) foi o mais elevado do primeiro mandato de Trump. Antes da pandemia, sem Título 42, os repatriamentos da primeira Administração Trump tinham atingido 387 mil em 2017, um pouco mais de 487 mil no ano seguinte e cerca de 518 mil em 2019.

    Número médio de repatriamentos por ano de cada Administração norte-americana desde 1953. Barras a azul referem-se a presidente democratas; barras a vermelho a republicanos. Fonte: DHS.

    Se parece evidente que Trump usou, em 2020, a ‘desculpa’ da pandemia para expulsar mais imigrantes sem burocracias nem pingo de humanidade, então a Administração Biden abusou nos anos seguintes. De facto, se, no primeiro ano da pandemia, Trump usou o Título 42 para expulsar uma média mensal de quase 61 mil (em 10 meses), a Administração Biden tomou-lhe o ‘gosto’. Ao longo do primeiro ano de mandato, Joe Biden tinha, na sua conta, 1.071.080 repatriamentos apenas pelo Título 42, sem incluir as restantes ‘modalidades tradicionais’.

    Por esse motivo, só contabilisticamente, as deportações (‘removals’) nos Estados Unidos desceram de 234.340, em 2020 (era Trump), para apenas 85.100, em 2021 (primeiro ano da era Biden). Assim, juntando um pouco mais de 128 mil de retornos administrativos e quase 50 mil de retornos forçados, a Administração Biden acabou, no primeiro ano de mandato, por ‘mandar embora’ um total de 1.334.200 pessoas, um crescimento de 119% face ao ano anterior, ainda sob governo federal do seu opositor republicano.

    No ano seguinte, em 2022, o democrata repetiu a dose: os repatriamentos surgiram à boleia do famigerado Título 42, com base em supostos motivos de saúde pública. Nessa ‘modalidade’, foram expulsos, sem apelo nem agravo, mais de 1,1 milhões de pessoas, uma média próxima das 100 mil por mês. Além destes, foram ainda repatriados mais 154 mil por retornos administrativos, quase 81 mil por retornos forçados e cerca de 123 mil deportações coercivas. No total, em 2022, a Administração Biden repatriou quase 1,47 milhões de pessoas, de longe o número mais elevado desde 2010.

    Distribuição dos repatriamentos entre 2010 e 2024 por tipologia. Fonte: Office of Homeland Security Statisticas / DHS.

    Por via da maior facilidade de expulsar imigrantes através do Título 42, a Administração Biden teve um efeito talvez esperado: quem era sumariamente ‘atirado’ fora da fronteira tentava de novo. O relatório de 2022do Office of Homeland Statistics salienta que as expulsões ao abrigo do Título 42 contribuíram para “encontros” repetidos das autoridades com os mesmos indivíduos. “Em 2022, 26% dos encontros de aplicação da lei pela CBP [Agência de Proteção de Fronteiras e Alfândega] envolveram pessoas anteriormente encontradas nos 12 meses anteriores, em comparação com 45% dos encontros entre março e setembro de 2020, 35% em 2021 e uma média de 15% entre 2014 e 2019.”

    Somente em Maio de 2023 o Título 42 foi descontinuado, e o sistema de imigração norte-americano retornou às regras tradicionais, que exigem processos legais mais estruturados para avaliar os pedidos de asilo, impondo penalidades severas para reentradas não autorizadas. Nesse ano, ainda foram expulsos sumariamente, por essa via, um total de 579 mil pessoas, registando-se uma descida do total dos repatriamentos para valores próximos de 1,2 milhões de pessoas. Neste ano, já se observou uma subida das deportações ‘clássicas’, com recurso a meios judiciais, que se cifraram em 117.540 pessoas, enquanto os retornos forçados aumentaram para quase 289 mil e os retornos administrativos se quedaram nos 154 mil.

    Observando as expulsões de território norte-americano ao abrigo da aplicação do Título 42, os valores impressionam em quatro anos: 2.960.910 casos, representando 64% do total dos repatriamentos. Neste período, em cada 100 expulsos por esta via, 97 foram durante o mandato de Biden. Por causa disso, as deportações tiveram apenas um peso de 13% no total dos repatriamentos, quando, no quinquénio anterior à pandemia, representavam 71% do total dos repatriamentos.

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    Joe Biden usou e abusou de uma lei sanitária de 1944 para expulsar de forma imediata, sem apelo nem agravo, mais de 2,7 milhões de pessoas de imigrantes ilegais entre 2021 e 2023. Fonte: DR.

    Por esse motivo, mostra-se enganador analisar somente a evolução dos números de deportações considerando o período, uma vez que a descida entre 2021 e 2023 é fictícia. Sem pandemia, muitos casos de expulsão sumária seguiriam a via judicial. Também é certo que a expulsão sumária promoveu, indirectamente, uma ‘inflação’ de casos, já que quem fosse mandado sair ao abrigo do Título 42 não incorria nas penalizações (por regra, pena de prisão de dois anos) caso fosse novamente apanhado ilegalmente – e daí os novos ‘reencontros’ com as autoridades fronteiriças.

    Seja como for, o padrão do imigrante ilegal nos Estados Unidos não se modificou substancialmente nos últimos anos, embora se tenha intensificado em função do crescimento generalizado dos repatriamentos entre os períodos da primeira Administração Trump (2017-2020) e da Administração Biden (2021-2024). Com efeito, somando todas as modalidades de repatriamento, México (a grande distância), Guatemala e Honduras mantêm-se no topo, representando em conjunto 69% das ‘saídas’, mas com crescimentos acentuados.

    O vizinho do sudoeste dos Estados Unidos, onde maiores tensões fronteiriças existem, registou 1.061.890 repatriamentos no quadriénio 2017-2020 e subiu para 2.363.640 no mandato de Biden. Já a Guatemala teve um crescimento de 167%, passando de 187.220 repatriamentos no primeiro mandato de Trump para 500.260 no mandato de Biden. Quanto às Honduras, a subida relativa foi de 228% entre as administrações republicana e democrata, passando de 134.630 repatriamentos para 442.040.

    Top 20 dos países de origem dos imigrantes repatriados na Administração Trump (2017-2020) e na Administração Biden (2021-2024).

    Um dos sinais do recrudescimento dos repatriamentos na Administração Biden mostra-se pelo número de países com mais de 100 mil casos em quatro anos. No período do primeiro mandato de Trump, além da tríade habitual (México, Guatemala e Honduras), só as Filipinas ultrapassaram aquela fasquia, havendo apenas mais três países (El Salvador, Canadá e China) com repatriamentos acima de 50 mil. Já durante o mandato democrata, que agora terminou, contabilizam-se sete países acima de 100 mil repatriamentos em quatro anos: a tríade México, Guatemala e Honduras, e ainda El Salvador (que passou para a quarta posição), Filipinas, Índia e Canadá. Com mais de 50 mil deportações entre 2021 e 2024 contam-se também o Equador, China, Colômbia e Venezuela.

    De destacar que esta evolução mostra, de igual modo, que a pressão sobre as fronteiras norte-americanas está a recrudescer a partir da América Latina, sendo particularmente relevantes os crescimentos relativos dos repatriamentos do Equador, Colômbia, Venezuela, Haiti e mesmo Brasil.

    Apesar destes factos mostrarem que o partido democrata no poder foi mais ‘repressivo’ sobre estrangeiros ilegais, Donald Trump tem sido visto como um impiedoso adversário da imigração desde que tomou posse para o seu segundo mandato não consecutivo na Casa Branca. O 47.º presidente norte-americano prometeu a deportação de “milhões e milhões” de imigrantes.

    E, na última semana, já estalaram várias polémicas em torno do tema das deportações. O caso do avião com 88 brasileiros deportados gerou uma onda de indignação internacional, que os media tradicionais se encarregaram de reforçar, aproveitando para culpar Trump. Os cidadãos brasileiros estavam algemados e relataram ter sido alvo de maus-tratos durante o voo, onde seguiam 16 agentes de segurança dos Estados Unidos, além da tripulação composta por oito membros. O avião, com destino a Belo Horizonte, no sudeste do Estado de Minas Gerais, aterrou em Manaus devido a problemas técnicos, segundo informações do Ministério da Justiça brasileiro, citadas pela agência de notícias Reuters.

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    Zona fronteiriça. Foto: Greg Bulla.

    O Ministério das Relações Exteriores brasileiro anunciou na rede X que pedirá explicações aos Estados Unidos sobre o que classificou como o “tratamento degradante” a que foram sujeitos os brasileiros deportados. Saliente-se, contudo, que este foi já o segundo voo de imigrantes brasileiros ilegais indocumentados que chegou ao Brasil este ano, sendo que um ocorreu durante os últimos dias do mandato de Joe Biden.

    Outra polémica surgiu com a Colômbia, que é o terceiro maior parceiro comercial dos Estados Unidos na América Latina. O presidente colombiano, Gustavo Petro, começou por anunciar que o país iria recusar a aterragem de aviões militares norte-americanos com imigrantes deportados. Mas a ameaça de Trump de impor tarifas a produtos colombianos e outras sanções, nomeadamente a suspensão de vistos, surtiu efeito. Petro voltou atrás com a sua decisão, e a Casa Branca colocou a guerra comercial e as sanções em standby.

    O plano de ‘castigo’ dos Estados Unidos previa a imposição de tarifas de 25% sobre todos os produtos colombianos e ainda a proibição de viajar e a revogação de vistos atribuídos aos funcionários do governo colombiano. Também incluía sanções financeiras e bancárias, entre outras ameaças.

    Nos media, o tom geral tem sido de crítica à postura de Trump, sobretudo pelo recurso à táctica de ‘chantagem’ para pressionar o presidente colombiano. Numa outra polémica, foi noticiado também que a ‘polícia de imigração’ (ICE) recebeu autoridade sem precedentes para agilizar deportações, numa altura em que há relatos de ‘raides’ em diferentes locais nos Estados Unidos e as tropas norte-americanas estão a ser colocadas na fronteira com o México.

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    Foto: TheDigitalArtist

    Em todo o caso, convém referir que, quando tomou posse em 2017, Trump manifestou a sua intenção de criar um muro contínuo na longa fronteira de 3.142 quilómetros com o México para controlar a imigração. Queria mesmo obrigar aquele país a pagar pela obra, fazendo ameaças de sanções, cobranças de dívidas e cortes de acordos comerciais. Também prometeu ainda expulsar todos os imigrantes ilegais e previa aumentar os custos de taxas de entrada no país e de vistos temporários.

    Na campanha que então venceu contra Hillary Clinton, Trump queria obrigar as empresas a empregar primeiro cidadãos norte-americanos, sem exceção, e ainda pretendia vedar a entrada a sírios, iraquianos e outros cidadãos de países de maioria muçulmana.

    A realidade foi menos ‘brutal’, a tal ponto que a Administração Biden até acabou por repatriar muitos mais estrangeiros do que ele no seu primeiro mandato.

  • Empresa ‘estrela’ do ‘ChatGPT’ lusitano recebe milhões, mas tem capital de 108 euros e ainda nem apresentou contas de 2023

    Empresa ‘estrela’ do ‘ChatGPT’ lusitano recebe milhões, mas tem capital de 108 euros e ainda nem apresentou contas de 2023

    Fundada como empresa unipessoal em 2013, a Unbabel é uma das parceiras do projecto do ‘ChatGPT’ português, mas a casa-mãe, a Unbabel Inc, é norte-americana e é uma incógnita. Nos últimos anos, a empresa contou com o financiamento de seis projectos agraciados com fundos europeus, num total de perto de 21 milhões de euros. Além disso, tem realizado rondas de financiamento junto de empresas de capital de risco e investidores, com a última ronda a superar os 20 milhões de euros. Mas, apesar dos sonhos altos e da imagem ‘hi-tech’ a ‘portuguesa’ Unbabel tem apenas um capital social de 108 euros e, apesar de todo conhecimento em inteligência artificial, as últimas contas que divulgou foram as do ano de… 2022.


    De Samora Correia para o Mundo. A Unbabel, parceira ‘estrela’ do ‘ChatGPT’ português que deverá nascer em 2025, foi fundada por sócios portugueses. Hoje, a casa-mãe tem sede em São Francisco e a empresa tem escritórios em oito cidades, incluindo em Lisboa, Londres e Israel. Mas, apesar de trabalhar na área da inteligência artificial (IA), a ‘portuguesa’ Unbabel tem um capital social de apenas 108 euros e as últimas contas anuais conhecidas são as do ano de 2022.

    O reduzido montante de capital social não a impediu de ‘ganhar asas’ e angariar perto de 21 milhões de euros em fundos europeus tanto através da participação em cinco projectos no programa Portugal 2020 e um projecto contemplado no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Neste último financiamento, a Unbabel Unipessoal obteve 18,5 milhões de euros, dos quais 9,9 milhões de euros já entraram em ‘caixa’, para liderar a fundação do Centro para a AI Responsável, um projecto iniciado em 2021 e que tem data prevista de conclusão de Dezembro de 2025, englobando a criação da “próxima geração de produtos de IA”.

    A empresa é uma das principais protagonistas do projecto anunciado no mês passado, pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, que visa criar um grande modelo de linguagem (LLM, na sigla inglesa) em português ‘de Portugal’. O ‘AMÁLIA’, ou ‘Assistente Multimodal Automático de Linguagem com Inteligência Artificial’, é a primeira iniciativa divulgada no âmbito da ‘Agenda Nacional de Inteligência Artificial’ que será apresentada pelo governo no primeiro trimestre de 2025.

    Segundo o governo, o AMÁLIA “tem previsto um investimento de 5,5 milhões de euros e um calendário de trabalho e desenvolvimento de 18 meses, do qual resultará uma primeira versão multimodal” do projecto. Mas, a este valor “acresce o vasto investimento já realizado em infraestrutura de computação, projetos de desenvolvimento e recursos humanos especializados que contribuirão em grande medida para o desenvolvimento do LLM. Aqui está inserido o investimento no LLM GlorIA e também em infraestrutura de computação de alta-performance do Deucalion e Mare Nostrum 5, supercomputadores instalados, respectivamente, na Universidade do Minho e em Barcelona.

    Mas o AMÁLIA vai assentar num alicerce já existente: o Tower LLM, da Unbabel, idealizado para tarefas de tradução. Parte ‘dos tijolos’ para construir o ‘ChatGPT’ português virá de dados da Fundação Científica de Cálculo Nacional (FCCN). Paulo Dimas, vice-presidente de Inovação da Unbabel e CEO do Centro para IA Responsável, disse ao Eco que, além da Unbabel, está envolvida no AMÁLIA uma equipa de investigação da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova, liderada pelo professor João Magalhães, além da equipa de investigação no Instituto Superior Técnico (IST), liderada pelo professor André Martins, que é também vice-presidente do departamento de pesquisa de IA na Unbabel.

    Vasco Pedro, co-fundador e presidente-executivo da Unbabel é uma presença assídua nas edições da Web Summit. / Foto: D.R.

    A Unbabel é, assim, uma peça central no futuro LLM em português. Mas esta é apenas uma das facetas da empresa que já opera desde 2013 e, através de fusões e aquisições já está presente em diversos mercados. Hoje, disponibiliza serviços de tradução em mais de 30 línguas diferentes. A empresa emprega 328 trabalhadores e tem seis vagas abertas para diversas funções, segundo o seu site. A Unibabel Unipessoal tem a sua sede em Lisboa, na Rua Castilho 52. Mas a empresa está também presente em mais sete localizações: São Francisco (sede da casa-mãe, Unibabel Inc.), Londres, Edinburgo, Telavive, Cebu e Timisoara.

    A empresa nasceu como uma sociedade por quotas tendo como sócios fundadores o actual presidente-executivo, Vasco Pedro, e João Graça, Sofia Pessanha, Hugo Vieira da Silva e Hugo Prezado da Silva. Em 2023, integrou a empresa israelita Bablic, que foi fundada em 2011, bem como a alemã EVS Translations, criada em 1991. Antes, em 2021, tinha integrado a britânica Lingo24, com sede em Edinburgo, fundada em 2001.

    No final do ano passado, a empresa anunciou um aumento de capital de dois euros subscrito em dinheiro pelas “novas sócias Ged Tech Seed, Fundo de Capital de Risco Fechado e Ged Tech Growth, Fundo de Capital de Risco Fechado”, geridos pela Ged Ventures Portugal, Sociedade Capital de Risco, com sede em Lisboa. Após esta operação passou a ter um capital social de 108 euros, dos quais 101 euros são detidos pela Unbabel Inc., com sede em São Francisco, nos Estados Unidos, que como sociedade anónima não está obrigada a revelar os seus accionistas..

    Os restantes sócios da Unbabel ‘lusitana’, com uma quota simbólica de um euro cada, são os fundos de capital de risco Explorer Growth Fund II, III,IV, e V, geridos pela Explorer Investments – Sociedade de Capital de Risco, S.A, com sede em Lisboa;  e o Indico Opportunity Fund I – Fundo de Capital de Risco, gerido pela Indico Capital Partners, Sociedade de Capital de Risco, S.A, com sede em Lisboa.

    Também no final de 2023 foi anunciada a realização de uma emissão de obrigações no montante de 10 milhões de euros efectuada através de uma oferta particular.

    Desde o seu nascimento, a empresa tem realizado rondas de investimento, além dos financiamentos obtidos via fundos comunitários. Na última ronda, há um ano, a empresa angariou 21 milhões de dólares junto de um conjunto de investidores de capital de risco, nomeadamente, Iberis Capital, GED Ventures Portugal, Point 72, Notion, ScaleVentures Partners e Caixa Capital.

    Imagem do edifício-sede da Unbabel Unipessoal em Lisboa. / Foto: D.R.; Unababel

    Nas últimas contas anuais da Unbabel Unipessoal disponíveis, referentes a 2022, a empresa registou uma facturação de 16,7 milhões de euros e um resultado antes de depreciações, gastos de financiamento e impostos de 3,3 milhões de euros. Mas créditos fiscais de 2,3 milhões de euros fizeram saltar os lucros da empresa para 5,2 milhões de euros. Nas suas contas, a Unbabel contabilizou ainda um valor de 3,8 milhões de euros de activos por impostos diferidos.

    Do lado dos custos com pessoal, a empresa com sede em Lisboa registou gastos de 11,2 milhões de euros, dos quais 8,5 milhões de euros referentes a remunerações. Mas, contrastando com os custos, na Unbabel ‘portuguesa’, apenas se encontram activos fixos tangíveis de 177 mil euros e activos intangíveis de 25 mil euros. Traduzido ‘em miúdos’, o ‘tesouro’ desta Torre de Babel ‘inteligente’ lusa parece estar fora de Portugal.

    O PÁGINA UM contactou a Unbabel pedindo para, além de informações sobre os investimentos na ‘Amália’, serem identificados que eram os beneficários efectivos da Unbabel ‘lusitana’, porque não consta no registo nacional, quem eram os sócios com capital na Unbabel Inc. e se poderiam ser enviados os resultados financeiros dessa empresa com sede nos Estados Unidos. Além disso, considerando que os rendimentos da Unbabel ‘lusitana’ andam em redor de valores pouco acima de 10 milhões de euros, relativamente estáveis, perguntava-se se se afigurava estarmos perante um unicórnio, cujo conceito remete para uma startup com uma avaliação acima de mil milhões de dólares. O CEO e fundador da empresa, Vasco Pedro, ainda respondeu que sobre receitas e accionistas, “infelizmente não podemos divulgar” nada, mas prometendo que teriam “todo o gosto em ajudar” sobre o resto. Não ajudaram.


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  • De peças para navios até farinheiras e presunto: Gouveia e Melo bate recorde de ajustes directos na Marinha

    De peças para navios até farinheiras e presunto: Gouveia e Melo bate recorde de ajustes directos na Marinha

    Sob o comando de Gouveia e Melo, a Marinha bateu este ano o máximo de, pelo menos, seis anos, na adjudicação de contratos sem concurso público. A despesa em compras por ajuste directo, em 2024, já ultrapassou os 18,1 milhões de euros, num total de 703 contratos, dos quais 66 acima de 50 mil euros. Só estes últimos atingem, no total, 13,3 milhões de euros. Os ajustes directos serviram para comprar tudo: desde peças para navios até serviços de limpezas, passando até por chouriços e farinheiras. Nos últimos três anos, sob completa responsabilidade de Gouveia e Melo, os ajustes directos em contratos acima de 50 mil euros rondam os 30 milhões de euros. O recente ‘puxão de orelhas’ à Marinha, seguido de perdão, por parte do Tribunal de Contas, não serviu de nada.


    O recente ‘puxão de orelhas’ que o Tribunal de Contas deu a Gouveia e Melo por causa de contratos por ajuste directo feitos pela Marinha caíram em saco roto. Não só a Marinha prosseguiu com a prática de efectuar contratos sem concurso, como este ano bateu o recorde: até 1 de Novembro foram celebrados, através deste procedimento, um total de 703 contratos, envolvendo 18,1 milhões de euros. Se se excluir os ajustes directos inferiores a 50 mil euros, encontram-se ainda 66 que totalizam quase 13,3 milhões de euros. Trata-se do valor mais alto de pelo menos seis anos.

    De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, ao todo, apenas somando os ajustes directos de maior montante (acima de 50 mil euros), a Marinha gastou nos últimos três anos, sob a liderança de Gouveia e Melo, perto de 30 milhões de euros em compras de bens e aquisição de serviços sem concurso público ou sequer consulta prévia, ou outro qualquer procedimento de transparência pública e de fomento da livre concorrência.

    Foto: D.R.

    O valor total dos ajustes directos da Marinha em particular em 2024 – que ainda não terminou, sendo também habitual que haja atrasos na colocação dos contratos no Portal Base – está bem acima dos montantes globais tanto dos primeiros dois anos de ‘mandato’ de Gouveia e Melo como dois seus dois antecessores. Apenas incluindo os contratos acima de 50 mil euros, no ano passado contabilizam-se 56 ajustes directos no valor de cerca de 7,8 milhões de euros, enquanto em 2022, o primeiro ano completo com liderança de Gouveia e Melo, contam-se 71 ajustes directos envolvendo 8,6 milhões de euros. Em 2021, quase todo sob liderança de Mendes Calado, houve 70 contratos por ajuste directo acima de 50 mil euros, num montante global de 10,6 milhões de euros. Também sob as ordens de Mendes Calado, a Marinha realizou, acima dos 50 mil euros, 71 ajustes directos em 2020 e 60 em 2019, gastando 10,1 milhões e 7,2 milhões de euros, respectivamente.

    Este ano, além de chorudos contratos feitos para aquisição de serviços de limpeza, como o PÁGINA UM já noticiou, em Agosto passado, a Marinha adjudicou outros tantos milhões de euros numa panóplia de compras de bens e serviços. É o ‘vale tudo’. O modelo do ajuste directo serviu tanto para a compra de peças para navios de guerra, como a aquisição de software, serviços de limpeza, de vestuário profissional, de combustíveis, de purificadores do ar, de medicamentos, de serviços de telecomunicações, de máquinas para tratamento de águas residuais e até de enchidos, designadamente chouriço mourão, farinheira, fiambre e presunto.

    O ajuste directo com o valor mais elevado efectuado este ano pela Marinha, no montante de 735.681 euros, consistiu na contratação de serviços à empresa Reparaciones Navales Canarias, S.A., para a reparação urgente do navio patrulha ‘Zaire’. O contrato foi celebrado a 29 de Agosto sendo fundamentado com o já estafado e abusado argumento da “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.

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    Já o segundo maior contrato, no valor de 728.670 euros, diz respeito à contratação de serviços de limpeza à empresa Interlimpe – Facility services, SA e foi celebrado a 19 de Julho com a mesma fundamentação. Este contrato consistiu, em concreto, na “aquisição de serviços de Higiene e Limpeza no período de junho a outubro de 2024, com possibilidade de prorrogação para o mês de novembro de 2024, para o Comando Naval, a Escola de Tecnologias Navais, o Centro de Educação Física da Armada, o Centro de Avaliação Psicológica, o Centro de Medicina Naval, o Departamento de Logística Sanitária, a Escola Naval e o Departamento Marítimo do Sul”. De resto, nos ajustes directos acima dos 50 mil euros efectuados este ano, a Marinha conta com 12 contratos feitos com empresas de limpeza, superando os 3,3 milhões de euros.

    Ainda no pódio dos ajustes directos, consta ainda um contrato celebrado a 14 de Julho com a Empresa de Investigação e Desenvolvimento de Electrónica no montante de 601.972 euros com o argumento de que a adjudicação só podia ser confiada a esta entidade por ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. Não é incluído no Portal Base qualquer documento que justifique cabalmente essa decisão.

    Mas na longa lista de compras sem concurso feitas pela Marinha encontra-se mesmo de tudo. Até um contrato no valor de 215.640 euros para a compra de enchidos, designadamente chouriços mourão, farinheiras, fiambre e presunto, à empresa Carnes Loução – Industrial Carnes. Este contrato não está disponível, surgindo uma mensagem de erro na ligação para o documento, mas sabe-se que o ajuste directo foi concretizado a 4 de Abril. A justificação para este expediente remete para uma norma do Código dos Contratos Público que permite ajustes directos quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação para a formação de contratos de valor inferior aos limiares […], consoante o caso, todas as propostas ou todas as candidaturas tenham sido excluídas”. Também não há documentos no Portal Base que indiquem as razões para as exclusões.

    O recurso aos ajustes directos por parte da Marinha tem-se intensificado, apesar do ‘puxão de orelhas’ do Tribunal de Contas em Agosto passado, numa inspecção iniciada em 2022, que perdoou a Gouveia e Melo inúmeras infracções à lei dos contratos públicos, na sequência de dezenas de contratos que foram adjudicados à mesma empresa, a Proskiper, sem concurso e à margem do que a legislação permite, além de outro tipo de irregularidades.

    Evolução do valor dos ajustes directos da Marinha acima de 50 mil euros. Unidade: milhares de euros. Gouveia e Melo assumiu funções em Dezembro de 2021. Valores de 2024 até 1 de Novembro. Fonte: Portal Base.

    Recorde-se que Gouveia e Melo exerce as funções de Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional desde 27 de Dezembro de 2021, sendo que entre 2017 e 2020 foi Comandante Naval. Foi nesse período que assinou diversos contratos de ajuste directo à Proskipper. No relatório de auditoria a contratos da Marinha, o Tribunal de Contas entendeu que o então vice-almirante e outros responsáveis não tinham actuado com a intenção de violar a lei e concluiu que as suas acções foram passíveis de “um juízo de censura de falta de cuidado e mera negligência”, pelo que escapou a multas.

    Contactada para explicar este volume de ajustes directos, o Estado-Maior da Armada (ou Marinha) justificou que “está a celebrar estes contratos no estrito cumprimento do normativo em vigor e para satisfação das necessidades decorrentes da especificidade das suas atividades e meios, ressalvando-se a necessidade de celebração de contratos por inexistência de concorrência por motivos técnicos e por proteção de direitos exclusivos nas aquisições decorrentes das ações de manutenção dos meios navais operacionais e seus equipamentos, sistemas e respetivos componentes”. Indicou ainda que “este conjunto de procedimentos representam entre 65% a 70% da despesa por ajuste direto”.

    Instada a explicar a razão para invocar sistematicamente a “urgência imperiosa”, mesmo em casos que poderiam ser programados, para celebrar contratos por ajuste directo, a Marinha apenas se limitou a explicar a situação da aquisição de serviços de limpeza, que já tinha adiantado ao PÁGINA UM numa notícia anterior.

    Questionada sobre se a Marinha pretende, no futuro, optar por fazer mais vezes concursos em vez de ajustes directos, a Marinha respondeu que “tem vindo a introduzir melhorias significativas nos seus procedimentos de contratação pública e está a consolidar as medidas com esse objetivo”. Destacou, por exemplo, “a criação de um gabinete específico de normativo e apoio à contratação pública, que produziu e divulgou internamente diversas diretivas, normas técnicas, modelos padronizados e vários documentos de apoio à contratação pública”.

    Por outro lado, ressalvou “a reestruturação da organização financeira e patrimonial da Marinha tendo resultado na concentração de competências financeiras, concentração das estruturas executivas de compras, recursos e reformulação de processos”. Indicou que “esta restruturação permitiu a criação de centros de competências na área da contratação pública, incrementando as compras planeadas, agregadoras, de que resultou o aumento dos procedimentos concorrenciais e a redução do número geral de processos de despesa”.

    Ainda segundo a Marinha, “a uniformização dos procedimentos e a alteração do modelo organizacional permitiram nos últimos três anos uma redução de 47% no número total de procedimentos aquisitivos, com um aumento de 76% no número de procedimentos concorrenciais”.

    Apesar disso, no Portal Base o cenário é de um aumento no montante despendido através de ajustes directos, pelo que, pelo menos em 2024, as medidas da Marinha aparentam servir para encher chouriços.

    N.D. 18/11/2024; 22h15 – O antecessor imediato de Gouveia e Melo foi Mendes Calado, e não Silva Ribeiro, como inicialmente referido. Ao visado, as nossas desculpas.


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  • INE confirma que ocupação hospitalar durante a pandemia foi anormalmente baixa

    INE confirma que ocupação hospitalar durante a pandemia foi anormalmente baixa

    Já se sabia que em 2020 e 2021 as taxas de ocupação hospitalar tinham sido reduzidas, mas era preciso conhecer os valores de 2022 para saber se era uma situação de conjuntura ou estrutural. E os dados mais recentes do INE, divulgados esta semana confirmam mesmo: nunca houve tantas camas de hospitais disponíveis nos dois primeiros anos da pandemia nem tão poucos internamentos. Estes indicadores contrariam a tese de ter havido uma ruptura no Sistema Nacional de Saúde por causa de um aumento da procura, que até levaram a criação de hospitais de campanha, que estiveram ‘às moscas’. Os dados oficiais mostram que a taxa de ocupação hospitalar afundou de 78,8% em 2019 para 72% em 2020 e 74% em 2021, mas subiu depois em 2022 já com a covid-19 a tornar-se endémica. Quanto aos internamentos, se em 2019 se registaram no país 111,1 por cada mil habitantes, no ano de 2020 o número caiu para 94,3 no primeiro ano da pandemia. Afinal, paradoxalmente, a pandemia trouxe um estranho cenário de desafogo hospitalar.


    A taxa de ocupação hospital e o número de internamentos registados em Portugal afundaram durante os principais anos da pandemia de covid-19 para valores mínimos da última década. Segundo os novos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), actualizados no início desta semana, referentes ao ano de 2022 ainda não se verificava a ‘normalidade’, em termos de camas ocupadas nos hospitais e de internamentos em função da população, comparando com anos anteriores.

    De acordo com os dados do INE, a taxa de ocupação hospitalar em Portugal desceu de 78,8% em 2019 para os 72% em 2020, uma descida de sete pontos percentuais. Os internamentos caíram de 111,1 por cada mil habitantes para 94,3 em 2020. No ano de 2021, aqueles valores mantiveram-se abaixo da média do que era habitual ao longo da última década. Os indicadores contrariam algumas das mensagens de caos e crise nos hospitais durante a pandemia. Pelo contrário: os hospitais em Portugal registaram na pandemia de covid-19 algum desafogo em termos de ocupação e doentes internados.

    empty hospital bed

    De resto, em 2022, apesar de começar a notar-se um regresso à ‘normalidade’ em termos de internamentos e ocupação hospitalar, os dados revelam que os hospitais estavam ainda com indicadores de ocupação e internamentos abaixo do habitual. Assim, naquele ano, os internamentos situaram-se nos 105,9 por mil habitantes, estando aquém dos valores observados pré-pandemia, entre os 110,9 e 112,5 por mil habitantes. A excepção aqui vai para a Região Autónoma dos Açores que, em 2022, registou mais internamentos do que em média na década anterior.

    Quanto à taxa de ocupação hospitalar em Portugal, fixou-se nos 76,8% no ano de 2022, ainda inferior aos valores pré-pandemia. Entre 2013 e 2018, este indicador oscilou entre os 78,5% e os 80,4%.

    Por regiões, foi no Alentejo que se observou a maior queda na taxa de ocupação de camas nos hospitais, tendo passado de 83,3% em 2019 para 78,2%. Em matéria de internamentos, a maior quebra registou-se na Região Autónoma da Madeira, onde a taxa passou de 106,8 para 87,5 por mil habitantes.

    Poder-se-ia argumentar que a taxa de ocupação de camas se devesse ao aumento de camas instaladas durante os anos da pandemia, mas não foi isso que sucedeu, porque, se se olhar para os internamentos por região em função da população, os valores também baixaram consideravelmente nos anos da pandemia. No primeiro ano da pandemia, em 2020, os internamentos por mil pessoas baixaram cerca de 16% face à média do quinquénio anterior. Em 2021 e 2023 subiram ligeiramente, suplantando novamente os 100 internamentos por 1.000 pessoas, mas ficaram ainda aquém do período pré-pandemia.

    Na Área Metropolitana de Lisboa – onde também pelas valências hospitalares, este indicador está sempre um pouco inflacionado (por receber bastantes doentes de outras regiões) -, os valores somente foram mais baixos no primeiro ano da pandemia, passando de um valor médio anual de 128 internamentos por 1.000 pessoas no quinquénio 2015-2019 para apenas 108 no ano de 2020, voltando a subir logo acima dos 120 nos anos seguintes.

    A – Taxa de ocupação das camas nos hospitais (%); B – Internamentos nos hospitais por 1.000 habitantes. Fonte: INE

    Recorde-se que, na pandemia, a população foi aterrorizada pelas autoridades de saúde e pelos media, através de mensagens diárias com os números de vítimas mortais e estatísticas dos doentes com covid-19. Alas inteiras de hospitais foram encerradas, cirurgias e tratamentos foram adiados ou cancelados. Por exemplo, entre Março de 2020 e Julho de 2022 foram adiadas 235.989 cirurgias, segundo um relatório da Entidade Reguladora da Saúde. Estes adiamentos geraram um aumento de 45 dias no tempo de espera para uma cirurgia no Serviço Nacional de Saúde.

    Portugal foi, no rescaldo da pandemia, dos países europeus com níveis elevados de excesso de mortalidade, o que se mostra um paradoxo face à baixa ocupação hospitalar. Ou talvez não, uma vez que a opção por suspender diagnósticos e operações, e até a incentivar as populações a não se deslocar aos hospitais, só poderia resultar em duas coisas: hospitais mais vazios e morgues mais cheias.


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  • Fim de linha: Autoridade Tributária e Segurança Social dizem que dona da Visão continuou a aumentar calote durante o PER

    Fim de linha: Autoridade Tributária e Segurança Social dizem que dona da Visão continuou a aumentar calote durante o PER

    EDIÇÃO ESPECIAL: O Processo Especial de Revitalização (PER) da Trust in News só serviu para adiar o inevitável… e aumentar as dívidas do grupo de media ao Estado. Esta tarde soube-se da decisão final dos credores, que votaram contra a recuperação da dona da revista Visão (e de cerca de uma dezena e meia de outros títulos da imprensa), onde pontificam a Autoridade Tributária e a Segurança Social, que no conjunto detêm 51% dos direitos sobre as dívidas da empresa unipessoal do ex-jornalista Luís Delgado. A ‘máquina fiscal’ assegura agora que a Trust in News continuou este ano a aumentar as dívidas, que se situam agora em mais de 8,5 milhões de euros, e a Segurança Social informou que só em Maio passado houve um pagamento esporádico. A insolvência está cada vez mais próxima, e o risco do colapso completo das revistas do grupo – entre as quais a Visão, a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – é quase certo. Recorde-se que o PÁGINA UM foi o primeiro órgão de comunicação social a revelar, em Julho do ano passado, a situação desastrosa da Trust in News, que mentia no Portal da Transparência dos Media e que estava a beneficiar de um ‘tratamento especial’ do Governo de António Costa, que ‘permitiu’ que as dívidas fiscais e à Segurança Social se acumulassem até aos 15 milhões de euros.


    Fim de linha para Luís Delgado e para um modelo desastroso de negócios de media que levou uma empresa com capital social de apenas 10 mil euros a deter uma dezena e meia de títulos de imprensa e ‘conseguir’ o prodígio de acumular dívidas de mais de 30 milhões de euros em apenas oito anos.

    Foi chumbado esta tarde o plano do Processo Especial de Revitalização (PER) da Trust in News, com os votos tanto da Autoridade Tributária e Aduaneira (24,7% do crédito original) e da Segurança Social (27,3%), como de outras entidades, como os CTT (6,1% dos créditos) e mesmo jornalistas. No total, o PER foi chumbado por 61,16% dos credores, havendo a registar 10,1% de abstenções ou ausência de declaração de voto. Ao lado da continuação da Trust in News apareceu apenas a Impresa (13,5% do total dos créditos), a quem foram vendidas das revistas em 2018 –, o Novo Banco (10,8%) e o Banco Comercial Português (2,2%). No total, apenas 28,7% do volume de créditos quis salvar a gerência de Luís Delgado, estando neste lote também a agência de notícias Lusa, a Vodafone e a QDF, sendo que esta última empresa é o ‘senhorio’ da Trust in News, no Taguspark, a quem Luís Delgado devia 83 mil euros em Maio passado.

    Luís Delgado (à esquerda), dono e co-gerente da Trust in News, na altura em que assinou, em 2018, a compra das revistas da Impresa, presidida por Francisco Pedro Balsemão (à direita).

    A partir de agora, o administrador judicial provisório, Bruno Costa Pereira, solicitará à Trust in News e aos credores uma pronúncia sobre a eventual insolvência – que aparenta ser inevitável face ao ‘chumbo’ do PER e às dificuldades de obtenção de crédito imediato. Num caso destes, a suspensão da publicação das revistas será imediata, podendo, contudo, num processo de insolvência serem vendidos os títulos a terceiros, embora seja previsível que tal suceda somente se não houver ‘migração’ do passivo.

    Saliente-se que numa situação de insolvência será então possível averiguar se houve gestão danosa e mesmo se poderá averiguar as circunstâncias da estranha venda das revistas pela Impresa em 2018 a Luís Delgado, que constituiu uma empresa com um capital social de apenas 10 mil euros, e cuja contabilidade merece bastantes dúvidas.

    Uma das razões principais para este ‘chumbo’ do PER acabou por ser a falta de confiança dos principais credores em garantir que a Trust in News iria cumprir as obrigações passadas e as futuras. Até porque nem nos últimos meses, já com a ‘corda na garganta’, a gerência liderada por Luís Delgado – sócio único da empresa de media – se comportou de forma diferente. Num ofício ontem enviado pela AT, a directora de serviços de Gestão dos Créditos Tributários, Ana Tavares Silva, revelava que a Trust in News continuava a aumentar a dívida, salientando que a dívida fiscal é, actualmente, de 8.570.711,37 euros, ou seja, “um aumento da dívida, desde Janeiro de 2024, de 1.292.147,65 euros”.

    A dirigente da ‘máquina fiscal’ salienta que “não obstante as medidas de redução de custos previstas e incluídas nos planos anteriores, como indutoras e suscetíveis de reverter a situação de incumprimento crónico”, a Trust in News “não pára de constituir dívida nova”, apesar “dos compromissos assumidos para com o credor tributário de dar cumprimento ao plano prestacional implementado, bem como, ao cumprimento tempestivo e integral de todas as novas obrigações tributárias vincendas (declarativas e de pagamento)”.

    Constatando assim que os resultados dos últimos anos da Trust in News “não produz excedentes capazes de saldar o valor dos créditos em dívida”, a AT destaca ainda que a qualidade e quantidade das dívidas (retenções de IRS e IVA não entregues) enquadra-se num crime de abuso de confiança. Recorde-se, aliás, que Luís Delgado, e os outros dois gerentes da Trust in News (Cláudia Serra Campos e Filipe Passadouro), já sofreram uma condenação, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, conforme noticiou o PÁGINA UM, por abuso de confiança agravada, a dois anos e meio de prisão suspensa mas com a condição de pagamento. Ora, essa condenação diz apenas respeito às dívidas de menos de 900 mil euros.

    Em sentido similar foi a posição da Segurança Social. A própria presidente do Conselho Directivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), Teresa Cordeiro, salientou, na comunicação do voto desfavorável ao PER, que houve um “incumprimento reiterado do pagamento de contribuições por parte da empresa [Trust in News] desde Setembro de 2019 (inclusive), sendo que, desde esse mês, apenas ocorreram pagamentos esporádicos e parciais das contribuições mensais, sendo o único mês pago na totalidade o de Maio de 2024”, acrescentando que “a empresa não cumpriu nenhum dos planos prestacionais que foram autorizados e implementados”. Na deliberação, a IGFSS acrescentou também que se o PER viesse a ser eventualmente aprovado, seria interposto recurso da sentença de homologação, até porque houvera “consentimento expresso à modificação dos seus créditos”.

    De entre os documentos do PER, consultados pelo PÁGINA UM, destacam-se também os votos, grande parte dos quais contra, dos jornalistas das diversas revistas da Trust in News. Numa dessas cartas, a directora de arte da Caras, Carla Mendes, além de informar não ter recebido o salário de Outubro e o subsídio de férias, salienta que “diariamente estamos a perder condições e ferramentas essenciais de trabalho, sem qualquer explicação ou comunicação da administração. Aliás, são os próprios empregados sem qualquer cargo de direção, como eu, que vamos encontrando soluções que permitam contornar as dificuldades existentes para que se consigam fazer as revistas, que é o nosso produto”

    Crise na imprensa e crise na CCPJ: jornalismo a atravessar problemas crónicos de credibilidade.

    Esta jornalista, na missiva enviada para o processo, acusa a gerência da Trust in News de “não apresentar linhas condutoras de negócio, demonstra[ndo] total desconhecimento das necessidades e funções de uma editora”, acrescentando que o “comportamento danoso” da empresa a faz acreditar que “não haverá capacidade para pagar as dívidas”. E alerta, por fim, para a existência de “situações graves sociais decorrentes dos atrasos dos pagamentos”, apelando “à celeridade da resolução deste problema e de um esclarecimento sobre o que podemos contar nos próximos dias”, lamentando o “silêncio desesperante”.

    Recorde-se que o PÁGINA UM foi o primeiro órgão de comunicação social a revelar, em Julho do ano passado, a situação desastrosa da Trust in News, que mentia no Portal da Transparência dos Media e que estava a beneficiar de um ‘tratamento especial’ do Governo de António Costa, que ‘permitiu’ que as dívidas fiscais e à Segurança Social se acumulassem até aos 15 milhões de euros.


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