Autor: Clara Pinto Correia

  • Histórias de amor

    Histórias de amor

    No dia em que te conheci
    Rasguei todos os meus mapas
    (passagem de um antigo poema árabe)


    Aqui em Estremoz, morreu uma senhora de 93 anos que esteve óptima de corpo e de cabeça até há cerca de uns dois meses.

    Tantos anos, tantos anos.

    Provavelmente, viveu a vida inteira à espera do dia em que chegava de muito longe um desconhecido que se detinha à sua frente, a olhava até ao fundo dos olhos, e lhe punha a mão no ombro. E ela saberia logo quem ele era, embora, aqui em Estremoz, nunca o tivesse conhecido. Também nunca teria sonhado com ele. Ou, se tivesse sonhado, de manhã já se teria esquecido. Talvez o cheiro dele lhe fosse familiar. Talvez fosse o toque nítido da pele da palma da mão dele contra a pele do ombro dela. Talvez fosse a cor dos cabelos, ou então talvez fosse a cor da roupa. Ela ficava parada, confiante, a retribuir-lhe o olhar como num sorriso. E era então que ele lhe dizia exactamente o que dizem aqueles dois versos de um poema meio perdido, fragmentado pela erosão do tempo e pela evolução da língua. Era um código oculto, e ela reconhecia-o logo embora não o conhecesse antes. A partir daí, faria finalmente sentido enfrentar todos os desafios, superar todos os medos, levantar todas as amarras, e recomeçar a vida do zero, transformada numa viagem sem fim através do coração de tudo o que há de belo na vida, e que as pessoas sem código, aquelas que andam sempre de olhos postos no chão, nunca conseguem ver.

    Ora acontece que esse desconhecido que ela conhecia tão bem, portador dos dois versos antigos com qualquer coisa como poderes mágicos, e que ela esperara ouvir ano após ano após ano, vinha de tão longe que precisava de caminhar sem fim até chegar a Estremoz. E, como em qualquer outra época das civilizações humanas, estava sempre a perder tempo com desvios à sua rota mais rápida, para não morrer de cada vez que atravessasse o território de qualquer uma das guerras que há agora. Sempre foi assim, porque houve sempre muitas guerras. No fundo dos seus segredos, ela nunca deixou de esperar por ele durante os seus 93 anos de vida. E ele estava a caminho, e ela sabia que ele estava. Mas a distância era tão grande que se interpôs entre a vida e o sonho. Ela conseguiu esperar por ele até aos 93 anos. Mas, mesmo assim, ele não conseguiu chegar a tempo.

    E pronto. Em muito poucas palavras, e mesmo que elas ainda nunca tenham dado por isso, esta é, mais coisa menos coisa, a verdadeira história da vida de todas as mulheres do planeta.

    Nenhum mamífero, ou seja, nenhum animal como nós, pode considerar-se dado ao amor. Por natureza, nenhum mamífero é romântico. Uma das melhores provas disso é que nenhum mamífero é monogâmico. Mas, como no mundo vivo não há valores absolutos, conhecem-se 3% de excepções a esta regra. E a excepção mais excepcional de todas, por qualquer razão inexplicável que não atinge nenhuma das espécies que lhe são mais próximas, é… palavra de honra… a biologia não tem por força que fazer sentido… o mamífero mais empedernidamente monogâmico do mundo é o cão da pradaria!

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 2ª parte

    Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 2ª parte

    Continuando, de coração apertado, a catastrófica falta de informação sobre a morte do Archie a tentar suster a respiração mais tempo que todos os outros adolescentes em jogo.

    Se ninguém fizer nada em relação aos jogos assassinos do TikTok, já estou a imaginar a próxima catástrofe irresistivelmente apelativa, destinada diretamente e sem vergonha às criancinhas propriamente ditas, que acham sempre muita graça a estas grandes surpresas da História Natural: PUTOS DO MUNDO INTEIRO! Embora fazer um concurso para ver quem é que consegue ultrapassar o recorde do urso polar, que chega a aguentar-se três minutos sem respirar debaixo da água gelada[1], quando fecha as narinas e mergulha atrás das focas!


    … É muito fácil espicaçar as criancinhas para quererem mesmo ganhar um desafio desta envergadura.

    Hey, ganhar aos outros rapazes é uma vitória – mas ganhar aos ursos polares, os maiores e mais fortes ursos do mundo, isso não é só uma vitória, meu, isso é mesmo uma puta glória!

    E então, enquanto os pais se maravilhavam com esta espantosa nova informação – “três minutos? De narinas fechadas? Honey, estou parvo. Já viste bem o que é o poder da evolução?” – era ver as criancinhas a correrem para a praia mais próxima, tirarem a roupa, e mergulharem na água gelada até ao mais longe possível da costa[2]… e morrerem, claro. Não só por falta terminal de Oxigénio, mas também por hipotermia. E atenção, que para mergulhos em mares gelados não é propriamente preciso ir ao Ártico, onde se pode partilhar com o urso polar o seu habitat natural: a água das praias é gelada em praticamente todo o Norte da Europa, sobretudo para mergulhos de quatro minutos.

    Imagina-se facilmente o cenário seguinte, e o que a nossa Comunicação Social nos diria.

    Lá teriam os presidentes de todos os países da Alemanha para cima de decretar três dias de bandeiras nacionais a meia haste. Lá ouviríamos nós sempre as mesmas partes dos mesmos discursos. Lá ficariam os espectadores de Agosto, todos repimpados nas suas espreguiçadeiras, a emborcar uns destilados de fim de dia enquanto se gozavam sempre das mesmas imagens de meia dúzia de progenitores chorosos, falantes de diversas línguas, e de dezenas de corpinhos muito branquinhos dados à praia. E, uma vez mais, nunca haveria mais nada para dizer. Os espectadores em férias seriam a banda sonora.

    C’um caraças, Tó! Olha aqueles, olha aqueles, já viste aqueles putos pequeninos ali na rocha, todos completamente mortos?” – “Ai pai, não gosto nada quando tu dizes os putos” – “Filhota, caladinha se fachavor, o pai agora está a falar com o tio sobre os putos todos mortos[3].

    Clarinha e as outras dores. Algures durante os trinta anos em que foi normal ter uma casinha alugada no Penedo para férias e fins-de-semana da família, Clarinha mostra-nos exemplarmente que ela, ao menos, nunca deixou de ter presentes as dores dos outros e as suas causas

    Estas imagens sem debate eram ainda mais parecidas com uma série de aventuras mórbidas porque, ao longe, se viam outros corpinhos que ainda estavam a ser recolhidos por barcos e mergulhadores, antes que chegassem os tubarões, para que as famílias pudessem dar-lhes uma “despedida condigna”. E lá ouviríamos de meia em meia hora, em imagens da Finlândia aparentemente capturadas por um qualquer Smartfone deveras amador, os pais da pequena Aicha, com um ar destroçado, repetir o dia inteiro “ela sempre foi muito competitiva, e na nossa família sempre tivemos a tradição de mergulhar dentro do gelo…

    Mas alguém discutiu a legitimidade do TikTok para propor concursos virais de morte certa às criancinhas?

    Desculpem, era só uma pergunta retórica.

    Feita apenas porque DEVIA ter sido feita – e, no entanto, NINGUÉM a fez.

    Raios me partam, que isto era material com tantas pontas por onde se lhe pegasse. O que a nossa Comunicação Social desperdiça. E, em consequência, o que todos os Portugueses perdem.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Isto já é manipular grosseiramente os dados, porque estamos a falar do mergulho mais longo observado até à data: 3 minutos e 10 segundos. Mas, por regra, o mergulho do urso polar fica-se entre um ou dois minutos, não mais.

    [2] Com um bocado de sorte, ainda apanhavam também uma foca…

    [3] A esta hora o pai já lhe tinha chegado bem nos destilados. E, como a maior parte da população deste século, tinha uma dificuldade crescente em distinguir entre realidades e filmes quando estava a ver televisão.

  • Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 1ª parte

    Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 1ª parte

    Ahahah, pessoal!

    Agora é que vai ser.

    Apertem os cintos, que eu vou passar aqui umas boas de umas semaninhas a mandar vir.

    Vamos lá ver, pobre também tem direito. E eu posso ser indigente, mas não deixo, por isso, de saber ler e escrever. E, além disso, mesmo sem um tusto e um carro com vinte anos, nada me impede de ser filha de Deus. Além disso, sei observar. Há já muitos anos que a mediocridade da nossa Comunicação Social me exaspera. Quando a pessoa esbarra num perfeito caso-limite, uma autêntica hipérbole para tudo o que é feito com os pés, já que escreve crónicas, o melhor que tem a fazer é usá-las para partilhar a sua indignação com os outros, e explicá-la devidamente, porque o caso não é nada simples.

    Vamos, então, recuar até ao passado mês de Agosto…


    … Um rapazinho chamado Archie morreu a jogar um jogo viral no infame TikTok, que só se lembra de brincadeiras potencialmente nocivas para a vida das pessoas, e que nem se percebe como é que ainda não foi riscado do mapa. Ou então sou só eu que não percebo. Estou perfeitamente consciente de que sou uma autêntica relíquia medieval num mundo que não tem nada a ver comigo, nem eu quero que tenha.

    Mais ainda alguém se lembra?

    Olha que ideia tão gira, e sobretudo tão reveladora e tão educativa: malta, vamos fazer um concurso, e ganha quem aguentar sem respirar durante mais tempo. Este perigo público aparece no TikTok a seduzir os adolescentes com a mesma eficácia com que a serpente seduziu Eva, e todos os pais, mas mesmo todos, parecem achar normal que os seus filhos fiquem sozinhos a brincar com gadgets de toda a sorte que lhes dão acesso a loucuras desta dimensão obscena.

    Resultado: um belo dia, em Inglaterra, os pais de Archie, que tinha doze anos, encontram-no em casa comatoso, já em plena morte cerebral. O que não passa de um eufemismo simpático para dizer simplesmente M-O-R-T-E, com todas as letras, porque se o cérebro de uma pessoa está morto, então a pessoa está morta sem volta a dar ao texto, continue ou não o coração a bater.

    Depois foram semanas, e semanas, e semanas, de notícias piedosas, repetidas de meia em meia hora em todos os nossos canais informativos, sobre o sofrimento dos pais da criança. Usavam-se basicamente sempre as mesmas palavras, sempre com as mesmas imagens. Ou era um dos pais a chorar[1], ou eram os dois a pedir misericórdia aos médicos que tinham decidido por consenso geral desligar as máquinas, ou era alguém por eles a implorar ao Boris Jonhson que impedisse os médicos de prosseguirem a sua rota assassina, ou eram fotos recentes do menino, ainda vivinho da costa, a fazer poses para a câmara, ou a dar beijinhos à mãe.

    Pretinha Luanda, aos seis anos, quase pronta para a sua Primeira Comunhão. Compõe num segundo este ar angélico porque acaba de ter mais uma briga furiosa com a mana, e portanto, enquanto tenta com esforço apertar os sapatinhos brancos[2], repete para si própria a fórmula mágica, “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem.” Ao mesmo tempo, os mistérios dos adultos trotam-lhe na cabeça como um carrossel de doidos. Terá que cantar um solo perante o altar que, a certa altura, diz: “Cantai anjos a Maria/E ao Filho da Divina Graça/Que entrou e saiu por ela/Como Sol pela vidraça”.
    E os sentidos ocultos desta quadra são tantos que nem ela, que pode ser um diabinho mas é sempre a melhor da sua classe[3], consegue decifrá-los. Entrou e saiu? QUEM é entrou e saiu? Por onde? Pela vidraça? O SOL alguma vez ENTRA E SAI PELA VIDRAÇA? Para fazer o quê?
    Tudo bem, eu vou cantar isto mesmo, mas já estou como aquele romano a quem os judeus foram exigir que mandasse crucificar Jesus, nem me lembro do nome dele, mas não importa, o gajo foi esperto e eu faço o que ele fez. Eu canto que o Sol entrou e saiu com a Divina Graça numa cena que mete uma vidraça, se bem que me pareça que ainda não existiam vidraças por essa altura, não me esqueço de uma única palavra, não dou um único meio-tom, mas depois podem crer, malta: Eu por mim faço tudo como um anjinho, mas depois podem crer que lavo daí as minhas mãos[4]. Aqui nos trópicos há, realmente, imensos dias em que os adultos não batem bem, mesmo. É como diz o nosso Zé[4]: “Ué, Pritinha, quando branco fica doido, fica doido mêmo, cê viu?

    E nunca, em canal informativo nenhum, em linguagem acessível e por maioria de razão a horas acessíveis, obrigatoriamente protagonizado por pessoas entendidas na matéria, se ouviu um único bom debate sobre a legitimidade de se proporem a crianças e adolescentes “jogos” destes em redes sociais de facílimo acesso. Ainda por cima, como todos os jornalistas papagueavam, o desafio de suster a respiração era “VIRAL”. Ou seja, toda a gente o conhecia. Não era propriamente um desafio de tal forma escondido e encriptado que seria preciso a ajuda do Ed Snowden para se conseguir encontrá-lo.

    Então e o TikTok não é automaticamente fechado porque mata meninos de doze anos?

    Ao menos não paga uma multa vingativa?

    Ninguém vai preso?

    Não é obrigado a barrar conteúdos destes, como, por exemplo, o Facebook acabou por barrar o excesso de palermices postadas sobre as vacinas durante os primeiros meses da Pandemia COVID, ou o Twitter acabou por barrar alguns dos piores insultos do Trump durante a primeira campanha?

    E ninguém discute estas questões na nossa Comunicação Social, se bem que se arranjem sempre duas horinhas para discutir o futebol?

    Mas o que vem a ser isto?

    É da vaga de calor? Está tudo a dormir? E ninguém se preocupa com a inteligência dos espectadores portugueses? Ou será que já se decidiu em conluio secreto que a missão dos media é mesmo esta, é estupidificá-los brutalmente enquanto eles bebem umas jolas com os pés ainda cheios de areia, porque é isso mesmo que se faz às pessoas quando, finalmente, chega o facilitismo do tão aguardado mês de Agosto?

    Epá.

    Não, a sério.

    Valha-me Deus.

    Uma desinformação combinada como esta é positivamente criminosa.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sobretudo a Mãe, que era muito mais faladora, e sobretudo muitíssimo mais “camera-friendly” do que o esposo.

    [2] Uma das características desta criança insuportável é andar sempre descalça. Pudera. Como nasceu prematura tem os dedinhos do pé terrivelmente deformados, e não há sapato que não a magoe. Mas algum adulto se chega à frente para a ouvir? Ora. É mais que qualquer adulto se chega à frente para lhe dar um par de estalos.
    [3] Mais uma razão para as freiras a considerarem um diabinho.
    [4] Tomara eu ser esperta como esse romano, mas só tenho seis anos e a pessoa não nasce com o estilo já todo aprendido. Pelo meio destas minhas dúvidas teológicas, já sei que vou ouvir das boas porque não estou mesmo a conseguir calçar os sapatinhos.
    [5] O Zé tinha dezoito anos, e os nossos familiares mais conservadores diziam que ele era o “boy” das meninas. Para nós, ele era o Zé, mais nada. Chegava de manhã cedo do moceque da CuCa, supervisiona-nos o dia inteiro com muito humor e ainda mais carinho, e só voltava para casa depois de já estarmos na cama. Se fosse preciso ficar até mais tarde devido à agenda dos nossos Pais, contava-nos histórias de terror verdadeiramente terríveis, com tribos em que os homens eram iguais aos outros durante o dia mas à meia-noite se transformavam em leopardos e podia ir um, ainda homem, a passar diante da nossa casa naquele preciso momento. Eu devorava aquilo tudo, e depois, claro – ficava com tanto medo do escuro que já nem conseguia dormir.

  • Ó kota, tu bates bem?

    Ó kota, tu bates bem?

    Para concluir dignamente a triste história do grande romance que eu passei 23 anos a incubar e mais quatro anos a escrever, e da sua morte às mãos daqueles que fazem a opinião dos portugueses, resta-me revelar porque é que foi que nunca houve uma boa estratégia de divulgação e promoção por parte da editora, capaz de romper um mínimo da muralha de aço erguida em torno de tudo o que me dizia respeito. O resto seria um castelo de cartas. Todas as pessoas da minha geração se lembram da comoção com que assistimos, dia após dia, à destruição do Muro de Berlim, que acabou por ficar de rastos como um verdadeiro tigre de papel, incapaz de conter mais boicote algum. Depois do livro americano, este romance, que ainda por cima logo a seguir até ganhou um legítimo prémio literário, podia ter o mesmo efeito. Mas, para isso, era preciso que o editor se esforçasse…


    … O problema foi que o editor estava furioso comigo.

    Porque eu, pérfida, em vez de um best-seller tinha-lhe impinjido um mono que ninguém comprava.

    Inicialmente, quando recebeu e leu o manuscrito, disse à minha frente, em altas vozes, e a quem o queria ouvir, que ninguém escrevia com aquela pujança desde a morte do Zé Cardoso Pires. Eu quase que morri, porque não é possível comparar ninguém com o Zé Cardoso Pires. Mas ele estava entusiasmadíssimo, e absolutamente convencido de ter nas mãos uma daquelas obras-primas que enchem as editoras de dinheiro. Eu fartei-me de o alertar para a existência da muralha de aço, mas ele só dizia que, com um romance daqueles, isso ia desvanecer-se em névoas cada vez mais ténues. Durante todo esse tempo, sempre que eu tinha que ir à editora, que ficava algures nos arredores da Parede, pagava-me gentilmente o táxi que me levava lá a partir da estação (eu não tinha um tuste, mas tinha o passe), e pagava-me o táxi de volta.

    Eu bem tentei explicar que era impossível que as pessoas se interessassem pelo livro se não sabiam que ele existia.

    Como não sabem!,” gritou-me logo a esposa e secretária do editor, uma brasileira gorda de metade da idade dele e com ar de tanque Panzer. “O seu romance está em todas as montras!

    Não basta um livro estar nas montras para se reparar nele,” respondi eu docemente. “Estive com o Tolentino Mendonça. Ele sabia, desde antes de eu ir para a América, tanto do projecto do livro científico como do projecto do romance. Quando eu lhe disse que já tinham saído os dois, ficou a olhar para mim com um ar aterrorizado, e só conseguia repetir Ó Clara… Ó Clara…

    Olha que esse Tolentino Mendonça tem que ser um grande imbecil!,” gritou outra vez o Panzer. “ Pois se o livro está em todas as montras…

    Claro que a reunião ficou por aqui.

    Quem é que mandou andar a brincar com estas coisas…

    O problema é que o editor não me reembolsou pelo táxi da estação à editora, embora eu lhe tivesse dado a factura logo à chegada; e também não deu quaisquer sinais de estar em vias de puxar de uma notinha de cinco euros para o regresso. Telefonaram a chamar-me um táxi e já gozas. Os bons tempos tinham declaradamente chegado ao fim.

    Entrei no táxi sem aflições, porque aquelas corridas costumavam ser quatro euros e meio, e isso eu ainda tinha na carteira. Ia ficar sem cigarros, mas ao menos regressava de cabeça erguida.

    Só que, na estação, o taxímetro marcava cinco euros e meio.

    Paga-se um euro a mais pela chamada telefónica.

    Oiça,” disse eu ao taxista, um jovem todo bonito e bronzeado, com umas belíssimas tatuagens nos braços musculados. “Eu não vinha preparada para ser eu a pagar. Tenho quatro euros e meio, mas não tenho mais. Se quiser, podemos ir à polícia. Ou podemos voltar à editora. Veja lá…

    Só tem quatro euros e meio?,” rosnou o miúdo.

    Só. Mas, se quiser…

    Passe-me mas é todo o dinheiro que tem aí.

    Passei-lhe a minha bolsa, de onde ainda saíram mais umas moedinhas pretas para ajudar à festa.

    Se quiser…

    Não quero nada. Vá lá à sua vida e não me chateie mais.

    Sabe, eu tinha…

    Ele virou-se para trás, olhou-me de frente nos olhos, e encerrou assim o assunto, de uma vez por todas:

    A senhora já tinha era idade para ter juízo!

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Para que é que foste acreditar em Deus?

    Para que é que foste acreditar em Deus?

    Falei-vos da importância que tiveram para mim os três últimos anos que passei nos Estados Unidos, mergulhada na emoção da voltar a escrever livros científicos e na alegria de voltar a dar aulas, ainda por cima a alunos selecionados para estarem ali por terem sido identificados como sobredotados. Comecei a sentir-me tão feliz e tão útil, tão leve, tão cheia de Força, que, logo na véspera de Natal de 2014, acordei às seis da manhã com o dia a romper, a neve a cair suavemente lá fora, e o primeiro parágrafo do meu novo romance a escrever-se sozinho na minha cabeça. Ainda lutei contra a investida daquelas frases todas, mas já não havia retrocesso possível. Levantei-me, fiz café, encharquei a cara em água fria, e comecei a escrever…


    Há que ver que eu tinha acordado a pensar naquele mesmo romance algures durante o Inverno de 1991. A mesma primeira frase do livro, a mesma última frase do primeiro capítulo. Sentei-me na cama entusiasmadíssima, com muito cuidado porque ainda era cedíssimo e o Dick continuava a dormir ao meu lado. Tenho sempre um bloco de apontamentos e uma caneta na cabeceira, para escrever tudo o que me vem à cabeça durante a noite, ou enquanto estou a ler. Já ia agarrar neles e desatar a escrevinhar furiosamente quando de repente me vieram as lágrimas aos olhos, deixei cair os braços, me encostei nas almofadas e acendi um cigarro para sofrer melhor[1].

    É que, em 1991, eu ia nos meus 31 anos. Era uma miúda. Não tinha, de maneira nenhuma, a maturidade, a capacidade de ver através das coisas e das pessoas, a sabedoria para ler sinais, que escrever um romance daqueles ia exigir de mim. Passei-o todo a pente fino na cabeça, ainda verti uma lagriminha, e deixei-o guardado para mais tarde.

    Para quando fosse capaz.

    E era agora, malta.

    Agora, 23 anos mais tarde, eu já ia nos 54. Já tinha comido o pão que o diabo amassou umas dez ou vinte vezes. Este diferencial tão acentuado era porque não sabia se deveria incluir as cirurgias ou não; e, se incluísse, se seriam mesmo todas, ou só as de anestesia geral[2].

    “Clarinha tenta ajudar um desgraçadinho fingindo que tem um orgasmo da treta, e nesse momento nem lhe passa pela cabeça que o grande malvado vai espetar com aquela porcaria toda na internet, declarando, assim, a sua crucificação definitiva.”

     Aos 54 anos, eu já tinha corrido o mundo inteiro. Já tinha sido incrivelmente feliz, e também já tinha sofrido de forma assaz indescritível. Já me tinha portado muito mal, mas também já tinha feito os impossíveis para trazer a felicidade aos outros. Mentira, e tinham-me mentido. Tinham-me insultado uma vez, duas vezes, três vezes – e depois tinham-me assassinado.

    Vivera rodeada de amigos, e depois ficara completamente sozinha. Agora estava insolvente, a sobreviver sabe Deus como com uma pequena bolsa da Fulbright numa das regiões mais caras dos EUA. Agora, agora sim.

    Agora eu estava mais do que pronta para escrever o meu romance.

    As memórias inventadas de uma gaja que nunca existiu, escritas à velocidade do seu pensamento.

    Escrevi com um prazer enorme, fiz milhares de revisões, de adições, de subtracções, de novas estruturas e outras tantas figuras – e, durante todo este tempo, acreditava sinceramente, nesta minha ingenuidade que não se resolve nem a estalo, que um romance daqueles, do alto do imenso poderio das suas oitocentas páginas, publicado logo a seguir à publicação de um livro científico feito em co-autoria com o Grande Papa[3] da Biologia do Desenvolvimento e dado à estampa por uma das melhores editoras académicas do mundo, ia de certeza reabilitar-me aos olhos dos portugueses e dar-me o direito a voltar a estar viva.

    Coitadinha da Clarinha, que até acredita em Deus.

    Cheguei à sessão de lançamento na FNAC/Chiado toda fresquinha, acabada de vir de fora, e a primeira coisa que notei foi que não estava lá um único membro da Comunicação Social.

    Céus,” pensei eu, “isto ainda vai ser mais duro do que aquilo que eu previa.” E, por acaso, foi pior ainda.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] É verdade, é. O que as coisas mudaram na América. Nos anos 90 ainda se fumava em casa, mesmo na cama, e os nossos companheiros nem se lembravam de nos xingar o juízo.

    [2] A pior coisa que um médico que eu não conheço pode perguntar-me, assim de chofre, é “quantas cirurgias fez?”. Tenho sempre que pedir-lhe que espere um bocadinho para contar pelos dedos. E, mesmo sabendo que o número bate algures nos vinte, também tenho que fazer a fatídica pergunta de contar só a anestesia geral, ou se também vale a anestesia local, que inflacciona logo os valores básicos. Sou uma doente profissional, o que é que querem? E, como é evidente, não fui eu quem escolheu nascer assim.

    [3] A expressão adequada talvez seja antes Grande Rabino, uma vez que o Scott é Judeu. Para as pessoas da nossa área de especialidade, este homem é, apenas, o Judeu que escreveu a Bíblia.

  • Vai-te embora ó melga!

    Vai-te embora ó melga!

    Já vos contei que, depois de descobrir que o meu País fazia questão de me dar por morta; e que, sendo assim, nunca mais me daria qualquer nova oportunidade, fiz a única coisa que me restava fazer, e voltei a emigrar para os Estados Unidos. Não era isso que eu queria, mas recusava-me a morrer, ponto final parágrafo.

    Durante os três anos desse período que acabou por ser extremamente emocionante, estive a estudar até mesmo ao fundo para o nosso livro[1] tudo o que acontecia às pessoas que se metiam nas rodas dentadas das mais de quarenta técnicas existentes à época de Reprodução Medicamente Assistida[2], e a dar aulas fantásticas a alunos sobredotados.

    E, ao mesmo tempo, voltei outra vez a guiar debaixo do grande silêncio da neve, e depois a curtir as noites mornas, encharcadas em pirilampos gigantescos, que assinalavam a passagem do Verão. A verdade é que, sozinha nesta grande aventura, subi de nível, me tornei completamente bilingue, deixei de precisar da ajuda fosse de quem fosse, e essa sensação de liberdade e qualidade tornou a minha pesquisa absolutamente maravilhosa…


    … A minha nova capacidade profissional começou a funcionar cada vez melhor. Os nossos avaliadores, que inicialmente me criticavam porque eu lhes parecia demasiado irónica, ficaram absolutamente boquiabertos quando eu integrei no texto um parágrafo simples e divertido, onde se explicava que também eu era estéril, também eu tinha feito quatro tentativas de fecundação in vitro (FIV) em quatro meses seguidos, também eu depois naufragara numa enorme depressão que incluiu duas tentativas de suicídio, portanto podia escrever com toda a segurança e todo o conhecimento de causa de quem conhece muito bem o terreno, e depois do que lhe aconteceu passou a vida a ajudar outras mulheres a recomporem-se através da terapia do riso[3].

    De maneira que, às tantas, o Scott já nem se preocupava com as críticas e os comentários deles, porque aquilo era quase tudo para mim; tal como não se preocupava em reler o que eu escrevia de volta. E eu sentia-me cada vez mais fluida, cada vez mais em uníssono com o que os nossos colegas que nos avaliavam nos pediam.

    Ganda ping-pong intelectual e eu no centro, topam?

    Caraças.

    Foi muito bom.

    Profª Drª Clara Pinto-Correia, em pose

    Finalmente, em 2018 o livro foi publicado pela Columbia University Press[4] com o título[5] FEAR, WONDER, AND SCIENCE in the new age of biotechnology. Recebeu logo várias críticas muito positivas, umas de colegas nossos e outras de espontâneos frequentadores da Amazon ou outros espaços desses[6].

    Os japoneses gostaram tanto dele que acto contínuo o compraram e o publicaram, sendo que, pelo meio, nos convidaram aos dois para uma semana de conferências em várias grandes universidades japonesas.

    Mas em Portugal não se ouviu nem um pio, e eu fiquei logo toda arrepiadinha.

    Em Portugal, onde seria tão importante um bom manual de informação séria mas legível, e até divertida, sobre todos estes temas.

    Em Portugal, onde as pessoas são de tal forma ignorantes que continuam a usar o arcaico e insultuoso “barriga de aluguer”, em vez do estipulado “mãe hospedeira[7]”.

    Quer dizer, era impossível ser eu que estava a inventar mais assassinatos.

    Ainda mandei dez dos vinte exemplares a que tive direito para algumas pessoas muito importantes que costumavam ter muita consideração por mim, com dedicatórias de página inteira, todas elas muito bonitas e terminalmente metafóricas; e essas pessoas não mandaram dizer nem obrigadinho ó peste negra.

    Que chata, esta gaja.

    Epá, ouça lá, de uma vez por todas…

    A senhora faça o favor de meter na cabeça que está morta, está morta, está morta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O meu parceiro era o Scott Gilbert, consensualmente considerado o Grande Papa da Biologia do Desenvolvimento, com um livro de texto universal que, à época, já ia na 11ª edição [N.R. A obra em causa, Develpment Biology em co-autoria com Michael Baresi, vai agora na 12ª edição]

    [2] A gente diz RMA, e a coisa parece logo mais fina.

    [3] Esta especialidade psicológica existe mesmo. Procurem Helena Águeda Marujo no browser.

    [4] Em termos académicos, e só para dar uma ideia, é consensualmente considerada uma das melhores editoras do mundo.

    [5] Da autoria do Scott, que é muito bom nestas coisas de títulos, subtítulos, capítulos, e até poemas inteiros sobre proteínas e genes.

    [6] Experimentem pôr o título no vosso motor de busca!

    [7] Esta mudança de terminologia foi universalmente adoptada nos anos 90 num grande congresso na África do Sul, precisamente por ser por demais insultuosa para as mulheres que asseguram a gestação de filhos de outros. Alguém chama às prostitutas “vaginas de aluguer”? E desde quando é que o útero da mulher pode ser separado do resto do seu corpo?

  • Por uma lágrima tua

    Por uma lágrima tua


    Querido Pedro

    Soube agora da morte do teu Pai.

    Até parei de escrever, numa parálise de pura tristeza.

    O que é que nós podemos fazer? Mandar-te um beijo muito carinhoso e muito solidário, desde já. Mas claro que não chega. Eu já não tenho nem Pai nem Mãe[1], e sei perfeitamente que nunca estamos “preparados“: no dia em que eles se vão embora, na nossa vida há sempre um terramoto.

    gray scale photo of angel statue

    Eu já perdi praticamente toda essa geração da minha família, todos os tios biológicos e todos os tios que eram os amigos dos meus Pais, e que me ajudaram a crescer em tudo aquilo em que os meus Pais não podiam ajudar.

    Ofereço-te a morte que me tocou a mim esta semana, só para te fazer companhia.

    Ontem morreu a Joana Bénard da Costa, uma tia que estava sempre a dar-me descomposturas por eu não me vestir “normalmente“, por pôr as maminhas de fora na praia, por não disciplinar minimamente aquela minha enorme cascata de caracóis, e sobretudo por “fazer demasiadas coisas”:

    PÁRA! PÁRA! Não tens necessidade nenhuma de ser jornalista, estudar biologia, cantar num coro, e fazer teatro, tudo ao mesmo tempo. Já fizeste mais em vinte anos do que um africano faz na vida inteira! Assim nunca terás tempo para pensar!” – tudo isto com imenso humor, e com um gozo mesmo cáustico, que foi sobretudo brilhante quando eu me casei com o Meguinha (AKA António Mega Ferreira):

    Armindo Duarte Vieira (n. 15/12/1938; m. 09/09/2022)

    Então agora vais resolver os teus problemas armando-te em madame? Ó Clarinha, não é assim que os problemas se resolvem. Ainda bem que agora já há divórcio, porque tu não vais aguentar um papel desses. Dou-te dois anos de senhoreca, e já vais com sorte.”

    Por acaso aguentei sete, se bem que nos últimos dois já estivesse sozinha em Buffalo.

    Ontem a Joana morreu.

    Nos últimos anos, já no lar mas perfeitamente lúcida, passava a vida  a telefonar-me porque queria estar comigo. Há vinte anos que não sabia nada de mim, nem tinha percebido nada do que me fizera desaparecer, nem sabia o que é que eu andava para aí a fazer agora.

    Olhe, Joana, Saturei-me de Lisboa, sabe? Saturei-me completamente. Achei que ia morrer se continuasse lá. Então olhe, vim viver para Estremoz, e…

    Para Estremoz? Foste ter com o Zé Filipe?

    Ó Joana, então? O Zé Filipe é casado e tem filhos!

    Olha que na tua geração, pelo que eu vejo por aí… Vá lá, ainda por cima com o Zé Filipe… Temos mesmo que falar!

    E eu completamente tesa, frequentemente doente, tudo tão difícil. Eu e os meus amigos com quem cresci bem tentámos trazer a Joana a Estremoz, mas por uma razão ou por outra nunca foi possível. Essa tal última conversa que ainda íamos ter, a conversa em que eu lhe explicava tudo e depois lhe contava tudo do que andava a fazer, e de caminho esclarecia que não andava a fazer nada com o Zé Filipe[2]… a conversa em que ela havia de ser cáustica e irónica como sempre, e fazer-me acordar para o facto óbvio de que nenhuma mulher de 62 anos se veste assim…

    … Pois é, íamos sempre a tempo, mas agora o tempo acabou.

    Ontem, durante a noite chorei, chorei, chorei, agarrada ao lince de peluche da WWF sonegado ao neto da Didi, que é um purista e da WWF só queria pandas[3], pelo que não ligou nenhuma ao meu lince e eu foi género,

    Ai o menino não quer? Então olhe, quer a tia, quando não estiver ninguém a ver – ou acha que um lince tão lindo ficava aqui para ir para porcos?[4]

    Agora é todo o grupo da minha idade, todos os putos com quem passeei pelas praias, cantei, tive conversas complicadas, vivi aos dezoito anos a minha primeira grande paixão[5] que por acaso era daqui de Estremoz[6] —  somos nós, todos os que cresceram com o sarcasmo perfeito da Joana, quem tem pela frente a tarefa hercúlea de ser tão bom perante a vida como os seus pais e como os amigos deles.

    man walking on hallway

    Tudo isto para te dizer que estou à disposição, absolutamente, se puder ser útil nalguma coisa. É óbvio que uma expressão tão brutal como the confort of strangers nunca poderia ter sido cunhada ao acaso. Foi cunhada porque os desconhecidos, exactamente porque nada os mancha no nosso passado, nos confortam mesmo. Eu já senti isso na pele centenas de vezes. Passo eternidades em salas de espera relativas a coisas tristes e perigosas.

    E, em termos de suavizar as dores de pessoas,  eu até sei ser coach, sei fazer Reiki, e sei dar massagens terapêuticas[7]. Recuso-me a dar ou receber Shiatsu, porque não há técnica que deixe uma pobre desgraçada que já estava toda partida ainda mais completamente partida[8]. No Feng Shui, por favor não me peçam que acredite. E a porcaria do Pilates… quando quiseres rir pede-me que te conte a história da minha inesquecível sessão de Pilates, ministrada por uma fufa americana.

    Clara Pinto Correia

    Estremoz, 12 de Setembro de 2022


    [1] …e, como continuava a canção que começava com “É tão bom ser pequenino/ Ter Pai, Ter Mãe, Ter Avós” – a quadra fecha com “Ter confiança no Destino/ E ter quem goste de nós”. Esta última parte ainda é mais difícil de engolir do que a primeira. Por muito que nos custe, sabemos que Pais e Avós hão de ir-se embora. Mas descobrirmos que eles nos mentiram… que é perigosíssimo ter confiança no destino e que não há assim tanta gente como isso que goste mesmo de nós… Ah, caracóis! Isso dói!

    [2] Já estou há quase dois anos em Estremoz e nunca mais o vi. Claro que tenho pena. Mas não propriamente pelos motivos que a Joana pensava.

    [3] Símbolo da WWF, como se sabe. Mas é verdade, eles agora até já fazem linces, e são lindos! Fica a sugestão para quem tiver netos, ou netos de amigos, menos autistas do que o da Didi.

    [4] Há que ver que eu pertenço à geração da Faculdade de Ciências que lançou a Campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. E que fui a primeira jornalista portuguesa a escrever prontamente duas páginas sobre o assunto, já que, nos anos 80, o pessoal nem sequer sabia o que era um ecossistema. À minha frente ninguém brinca com o lince. Nem os netinhos fundamentalistas.

    [5] O tal Zé Filipe, só podia.

    [6] Mais propriamente, dos Arcos. Mas íamos e vínhamos a pé. E foi assim que começaram os meus longos amores com Estremoz, já timidamente iniciados aos 16 anos, com colónias de férias na Serra de Portalegre.

    [7] É verdade. Fiz estes cursos em Harvard, para lidar melhor com a dor crónica.

    [8] Depois da minha última experiência com o Shiatsu tive que tomar uma daquelas bombas americanas para as dores que têm mais morfina do que qualquer outro componente. Foi o que valeu. Mas, francamente – não é para depois ter que se encharcar em opioides que um gajo vai à massagem!

  • O dia da minha morte

    O dia da minha morte

    Só percebi que já tinha morrido há cerca de uns nove anos. Até aí, fui suficientemente ingénua para continuar a considerar-me deveras viva. Está bem que César foi apunhalado no Senado, mas eram meia dúzia de políticos todos eles invejosos e medíocres, exatamente como também nós acabamos por nos habituar a pensar nos políticos. No meu caso, eram dez milhões de portugueses. E ninguém me tinha apunhalado com punhais propriamente ditos. Não há nada mais estranho do que uma pessoa então de cinquenta e três anos, que se sente cheia de saúde e pronta a entrar em acção, ser obrigada a aceitar que já morreu. Mas não somos propriamente nós quem escolhe grande parte do que nos acontece. E quem sou eu para contrariar a vontade de todo o meu País, certo?…


    … Quando tudo isto aconteceu, eu tinha lançado o meu último romance, Não podemos ver o vento, dois anos antes. Tinha recebido boas críticas. Tinha dado várias entrevistas.

    Mas, já nessa altura, é claro que nem tudo brilhava à maneira indicativa da Estrela Polar.

    Por exemplo, quando chegava às rádios, às televisões, ou aos sítios onde as revistas queriam fazer mais uma daquelas suas “produções” que a editora insistia serem uma óptima ideia, ouvia frequentemente comentários como,

    Ah! Mas afinal a Clara não está nada gorda!”;

    ou

    Oh! Está tão bonita! E dizem que anda para aí a meter para a veia e a cair da boca aos cães[1]

    ou

    Enfim… para quem não está bem da cabeça… o seu raciocínio é interessantíssimo.

    Tinha-me habituado facilmente a estas figuras de estilo e a várias outras, e portava-me sempre muito bem nas conversas, como se nada daquilo me doesse, tendo em conta o terrível maremoto de maledicência e a incrível destilaria de destruição que acompanharam “o escândalo das fotografias”; só que – enfim. Estava desempregada, estava silenciada, mas estava viva e a roda havia de voltar a subir.

    ”Pretinha’, com cinco anos, no papel de São José no Presépio Vivo de Luanda.,

    Tenho uma fé a bem dizer insuportável na gentileza das pessoas. Pior ainda, confio no sentido de solidariedade dos portugueses[2]. O que ganhava com isso era estar permanentemente a ser desiludida, mas ao menos saltava todos os dias da cama às sete da manhã cheia de confiança no destino. De cada vez que ia falar com alguém por motivos de trabalho, ia sinceramente convencida de que, dessa vez, o plano resultava e eu voltava, no mínimo, a ser útil.

    Como isso nunca aconteceu, acabei por voltar para os Estados Unidos a convite do grande Scott Gilbert, para escrevermos em co-autoria um projecto muito arrojado sobre os efeitos colaterais das técnicas de Reprodução Medicamente Assistida.

    É verdade que já lá iam três anos de desemprego, e eu bem tentava, bem tentava, bem tentava, e nunca ninguém me dava trabalho. Mas, sobretudo, aceitei o convite do Scott porque percebi que o meu próprio país me tinha dado por morta e não ia, de todo em todo, tolerar que eu continuasse viva.

    Foi no dia em que entrei numa farmácia ao pé de Santa Apolónia, e não estava lá mais ninguém a não ser a menina do balcão.

    Assim que me viu, a menina deu um gritinho.

    Eu fiquei a olhar para ela, à espera de melhor explicação.

    A menina deu uma série de outros gritinhos, de tal forma sentidos que eu acabei por perguntar,

    “Está tudo bem?”

    “É que a senhora… a senhora… a senhora era uma escritora!”

    Era???? Então a que vem esse era? Era e ainda sou! Quer dizer, tanto quanto sei, ainda não morri.”

    “Está bem, mas a senhora nunca mais voltou a aparecer… dantes a senhora aparecia sempre… a senhora era uma pessoa que aparecia muito… e… e… como nunca mais apareceu…”

    “Não me diga que acha que eu morri só porque não voltei a aparecer.”

    “Ah! E garanto-lhe que não sou só eu! Tem a certeza de que é mesmo a senhora que era aquela escritora?

    E eu respondi-lhe exatamente o que senti, pela primeira vez de muitas vezes que haviam de vir depois:

    Não, minha querida. Não tenho qualquer certeza de ser seja quem for. Agora, se faz favor, pode arranjar-me uma caixa de microlax?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora.


    [1] Adoro esta expressão dos cães. Era só ouvi-la e ficava logo bem disposta.

    [2] Sou parva, e então? O que é que eu ganhava em ser raivosa?