Autor: Clara Pinto Correia

  • Não me diga que não sabia

    Não me diga que não sabia

    É provável que este todo contenha um significado muito difícil de descodificar, porque Deus trabalha de formas misteriosas.

    Stephen Jay Gould

    QUESTIONING THE MILLENNIUM


    A partir de Fevereiro de 1989, quando Salman Rushdie se refugiou em diversos esconderijos londrinos depois do Ayatollah Khomeini o ter condenado à morte em todo o universo muçulmano[1] pelas infâmias e ofensas contidas no seu livro VERSÍCULOS SATÂNICOS[2], é evidente que um grande número de ingleses bem-intencionados se dispuseram a correr riscos muito sérios para lhe darem, no mínimo, algum apoio moral. Aquele que eu nunca hei-de esquecer foi o do correspondente do THE NEW YORKER que o levou ao cinema numa matiné. Infelizmente, as escolhas do multiplex não eram muitas nem grande coisa, de maneira que acabaram os dois sentados na sala que passava o filme QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. Ao fim de quinze minutos, era absolutamente incontornável que estavam rodeados por uma multidão deleitada, constituída por pessoas de todas as idades e feitios que não tinham precisado assim de tanto tempo como isso para se apaixonarem perdidamente pela película – fenómeno que muito indignou o correspondente do THE NEW YORKER, que seleccionara aquele filme convencido pela crítica da sua própria revista que se trataria de um trabalho interessante, no mínimo. “Mas porquê? Já reparou? Como é que é possível que esteja toda a gente a gostar tanto desta chachada?”, sussurrou, furioso, para o seu amigo perseguido e anónimo.

    Rushdie nem moveu um músculo da cara.

    “Porque as pessoas têm mau gosto,” respondeu, tranquilamente, ao seu benfeitor. “Ah, por favor, vamos lá – não me diga que não sabia!”


    Esta historinha de perfeito tiro ao alvo vem, ainda, a propósito do tal já mencionado comediante português sem escrúpulos sobre quem nunca ninguém lançou uma fatwa[3] mas que bem a merecia. De cada vez que alguém mete ao bolso rios de dinheiro para mentir aos portugueses[4], que são tão crédulos como qualquer outro povo ocidental e portanto acreditam mesmo na publicidade[5], está a aceitar comprometer-se com um crime tão vil que merece certamente um castigo duro, mesmo que não seja uma pena de morte.

    CPC em 1998, completamente a fazer-se ao mau gosto
    Ai isso é assim? Então depois não te queixes, minha filha.

    Quando falo de casos como este costumo nunca mencionar os nomes das pessoas, nem da “chachada” falante a que pertenciam quando disseram a sua frase ofensiva, nem da localização geográfica em que esse grupo reunia. Faço isto por uma razão muito simples: o que me interessa é o caso em que si, e não a distracção dos leitores com o nome próprio dos protagonistas, que não é, de todo, o que interessa para o que a história nos oferece de mais revoltante, de mais louvável, ou passível de mais perturbação. Desta vez, no entanto, vários colegas do PÁGINA UM insistiram para que eu falasse do comediante por nome e apelido[6], desmistificando a suposta piada da criatura, e rematando, com curiosa frequência,

    Detesto esse gajo!

    É boa, também eu. Mas tu detestas o gajo porquê?

    Porque ele não tem qualquer espécie de graça! Só diz piadas destinadas a chincalhar outras pessoas. Isso nem sequer é humor, é mau gosto puro e simples!

    Pois é. E então, como nos ensinou Salman Rushdie, batam no peito e reconheçam as vossas culpas: as piadas deste senhor correm-lhe bem, e as pessoas acreditam nele tal como acreditam na publicidade, porque as pessoas têm mau gosto. A culpa não é dele: é das vastas maiorias que lhe acham graça. E, enquanto não sairmos deste atoleiro, bem podemos dizer uns aos outros que “detestamos o gajo”, bem podemos lançar-lhe fatwas intelectuais[7], que nada sairá do seu lugar. O nosso verdadeiro desafio é este: como é que podemos ajudar na cruzada para que que as pessoas não tenham mau gosto – e, por decorrência, não acreditem na publicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Os editores do livro também foram condenados por ajudarem a difundir uma mensagem herética, mas com muito menos alarde. Se um castigo deste tipo, que se mantém em vigor nos nossos dias, é ou não um exemplo de fatwa, bom – isso tem sido debatido de forma muito aguerrida pelos académicos do islamismo desde 1989, e continua a sê-lo.

    [2] A propósito, vocês leram o livro? É que eu, por acaso, li – naqueles seis meses que decorreram ainda antes de a obra se transformar numa moda que era um exemplo de coragem depois da condenação à morte do seu autor. Confesso que foi uma desilusão, levada até ao fim só mesmo por teimosia, e talvez por qualquer esperança pateta de que a luz surgiria precisaria no fundo do túnel. Quer dizer, se é pela sua literatura que um homem vai ser universalmente condenado à morte, então que seja por um trabalho verdadeiramente grandioso. Não é minimamente o caso. Perturbantes, estranhos, dignos de serem lidos e relidos, só mesmo os versículos propriamente ditos. Mas esses, ao que nos dizem, são da autoria do Profeta. Tudo o resto fica muito aquém. E é pena.

    [3] Nem todas as fatwas são penas de morte, mas todas são penas severas.

    [4] E aqui a mentira era extremamente grave, porque se destinava a garantir aos portugueses que não havia que ter medo de manter contas a prazo no BES, que afinal veio a falir uns quantos meses mais tarde. Milhares de portugueses ficaram depauperados de um dia para o outro sem a menor compaixão nem do Estado nem do Banco de Portugal. E o director desta trama infeliz, que entretanto tinha desviado centenas de milhares de euros que não lhe pertenciam para uma conta em Singapura onde ninguém pode tocar-lhes, continuou a passear-se por aí, protegido por dois guarda-costas com todo o ar de terem acabado de sair das fileiras da MOSSAD, e com um ar que era de tudo menos de compaixão. 

    [5] Porque é que as pessoas acreditam na publicidade? Bom, isso é tema para psicanalistas e eu remeto-me à minha insignificância. Mas nunca hei-de esquecer o fascínio com que os portugueses acompanhavam as aventuras da vida de uma tal Raquel, uma jovem e bonita grande profissional com marido e filhos, que conseguia resolver todos os seus problemas quando o país sufocava nas garras da troika porque fazia todas as suas compras no Continente. Isto é pérfido. Muito pérfido. O Continente sabe, tal como sabia quem quer que fosse que pagou ao comediante para dizer num falso debate televisivo que tinha uma conta a prazo no BES e estava descansado da vida. Se fôssemos inspeccionar o caso agora, provavelmente nem nunca teve lá conta nenhuma.

    [6] Depois de muita reflexão, não, não, e não! Tenho um estilo, e vou respeitá-lo.

    [7] Bastava nenhuma editora aceitar os livros dele, com aquelas fotos tipo Adam Sandler na capa. Já era um favor enorme.

  • O penetra imbecil

    O penetra imbecil

    Bem-aventurados os que choram.

    Jesus


    O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.


    “Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”

    Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.

    “E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”

    O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.

    “Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”

    O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.

    silhouette of man standing in dark room

    “Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.

    “Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].

    “Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”

    Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.

    “Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”

    Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.

    “Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?

    [2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.

  • Domingo de Páscoa

    Domingo de Páscoa

    A analogia pode então erguer-se aos nossos olhos enquanto melhor instrumento de análise que possuímos – porque Deus trabalha de formas misteriosas. E de que outra forma nos seria possível ligarmos os grãos de areia no deserto às estrelas no céu?
    Stephen Jay Gould
    QUESTIONING THE MILLENNIUM, 1997


    Domingo de Páscoa, aqui em Estremoz, é hoje, segunda-feira. Ainda ontem a cidade fervilhava de vida e de alegria, passavam leitões e cabritos inteiros rumos aos fornos de lenha, o pessoal ia e vinha para os montes para deixar tudo pronto quando chegasse a família, as famílias que iam chegando iam enchendo cada vez mais as esplanadas – mas nada daquilo era a Páscoa. Era só o prelúdio da Páscoa. Ao fim do dia tomei café com uns amigos muito dados a artes e a trabalhos manuais[1]. Foram eles que, quando souberam que eu ia passar a Páscoa[2] aqui em casa a trabalhar, insistiram com imensa veemência que, desta vez, é que eu não tinha mesmo desculpa para não ir visitar o Gonçalo, que é de Lisboa como eu, se mudou para Estremoz há oito meses, vive aqui mesmo ao pé de mim, é um verdadeiro solitário, parece infeliz, e eu bem podia ir mostrar-lhe todas as minhas cenas.


    Mas eu não tenho nem o telefone do Gonçalo! Sei quem é, toda a gente sabe quem é, Portugal nunca teve nenhum grande profissional de monólogos de Shakespeare antes, mas eu nem sei se ele está em casa…” – “Meu, Clarinha, toda a gente sabe que o Gonçalo nunca sai de casa!” – “Então é porque não quer ver ninguém, certo? – “Mas tu és diferente. Vamos apostar. A mulher foi de férias para o Sudoeste e ele está sozinho com o puto, que é um mulatinho bué fixe de quatro anos chamado Miguel. Eu faço-lhes o catering…” – “O catering?” – “E então? Os monólogos de Shakespeare não chegam? O gajo também precisava de cozinhar?” – “Se fosse uma gaja, precisava[3]” – “Ah, vamos mas é apostar. Eu ligo. Se ele atender, e se disser que quer que tu vás lá, tu vais?” – “Vou” – “Juras?” – “Juro:”

    Está-se mesmo a ver. Um gajo que não sai de casa nem atende o telefone, o que mais vai querer é visitas da Clara Pinto Correia.

    Só que o caterer levanta o polegar quando esse Gonçalo atende, diz-lhe que está a ali a Clara Pinto Correia que o admira, e se ela pode ir visitá-lo. E põe aquela merda no alta-voz mesmo a tempo de ouvirmos um gajo responder, mesmo à rádio,

    “Sim!”

    E pronto, lá vou eu até à porta do actor dos monólogos, com a juventude toda a espiar para ter a certeza de que eu entro mesmo, o que faz o dito cujo actor puxar-me para dentro com força, atirar comigo ao chão, trancar a porta quatro vezes, e depois fechar também a corrente. Foi tanta manobra que deu tempo para voltar a levantar-me, recompor-me, e sentar-me numa poltrona super-confortável estrategicamente colocada mesmo ao lado do tal Miguel, que é, de facto, um amor de mulatinho. Ora, sabendo eu que a mulher dele é loura, de olhos azuis…

    Eu sei que este título é meu, mas…
    Que mais poderia dizer hoje, “Domingo de Páscoa” em Estremoz, depois de ouvir os segredos do Gonçalo, e o belíssimo monólogo que se lhes seguiu?

    “Fizeram muito bem em adoptar o puto,” digo-lhe eu com um sorriso comovido. “Sabes, os meus dois putos também são adoptados. Já têm 31 e trinta anos, e eu já tenho cinco netos, e…”

    O gajo abanou-me tanto o ombro que quase voltou a atirar-me ao chão.

    “Antes de mais nada, cala-te já, enquanto vais a tempo. E sai já daí, porque estás na minha poltrona de improvisar monólogos para o Miguel e acabaste de interromper um!”

    “Mas um actor não faz um monólogo de Shakespeare sentado. Tens que estar em pé, a fazer gestos, e a passear pelo palco, não é?”

    “Pois é! Pois é. Mas eu, com estas dores, não me aguento em pé durante um monólogo inteiro” – esticou a mão para uma série de rolinhos que estavam na bancada dentro de um frasco de vidro fosco, tirou um charro, e começou a fumar – “Se queres que eu fale em pé, eu falo em pé assim, ou então não aguento. Mas então é melhor fumares também, senão és capaz de achar esta última parte do meu improviso muito estranha. Bora lá! Fuma! Eu pedi para tu vires cá para saber a tua opinião. O pior que te pode acontecer é teres que voltar cá amanhã, eu fico sentado, e ninguém fuma.”

    “Ó Gonçalo, tu desculpa… antes de começares o teu monólogo, para eu depois nunca te interromper… que dores horríveis são essas, para dizeres que nem te aguentas em pé sem fumares charros… aliás, para nunca saires sequer à rua?”

    Gajas,” ponderou o Gonçalo com a mão no queixo – e de repente desatou a rir tanto, tanto, tanto, que me fez rir a mim também. “Não aguentam não perguntar tudo. Olha, minha filha, isto é assim. Tenho imensas dores porque tenho um cancro do testículo, e foi por causa desse cancro que não tivemos filhos biológicos. Tinha dores, tinha cada vez mais dores, mas achei que haviam de passar, e quando a minha mulher me levou ao hospital já não saí de lá. Recuperei bem do cancro. O problema é que já tinha metásteses. Portanto estou para aqui sem saber quanto tempo duro. Vim viver para Estremoz para conseguir ter calma, para legar ao Miguel os monólogos de Shakespeare que serei eu próprio a escrever, e porque assim, também, não tenho as gajas lá de casa a entrarem e a saírem e a mandarem palpites e eu adoro-as mas tu nem imaginas o que aquelas gajas todas proactivas fazem da cabeça de um gajo desactivo” – “Desactivo não existe em Português, tem que ser desactivado” – “Ora bolas, mas desactivado não rima com proactivo e isto tem que rimar tudo porque é um monólogo de Shakespeare” – “Então usa inactivo, em vez de desactivo” – “Vai-te lixar, inactivas são as amibas, e isto ainda não está assim tão mal, meu.”

    De tudo o que se seguiu neste meu estranho “Domingo de Páscoa” darei contas para a semana. Mas – se admirei a coragem do homem? Claro que admirei.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] As intenções não eram boas. Tratava-se de arrombar um portão – pelos melhores dos motivos, mas é sempre arrombrar a entrada para propriedade alheia. Ninguém foi na conversa, mas entretanto enredei-me eu na converva do Gonçalo.

    [2] Ou seja, o dia de hoje, 2ª feira, em que tudo está fechado e nunca vi tanto lugar para arrumar.

    [3] Esta mudaria habilmente o tema da conversa, não era? Noutro planeta que não Estremoz, talvez.

  • Uns bons comprimidos cor-de-rosa

    Uns bons comprimidos cor-de-rosa

    Este homem[1] é um herói da consciência nacional[2]

    Allen Ginsberg

    Contracapa de THE POLITICS OF ECSTASY, 1965


    Querido Zé Duarte, soube na quinta feira, dia 30 de Março, que fizeste 84 anos e pronto, encostaste à box. Provavelmente estavas farto, mas é uma grande chatice, sabes. Temos todos de morrer, mas os que nos vão fazer muita falta deviam ser obrigados a segurar a barra por pelo menos mais um século. Foste uma das figuras mais marcantes, mais criativas, mais inovadoras, do século XX português. Foste absolutamente incontornável, e agora, sem ti, torna-se complicado entender por onde é que realmente passarão mais caminhos. Isso viu-se logo na noite da tua morte. Fui sentar-me a correr diante da televisão, à espera de ouvir contar todas as invenções multifacetadas que eu sei que te devemos, porque trabalhei contigo, dei contigo em doido, andei contigo ao murro, e ri contigo como com poucas outras pessoas. Epá Zé, mas, olha, não. Não, imagina. Tanto espaço novo que tu desbastaste para o sorriso inteligente de um país que inventaste sempre à beira de uma ou outra neurose feliz, e sabes o que é que eles diziam?



    José Duarte foi durante 40 anos o autor do programa diário CINCO MINUTOS DE JAZZ, que apresentou na Renascença, Comercial, e Antena 1.”

    Ouve lá. Eu não aguento estas vistas curtas. A puta que os pariu, Zé. Entendes? Nunca te ouviram, sequer, a passear pelo estúdio da Comercial enquanto fazias sermões louquíssimos com o sotaque de um padre de Viseu. Não sabem nada de ti. Desconhecem por completo a tua arte mágica do improviso – como daquela vez em que me atiraste à cara, assim mesmo completamente lixado, “a tua felicidade ofende-me!”. Lembras-te? Só tu, Zé. Só tu é que gritavas uma frase destas enquanto te punhas em pé de um salto, com toda a gente a ver, no meio do Café de São Bento.

    Este filme que ninguém que lá estava esqueceu quer dizer muitas coisas boas, infelizmente todas elas extintas algures durante os anos 90. Passava da uma da manhã, a meio de uma semana de imenso trabalho. Na minha mesa éramos quatro miúdas, todas entre os trinta e os quarenta anos, produzidas, giras, descascadas, a comer bifes e a beber Moet Chandon, o que implica que, na altura, desde que se trabalhasse muito e o resultado fosse bom, havia dinheiro para festas como estas. Assim sendo andávamos atraentes e contentes, pelo que o estrago de dormir pouco, desde que repetido com moderação, era o menor dos nossos males.

    S observa atentamente o cuidado com que CPC embala o seu novo afilhado, a quem acaba de dar o nome de Panzer, já que os Leões da Rodésia não crescem tanto como os Rafeiros Alentejanos mas quase.
    Sempre que as piadas em quadrinhas de pé quebrado que eu escrevia para o PÃO COM MANTEIGA sobre os dilemas dos animais eram perdidamente cruéis, sobretudo para uma jovem bióloga que tinha a obrigação de gostar muito deles, o Zé Duarte olhava para mim sem esconder a sua perturbação e rosnava-me “You’re sick!
    E eu, que só tinha 25 aninhos, ficava tããão orgulhosa…

    Acontece que, nessa noite em particular, o Zé Duarte entrou quando os nossos bifes iam a meio e foi sentar-se na mesa ao lado da nossa, na companhia de mais dois indivíduos incaracterísticos. Fez-nos os devidos acenos de cabeça. Deu à situação a sua devida pausa romântica. Por fim, iniciou as manobras de aproximação com base numa razão perfeitamente aceitável: conhecia-me do PÃO COM MANTEIGA, já lá iam muitos anos, aqueles anos daquela vida que eu tive antes de ir para a América.

    Reparem, isto também quer dizer que, nesse nosso mundo, nesse nosso País, uma pessoa descontente com o curso que a sua vida estava a seguir podia agarrar em si e mudar tudo de uma só vez, assim mesmo completamente, de todo em todo radicalmente. Aliás, nessa noite estávamos ali todas de encher o olho porque eu acabava de defender as minhas provas de doutoramento em Portugal[3]. E isto quer dizer que, nessa altura, estas coisas não eram fáceis, mas eram uma questão de teimosia e de qualidade, e faziam-se. E mais, e faziam-se bem[4]. Os outros dois indivíduos não tinham ponta por onde se lhes pegasse, portanto a mais alta e imponente de nós todas começou a mandá-los desamparar a loja, porque se era para cenas canalhas a gente preferia uma cena canalha em que só entrasse o Zé. O Zé começou a puxá-los pelas mangas e a ordenar-lhes que pagassem tudo antes de sair.

    Foi quanto bastou para a minha melhor amiga, linda de morrer, os olhos azuis a atravessar os pobres homens como espadas, os cabelos loiros a enfeitiçá-los como os olhos caleidoscópicos da serpente, o minivestido de licra amarela a revelar-lhe todas as belíssimas curvas e todas as arrojadíssimas ausências de fios dentais e wonderbras, ir ter com os dois inexistentes a bambolear as ancas em cima da vertigem dos seus saltos agulha, agarrar no maço de Dunhill que eles tinham na mesa, levar um cigarro aos lábios, beber do copo de um deles, depois beber do copo do outro, e depois pedir aos dois ao mesmo tempo sem fixar a atenção em nenhum deles em especial,

    “Meu Baby, tu, ou tu, meu Baby. Dá lume à mãe e dá lume à mãe, please,”

    de onde resultaram acto contínuo dois isqueiros acesos logo ali, o que me fez abrir a minha caixa dos medicamentos e dizer aos dois que tomassem um cor de rosa que ia fazer-lhes bem, e a seguir que hit the road Jack, a malta queria era ficar com as partes todas do Zé Duarte e não tinha interesse em partes transparentes de mais ninguém.

    Como o empregado vinha a aproximar-se para nos trazer outra garrafa que era oferta de dois senhores do balcão, a nossa amiga New Age, com os seus olhos verdes enormes e os seus dedos como algas, disse-lhe em voz comandante e cristalina,

    “Ó Octávio, amoroso, és capaz de pôr estas duas criaturas inexistentes na rua, para pararem de bloquear o nosso acesso ao Zé Duarte?”

    O que quer dizer que nessa altura nós sabíamos o nome dos empregados e estávamo-nos bem nas tintas para os senhores do balcão, mas começámos a encher uma flute para o Zé e eu ofereci-lhe um pratinho quentinho cheio de batatas fritas enquanto o Octávio tratava de pôr os transparentes a milhas depois de os ter obrigado a pagarem as contas de toda a gente, incluindo as nossas.

    “A mãe é má, Baby”, disse a minha melhor amiga para o Octávio, com uma piscadela de olho que ou eu me engano muito ou assustou um bocado o Zé Duarte.

    “E já agora toma quatro destes cor-de-rosa, Zé,” acrescentei eu, decidida a tranquilizá-lo mas um bocado perdida de riso. “Fazem o quádruplo do efeito com batatas fritas e Moet de senhores do balcão.”

    “Mas eu tenho que ir para casa!”, gritou o Zé.

    “Come, bebe, toma os cor-de-rosa, relaxa, que depois vamos todas contigo,” prometi-lhe eu. “Assim enquanto eu guio elas tiram-te a roupa pelo caminho.”

    “Tiram-me a roupa?”, protestou o Zé.

    “Sim!”, garantiram as miúdas, a despachar Moet e batatas fritas. “Toda a gente te tira a roupa, menos a Clarinha, que vai a guiar.”

    “Clarinha!”, gritou-me o Zé, como se a culpa fosse minha. “Para que é que elas querem tirar-me a roupa pelo caminho?”

    “Para sermos todos muito felizes, querido Zé!”

    E foi esta resposta tão doce que fez o Zé levantar-se como que impelido por uma mola, apontar para mim de dedo em riste, começar a recuar para a porta, e bradar o já famoso,

    CLARINHA! DESAPARECE! A TUA FELICIDADE OFENDE-ME!”

    Saímos as quatro a correr atrás dele, e o Café de São Bento brindou-nos com uma grande salva de palmas.

    Quando a porta se fechou por completo e já ninguém podia ver o verdadeiro desfecho, metemos o Zé Duarte num taxi que ia a passar e mandámos o motorista seguir para o Vá-Vá. Era o super-poder incomparável daquele homem. Para onde quer que fosse, estava constantemente a potenciar o acontecimento de coisas impossíveis como esta. Depois fomos andando para o meu Toyota amarelo alugado, empandeirado algures em cima do passeio. Sabíamos as quatro, perfeitamente, que o Audi cintilante do Zé Duarte estava estacionado na esquina, do outro lado da rua, mesmo em frente ao Parlamento, onde o reboque entra em acção logo às sete da manhã. Mas nisso é que nunca poderíamos interferir, mesmo que quiséssemos. Toda aquela aventura inesquecível era dele. Não era nossa.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Ginsberg referia-se aqui a Timothy Leary, e não ao Zé Duarte, que obviamente nunca conheceu. Mas o efeito é o mesmo e a heroicidade aplica-se da mesma forma a ambos os homens.

    [2] Ginsberg referia-se aqui à consciência americana, que Leary sacudiu vivamente nos anos 60. Mas, exactamente no mesmo acto deliberado de assalto à psique, com a mesma vivacidade, poderia estar a referir-se à consciência portuguesa. O Zé Duarte guiou-nos durante dezenas e dezenas de anos num MAGICAL MYSTERY TOUR absolutamente fantástico. Se o consumíssemos, sabíamos que a viagem nunca seria má. É extremamente raro podermos dizer isto de alguém. Nos tempos que correm, então, já não há praticamente mais nenhuma personalidade que nos ofereça garantias semelhantes. Talvez o Papa Francisco. Mas, infelizmente, tudo indica que também ele está prestes a ir-se embora. Ficaremos, então, radicalmente órfãos de todo e qualquer bom gosto.

    [3] Isso contribuiu, em grande medida, para a tal felicidade que ofendeu o Zé.

    [4] Para encurtar razões, aquilo foi um castigo: além da prova normal do primeiro dia, no dia seguinte ainda tive que defender mais uma prova, consistente em apresentar e argumentar um projecto de investigação. No primeiro dia o material era muito menos interessante, mas o anfiteatro estava a deitar por fora. No segundo dia só estavam os familiares e amigos, o que me entristeceu, porque neste caso sim, o material era apaixonante. “A audiência veio toda no dia errado,” comentei com um amigo que dava lá aulas ao terceiro ano. “Hoje é que era giro ouvir as novidades.” O meu amigo riu com carinho, na constatação óbvia de que eu já começara a esquecer o meu próprio País. “Clarinha, então?”, disse-me ele. “O pessoal não veio ouvir as tuas provas. O pessoal veio ver-te chumbar, porque era isso que toda a gente dizia que ia acontecer. Quando perceberam que não chumbavas coisa nenhuma deram à sola. Não estamos todos fartos de te avisar que as pessoas são más?” Mas não, eu não conseguia ouvir. Passava demasiado tempo na América para me cair a ficha de que as pessoas são más. Nem com a acusação de plágio caiu como deve ser, uma vez que eu também estava na América quando me fizeram essa baixaria. Foi mesmo preciso toda aquela ordinarice do orgasmo, o desemprego, o abandono – ou seja, só me caiu a ficha quando fiz cinquenta anos, caraças! Tinhas toda a razão, Zé: I WAS SICK”!

  • Por quem os sinos dobram

    Por quem os sinos dobram

    Agora, todos os meus sonhos são de pessoas mortas.

    Jorge Luis Borges

    DOCTOR BRODY’S REPORT


    Em Portugal, fala-se muito, muito, muito, do aumento da velhice e do desaparecimento da infância. Acrescenta-se que a resolução deste drama[1] é complicada, senão mesmo muitíssimo delicada[2]. E ponto final parágrafo. À falta de soluções, espera-se que os velhos morram e que as crianças comecem a crescer nas árvores. E é verdade, há muitos velhos em Estremoz, como se choraminga que acontece enquanto parte integrante da “desertificação do interior[3].” Só que os velhos não morrem suficientemente depressa, exactamente como as crianças que viriam substituí-los não conseguem sequer ajudar os pais no trabalho[4] nem horas que cheguem nem dias que compensem. Mas então e os senhores não vão mesmo fazer nada? Hey! Está aí alguém?


    Há inúmeros factores que complicam a tomada de políticas que equilibrassem a velhice com a infância. Em Economia, em Gestão, em Cálculo, em Direito, desculpem mas é que até em Biologia, a gente aprende que quando um problema é composto por vários problemas diferentes, todos igualmente complexos e todos igualmente concorrentes para resolver a equação, não tem nada que enganar: separam-se os diferentes problemas uns dos outros, e resolvem-se separadamente um por um. Se até eu sei fazer isto, como é que é possível que quem manda em nós não saiba? Sabem o que é que parece? Parece que o desequilíbrio populacional é um problema de tal forma espinhoso que “eles” olham para aquilo e amuam. Enfrentar aquilo? Eu não. Mandem vir outro que trate disto, se é que ainda anda por aí algum.

    Antes de mais nada, atendendo à Guerra na Ucrânia[5], não se deseja de todo que os casais recomecem a ter uma dúzia de filhos por cabeça[6]. Nem seria fácil implementar agora nenhum programa social de apoio a famílias numerosas como estas. Trata-se de um País que está tão falido, e onde o dinheiro dos contribuintes já foi tão roubado por quem conseguiu deitar-lhe a mão[7], que o próprio Serviço Nacional de Saúde ainda anda a meter mais água do que uma antiga Grande Nau da Carreira das Índias, que, por via da ganância, foi completamente sobrecarregada de bens, e destituída de qualquer manutenção, quando voltava de Goa para Lisboa[8]. Mas, tal como à época ninguém ligou nem um bocadinho a nenhuma Ordem da Coroa[9] para limites de peso e de passageiros, ou para obrigatoriedades de manutenção, também no século XXI não se ouve ninguém anunciar que encontrou uma solução razoável e exequível para mais esta História Trágico-Marítima[10].

    CPC, aos 63 anos, contrastando com S, aos três meses.
    Ela aceita sem protestos que já está com os pés para a cova – mas depois quem é que vai cuidar do pequenino?

    E temos também o pesadelo do Ensino, claro está. Considerando que os professores já andam a ter que dar aulas a mais de vinte alunos[11] com a escassa miudagem de que o País dispõe[12], quantos meninos teria cada turma se a natalidade aumentasse? Trinta e sete? Quarenta e dois[13]? Para não falar dos pais desses meninos, que já estiveram de tal forma à beira do desemprego por ficarem vezes demais em casa a cuidar dos filhos durante a greve dos professores[14], que mais filhos é que não quererão ter de certeza – e falar disso muito menos, porque não, de forma nenhuma, não se fala de um trauma como se fala de um frigorífico avariado[15].

    E assim passam os dias, na doce inanição do aprés moi le déluge[16] como se nada fosse. Até ao momento em que paramos mesmo, porque desta vez os sinos dobraram por alguém da nossa afeição.

    A minha casa em Estremoz é como Jerusalém nos antigos mapa-roda que nos restam, de entre todos os que foram desenhados durante a Alta Idade Média[17]: fica exactamente no centro preciso de tudo. Não se trata aqui de qualquer espécie de sentido figurado: o Passeio de Santiago[18] marca a organização do crescimento da cidade para fora de portas, de tal forma que, da janela do meu quarto, tenho o privilégio de poder olhar de vez em quando para o Torreão-Mór[19] das primeiras muralhas, todo iluminado entre as estrelas, enquanto estou a ler na cama durante a noite. Desta posição central resulta o facto, que para mim é encantador, de poder ir contando o passar das horas pelos sinos sucessivos das três grandes igrejas: primeiro a de São Francisco, depois a de Santo André, e, finalmente, lá muito ao fundo, a de Santa Maria. Habituei-me a ouvir os sinos de São Francisco tocarem no fim-de-semana a assinalar as várias missas, e a celebrar com eles os Dias Santos.

    É mesmo verdade: as minhas noites sabiam a bençãos, tudo era verdadeiramente encantador, até eu notar que… e não era fantasia minha, porque comecei a estudar o fenómeno com muita atenção… e aquele tipo de repicar de sinos só há mesmo na Igreja de São Francisco… até notar que, Santo Deus, que sufoco. Se os sinos de São Francisco não dobravam a finados dia sim-dia não, no mínimo andavam lá perto.

    E claro que era verdade, quando comecei a perguntar toda a gente me disse que claro que era verdade: os sinos estão sempre a dobrar a finados porque estão sempre a morrer pessoas. “Mas a pessoa morreu de quê?” – “Então, coitada, foi da idade.” E, de repente, é como a tripulação descobrir que o leme da Grande Nau está podre à primeira tempestade que se aproxima, ou que todos os canhões ficaram em Goa para desimpedir espaço no convés ao primeiro aviso de piratas ou de holandeses na distância. O tocar dos sinos passa logo a ter outro peso, e o seu dobre a finados começa a doer-nos também a nós, assim que participamos do funeral da pessoa que, também ela, morreu da idade. “Mas ainda a semana passada estava tão bem disposta…” – “Então, coitada, antes assim, seja como fôr a gente tem que ir, nem que mais não seja para dar lugar aos novos.

    Pois com certeza, mas cadê os novos – e cadê o seu direito à felicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu é que digo “drama”, porque não há outra palavra que realmente defina o que tem vindo a acontecer nas últimas décadas. Claro que nenhum político, ou comentador, ou alguma pessoa ilustre chamada a participar num debate, ou até algum humorista politicamente incorrecto, se dá ao trabalho de dizer “drama”. Em, boa companhia, o envelhecimento nacional é aquilo a que se chama “um problema”. E, escusado será dizer, ninguém promete que vai lutar contra ele em nenhuma campanha eleitoral.

    [2] Por acaso, e pensando bem depois de ter escrito “muitíssimo delicada”, ocorreu-me que é possível que eu seja a única pessoa que diz isto — e que, de estar sempre a ouvir a minha própria voz a dizê-lo aos outros, já imagine que ouvi muita gente a dizer “delicada”. Wishful thinking. A expressão existe porque todos os dias faz sentido.

    [3] “Eles” dizem isto com especial prazer. Estão aqui estão a escrever umas éclogas sobre o assunto.

    [4] Que se lixe ir à escola. Descarregam-se os sacos todos primeiro, a seguir há que caiar estes muros todos, alguém tem que ir depressa apanhar as batatas, e depois logo se vê.

    [5] Como é evidente, quando deixar de haver guerra na Ucrânia, a culpa continuará a ser da Guerra na Ucrânia.

    [6] Marido e mulher formam uma unidade, supostamente indivisível salvo prova do contrário. Infelizmente, o que há mais por aí, na nossa sociedade, são provas do contrário. O que, por seu turno, cria ainda mais um outro problema (palavra que neste caso é utilizada correctamente) no apoio às famílias numerosas.

    [7] Uma vez mais: não só assumo total responsabilidade pelo que acabo de escrever, como até esclareço que atenuei para “deitar-lhe a mão” o predicado que realmente me apetecia oferecer a esta frase, que era “apropincuar-se com”.  Mas, ao menos aqui, e pelo menos em privado, ouço imensa gente dizer o mesmo que eu. É sempre reconfortante, isto de não estarmos sós.

    [8] Ou “tenta voltar”, que foi mais o caso. Perderam-se milhares de naus nesta loucura. À primeira tempestade, descobria-se que a Nau já não tinha nem bombas para drenagem da água, deixadas em Goa, como tudo o resto, para carregar ainda mais brocados, mais especiarias, e mais drogas. O provérbio “Se queres rezar vai para o mar” aparece no século XVI, e claro que não aparece por acaso.

    [9] Houve várias. A Coroa perdia fortunas indescritíveis em cada naufrágio. E os monarcas não são necessariamente parvos.

    [10] Leram as TRÁGICO-MARÍTIMAS, porventura? É que eu li. Com muita atenção. São só três histórias, de três naufrágios diferentes. Mas percebe-se logo, até pelos comentários indignados dos cronistas da época, porque é que os naufrágios no trecho Goa-Lisboa foram tão frequentes, e tão estupidamente evitáveis, na História supostamente gloriosa da Carreira das Índias.

    [11] Ou seja, anda a pedir-se-lhes que todos os dias descubram a quadratura do círculo, e o aproveitamento dos alunos ressente-se de missões impossíveis.

    [12] E o País Real anda a ter imenso cuidado com a redução da miudagem. Se quiserem digam que a culpa é da Guerra da Ucrânia, quero lá saber – a verdade é que o pessoal está teso. Mesmo numa cidade tão calma e aprazível como esta, os meus alunos das explicações são frequentemente filhos únicos E eu acabo por fazer imenso pro bono, porque ninguém tem dinheiro, pronto.

    [13] Ou seja, aqui já não se trata de mais quadraturas do círculo ou de mais missões impossíveis: trata-se, pura e simplesmente, de atirar a toalha e desistir de todo o alfabetismo nacional. Todo. Em benefício dos pais, a Escola passa a funcionar enquanto cantina e ATL, e acabou-se a conversa. Mas acabou-se mesmo, ouviram? Epá, mas então calem-se. Calem-se, meu.

    [14] Se é que não foram mesmo para o desemprego. Ou, no mínimo, nas entrevistas de emprego tiveram que enfrentar o fatídico “então e deseja ter filhos?” com ainda mais cuidado.

    [15] Pelo menos “não se fala de um trauma assim de um dia para o outro”, ou “não se fala de um trauma sem ser em terapia.” Um trauma é um caso sério. Demora tempo a instalar-se. E, uma vez instalado, consegue esconder-se tão bem que só alguns dos melhores profissionais da coisa é que conseguem puxá-lo cá para fora à força. Mas olhem bem para “eles”: alguém parece honestamente preocupado com a saúde mental dos portugueses?

    [16] Sou culta, sou. “Depois de mim que venha o Dilúvio” era o que dizia desdenhosamente o Rei de França Louis XV quando os seus conselheiros aludiam aos gastos disparatados na Nobreza perante a fome crescente do Povo.

    [17] São cerca de seiscentos mapas, sobreviventes em diversos países europeus, portanto sabemos que o conceito de Jerusalém marcar o centro preciso da circunferência representativa da Terra não foi uma fantasia: foi mesmo a primeira semelhança do mundo que organizou a inteligência medieval. A culpa deste mal-entendido terá sido de Santo Agostinho, que terá escrito, não sabemos onde, que “a virtude de todas as coisas está no centro.”

    [18] Nome inventado a bem da privacidade, ou queriam mais o quê?  O número da porta e o andar?

    [19] Idem.

  • The house always wins

    The house always wins

    Se não for agora, então quando será?

    Provérbio judaico


    Esta é uma história exemplar sobre a infâmia dos vários tipos de jogos que as pessoas compram em tudo quanto é sítio, em vários tipos de papelinhos coloridos, nos quais acabam por gastar umas quantias nada desprezíveis, sendo extremamente raro receberem seja o for em troca. Tudo isto sempre me pareceu extremamente duvidoso. Mas não há como ouvir falar um verdadeiro profissional.


    Tenho vindo a animar um clube de leitura numa vilazinha aqui perto, e a primeira coisa que faço, sempre que lá chego, é ir a correr tomar café, muito embora já tenha tomado dois em casa, antes de sair para ir passear o Sebastião e depois de voltar de ir passear o Sebastião. Às vezes ainda tenho que fazer qualquer coisa muito urgente, como por exemplo mandar a minha crónica para o PÁGINA UM, e então lá vai mais um café. Mas não interessa, dê lá por onde der, assim que chego à biblioteca da nossa reunião, vou sempre a tempo de me sentar na esplanadinha do cafezinho local e de tomar o último café antes de começar a trabalhar, enquanto o Sebastião conversa com toda a gente que passa, e que já lhe conhece o nome e retribui o nome, sobretudo os meninos, que querem sempre umas festinhas.

    O proprietário desse café minúsculo é um miúdo muito simpático com quem eu troco sempre cinco minutos de conversa se não vier ninguém pedir nada ao balcão entretanto. Normalmente são conversas divertidas, mas no outro dia vi-o tão triste, com um ar tão abatido, e aquilo era tudo – como tem sido para quase todos os portugueses normais – por causa da falta de dinheiro, que eu lhe disse,

    “Ó Rui, que não seja por isso. Eu estou tesa, como de costume, mas posso sempre oferecer-lhe uma raspadinha. Quer?”

    Tudo a rir, e ele,

    “Ah, eu não digo que não a nada, sabe-se lá.”

    Memórias de outras Derivas como esta, já lá vão uns bons vinte anos
    É tão irritante, nunca mais deixarmos de ter razões para nos sentirmos indignados no mais simples bate-papo ao domingo, do outro lado da rua.

    Sendo domingo e havendo uma tabacaria aberta na esquina que fica do outro lado da rua, deixei o Sebastião entregue aos seus amigos da esplanada, entretanto já todos a apostarem quanto é que havia de sair ao Rui e o que é que se fazia com essa massa, e fui num pulo “à do Zé”, como as pessoas dizem aqui.

    “Bom dia Senhor Zé, é para comprar uma raspadinha, eu nem sei que preços há, mas…”

    “Ai, Clarinha!”, respondeu-me logo o Senhor Zé, muito preocupado, “por favor não se meta nisto.”

    “Não é para mim, é para o Rui, que está muito em baixo, então eu prometi que vinha cá comprar-lhe uma raspadinha.”

    “Pois, está bem, então é um euro, mas oiça, nem ele, nem a doutora, nem ninguém: que ninguém tenha ilusões, isso das raspadinhas é um roubo. Um roubo de luva branca autorizado pelo fisco, e portanto governo, entendeu. Nunca, nunca, nunca, sai nada a ninguém. Eu vejo essas velhotas virem cá logo às oito e meia, assim que eu abro, comprar uma data delas, e até me dói o coração.”

    “Então porque é que não lhes diz que não as comprem?”

    “Eu? Se fosse eu a dizer às pessoas que não jogassem, fosse no que fosse? Estava desgraçado! Não percebe? Ao fim desse dia já toda a gente, daqui até Estremoz, sabia do que eu tinha dito… e, no dia seguinte, estava cá uma inspecção qualquer a fechar-me a loja por causa de um defeito qualquer que haviam de inventar logo ali.”

    “Não pode deixar de vender jogo, então?”

    “Uma casa como a minha, que é uma Tabacaria? Então não vê que isso era a fome e a vontade de comer? Valha-me Deus! Olhe, Clarinha, é como sermos protegidos pelas máfias, e essas coisas assim: quanto menos se falar no assunto, melhor.”

    Lá fui entregar a raspadinha ao Rui.

    Quando saí do Grupo de Leitura, ele mostrou-ma – toda a zeros, exactamente como o bolso do gajo que acaba de ganhar, e perder, e ganhar, e por fim perder tudo, durante as três horas intoxicantes passadas nas slot machines de um casino qualquer, igual a todos os outros.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • O pássaro da sabedoria

    O pássaro da sabedoria

    Pelo sim, pelo não, vai rezando uma oração.

    Provérbio tradicional transmontano


    Quando estou a acabar os livros que demoraram muitos anos a escrever-se dentro de mim, acontece-me com alguma frequência deixar de controlá-los, porque começam eles a controlar-me a mim. Por exemplo, estou a arrumar a cozinha e sou subitamente atacada por uma frase que teria ficado muito melhor na abertura do terceiro capítulo da segunda parte. Outro exemplo, menos prosaico, é quando nem sequer consigo dormir: as pessoas dos papéis principais podem acordar no meu cérebro, podem entrar no meu quarto, podem invadir-me de imensas maneiras, mas o resultado é sempre o mesmo: estão a ter grandes conversas, zangam-se, riem-se, e eu, feita parva, por muito que não queira sou refém daquilo tudo. Desta vez, enquanto o deus do desejo tentava contar uma lenda à narradora, só espero que fosse mesmo tudo um sonho[1]; e que aquele sonho assinalasse o fim da escrita[2]. Senão só poderei concluir que enlouqueci mesmo[3]; e que, pior ainda, aquela escrita não terá fim[4].


    “Sabes”, disse ele, “gostava especialmente que me deixasses contar-te a história do jovem príncipe a quem o Pai, no seu leito de morte, ofereceu um pássaro chamado Angha Kouch, que trazia inscrita nas penas, em arabescos sagrados, toda a sabedoria do mundo.

    “Sabedoria essa que devia ser, então, muitíssimo maior do que a nossa.”

    “Miúda, tu és lixada. Até a rapidez do teu raciocínio me dá tesão.”

    “Pois, mas também já se percebeu que a ti tudo te dá tesão, o que não é minimamente surpreendente considerando o que fazes na vida. A sabedoria do mundo só podia ser muito maior, uma vez que as pessoas tinham muito mais tempo, muito mais espaço, e é certo que também tinham muito mais servos e escravos, mas isso são contingências culturais. O que interessa é que as pessoas tinham imenso campo aberto para o jogo infinito de tentar vislumbrar o que virá a ser possível. Alguém tem que devorar alguma biblioteca para ser rápido nisto?”

    “Não, não tem,” respondeu-me ele mansamente. “Mas olha que tu vês incrivelmente bem no escuro, mulher.”

    “E é com esse género de conversas que tu costumas despertar o nosso desejo, grande kizombeiro?”

    “Bom, as outras mulheres…”

    “Eu não sou as outras mulheres. Conta-me lá a história do Príncipe e do Pássaro, vá. Adoro histórias.”

    “Então, depois da morte do Pai, o jovem estudou as penas do Angha Kouch com tanto afinco, durante a vida inteira, na paz dos seus jardins, que chegou à perfeição dos homens realizados.

    “E foi muito feliz?”

    Capas de diversas obras de CPC, tando de ficção como de não-ficção
    Qualquer um destes títulos poderia facilmente ser o nome do sonho que visitou a Autora na última noite, muito embora o diálogo aqui utilizado fosse cuidadosamente limpo do seu impressionante vernáculo.

    “Ai que chata. Voltaste a fazer a única pergunta que interessava fazer no fim desta história. E, portanto, calculo que já pressintas a resposta.”

    “Eu apenas duvido imenso da felicidade desse puto. Nunca ouvi falar de nenhuma lenda, nem de nenhuma fábula, nem de nenhuma história tradicional, onde a sabedoria levasse à felicidade.”

    “Tem calma. Antes de mais nada, assim, de repente, dir-se-ia que tens razão. A lenda do Angha Kouch diz-nos claramente, por repetidas vezes, que o jovem chegou à mais perfeita sabedoria. Mas nunca menciona a sua felicidade ao atingir semelhante perfeição.”

    “E portanto eu aposto que esse puto nunca chegou sequer a saber o que era a felicidade.”

    “Ai é?”

    “Ah pois é, meu, pois é. O meu trabalho já me fez caminhar por vezes ao lado de grandes sábios. E eles tinham todos o mesmo padrão em comum: quando começavam a falar do que sabiam às pessoas que se reuniam para os ouvirem, ficavam imensamente felizes. E essa felicidade vinha-lhes da partilha dos seus conhecimentos. Agora esse rapaz da tua história, se sabe tudo mas nunca partilha nada, epá, tu esquece. Acaba por transformar-se num velhote tão arrogante e tão cheio de manias que as criancinhas fugiam a correr assim que ouvissem a tosse dele ao fundo do corredor. Ai que lá vem o dragão. Coitadinhas.”

    “Ai mulher, mas tu não vês que estás a estragar completamente o glamour do momento? Então eu digo não mais do que a primeira frase de uma fábula de um lugar muito distante que tu nunca visitaste e cuja língua desconheces, e a partir daí pões-te tu a contar-me o resto, como se sempre tivesses conhecido todo o imaginário de todo o universo? Achas normal?”

    “Podes crer que acho. A vida ensinou-me que nenhum grande sábio é um sábio completo se não souber rir. Não te dei nenhuma explicação para o fenómeno, porque isso, as explicações, meu pináculo da perfeição… como de certeza que sabes muitíssimo melhor do que eu, há imenso tempo que já não existe explicação nenhuma para absolutamente nada.”

    “Ah, minha menina, que uma coisa é quando a gente sonha, mas outra coisa é quando a gente prova. E provar isto assim, isto de nós os dois, isto é tudo tão bom…”

    “Eu sabia.”

    “Grande coisa. Lá saber também eu sabia.”

    “E então tu, que és um deus pagão e portanto tens possibilidades que eu não tenho, tu sabes, e então não te lembras de nada melhor do que fazer-me esperar por ti durante dezenas de anos?”

    “E então, há azar? Não cheguei a tempo?”

    “Tu és imortal, meu filho. Assim também eu. Só que eu, sendo humana, por esta altura até já podia muito bem ter batido as botas.”

    “Oh, vá lá, não sejas dramática. Eu tive de fazer-te esperar porque, antes de vir ter contigo, precisava de testar o teu próprio pressuposto.”

    Despenteei-o à bruta.

    “Precisavas de testar o quê?”

    E ele despenteou-me mais à bruta ainda.

    “Não eras tu a grande megera que estava sempre a dizer aos seus pobres filhinhos, meninos-meninos-saber-esperar-é-uma-grande-virtude”?

    “Cabrão.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pertenço aos 15% das pessoas que sonham a cores, e aos 27,2% que se lembram dos sonhos quando acordam.

    [2] O diálogo poderia não ter sido exactamente este, até porque me lembro de que ambos os protagonistas usavam e abusavam dos palavrões mais escabrosos da língua portuguesa. Mas o sentido era este, isso de certeza.

    [3] Note-se que esta última frase não é necessariamente adversativa da antepenúltima.

    [4] Seja como for, o seu fim nunca será o fim da lenda. Já está decidido há bastante tempo que a mulher raramente deixa o deus pagão chegar ao fim dos seus raciocínios.

  • O verdadeiro milagre

    O verdadeiro milagre

    Desprezava-os a todos sem excepção,

    esses velhos jardineiros enregelados dos canteiros do amor.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para grande incredulidade dos meus filhos quando eram pequeninos[1], tive o privilégio de crescer num tempo em que só se escrevia à mão, só se faziam contas utilizando a memorização da tabuada, num mundo em que os gadgets ainda não existiam, e lá em casa nem sequer tínhamos uma mera televisão a preto e branco, daquelas só com dois canais e de horário muito limitado, uma vez que os nossos Pais partilhavam firmemente o credo de que a televisão destruía as famílias, impedindo-as de conversar[2]. O que é que esse MAGICAL MYSTERY TOUR[3] me deu? O gosto pela observação, sem dúvida; e, com ele, deu-me desde logo o prazer de inventar histórias. Mas, se soube inventá-las, foi porque vivi uma infância riquíssima passada a devorar livros atrás de livros. Aos oito anos, numas férias grandes em que estava doente e via da janela ao lado da minha cama as pessoas que iam para a praia todas satisfeitas com os seus chapéus de sol e os seus baldes de plástico, eu estava ainda mais satisfeita do que elas: iam-se todos embora, ninguém me chateava, a coberto de todo aquele sossego tinha começado a ler A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA, da Selma Lagerlof[4], e agora não conseguia parar. Até soneguei algures uma lanterninha para não parar nem à noite. Estava positivamente enfeitiçada. Já tinha lido imensos livros antes, mas isto era diferente. Naquela cama, sem poder ir àquela praia por intervenção directa de Deus, eu acabava de descobrir o verdadeiro milagre da literatura.


    Os verdadeiros livros, quando são verdadeiramente bons, têm a generosidade de não esperarem que as crianças cresçam para se deixarem ler, e, assim fazendo, imprimir nelas a qualidade que fica marcada nos seus passos. Aquele meu excitex do Nils Holgersson continuou a caminhar comigo. Aos dez anos, veio parar-me às mãos[5] um romance pouco conhecido de Erico Veríssimo, CAMINHOS CRUZADOS[6]. Não sei quantas vezes o terei lido, mas foram dezenas, de certeza. Fiquei a conhecer de cor todos os personagens, fiz a lápis folhas inteiras de esquemas de como os caminhos de todos eles se cruzavam ao longo do romance.

    CPC e S, O SEMINÁRIO
    “Estás a ouvir, Sebastião?
    “Repara bem na pérola do Dickens que pus em epígrafe. David está tão apaixonado por Dora que despreza todos os seus colegas do Tribunal que não amam ninguém. A metáfora é fabulosa, e o humor é irresistível: David está ridiculamente apaixonado, e como os leitores já foram avisados várias vezes de que o caso vai ter um desfecho trágico esse enlevo ainda é mais ridículo. É contra todas as regras do bom inglês usar várias comparações numa única metáfora, e Dickens usa imensas palavras mas nunca abandona os jardineiros e os jardins. Não se é considerado um dos melhores escritores do mundo por acaso.”
    Note-se a expressão atenta, concentrada, e positivamente maravilhada do canídeo.

    Claro que aprendi várias coisas sobre as vicissitudes do comportamento humano, mas o que aprendi de mais importante, já lá vão 53 anos, foi como se constrói em três parágrafos uma proeza literária autêntica, que neste caso assinala o início da história. Já tive muitas décadas para tentar, mas ainda não consegui chegar nem perto da qualidade com que o autor começa a sua narrativa, descrevendo o nevoeiro que cobre a cidade na primeira luz da manhã.

    Vivi em Alfama, onde caminhei muitas manhãs por entre esse nevoeiro. Estudei em Monterey, onde de madrugada esse nevoeiro era quase intransponível. Já por várias vezes, nos meus próprios livros, dei o meu melhor para descrever o mundo enfeitiçado das manhãs de nevoeiro. Mas, embora nunca mais tenha lido o CAMINHOS CRUZADOS, sei que o nevoeiro do Erico Veríssimo sempre foi melhor do que os meus.

    Deus andava a mandar-me estas revelações de dois em dois anos, sem dúvida para que eu conseguisse digeri-las convenientemente na minha tenra idade. E foi assim que, aos doze anos, durante as férias de Natal, alguém me ofereceu de presente[7] AS VINHAS DA IRA, de John Steinbeck[8]. Dois anos antes do 25 de Abril, toda aquela saga da tenacidade dos pobres e da indiferença dos ricos, com todos aqueles pequenos pormenores de outras histórias constantemente intercalados, deu comigo em doida.

    Pela primeira vez na minha vida, sublinhei várias passagens e dobrei os cantinhos dessas páginas[9]. Andei ali uns tempos a escrever à Steinbeck, sempre a meter aquelas pequenas narrativas de circunstância no meio da história principal. Há poucos inícios tão bons como o de CAMINHOS CRUZADOS. Mas há poucos finais mais belos do que o de TORTILLA FLAT[10], quando Danny já morreu, a sua casa já ardeu, e todos os seis amigos que ali partilharam com ele a estranha vida de aventuras dos anos anteriores contemplam os escombros:

    “A gente de Tortilla Flat dissolveu-se na escuridão. Os amigos de Danny continuaram a olhar para a ruína fumegante. Olharam de forma estranha uns para os outros e voltaram a olhar para a casa queimada. Instantes depois, voltaram-se e afastaram-se lentamente, sem que, ao lado de um, caminhasse outro.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Note-se a importância deste “eram pequeninos”: estavam naquela idade em que os meninos acreditam em tudo o que lhes dizem as Mães. Mas, mesmo assim, um mundo sem PCs, sem calculadoras, sem smartphones, sem TV-Cabo… “Oh, Mãe! Não digas essas coisas que eu fico cheio de medo!” E foram perguntar ao Pai se era verdade, os pestinhas. Based on a true story.

    [2] Sempre reconheci que eles tinham uma certa razão, e agora ainda acho mais, sobretudo quando as famílias se sentam à mesa do restaurante, cada um agarra no seu tm, e nunca mais se ouve um pio. Para que conste, nunca dei tms aos meus filhos, quando os brindei com um PC era para fazer os TPCs durante duas horas e “ir a sítios” durante quinze minutos, a televisão esteve seriamente regulada até o mais velho fazer quinze anos, e nunca lhes comprei nenhuma PlayStation nem nenhum outro monstro desses. Resposta a bombardeamentos de solicitações usando a técnica do golpe baixo que se ouvia mais vezes lá em casa: “MAS-EU-NÃO-SOU-A MÃE-DOS-OUTROS-MENINOS!”

    [3] Para benefício dos mais novos, o MAGICAL MYSTERY TOUR é o album psicadélico dos Beatles em que John Lennon canta I AM THE WALRUS (letra escrita totalmente em ácido durante dois fins-de-semana diferentes, o que explica ser tão difícil de perceber) e STRAWBERRY FIELDS FOREVER (escrita só de uma vez e baseada na infância de Lennon, portanto de compreensão um pouco mais fácil).

    [4] Claro que a ideia não foi minha, que só tinha oito anos, quand mêmme. Foi a minha professora primária, a Madalena, que eu adorava e achava linda, que nos leu umas passagens nas aulas. Oh. Nunca mais larguei a minha Mãe até ela me comprar o livro.

    [5] Não sei como. De certeza que foi Deus.

    [6] “Então, Clarinha, o que é que a menina está a ler agora?” – “É um romance do Erico Veríssimo.” – “Ah, muito bem! Com que então está a ler o CLARISSA?” – “Não. O CLARISSA é para meninas. Este é mesmo um romance de crescidos, e chama-se CAMINHOS CRUZADOS.” – “Ah, muito bem, muito bem.” E lá ia a puta da velha (que, pensando bem nisso, provavelmente era bastante mais nova do que eu) confabular com a minha Mãe sobre o tal de romance para crescidos.

    [7] Ou então, no meio de caos das dezenas de prendas da família, foi Deus que lhe pôs na capa um post-it a dizer CLARINHA e está a andar. Foi assim, aliás, que nasceram os post-its.

    [8] Era a tradução portuguesa, claro está. Aos 28 anos, quando estava em Monterey (no meio do nevoeiro) e, ao tentar traduzir o título usei THE RAISINS OF ANGER, toda a gente me percebeu mas fui gozada até mais não. O verdadeiro título original do livro é THE GRAPES OF WRATH. Eu sei que Deus queria facilitar-me a vida com a tradução portuguesa, mas depois também se devem ter divertido imenso à minha custa, lá nos Céus.

    [9] Haviam de ver os meus livros agora. É cantinhos de página dobrados por todo o lado, e, na ausência de lápis nas proximidades, chego a marcar passagens, e até a gatafunhar notas à margem, a esferográfica vermelha, ou a marcador de ponta de grossa. E o que é que tem? Os livros são meus, ou não são?

    [10] Tortilla Flat é um pequeno planalto, cimeiro a Monterey, onde se acolhe a camada populacional incapaz de pagar os custos extravagantes da vida na cidade. Porque é que este título foi traduzido em português como O MILAGRE DE SAN FRANCISCO, sendo que, ainda por cima, o romance não nos fala de milagre absolutamente nenhum – a menos que a amizade entre os homens deva, de facto, considerar-se um milagre? Estamos certos de que as más traduções não provam a existência de Deus. Por outro lado, no entanto, pode ser que provem a existência do Diabo. Já era meio caminho andado para Deus existir mesmo.

  • O silêncio dos inocentes

    O silêncio dos inocentes

    Acredito que és inocente, e que és bom. Apenas gostaria que todos fôssemos como tu.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para encurtar razões, estive três semanas completamente isolada do mundo, dedicada apenas a beber copos e copos de café, a fumar quantidades de cigarros muitíssimo acima da minha média diária, a andar sempre toda produzida, a sentir-me cada vez mais feliz, e a ouvir cada vez mais piropos matinais sobre a minha incrível beleza[1]. Como é evidente, muito contribuiu para este caminho interior de descoberta de uma nova paz de espírito, que pelos vistos até me dava vontade de me arranjar melhor num sítio onde nem sequer se podia secar devidamente o cabelo, e que me fazia parecer tão bonita logo ao acordar[2], não ser obrigada a saber mais episódios sinistros sobre a Guerra da Ucrânia, nem quaisquer outros episódios sinistros tout court. Se alguém tentasse agredir-me com eles, escorriam-me logo por cima como água por pena de pato.

    “Ah, viste aquela que esfaqueou o marido e depois o deixou a esvair-se em sangue até à morte dentro da banheira?”

    “Ora, parem mas é de engolir essa versão do País-CMTV.[3]


    E foi assim, feliz e fortificada, com o meu Sebastião cada vez maior e mais armado em cão feroz, que regressei a Estremoz. E cheguei mesmo a tempo de ir comprar fielmente a minha sandes de queijo do pequeno-almoço ao Bruno, e partilhar o grande silêncio que pairava no Zé Russo para ver, em directo e ao vivo, a selecção portuguesa de futebol feminino apurar-se, pela primeira vez, para o torneio da Grande Final da Copa de Mundo jogando contra os Camarões na Nova Zelândia. Ao derrotar as adversárias por 2 a 1 no último play-off, as portuguesas qualificaram-se para disputar o título de Campeãs do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Mais, há que notar que, em Estremoz, vemos estes jogos com o frisson acrescido de uma das jogadoras, a Carolina Trindade, ser daqui mesmo da cidade. É tão daqui mesmo que até eu já lhe conheço a cara, só de passar por ela na rua.

    “Ai, Bruno,” suspirei eu, depois dos primeiros momentos de euforia. “Queira Deus que essa Final chegue depressa e que os senhores da bola e das direcções de informação não abusem. O que isto agora vai ser de repetição destes golos em câmara lenta, de comentadores a papaguearem banalidades que qualquer curioso papagueava melhor do que eles, de publicidade às marcas dos sponsors, de entrevistas ao treinador… Que sufoco, está a ver?”

    Mike e Mãe, 2012
    Embora por diferentes razões, ambos apreciamos deveras todos aqueles rabos de cavalo do futebol feminino.

    Sou tão parva.

    Por junto, houve as imagens obrigatórias da chegada feliz da selecção feminina ao aeroporto[4]. E, logo ali[5], o anúncio de que mais tarde o PR receberia o grupo vencedor em Belém[6].

    E depois veio o grande silêncio que se segue às batalhas.

    Então aquilo não era só uma gracinha em que umas miúdas jogavam à bola de rabo de cavalo? Uma gracinha não é nenhum jogo de futebol, é um entretenimento com uma grande telenovela de vencedoras lacrimosas no fim. Cenas dos próximos capítulos? Isso não existe. Aquilo não se destina a galvanizar multidões, pessoal, qual é. Aquilo é só para que não se diga que não as deixamos jogar à vontade. Mas elas que não pensem que valem tanto como os homens[7]. Então e os espelhos de vidro, não existem? Não servem para nada? As vitórias destas adolescentes armadas em rapazes não valem pelas vitórias deles. Não valem, não valem, e não valem.

    Vamos é voltar à Guerra da Ucrânia, que entretanto já fez um ano.

    E tu, ó Clarinha, pára de sonhar acordada, mas é.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sem segundos sentidos whatsoever. Agora pensem o que quiserem sobre o que foi que eu estive a fazer para andar sempre assim tão feliz e produzida, e de quem é que vinham esses tais piropos matinais. Façam apostas mútuas, se quiserem, que eu ofereço-me já para banco. Acertar é que nunca acertarão, isso de certeza. Ah-ah-ah.

    [2] A loucura deste estranho retiro torna-se épica à medida que a descrição continua. Agora nem sequer posso disciplinar todos estes caracóis mas sou bonita logo ao acordar? Desculpem, até parece um conflito de interesses. Ou, no mínimo, uma contradição nos termos

    [3] Aprendi esta expressão com os meus sobrinhos. É perfeita para separar o trigo do joio. E é nessas alturas que se repara que há mesmo muito pouco joio

    [4] TRÊS MINUTOS de imagens obrigatórias. Contei pelo relógio. E tudo isto aconteceu apenas no dia seguinte. Está bem que a Nova Zelândia fica nos nossos antípodas, mas o que é que aconteceu ao Skype? Ao Zoom? Ou mesmo ao Messenger, para os mais pobrezinhos? Raios vos partam, seus hipócritas.

    [5] Deve ter sido para poupar tempo.

    [6] Não será totalmente cínico sugerir que esta recepção também tem que ser porque é obrigatória.

    [7] Até é provável que sejam todas fufas. Há muito quem diga, porque são mesmo muito boas na bola. Ah, mas bem podem ser fufas, que nunca serão homens. Até podem ser LGBTs da bola. Não serão homens à mesma.

  • Quando se cai na poção mágica

    Quando se cai na poção mágica

    E também tudo aquilo que consideramos impossível precisa apenas de ser feito.

    Plínio[1]

    HISTÓRIA NATURAL


    Protegida pelo braço caloroso do ZL, a professorinha preocupada com as perguntas dos seus meninos depois de terem assistido ao nosso filme disse que se chamava Lídia Augusta, e ele disse oh mas que nome grandioso, olhe querida, eu sou o ZL, e ela é a C e de certa forma também somos os dois professores, e não vai acreditar mas conhecemo-nos ontem à tarde e apaixonámo-nos durante a noite, enquanto estávamos a jantar, e depois viemos para aqui a conversar e ver nascer a manhã e foi quando demos o nosso primeiro beijo e depois apareceu a menina com todos os seus meninos, não acha bonito? Isto fez a Lídia Augusta, que olhando melhor era assaz boazona, fazer um grande oooooh, abraçar imenso o ZL à laia de parabéns, e a seguir juntar ao abraço a conversa de como sacrificava tudo à oferta do imenso amor que tinha para dar dentro de si mas, pronto, era tudo por causa do marido.


    É um bocado chata, esta versão da vida das pessoas em que é sempre tudo muito triste por causa do outro membro do casal.

    E então o marido da Lídia Augusta era contabilista, bastaram-lhe sete anos de casamento para ficar tão barrigudo quanto calvo, nunca fora grande espingarda na cama mas agora era mesmo o fim da picada porque eram só cinco minutos semanais na posição do missionário e ela até bebia mais do que a conta ao jantar para que o triste dever marital lhe roesse menos a alma, lia o Wall Street Journal à mesa, nunca queria ir à praia nem a Paris nem a Nova York nem a lado absolutamente nenhum porque em Portugal tudo está enxameado de turistas e para sair de Portugal toda a gente sabe que andam a cair cada vez mais aviões de manutenção mal feita devido à crise, de qualquer maneira a verdade é que só estava bem se pudesse estar a falar de fugas ao fisco e de offshores em águas internacionais o que o levava a literalmente fugir de casa todos os fins-de-semana para andar na farra com outros contabilistas, alguns autarcas, alguns bandidos da PJ, alguns bancários com conhecimentos, o ZL está a ver, não é, tudo péssima gente, e eu sozinha em casa porque ele não quer ter filhos, não quer ter um cão, nem sequer quer ter um gato persa que é uma raça hipo-alergénica, quando lhe falei de um peixe encarnado dentro de um aquário ele desatou a berrar-me se eu queria desequilibrar o Feng-Shui da casa mas quinze dias depois pedi a uma amiga que lhe perguntasse duas ou três coisas desse género e percebeu-se logo que ele me tinha berrado só por berrar, por causa do Feng-Shui é que não foi de certeza porque na realidade ele não faz a menor ideia do que é o Feng-Shui, assim como não faz a menor ideia do que é o karma mas isso não o impede de dizer que se eu for àqueles jantares dele lhe vou dar mau karma, ó ZL, olhe só para as minhas unhas, eu dantes não as roía mas é que estou a um passo do burnout, e o pior é que não quero, bem, é mais que não posso, não sei se o ZL me entende mas eu não posso pedir-lhe o divórcio porque ele percebe bem demais de contas enganosas e de dinheiro sujo e ia deixar-me na miséria, tenho a certeza absoluta. Ah, mas se me entrasse de repente na sala de aulas uma alma gémea, como lhe aconteceu ontem com a C,

    Pois foi, ó Lídia Augusta,

    Nova demonstração de Clara e Sebastião
    Vê-se claramente nesta foto que não é a seriedade que afecta a felicidade.

    rosnei-lhe eu, que entretanto me tinha sentado na relva com a turma inteira para esclarecer as dúvidas dos meninos, que não paravam de levantar as mãozinhas e eram positivamente hilariantes,

    mas olhe, essa de se abrir a porta e entrar por ali dentro a alma gémea, ontem à tarde, assim como lhe aconteceu a ele, também me aconteceu a mim, boa? E vai daí, para todos os efeitos, a partir de agora mesmo esse homem está aí mas é meu. Mande esse atraso de vida da posição do missionário dar uma curva, vá a um banco de esperma e engravide já enquanto pode, diga-lhe que foi o padeiro, vá viver para casa de uma amiga que o gordo desconheça e mande-lhe os papéis do divórcio por correio registado com aviso de recepção, faça qualquer coisa por si, mulher, mas tire as patas de cima do gajo que eu vi primeiro, e muito legitimamente me saiu na rifa.

    Disse aquilo num tom brincalhão para a pobre esposa repelida não se sentir ainda mais repelida, mas a verdade é que acabei por vociferar tantos detalhes sobre o nosso namoro que me parti a rir. E o ZL, que estava a ouvir-me com cada vez mais gozo, ainda me piscou o olho mas no fim ainda riu mais do que eu. Podíamos estar os dois a brincar, mas estávamos a brincar com o fogo. Estávamos era os dois a gostar muito de ouvir as nossas declarações crescentes de amor e compromisso.

    Aaaaai,

    suspirou a pobre Lídia Augusta, lá mesmo do fundo de toda a dor que assolava o seu coração,

    vocês têm uma forma tão interessante e tão criativa de utilizar a língua portuguesa, e tudo o que eu digo, e tudo o que eu oiço, é tudo tão baço, tão banal, tão,

    e estava na cara que a pobre Lídia Augusta ia desatar a chorar, pelo que o ZL voltou a abraçá-la, e, já que eu tinha montado uma conferenciazinha com os meninos, lá lhe vendeu a conversa da treta de eu ser muito boa a explicar assuntos difíceis às crianças e ao povo. Ela implorou-me que explicasse mesmo porque ela, que não tinha qualquer amor na sua triste vida, nunca conseguiria fazê-lo. Eu deitei a língua de fora ao J, virei-me para a turma e para todas as mãozinhas no ar que apareceram imediatamente, e falei-lhes dos livros do Astérix, onde havia um druida de roda de um grande caldeirão onde preparava a poção mágica que tornava invencíveis todos os gauleses lá da aldeia, sempre à tareia com os pérfidos invasores romanos.

    Na segunda fila levantou-se logo a mãozinha de um menino armado em bom.

    Todos não, s’tora. O Obélix não pode beber a poção mágica porque caiu dentro do caldeirão quando era pequenino.

    Eu já te lixo, pestinha.

    Que bom,

    Respondi-lhe toda sorridente, como se a interrupção do puto não tivesse sido do pior intencionado carácter provocatório,

    parece que temos aqui uma turma de sábios em Astérix. Pois é, meninos. Quem já caiu no caldeirão em pequenino não pode voltar a beber mais poção mágica. Ora acontece que eu e o ZL caímos os dois no caldeirão em pequeninos, mas depois esquecemo-nos. E então ontem à noite, ao jantar, estivémos os dois outra vez a beber poção mágica. Era uma poção mágica muito boa que há cá em Portugal, chamada Tiago Cabaço, e então como era muito boa nós bebemos muita, e foi por isso que ficámos assim como vocês viram, e é por isso que quem já caiu no caldeirão quando era pequenino nunca mais deve beber poção mágica, senão está sempre a fazer filmes e nunca trabalha, e a vida dos crescidos é trabalhar, não é curtir.

    E foi com esta explicação, que mereceu pelo menos a concordância tácita de todas as criancinhas, que aliás adoraram o uso da palavra curtir, de onde se prova que já sabiam o que é que isso que queria dizer, que eu e o ZL fizemos finalmente rir a Lídia Augusta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Estudioso e autor romano considerado o fundador da História Natural, a ciência que veio a dar origem à Biologia. Homenageando a sua natureza de grande cientista, morreu no ano de 76, data que poderá parecer familiar a alguns leitores, e por razões que ninguém pode discutir com a Natureza: Plínio ia de barco, a passar ao largo, quando o Vesúvio explodiu. Pediu ao comandante para se aproximar mais da margem, por forma a observar devidamente o fenómeno, e morreu envenenado pelos gases tóxicos da explosão. Ninguém sabe o que é que aconteceu aos outros tripulantes do barco.