Autor: Clara Pinto Correia

  • Maria Alice desiste: Estremoz chora a sua falta

    Maria Alice desiste: Estremoz chora a sua falta

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Estamos nas Urgências do Hospital de Évora, onde uma jovem noviça solitária contempla, enlevada, a imagem quase sacra de serenidade que emana do rosto inconsciente de Maria Alice. E acrescente-se, desde já, que não é só esta noviça quem tem os olhos presos naquela doce visão. Quem quer que esteja na Sala de Espera das Urgências do Hospital de Évora pode olhar para Maria Alice todo o tempo que quiser, com toda a atenção que sentir, e seja por que razões for. Os bombeiros encostaram a maca à parede, registaram a entrada e os sintomas da bonequinha[1], bateram no ombro do Bruno à despedida, e o Chefe até lhe disse “bon courage”. E depois, cumprida a sua missão, foram salvar vidas para outro lado[2]. Maria Alice está de pulseira vermelha, mas isso parece não impressionar minimamente a burocracia que rege as Urgências. A sua respiração começou a ficar de tal forma entrecortada que Bruno teve que salvá-la duas vezes por boca-a-boca. Como neste momento já toda a gente viu demasiada televisão, os restantes doentes ali aquartelados à espera de vez, partem do princípio de que estão a ser figurantes inadvertidos de um reality show de hospitais, pelo que observam as manobras todas em silêncio, tentando apenas compor mentalmente o protesto com que aproveitarão para espernear contra a destruição do Serviço Nacional de Saúde quando aparecerem as câmaras, os microfones, os megafones, as marcas de take, e a miúda gira, muito mamalhuda, que costuma apresentar aquelas coisas. Mas, por muito que o tempo passe, a verdade é que nunca aparece ninguém.


    Quem finalmente parece ter registado a ocorrência, saindo da porta de um dos gabinetes mais ao fundo do corredor, é uma jovem médica que parece estar antes a sair de um sonho, de longos cabelos quase negros e muito lisos, lindíssima e cansadíssima, que indica com o queixo aos auxiliares de serviço qual é a maca que deve entrar pela sua porta, confirma se Bruno é mesmo o companheiro da paciente[3], depois do que o segura pelo cotovelo e o conduz, também ele, para dentro do gabinete. Este é um espaço  minúsculo, que fica imediatamente sobrelotado[4]. Uma das duas meninas que ali estão a estagiar corre a fechar a porta à chave, enquanto a outra consulta o relógio e indica à médica de sonho que são duas e trinta e cinco da manhã.

    A médica insere vários dados no seu PC.

    Bruno,” diz-lhe ela, carinhosamente. “Nada é disto é fácil, seja para quem for. No entanto, já percebi que o Bruno é um homem muito corajoso e sólido como um rochedo, portanto, por favor, ajude-nos a fazer tudo bem. Não teremos muito mais do que quinze minutos para registarmos a certidão de óbito da sua companheira.”

    Certidão de óbito.

    Agora é Bruno quem gagueja, treme, e se desfaz em suores frios. A estagiária mais roliça, muito bronzeada e com o cabelo cheio de tererés, com todo o ar de quem acaba de chegar de umas merecidas férias na Meia Praia, abraça-o por trás para lhe dar coragem. Sendo verdade que há alturas para tudo, Bruno nem sequer equaciona a possibilidade de engatá-la assim que a ocasião se proporcione[5].

    Mas ó doutora… A certidão de óbito… Isso não é só quando a pessoa morre?

    A sua companheira morreu ali no corredor, Bruno.”

    Mas ó doutora… Não pode ser… Uma rosa brava que não tem medo de nada e vende saúde… Doutora, por favor… a Maria Alice morreu de quê?”

    A médica linda nem hesita. As estagiárias confirmam tudo acenando com a cabeça. Nenhuma delas está, sequer, a protestar. Estão todas, apenas, completamente esgotadas. Esgotadas de não dormirem, esgotadas de não conseguirem sequer ir a casa, esgotadas de tentarem tudo o que está ao seu alcance para salvar as pessoas numa guerra de nervos em que a grande tendência é para perderem batalha atrás de batalha. Ontem foi um puto de  catorze anos com uma fractura exposta do fémur que já estava demasiado infectada para retaliar. Hoje é Maria Alice, que no entanto vendia saúde. Amanhã não sabem quem será nem como, mas já sabem que voltará a ser um destes desastres, que são completamente demolidores porque era muito fácil evitá-los.

    Doutora… por favor, ao menos explique-me o que foi que aconteceu. A Maria Alice… ela morreu de quê?”

    A Maria Alice morreu de estar demasiado tempo à espera, Bruno. Deixaram-na morrer, se quer que eu seja franca. Não há enfermarias, não há quartos, não há camas, as pessoas estão a fazer cirurgias com anestesia local deitadas em macas logo ali na Urgência, portanto sabe o que é que eu acho?

    As duas estagiariazinhas frescas e mimosas perfilam-se por trás da cadeira da médica, trocam um sorriso entre si, depois do que ambas sorriem ao Bruno, e a seguir dizem, muito bem coordenadas,

    A doutora Mafalda acha que a administração faz os possíveis para que todos os dias morra gente que está de pulseira vermelha na sala de espera, porque assim sempre se ganha mais espaço e se dispõe de mais equipamento.”

    Bruno sente-se a única pessoa normal num mundo de doidos.

    Foi exactamente isto o que aconteceu à outra Alice, a princezinha britânica do País das Maravilhas, a partir do momento em que caiu no buraco do coelho. É interessante verificarmos que um gajo espadaúdo das bifanas como o Bruno partilha aqui este mesmo sentimento, porque, em geral, quem está sempre a sentir-se a única pessoa normal num mundo de doidos são as mulheres, sobretudo quando ainda não conseguiram contar a outra mulher o que foi que lhes aconteceu. Os homens tendem antes a andar para aí a empatar o trânsito, a ocupar o espaço, e a gastar o Oxigénio, porque estão sempre a sentir-se como autênticos monarcas destronados. Sendo assim, a comparação que melhor se lhes aplica é com o que aconteceu ao Hamlet.

    red vehicle in timelapse photography

    Mas, neste momento, um homem como o Bruno até já está a começar a ver o sorriso perverso do Gato de Cheschire.

    Mas a doutora, desculpe, eu não sei –[6] mas não podia mesmo ter ido tratar dela ao corredor?”

    Mafalda encolhe os ombros, e sorri um sorriso triste.

    Olhe Bruno, e para que conste: ainda na semana passada fomos as três expulsas do corredor porque tentávamos fazer isso mesmo diante de toda a gente. Não há vontade política, entende? Não há vontade política para nada que não seja deixar morrer as pessoas e depois passar-lhes uma certidão de óbito toda maravilhosamente floreada. Compreende bem o que eu estou a tentar dizer-lhe? É que eu, neste momento, e por esta causa, até já estou disposta a dar a cara.”

    Ó filha,” pensa o cérebro rápido de Bruno, pelo meio do terrível desgosto que vai no seu coração. “Eu cá, se tivesse uma carinha laroca  como a tua, estava sempre disposto a dá-la que era um gosto.”

    Mafalda continua a sua explanação[7].

    É que teria sido muito fácil desinfectar a ferida e dar-lhe uma transfusão de sangue para irmos ganhando tempo, mas nós…”

    Roda os braços elegantes para mostrar a Bruno o equipamento velho, o pó sobre todos os papéis, a caliça a desfazer-se nas paredes, o som do caruncho na madeira – [8]e, finalmente, conclui,

    “… nós já quase não conseguimos atender ninguém. Fazemos turnos de dezoito horas, mas só recebemos metade do ordenado, porque sabe como é, não há nenhuma alocação planeada das verbas, não há nenhuma distribuição generalizada de custos e ganhos, não há… olhe, muitas vezes não há sangue, e nestes últimos dias nem sequer houve morfina. A sorte da sua companheira foi estar inconsciente, senão teria morrido com dores horríveis. Não chore, Bruno. Por favor, não chore. Eu vou consigo ao gabinete da Servilusa, para ter a certeza de que eles lhe oferecem condições verdadeiramente camaradas. Ai, Bruno, um homem tão bonito, com tantos músculos, tantas tatuagens, esse piercing que lhe fica a matar… Ande lá, homem, dê cá a mão e venha comigo.”

    lighted candles on black metal candle holder

    “Vou consigo o caraças, doutora, que a doutora é muito simpática e tal, mas o que eu mais quero é que a sua Servilusa vá morrer longe.”

    O cérebro de Bruno parece registar, por fim, que há realmente naquelas Urgências muita miúda gira à espera de ser engatada[9]. Ao mesmo tempo, dá também alguns sinais inquietantes de depreender que, pelo menos em teoria, a Doutora Mafalda recebe uma comissãozita da Servilusa por cada defunto que lhe passa para as mãos. E, talvez pior ainda, nota ele logo a seguir –[10] como é possível que uma agência funerária opere dentro do espaço físico de um hospital? Mas enfim, a pessoa não precisa de ter lido O CAPITAL com imensa atenção para saber que estes são os benefícios da Economia de Mercado[11] para com as Grandes Multinacionais. E, à semelhança de todos os outros portugueses, o nosso herói das bifanas já viu o exemplo da corrupção e do desvio de fundos manifestar-se vindo de cima vezes demais para ainda conseguir indignar-se. É portanto quase com apatia que, em vez de ir à Servilusa, aproveita o tempo que lhe resta para continuar a escutar a Doutora. Que se lixe, para todos os efeitos a miúda é realmente bonita, além de que é boa como o milho, dentro daquela aparência muito enganosa de tábua de engomar que tanto o entusiasmava em Maria Alice.

    Três dias mais tarde, os sinos da Igreja de São Francisco dobram a Finados durante toda a manhã. O céu muito cinzento parece prometer chuva[12]. A cidade enlutada comparece em peso à missa de corpo presente da mulher de António José, enquanto o viúvo emborca copos atrás de copos das traçadinhas que o Crispim que lhe vai preparando, e jura que tudo aquilo é um castigo de Deus pela sua longa negligência matrimonial durante os vinte anos do período canadiano do casalinho que foi para o Québec cheio de sonhos e ilusões  – “e  passa aí mais outra traçadinha, ó Pacaças.

    Gray Concrete Building during Sunset

    António José e Crispim Raposo[13] fizeram juntos uma comissão de serviço em Angola durante o período da limpeza das minas antipessoais, o que lhes proporcionou da mais fortuita das formas[14] o prestígio quase inacreditável, que nem sequer era à época oficialmente não documentável[15] de terem ambos apertado a mão à Lady Di poucos dias antes da morte trágica da Princesa do Povo[16]. Cimentaram assim, na vida da tropa, uma daquelas amizades para toda a vida que os homens só conseguem fazer se estiverem mesmo com um camuflado vestido, pelos verdadeiros motivos que levaram à invenção dos camuflados. Nessa altura, aquele borracho de fazer parar o trânsito, que agora faz antes ginjinhas e compotas na encosta Sul da Serra d’Ossa[17], ganhou a glória dúbia deste seu petit nom[18] por ter conseguido fazer uma manada enorme de pacaças sair-lhes do caminho com um simples “xó-xó-xó-grandes-galinhas”, por sinal em tom bastante amaricado[19]. Agora, ao acorrer a Estremoz com quatro grades de garrafas de litro de ginjinha, Crispim Raposo pensa apenas que vem confortar o amigo pela perda, que ele próprio sente de forma quase insuportável, da mulher mais linda, e com mais talento para rebolar no feno, de todo o Alto Alentejo[20].

    Bruno senta-se em silêncio ao lado de António José, para poder ampará-lo caso ele perca o equilíbrio. Crispim senta-se do outro lado do viúvo, não vá ele precisar de pedir mais traçadinhas ao Pacaças

    Há certos momentos que são demasiado tristes para as suas próprias descrições.

    No entanto, a visita de Crispim Raposo acaba por provocar à multidão enlutada de Estremoz uma tragicomédia ao melhor estilo gilvicentino revisitado, que não foi iniciativa sua, nem do Bruno, nem do viúvo, mas que se manifesta com tamanha contundência que faz rir o próprio prior, até então tão combalido como todos os ademais presentes[21].

    Este espectáculo é proporcionado pela Prima Rikita, ali presente a título de nova namorada atitrée do Crispim Raposo[22]. Rikita é uma autêntica princesa de conto de fadas, de feições extremamente finas, com a pele muito branca, e com os olhos muito azuis por baixo das suas belas pestanas encaracoladas. É magra e flexível como um junco, de cabelo muito comprido e costas muito direitas, com todo o ar de quem jamais conseguiria dormir com uma ervilha escondida debaixo de vinte colchões[23]. Esta menina já fez cinquenta anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco. É advogada, e a esse título funcionária das Dívidas ao Estado em Lisboa, mas raramente lá vai porque habitualmente está de baixa do psiquiatra[24]. Deve-se esta situação ao facto de possuir um temperamento sem planícies nem calmarias, só com grandes montanhas, fossas abissais oceânicas, embates de meteoritos, e a explosão ocasional de um ou outro vulcão que já há muito que se considerava extinto, geralmente provocada por ciúmes desabridos, a bem dizer patológicos. Há quem diga que a culpa desta instabilidade é dela, porque nunca toma os medicamentos como os médicos lhe indicam, além de que se enfrasca, literalmente, nos seus preferidos – [25] e aqui entraria uma longa lista de party drugs, crystal meths, anfetaminas para cavalos de corrida, e ainda todos os tipos de opióides acessíveis nas nossas Farmácias[26], ingeridos de um só trago com a ajuda da maravilhosa traçadinha de ginjinha e medronho que faz os velhotes estalarem com a língua[27]. Também há quem diga que a culpa é do psiquiatra, positivamente enfatuado[28] com aquela beleza irreal, que a faz andar drogada o mais que pode para que ela nunca consiga deixar de lá voltar. Mas, não sendo nós a coluna dos mexericos, nada disto nos interessa.

    orange prescription bottle lot

    Interessa-nos é que ninguém naquele funeral conhecera previamente a prima deslumbrante, nem ninguém tinha ainda ouvido o Crispim Raposo repetir a sua frase preferida do momento, “e cheguei eu aos sessenta anos para ter que aturar isto.” Assim sendo, torna-se-nos evidente que nenhum dos presentes conseguiria prever fenómenos como os que ocorreram nesse dia ainda dentro da própria igreja, e que ficaram para sempre guardados no imaginário local[29].

    No final da missa, Crispim Raposo vem segurar por alguns minutos a mão de Maria Alice, contemplando em sincera consternação o seu rosto, tranquilo, que irradia singular beleza[30]. Quando a namorada o surpreende nestes preparos, perde por completo a paciência para tanto passado[31], e arma-lhe uma espantosa cena de ciúmes perante Estremoz em peso, mais todas as visitas lacrimosas vindas de perto e de longe. Atira-se-lhe à cara com as suas temíveis unhas de gel. Esgatanha-o todo. Tira os seus sapatos de salto-agulha para conseguir furar-lhe os olhos. Como devora as séries que passam nos inúmeros canais da FOX TV, o vocabulário sai-lhe por acréscimo: you cocksucker, you bastard, you motherfucker, eat shit and die you Infamous Green Great Hulk[32], e outros anglicismos que tais amplamente popularizados pela TVCabo. E assim acaba o funeral de Maria Alice, com o povo de Estremoz entretanto entregue a considerações apaixonadas sobre o ataque da Branca de Neve ao Green Great Hulk. Atrás da multidão fica apenas, aguardando ainda a carreta, o fétero com os despojos mortais da defunta[33]. Esta, coitada, ainda agora morreu; mas, perante a fúria de Rikita que segue o seu curso no átrio, já começou a ficar um pouco esquecida. O que aliás é normal, porque começar rapidamente a cair no esquecimento é o destino costumeiro de todos os defuntos[34].

    Seguem-se semanas de grande silêncio.

    Incapaz de aceitar que agora, de repente, ninguém lhe ligue nenhuma nem o leve a passear à trela pelas zonas mais concorridas da cidade, Júnior rói todas as roupas elegantes, sapatos de verdadeira classe, e lingeries delicadas da dona que apanha a jeito. Josefa passa horas esquecidas na cozinha, a digerir em silêncio, com digno sofrimento, a certeza que já nunca meterá ao bolso aquelas tão antecipadas vinte mil mocas que quase conseguiu arrancar à Menina com a sua chantagem. António José, diagnosticado com uma depressão profunda logo ali no Centro de Saúde, recusa-se a sair de casa, pede ajuda ao Pacaças, e fica para antes o dia inteiro a encharcar-se em traçadinhas, porque é absolutamente contra tomar comprimidos[35].

    blue and white no smoking sign

    Entretanto, Bruno anda quase sempre desaparecido.

    Concluída e assinada a certidão de óbito no gabinetezinho esconso do Hospital de Évora, a Doutora Mafalda passara-lhe para a mão um cartão de visita.

    Olhe, Bruno,” dissera ela em voz calma, pausada, francamente hipnótica. “Eu por acaso não costumo ser assim tão leviana, sabe, mas já não aguento mais, não aguento mesmo. Estão aí todos os meus contactos. Assim que puder, e se vier a propósito, passe-os à Comunicação Social. Eles que vão ter comigo à Glória, e eu conto-lhes das boas sobre o estado impraticável do nosso Serviço Nacional de Saúde nos tempos que correm. As minhas estagiárias também podem contar mais histórias. E, no fim, se o Bruno estiver cansado, pode ficar a dormir em minha casa.”

    A Aldeia da Glória.

    Bruno sabe muito bem do que se trata.

    Foi na Glória que vários actores das novelas e sobreviventes de reality shows compraram as suas casas e restauraram os seus montes. Alguns só lá vão de férias, mas outros optaram por viver mesmo lá, reencontrando a paz e o equilíbrio emocional com a generosidade da Natureza e a intervenção de coaches, yoggis, mestres de Reiki, treinadores de Artes Marciais, malucos, crianças, e pessoas de Coimbra. Ou seja, o gajo das bifanas, que lá por ter feito duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana não deixou nunca de ser o jovem moço romântico[36] que se escapulia com a jovem Maria Alice para juntos fazerem o amor[37] no HOTEL ALENTEJANO de outros tempos, acaba de descobrir que a Doutora Mafalda vive no Olimpo.

    E acaba de convidá-lo para ficar uns dias em sua casa.

    Fique o tempo que quiser,” acrescenta ela. “O que aquela casa tem de especial, além de um casal de rafeiros alentejanos, são umas janelas enormes e um espaço que nunca mais acaba. Vá, vamos a isto para que a Maria Alice  não tenha morrido em vão. Vamos arrastar esta porcaria toda à nossa frente e criar um hospital novo.

    Claro que nada disto acontece. Enfim, consta que será construído um novo hospital na periferia de Évora, libertando o excesso de doentes e outros aflitos que acorrem àquela construção vetusta situada em pleno centro da cidade. No entanto, também consta que esse hospital se destinaria antes a permitir o encerramento do já existente, que entretanto será transformado num hotel, transacção que até já se encontra fechada. Respondem os mais timoratos que uma coisa não impede a outra, porque o hospital a construir será muito maior e claro, muito menos vetusto. A verdade é que ninguém sabe nada ao certo.

    O que sabemos de ciência segura é que, de facto, e tanto quanto o gajo das bifanas vem ao caso, Maria Alice não morre em vão. Com a sua morte ali mesmo nas Urgências, e perante a revolta da Doutora Mafalda, Bruno recebe a benesse  de meter temporariamente as suas gémeas[38], ainda de férias, a trabalhar na das bifanas[39], para ir ele passar algumas temporadas extremamente interessantes na Glória[40], onde é agora chamado a consertar ou remodelar as Harleys dos actores[41]. Ao mesmo tempo, digamos que a tensão sexual nascente logo ali no Hospital não se limitou à Doutora Mafalda, e, num fim de semana particularmente inspirado, às suas duas jovens estagiárias: inevitavelmente, Bruno começa também a ser chamado, com alguma frequência e sob todo o tipo de pretextos, a socorrer a libido de toda a gente de libido meio náufraga que por ali anda. E é precisamente nesse desvairado e ardente sexo sem amor que, depois da morte de Maria Alice, o nosso herói local afoga todo o seu enorme desgosto[42].

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    Passadas algumas semanas farta-se de frivolidades e regressa às bifanas.

    Aqui as opiniões dividem-se.

    Ou este regresso ocorre porque Bruno se fartou realmente, ou ocorre antes porque, mesmo não estando em Estremoz, conseguiu detectar o rumor segundo o qual a sua brasileira se encontrava em vias de ficar novamente grávida de quatro meses e meio, se é que não estava já nesse estado interessante.

    Dirão os levianos: e então, ele não ficava muito melhor servido com a bela[43] Mafalda?

    A resposta que a experiência nos ensina é muito simples: e então, e as filhas? O homem tatuou o nome de cada uma delas em cada um dos braços. Se porventura aparecem miúdas nas Bifanas que já estão a cair de bêbedas antes da meia noite, porque é Carnaval ou por qualquer outra desculpa assim[44], e lhe pedem ainda mais uns copos seja do que for, ele manda-as sair dali, indignado. Contra o facto “mas serviram-nos vodka no não-sei-quê”, ele usa sempre o argumento “tenho duas filhas lindas lá em casa e não quero vê-las no estado em que vocês estão.” O nosso Bruno é tão homem de família como qualquer outro, e, desse ponto de vista, está bastante satisfeito com a sua instalação. Note-se que ainda nunca ninguém saiu em defesa da dama, mas convém acrescentar que a sua brasileira, por muito que carregue excessivamente no bâton vermelho-memória-Azteca dos lábios e na tinta preta-asa-de-corvo do cabelo, qualifica acima da média da amostragem local generalizada. Larguem o osso. Acabou-se a conversa.

    Servem todos estes episódios para demonstrar como, no País Profundo, e preferencialmente longe das garras da Servilusa, um verdadeiro velório, seguido de um verdadeiro funeral, ainda são verdadeiras funções sociais, tão dignas de glamour e pitoresco como qualquer outra. É um daqueles momentos em que as pessoas vão ao cabeleireiro e estreiam roupa nova. Representa, por assim dizer, um tempo e um espaço tão apropriados como qualquer outro para se fazerem publicamente uns belos de uns oitos com pernas de noves[45], como aqueles que toda a gente testemunhou aquando do acidente que envolveu o imponente Raposo e a sua belíssima namorada ciumenta que poderia ter sentido uma ervilha debaixo de vinte colchões[46]. Depois, e como em todas as outras funções sociais, estando a festividade concluída, e estando os participantes de consciência tranquila porque sabem que perdurarão sempre algumas histórias a seu respeito que os anos se encarregarão de empolar, é forçoso que a vida continue até ao ritual seguinte.

    a couple of street lamps sitting next to each other

    Recorde-se que é necessário, desde já, preparar tudo para assegurar uma festa rija no São Mateus.

    A vizinha dali da porta do lado até já foi a Elvas desenhar as sobrancelhas com aquele laser que há agora.

    Dizem as más-línguas que quem foi feito numa carroça de feno há de ficar com palha na roupa para a vida inteira[47], pelo que esta operação das sobrancelhas não surtiu qualquer efeito, pelo menos para melhor. Mas nada disso nos interessa. Só prova que as pessoas são más, como toda a gente já sabia.

    Às vezes alguém passa pela rua das laranjeiras, recorda a horta e a beldade seminua no chuveiro, e, por um instante, interroga-se,

    Que será agora da menina Alicinha, que era tão boa moça?


    A PRINCESA E A ERVILHA

    Conto tradicional de origem perdida nas brumas do tempo

    Era uma vez uma Princesa que foi passear sozinha e se perdeu completamente na floresta. Andou, andou, andou, mas nunca encontrou vivalma – só o sopro do vento no arvoredo, subidas a pique e descidas íngremes, rios secos cheios de lama, o uivo dos lobos à distância, o grunhido dos ursos bastante mais perto, e, por toda a parte, o grasnar trocista dos patos e dos gansos, debaixo de um céu de chumbo que por vezes se desfazia em farrapos de chuva. E foi depois de tudo isto, já completamente esfarrapada, descalça, e cheia de medo, que avistou ao longe um castelo bem alumiado. Foi lá bater à porta, e explicou à Rainha que veio ao postigo que era uma Princesa de um reino contíguo, que viera passear sozinha pela floresta e acabara por perder-se. A Rainha contemplou-a de alto a baixo, esfrangalhada e descabelada, e meritória do grau de Princesa apenas pelas suas mãos muito bem tratadas, pelas suas maneiras muito finas, e pela sua forma muito requintada de falar. Na dúvida, decidiu usar um truque para verificar se aquela criança assustada era ou não quem dizia ser: enquanto os seus lacaios serviam à pobre menina esfomeada toda a sorte de iguarias deliciosas, foi preparar-lhe um quarto de dormir onde colocou vinte colchões por cima da cama. E, por baixo desses vinte colchões, sem que ninguém suspeitasse de nada, colocou uma ervilha.

    Nessa noite a jovem Princesa bem tentou dormir, mas foi-lhe impossível.

    Na manhã seguinte pediu à Rainha que lhe perdoasse aquelas olheiras tão fundas e aquele seu ar estremunhado: foi que, explicou ela, alguma coisa enorme, por baixo dos colchões, rolava de um lado para o outro, impedindo a chegada de Morfeu.

    Então a Rainha ficou muito feliz, abraçou-a com ternura, e tratou-a como sua filha. Sabia perfeitamente que só uma autêntica Princesa tem a pele suficientemente delicada para sentir uma ervilha por baixo de vinte colchões.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9 e o Episódio 10 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] Bruno deu por eles a usarem este nome quando se referiam a ela, na altura em que tiravam a maca da ambulância. Não foi aos cornos de ninguém para não atrasar ainda mais o internamento. Escalonamento de prioridades também aprendido nas suas duas comissões de serviço na República Centro-Africana.

    [2] Não esquecer que ainda há que entregar o gatinho ao vizinho anónimo que se chegou à frente para o criar.

    [3] Ao contrário dos populares do episódio anterior, que continuavam a dizer “doente” como sempre se disse, quem está a falar agora é uma médica. Por isso mesmo, com toda a devida compostura, utiliza-se antes o termo “paciente”.

    [4] Senão, vejamos: a maca com Maria Alice, Bruno, a Médica Linda e as Duas Estagiárias Roliças. São cinco pessoas e uma maca num espaço previsto só para dois utentes.

    [5] Aliás, é evidente que nem precisaria de engatá-la. A miúda já está a abraçá-lo, caraças. Ai é “para lhe dar coragem”? Ó filha. Vai mas é para a bicha, como toda a gente.

    [6] Ai ai. Olha que belo travessão.

    [7] Ora nem mais, e em homenagem à nossa defunta Maria Alice: ex-pla-na-ção.

    [8] Ena pá. Outro travessão perfeitamente justificado.

    [9] Este registo confere com a experiência pessoal.

    [10] Isto está bom, está. A culpa de tanto travessão é toda do Bruno. Até parece um fungo que, em vida,  infectou todos os homens que mais se aproximaram de Maria Alice.

    [11] Ou, como dizem os americanos, que nestas coisas são muito mais dados do que nós a ir directo ao assunto, “o Capitalismo.”

    [12] Mas isto é o Alentejo, pelo que nunca choverá que chegue, nem na altura certa, nem sequer na forma certa – no outro dia apanhámos aqui com uma saraivada brutal de granizo que deitou imensas azeitonas ao chão. O aquecimento global complica ainda mais um equilíbrio que já era extremamente precário, devido, entre outros factores, às grandes Campanhas do Trigo do Doutor Salazar. End of speech. E desculpem o travessão.

    [13] O tal Crispim Raposo do cerejal na encosta Sul da Serra d’Ossa! Um gajo rico, e francamente de cair para o lado, ainda por cima! Estão a ver como o homem voltou a atacar?

    [14] Tão fortuita, de facto, que a maior parte dos seus conterrâneos não acredita neles.

    [15] Vejam bem, ainda nem existia o hábito popularizado do smartphone, as autoridades eram rígidas, e portanto, ainda por cima não há nem uma foto. Vocês acreditavam neles, se estivessem tranquilamente sentados numa das inúmeras esplanadas de Estremoz? Eu não sei, não.

    [16] A Di comia o Raposo com os olhos. A logística da situação provou, no entanto, ser absolutamente impossível. Os dirigentes da Operação Limpeza das Minas eram generais escandinavos representantes da União Europeia.

    [17] Tudo bem, confesso, sei lá se faz compotas. Agora ginjinhas… acho que nunca vi o Crispim Raposo sem uma garrafa de ginjinha na mão, e sem acabar sempre por dizer qualquer coisa relativa às suas cerejas. Mas esta imagem pode não ser mais que um mero erro estatístico, dado que, infelizmente, não vi o Crispim Raposo assim tantas vezes como isso. Ah, mas o que já vi é que já ninguém me tira.

    [18] A pacaça é um búfalo angolano de pelagem parda, enorme, pesado, enfim –  bruto como cornos e feio como a noite dos trovões. O travessão embelezou bastante a frase.

    [19] Amaricado de propósito, evidentemente. Ou, pelo menos, foi o que o Crispim Raposo disse aos camaradas do jipe.

    [20] Mas não virá fazer isso, como o tom misterioso da frase nos indica.

    [21] Ademais, malta. Em homenagem à Maria Alice.

    [22] De quem é prima, ao certo, não sabemos. Francamente, é assunto de conversa que não interessa a ninguém.

    [23] Referência ao conto tradicional A PRINCESA E A ERVILHA. Caixa de texto adicionada em serviço dos ignorantes nestas matérias, que, como todos sabemos, vão sendo cada vez mais.

    [24] Ou, pelo menos, a situação verdadeira é mais ou menos esta. E a danada da miúda é mesmo, mesmo, mesmo muito bonita. Utente dedicada de dezenas de cremes, perfumes, e outros segredos femininos guardados com incrível zelo. Capaz de reconhecer o aroma da mulher que passa por ela numa fracção de segundo e sempre sem erro. Eu até me arrepiei toda quando a conheci, lhe dei um beijinho, e a primeira coisa que ela me disse foi “L’IMPÉRATRICE”. Um verdadeiro talento desperdiçado.

    [25] Não. Nunca. Está decidido, muito bem pensado, seriamente jurado. A Autora nunca mais na puta da vida voltará a usar um único travessão que seja.

    [26] Concerteza, concerteza, podemos defender a rapariga recordando que também é verdade que a pessoa tem que experimentar um pouco de tudo para não morrer estúpida.

    [27] Crispim Raposo adora esta notazinha de rodapé. “E os velhotes até estalam com a língua”; “havias de ver como os velhotes dão estalos com a língua” – “se lá fores vais ver que, nas tascas…”. Etc.

    [28] ENFATUADO! Belo e redondo vocábulo. Favor não confundir com ENFADADO, que é o oposto preciso do primeiro termo.

    [29] Pronto, vá: não só de Estremoz e Elvas e aldeias pelo meio incluindo a Orada, mas também de todo o “triângulo verde” Portalegre – Marvão – Castelo de Vide.

    [30] Nem mais. “Irradia singular beleza.” Isto é um folhetim, malta.

    [31] As outras mulheres não estavam mortas, mas sim, é verdade: como não tem grande coisa para fazer, Crispim Raposo fez para si próprio um grande passado dentro do género “mulheres”.

    [32] Foi importante Rikita frisar que o Hulk a que se referia era o verde, uma vez que também existe um Hulk cinzento.

    [33]Os despojos mortais da defunta,” ainda por cima “no fétero”. Não é horrível?

    [34]Adelino Amaro da Costa? Sei lá quem foi o Adelino Amaro da Costa! E aliás, como é que eu havia de saber

    [35] Mais tarde fará um programa de desintoxicação, onde começarão a florir os seus novos amores com uma das enfermeiras de serviço. Mas esse é, também, ainda um outro folhetim.

    [36]Moço romântico” era o que ele dizia, evidentemente.

    [37] Idem.

    [38] Não, a brasileira não fez batota. As miúdas, que mal se distinguem uma da outra, são a cara chapada do pai. Cheguem essa intrigalhada para lá.

    [39]A das bifanas”: a esplanada das bifanas. “Meter lá as suas gémeas”: passar às meninas, que querem fazer o curso de gestão no Politécnico de Beja, a responsabilidade pelos bons frutos do estabelecimento.

    [40] Pelo menos parecem interessantes. Sobretudo de início.

    [41] Cela va sans dire, não é? Claro que um naco de carne como o Bruno gosta de consertar motos, sobretudo se forem Harleys. Tal como gosta de dar seguimento a algumas fantasias sexuais. Mas só algumas, por favor.

    [42] Isto é também o que ele diz, evidentemente.

    [43] Vá, “e rica”. Pelo  menos, supõe-se que mais rica do que a brasileira que já estava grávida de quatro meses e meio e era de gémeas.

    [44] Nomeadamente o já mencionado não-haver-nada-para-fazer. Para uma miúda, sobretudo, é bastante mais simples estar bêbeda do que estar grávida. E o que não falta aí é quem lhes venda fiado.

    [45] OITOS COM PERNAS DE NOVES! Alguém poderia exigir uma expressão regional melhor do que esta?

    [46] A sério que não conhecem o conto tradicional da Princesa e da Ervilha? Inacreditável. Ao que nós chegámos. Consulte-se, sendo assim, o resumo apresentado na CAIXA DE TEXTO.

    [47] Expressão regional de outras paragens, mas que assenta aqui que nem uma luva.

  • Maria Alice e um gatinho de prego a fundo: Estremoz troca galhardetes

    Maria Alice e um gatinho de prego a fundo: Estremoz troca galhardetes

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Do lado de fora das portas do novo escritório da PANGEIA, ouvem-se os ruídos característicos da chegada a casa de António José. Duas malas enormes LOUIS VUITTON, cheias em igual medida de propaganda informática e de roupa suja[1], caem ao chão com estrondo. A pasta estofada da GUESS que comporta três PCs e três telemóveis 5G voa para cima da poltrona da entrada com um vibrante “saia mas é já do meu ombro, sua esclavagista”. Ouvem-se ainda dois sapatos de camurça italiana a atingir o focinho do Júnior, que está tão impaciente por entrar na cozinha que se limita a soltar um único latido de advertência, para que o marido de Maria Alice, acabado de chegar a casa a morrer de saudades, tenha cuidado com o que pode acontecer-lhe por incomodar um Leão da Rodésia. Finalmente, agora indiscutivelmente barrigudo e quase careca, o homem que viu a luz assim que saiu do Canadá entra pelo escritório dentro de braços abertos, a prometer à esposa um futuro pecaminosamente feliz.

    E logo a seguir, ao ver o que ali se passa, estaca, deixa cair os braços, e fica a abrir e a fechar a boca como uma criancinha pequenina que está prestes a desatar a chorar –[2] mas que, dadas as circunstâncias, não tem nada a certeza de que essa seja a melhor das estratégias para chamar a si as atenções.


    Josefa está toda salpicada de sangue, a torcer as mãos de desespero, e a tremer tanto que é incapaz de usar sequer o telemóvel. Bruno está agora sentado, com Maria Alice ainda desmaiada nos seus braços, mas a mancha de sangue na camisa branca que entendeu por bem envergar para todo este magnífico reencontro não pára de crescer. Tudo indica que, tão cedo, não lhe será possível rebolar outra vez no feno com a sua adversária dos concursos de salto, que lhe piscava sempre o olho com um sorriso matreiro antes de se fazer  ao circuito.

             “Liga para o 112, meu!”, grita ele para António José mal o vê entrar no escritório. “A Josefa está que nem consegue marcar três dígitos seguidos no telemóvel dela. E, quanto mais o tempo passa, mais a tua mulher se vai esvaindo em sangue. Acorda, ó gordo. Caraças, pá, acorda. Eles que venham já a correr para aqui, ou então ela morre.”

             Sublinhando devidamente o horror desta última frase, o Júnior põe-se na sua melhor pose de puro pânico, com o ridgeback todo em pé e a cauda enfiada entre as pernas, e desata a uivar à janela.

             “O meu filhinho não é gordo,” choraminga Josefa, aproveitando distracção geral causada pela manifestação de agonia do pobre animal.

    a bunch of red bubbles floating in the air

    Como é evidente, afligidos por tantos gritos e prantos, e agora, ainda por cima, aterrorizados pelo uivo aflitivo de um Leão da Rodésia[3], os vizinhos não se fazem tardar. Completamente aturdido, como já chamou o 112 e por enquanto não pode fazer mais nada, António José recruta, no tom irrecusável de um filho pródigo[4], a ajuda preciosa da Josefa. Perdido por cem, perdido por mil[5], diz-lhe ele. Ao menos, a gente que ofereça aos visitantes o melhor que um marido desesperado pode oferecer. E então a Josefa traz de lá dos fundos da casa iguarias de fazer crescer a água na boca, tais como pão caseiro fresquinho em grande abundância, manteiga e queijo do cardo muito duro juntamente com um Queijo de Serpa que se desfaz na boca, e ainda um paio enguitado daqueles que se fazem todos os anos no fumeiro lá de casa cortado em fatias fininhas. Tudo isto vem acompanhado por uma profusão de caixas de Instinto tinto e branco, mais outras tantas litrosas, mais um festival de destilados em que alguns são magias da empregada. É assim que aparece na sala uma aguardente de medronho tremenda que a Josefa prepara todos os anos em Novembro, celebrando a chegada do doce Verão de São Martinho e obrigando a serviçal a diálogos que nunca mudam muito, tais como,

    Isso já se prova, ó prima Josefa?” – “Sai-me mas é daqui, grande moinante, e de caminho vai chamar prima à tua mulher, e ela que te ature que é o que para isso que as mulheres servem.” – “Mas a prima Josefa hoje está tão mimosa… como é que quer que eu hoje não venha o dia inteiro ver de si?” – “Ora adeus, vais-te-me embora[6]! Queres que eu chame o Cão, é isso que queres?” – “Pronto, priminha, eu se quer chamar o Cão vou mas é já tirar a certidão, para depois poder casar-me consigo e experimentar o seu medronho deste ano antes dos outros homens todos de Estremoz.” – “JÚNIOR! JÚNIOR, ataca.” [7]

    Outros destes produtos alquímicos podem ser trazidos de fora, que nem isso lhes tira o mérito de terem vindo ali parar trazidos directamente da origem. Este é, por exemplo, o caso da ginginha trazida da adega do Crispim Raposo, amigo do António José desde que ambos estiveram nas brigadas anti-minas de Angola e feliz herdeiro de alguns terrenos na encosta Sul da Serra d’Ossa que lhe permitem não precisar de trabalhar grande coisa.  Quando traçada com o medronho da Josefa, a ginjinha do Crispim Raposo produz uma aguardente de tal qualidade[8] que até faz os velhotes darem estalos sonoros com a língua, como se, de facto, tudo aquilo que ali se passa fosse a festa mais animada de que há memória em Estremoz.

    Para já, não conheceremos melhor o Crispim Raposo.

    Aliás, neste ajuntamento específico o Crispim Raposo nem sequer se encontra presente. Apesar de todas as acelerações do tempo criadas pela internet, as notícias de Estremoz ainda demoram um certo tempo a subir a Serra, depois a espraiar-se pela encosta Sul, e depois, finalmente, a  fazer um eco assustador nas centenas de hectares de cerejal que o Crispim herdou do pai.

    empty field during foggy weather

    Mas talvez este sexagenário de grande presença tão ainda venha a aparecer mais tarde.

    Sim, claro. Aceite-se desde já que, se aparecer, será pelos motivos que já se vão tornando óbvios, uma vez que se revelam, cada vez mais, parte de uma rotina deveras estimulante.

    Não é por nada, mas consta ali a toda a volta que também este Crispim teve uma paixão mal escondida pela menina dos raids que era então a namoradinha oficial do Conde da Orada, assim como consta que essa atracção foi mútua. Aliás, consta até que o parzinho[9] ainda teve a lata de fazer rolar algum feno na estrebaria onde o aristocrata guardava os seus preciosos Lusitanos de tourear[10]. Ah, meus ricos vinte anos.

    O que é que querem? Para todos os efeitos, isto é uma ocasião social. Por conseguinte, chega-se lá e põe-se a escrita em dia.

             Entretanto, e como é evidente, toda a gente dá os seus palpites sobre o que fazer para reanimar Maria Alice. Mas Bruno, que fez duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana para ganhar uns cobres quando decidiu assentar e constituir família, não deixa ninguém tocar-lhe. Vem em todos os manuais: não se toca no ferido até chegarem os bombeiros.

             “Ó vizinha, mas que conversa foi esta, agora assim sem mais nem menos? Assentar e constituir família? Ele não teve mas foi outro remédio senão casar, coitado do moço, que a brasileira já estava grávida de quatro meses e meio, e mais, era das gémeas.”

             “Essas brasileiras sabem muito,.”

             A camisa branca do Bruno está agora completamente ensopada em sangue.

             “Então e a que vem esse sangue todo, ó vizinho?”, pergunta-lhe em voz sinuosa[11] a mulher cheia de madeixas californianas que é de facto vizinha do Bruno, motivo mais que necessário e suficiente para já terem ido várias vezes juntos tratar de assuntos privados ao palheiro, queixando-se os dois à saída que a puta de agulha é mesmo impossível de encontrar[12].

             “A nossa Alicinha teve uma daquelas suas crises de hipoglicemia e desmaiou,” responde-lhe o Bruno numa vez tão grave que faria do grande Johnny Cash um verdadeiro menino do coro[13]. “Ainda tentei agarrá-la, mas aconteceu tudo tão depressa que não cheguei a tempo. Bateu com a base posterior do crânio, mesmo onde o cérebro se liga à espinal medula, aí nessa maldita esquina de ferro dessa puta dessa secretária. Estou que fracturou mesmo o osso[14], e que, pior ainda, um dos fragmentos desse cabrão desse osso lhe fez um corte na jugular. Está com o pulso cada vez mais fraco, e já há uns bons vinte minutos que não dá acordo de si[15]. E aqueles cabrões do INEM…

             Ergue-se uma grande chilreada de vozes desgarradas, cada uma contando os seus desaires particulares com o INEM, quase todos culminados por um inacreditável final trágico. A este propósito erguem-se mais taças e bebem-se mais traçadinhas, ao mesmo tempo que se acomoda tudo com o paio e o queijo.

             Passados mais outros bons vinte minutos de comes e bebes, do lado de fora do escritório, na estradinha de macadame que leva ao lago do jardim, ouvem-se, finalmente, as sirenes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. A agitação é tal que o chefe das operações, um homem rijo que esteve até há poucos anos em França, onde aprendeu tudo o que sabe sobre salvar as vidas dos outros, dispara imediatamente dois tiros para o ar. A sua voz, vibrante e cheia, está sem dúvida habituada a dar ordens de comando desde há tempos imemoriais.

             “C’est les Pompiers,” grita ele, para grande gáudio do Júnior, que pára finalmente de uivar e vem juntar-se à festa agitando a cauda. “Allez, allez, allez, tout le monde recule et personne ne bouge!

             Antes de mais nada, tal como ninguém é obrigado a tocar piano, também ninguém é obrigado a falar  francês, mas enfim. Os que não compreendem a língua compreendem facilmente a intenção. O pior é que a vizinhança é pródiga em emigrantes regressados de França, pelo que, infelizmente, a maioria dos presentes compreende, de facto, o que diz o Chefe. E, assim sendo, entre a ordem para recuar e a ordem para ninguém se mexer gera-se, inevitavelmente, uma enorme confusão. Esta confusão, no entanto, joga directamente a favor dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. Com todo o pessoal distraído pelo imbróglio linguístico em causa, ficam com mais margem de manobra para estancar a hemorragia, utilizando a camisa que Bruno põe logo à disposição para produzirem um garrote feito tão depressa, e com tal perícia, que ninguém saberia dizer de onde veio. Concluída mais esta manobra, e agora com toda a assembleia dos vizinhos a observar de olhos tensos, como quem assiste a um 007 numa sala de cinema[16], o Chefe e o seu Primeiro Auxiliar corrigem com suavidade o posicionamento do corpo, transferindo-o de seguida para uma maca com um cuidado absolutamente crítico. Esta maca, por seu turno, é prontamente despachada para dentro da ambulância, que aguarda a sua tripulação de motor ligado e faróis acesos.

    Ó Regadinho! Vocês despachem-se que ela está a perder o pulso, ouviste? Eu já lá vou ter convosco” grita-lhes Bruno, também ele muito bom nisto das vozes de comando desde que fez as tais Comissões de Serviço.

    E aquela chinesa, sempre a engataste?”, pergunta-lhe o dito Regadinho enquanto prende a maca com mil cuidados ao interior da ambulância[17].

    Quero lá saber da chinesa!”, berra-lhe Bruno de cabeça perdida, embora não esteja a dizer a verdade. “Eu queria era que vocês não tivessem aparecido com quarenta minutos de atraso!”

    Estávamos a salvar um gatinho que caiu por uma sarjeta,” esclarece prontamente o condutor da ambulância. “E, de cada vez que o tirávamos da sarjeta, o cabrão do gatinho desatava a miar e voltava a enfiar-se lá dentro[18]. Ah, cum caraças. Puta de noite, é ou não é?

    Um gatinho?”, gritam algumas vozes da vizinhança[19], indignadas e incrédulas. “Vão deixar morrer a senhora por causa de um gatinho?”

    woman standing near body of water

    Então, mas primeiro chamaram-nos por causa do gatinho. E depois a gente fazíamos o quê, com todo o pessoal das esplanadas a ver? E depois queriam que deixássemos lá o gatinho? E depois eles iam queixar-se à dos Animais, e depois...”

    Lá isso é verdade, ó amigo, esses dos Animais são comunas e têm as costas quentes e então abusam sempre que podem, e se querem saber eu digo-vos já, é por essas e por outras que eu voto no CHEGA.[20]

    Pois claro, vizinho, então aqui em Estremoz há mais ciganos do que pessoas e os cães têm que andar à trela mas os ciganos…[21]

    Neste ponto preciso[22], quando as vozes anónimas já começam a descambar com grande velocidade, o Chefe acha por bem pôr termo às trocas de galhardetes com mais dois disparos para o ar. Seguidamente, aperta com firmeza a mão do Bruno, enquanto lhe fala de homem para homem.

    Ó jeune homme, vomecê é que é o Marido? Vamos levar imediatamente a senhora para as Urgências de Évora e avisamos que o senhor… o…?”

    Bruno. A menina é a Maria Alice, e eu sou o Bruno. Digam que é o Bruno das sandes de carne assada, eles sabem logo quem é.”

    Carne assada? Mas então não era bifanas?[23]

    Ó Chefe! Venha depressa que alguém tem que massajar aqui o coração da nossa Alicinha![24]

    Ai vocês conhecem-se? Que grande sorte a tua, ó mabeco.”

    Ah! O chefe não me diga que também é de Angola[25]!”

    Né à Nova Lisboa, antes daquelas bêtes noires…[26]

             Foi só o Chefe distrair-se por um segundo com os mabecos e as suas origens angolanas que todos os presentes, bem comidos e melhor bebidos aquando da chegada dos Soldados da Paz, recomeçam a trocar galhardetes.

             “Mas de quem era o gatinho?

             “É um gatinho vadio, meu. Porquê, queres adoptá-lo?”

             “Dá cá que eu ponho o bicho em minha casa para dar sorte à Alicinha.”

             “Calma aí, mocinhos. Isto há papeladas a preencher para podermos transferir uma vítima da nossa ambulância…

             “Mas está tudo maluco? Agora transferem o gatinho com a senhora a esvair-se em sangue?”

             “Tecnicamente, mon cher, a senhora já não está a esvair-se…

             “Ó Chefe! Mas que caraças, ó Chefe! Venha depressa que a menina vai mesmo apagar-se!

    hands formed together with red heart paint

             Sentado no sofá do canto, com a cabeça encostada ao ombro da Josefa que entretanto abraçou o filho com todo o seu imenso amor de mãe[27], António José treme, chora, engasga-se, bebe todas as traçadinhas de medronho com ginja que os velhotes lhe passam para as mãos, e é evidente que não está em estado de ir para o Hospital de Évora, a menos que queira ser imediatamente internado na Psiquiatria. Em tronco nu, despenteado, ensanguentado, Bruno salta sem hesitações para dentro do seu velho camião, colado ao recuo da ambulância.

    A ambulância pára.

    O que é que foi agora?;” berra Bruno da janela.

    Está um caralho de um jipe estacionado atrás de nós, foda-se!”, berra o Regadinho de volta. “Mas quem é que… ah, olá, muito boa noite… e a menina quem é?

    Anabela Farto, CMTV,” responde prontamente a jovem jornalista. E prossegue, virando-se para a câmara: “Estamos aqui em directo devido ao trágico acidente…

    Ó que caralho, mas vocês tirem-me já daí essa puta gorda com as pernas tortas!”, berra Bruno da janela para quem o queira ouvir.

    Fez-lhe a ficha num segundo,” comentam entre si os velhotes, orgulhosos da sua progenia, enquanto engolem mais traçadinhas e dão mais estalos apreciativos com a língua.

    A jornalista vai averiguar quem foi o ordinário que a descreveu de forma tão eloquente, seguida pelo jipe da CMTV, com o operador de câmara a filmar tudo sentado na janela, com o torso todo virado para o exterior. Estas imagens, no entanto, virão a demonstrar-se inaproveitáveis uma vez que a equipa estava perdida de riso com a eloquência do alentejano desconhecido. De qualquer maneira, a manobra do jipe que se apresentou ali tão prontamente ao serviço da Verdade tem a vantagem de desimpedir a estrada e permitir à ambulância seguir caminho. Bruno seguiria de bom grado colado ao pára-choques dos Bombeiros, se não fosse a obstinação da jovem jornalista em obter declarações daquele jovem galante, com imagens que o mostrem bem, assim todo lindo, másculo, descamisado, e ainda por cima ensanguentado, numa sequência de 007 cada vez melhor.

    Se a minha mulher morrer por vossa culpa eu hei de perseguir-vos até ao Inferno para vos torcer o pipo aos quatro,” declara Bruno para a câmara, depois do que arranca como louco na senda da ambulância e comete tudo o que é grave infracção rodoviária para chegar a Évora mesmo atrás dos bombeiros. É interrompido à entrada por estar sem camisa, o que levanta logo protestos de todas as miúdas, mulheres, putéfias, senhoras, brasileiras, gays e LGTBs que aguardam há horas infindas que alguém os tire daquela maldita sala de espera e faça alguma coisa por eles.

             “Parece a Nossa Senhora,” comenta uma jovem noviça que também aguarda a sua vez, olhando sonhadoramente para o rosto sereno de Maria Alice.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8 e o Episódio 9 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] Toda a gente ali à volta conhece essas malas, assim como conhece o conteúdo que elas costumam transportar de cada vez que o antigo Cabo dos Forcados chega a casa. Foi a Josefa que estava tão farta de arrumar aquela tralha toda que certa noite de Verão, quando todos se sentam à soleira das suas portas, desabafou com a vizinha da casa do lado. Até falou dos slips ABANDERADO que vinham tão sujos, tão sujos, mas verdadeiramente tão sujos, que ela os agarrou com a pinça do barbecue e os pôs de saponária três dias, até já não ter nojo de lhes mexer. Claro que, no dia seguinte, esta história já fazia parte do património cultural do bairro. E sim, é verdade: do bairro à cidade basta um passo de criança.

    [2] Travessão! Logo a abrir! E se o carácter infecto-contagioso desta pontuação infame servisse para prevenir os nossos leitores de que, mais cedo ou mais tarde, Alexandre Noronha há de voltar a enfiar-se nalgum veículo bem-parecido para reaparecer em Estremoz, triunfante e vitorioso como no fim de uma produção multiplex? Ná. É mais provável que, nesta fase dos acontecimentos, já nenhum travessão queira dizer nada, a não ser que a Autora ficou seriamente afectada pelo seu uso.

    [3] Caíram mesmo nesta? Seus totós. Não se percebe logo que este som é o som de um uivo igual ao uivo de qualquer outro cão? A imagem do Leão da Rodésia a uivar, com o ar enorme e feroz de sempre e a crista castanha do ridgeback toda em pé, essa sim: é uma verdadeira imagem de filme de terror, com a grande vantagem de se ter mantido inédita até hoje. Usem à vontade, youtubers. Nós aqui no PÁGIINA UM não acreditamos em direitos de autor. E que acreditássemos. Não nos serviria de grande coisa.

    [4] Isto não nos esclarece quanto a ele saber ou não a verdade no que respeita às verdadeiras circunstâncias do seu nascimento.

    [5] Ressalve-se que este provérbio é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.  O seu a seu dono.

    [6] Enprego de um dos melhores coloquialismos locais.

    [7] E tanto basta para, por uns tempos, manchar a reputação da Josefa, seja quem fôr o engraçadinho que se insinuou na adega. Historinha de proveito e exemplo sobre o destino subalterno das mulheres, muito embora estejamos, de facto, em pleno século XXI. Inserida aqui a talho de foice por causa das idiossincrasias da Autora.

    [8] Caso porventura subsistam dúvidas: onde se lê “de tal qualidade” leia-se “de tamanho teor alcoólico.”

    [9] Na altura dizia-se mesmo “a parelha”, mas nós agora somos politicamente correctos.

    [10] Já foi aqui mencionado o rumor que consta em Estremoz à boca pequena segundo o qual o Conde é um péssimo ganadeiro porque cria toiros bravos demais para poderem entrar numa tourada. Mas toiros é uma coisa e cavalos é outra, além de que os amores de Crispim Raposo e Maria Alice datam do tempo em que o Conde era o pai do presente Conde e as coisas eram todas muito diferentes. Se é que tais amores existiram mesmo, é claro. Espalhar boatos é como fazer o amor: reveste-se de grande importância nos sítios onde não há nada para fazer.

    [11] Em voz sinuosa. Toda às curvas entre o divertido e o preocupado, a subir e descer conforme os comentários daqueles que a rodeiam. Belíssima imagem. É um desperdício o Bruno ter a Maria Alice a sangrar-lhe nos braços, mas atrás do tempo tempo vem, como toda a gente sabe. E já agora, este provérbio também é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.

    [12] Lamentamos o carácter repetitivo destes pequenos detalhes. Acontece, apenas, que quanto menos houver para fazer mais as pessoas se interessam por palheiros.

    [13] Referimo-nos aos coros, por regra religiosos ou patrióticos, em que os rapazes ainda têm a chamada voz branca. Esta voz, cujo encanto se perde depressa e foi a razão de ser por trás da emasculação destinada a criar castrati, faz soar a polifonia dos rapazinhos como um canto das meninas, ou das sereias, ou das deusas e semideusas e ninfas, ou ainda como o de qualquer outra mulher encantada incapaz de desafinar.

    [14]Estou que fracturou mesmo o osso”: as expressões regionais são para usar em toda e qualquer conversa, mesmo que ninguém ali esteja a rir.

    [15] Como toda a gente sabe, o amor faz milagres. No caso vertente, até consegue pôr o gajo das bifanas, treinado na República Centro-Africana, a falar num jargão médico perfeitamente credível.

    [16] Não confundir com a televisão, e muito menos com o telemóvel. Os vizinhos sentem-se mesmo a assistir ao DIE ANOTHER DAY em sensaround sound.

    [17] Lá está: onde não houver grande coisa para fazer…

    [18] História absolutamente verdadeira, ocorrida há cerca de ano e meio para grande gáudio da maioria dos presentes (os outros eram os dos Animais). Apenas não sabemos que destino levou realmente o gatinho, porque, na vida real, os Bombeiros acabaram por desistir de tirá-lo da sargeta e foram salvar vidas para outro lado.

    [19] As outras vozes pertencem aos dos Animais.

    [20] Mau sinal: começam a fazer-se ouvir as primeiras vozes anónimas.

    [21] Não sou eu que escuto atrás das portas. Eram os senhores que estavam a falar muito alto, a propósito de um cão branco e peludo, com todo o ar de ser roubado, que dois miúdos exibiam à trela com uma corda. A frase é aqui transcrita exactamente tal como ouvida na vida real.

    [22] Mesmo a tempo. As vozes anónimas já começavam a descambar com grande velocidade.

    [23] Mais uma voz anónima.

    [24] Voz de um dos Bombeiros.

    [25] Voz anónima, mas ao menos levantando uma questão interessante. Os mabecos são os cães selvagens da savana, que tanto podem ser predadores como necrófagos, e formam matilhas temíveis difíceis de enfrentar. Chegam a competir com leões isolados para lhes roubarem carcaças de gazelas, e são até capazes de atacar as próprias hienas, também elas ferozes e organizadas em bandos. Devido à sua necessidade de territórios muito vastos para os machos conseguirem manter a fertilidade, a espécie encontra-se neste momento ameaçada de extinção. Proteger os mabecos é um dever de todos nós, mas trata-se de um dever tão pouco estimulante como o dever de votar na Hillary Clinton contra o Donald Trump: os mabecos são feios como o diabo, o seu latido traz à ideia um sanatório cheio de tuberculosos, adoram deitar-se no meio da estrada para não deixar ninguém passar, e são desnecessariamente agressivos. O mês passado, um dos meus melhores amigos, também ele de Angola, teve a lata de chamar mabeco ao meu Sebastião. O cãozinho anda deprimido desde essa altura.

    [26] Temos pena, mas cabe-nos esclarecer: não, o Chefe não está a fazer um daqueles trocadilhos de que os homens tanto gostam. Está mesmo só a dizer “aquelas bestas daqueles pretos” no mais requintado francês desde que morreu o Stendhal.

    [27] Sim. Josefa é a verdadeira mãe de António José. Foi um dos vários shockers do episódio anterior, tantos e tão assombrosos que acabaram por levar ao desmaio da jovem. Note-se que, hoje em dia, aos quarenta anos as mulheres aparentam a juventude que anteriormente só possuíam aos vinte. Daí – por exemplo – a forma como os Bombeiros de Estremoz lhe chamam indiscriminadamente senhora ou menina, e certamente vários outros nomes que não se repetem em voz alta. Note-se, também, que a Autora voltou a cair na armadilha do travessão.

  • Agora que já não há pobres…

    Agora que já não há pobres…

    Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

                    Jorge de Sena

    ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)


    Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.


    A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.

    Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.

    A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.

    Mas são assim tão caras, essas viagens?

    Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…

    Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?

    Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.

    Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:

    Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.

    Desculpem.

    AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?

    AGORA???

    Mas esta gente vive em que mundo?

    Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.

    Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.

    O raio que os parta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.

    [2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.

    [3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.

    [4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.

    [5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.

    [6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela  – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.

    [7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?

  • A gaja interessante

    A gaja interessante

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5


    Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.


    Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.

    E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.

    Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.

    Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.

    E é tudo.

    Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].

    E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.

    Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.

    Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?

    E eu?

    E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.

    CPC descoberta pelos nossos paparazzi a frequentar um curso de bonobo.

    E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?

    É que uma fêmea farta-se.

    A sério.

    Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!

    O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.

    Eh pá, se estas escadas falassem.

    Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.

    A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”

    Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].

    No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.

    São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.         

    Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?

    Pus-me à escuta.

    E aquilo ouvia-se bem.

    Atão mas ela é uma puta?

    Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.

    Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”

    E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.

    Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.

    (fim)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.

    [2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.

    [3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…

    [4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.

    [5] As fêmeas do Pongo borneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.

    [6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.

    [7] O Desmodus rotundus é o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?

    [8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.

    [9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.

    [10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.

    [11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?

  • Maria Alice nem quer acreditar: Estremoz deita mais achas para a fogueira

    Maria Alice nem quer acreditar: Estremoz deita mais achas para a fogueira

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    “Ao menos diz-me,” pede-lhe ela procurando manter a calma, no silêncio de cortar à faca que reina subitamente dentro do carro. “Agradeço-te as correcções… o TOUTS que passou a TOUS… os Citroens DS que eram todos de quatro lugares… Mas, afinal, como foi? Gostaste do conto? Ou não?”

    O seu grande amante que nunca o será deita-lhe um olhar de morrer de tristeza.

    “Bloody Mary,” diz ele, “eu não leio. Não tenho tempo para conseguir ler.”

    Então este homem tinha mesmo um Cyrano de Bergerac que escrevia por ele.

    Meu Deus. Quantos mais defeitos ocultos terá?


    Quando Alexandre Noronha despeja Maria Alice à porta da sua casa, Josefa vem a correr toda cúmplice e sorridente, abrir-lhe os braços para a apertar contra si com toda a força.

    Mas, para seu grande espanto, a velha e dedicada serviçal vê o BM prateado arrancar com os pneus a chiarem, estonteantes. Sábia e – por vezes – minimal, abraça a sua menina, acaricia-lhe o cabelo, sussurra aos seus ouvidos palavras de conforto, e vai tentar murmurar qualquer coisa doce quando Maria Alice, de nervos em franja, lhe pede que pare com isso e que vá mas é buscar-lhe um café muito grande à cozinha. Depois, procurando libertar-se dos vestígios de Alexandre Noronha, passa tudo a pente fino e descobre o nécessaire dele esquecido na casa de banho. Logo a seguir, incrédula, vê que ele deixou por baixo da cama uma mala grande  e dura, de rodinhas, ainda por trancar. Ao puxá-la para fora e abri-la, espalham-se por todo o chão do quarto centenas de cartazes do CHEGA.

    Bem, pensa ela, desfazendo-se em suores frios, mas há que aceitar que ser do CHEGA não é nenhum pecado.

    Então e o Ruizinho da Farmácia, tão simpático, com um pernão tão gostoso?

    Então e o rapaz do café da esquina, que está sempre a tratar-me por prima com um grande sorriso?

    Photo of White Bmw E46

    Então e o Bruno, o meu querido Bruno, aquele amigo do António José que o assistia nas pegas de cernelha? Um rapaz tão lindo, de olhos tão verdes, que, quando éramos jovenzinhos e ambos competíamos nas provas de salto, ainda fez amor comigo tão apaixonamente num daqueles quartos do antigo HOTEL ALENTEJANO que nem sequer tinham casa de banho… ah, Bruno.

    Bruno, Bruno, eu sei que te lembras de tudo. O que nós suámos, e o que nós nos beijámos, e o que nós gememos e, quando tu me fazias vir e eu me torcia toda, toda molhada, toda suada…

    É do CHEGA, o Bruno, lá isso é. Eu sei, porque agora, sempre que posso, passo as noites de festa a dançar com ele sob o olhar atento da mulher e das filhas, e o Bruno aperta-me toda contra si e não pára de dizer-me ao ouvido,

    “Eu sou militante do CHEGA, ouviste, ó pintassilga, eu não gosto dos ciganos, tu estiveste foi muito tempo no Canadá, queres que eu te arraste para o primeiro quarto do ALENTEJANO que estiver livre e volte a fazer de ti uma mulher inteligente, queres, queres, queres que eu te faça tudo o que te fazia dantes, florzinha, a ver se ganhas juízo?”

    E, nestas alturas, eu rio, rio, rio.

    E tenho mais imensos amigos aqui em Estremoz que são do CHEGA por causa da abundância profusa[1] dos ciganos. Eu chamo palhaço ao André Ventura, chamo-lhe até bobo da corte, mas a verdade é que sou mesmo amiga de muita gente da CHEGA, portanto deixa para lá que isso não conta. Vou mas é ao Facebook do Alexandre, onde nunca fui porque entre nós nunca se trocaram imagens, e deixo-lhe lá uma mensagem, bem legível e melhor ilustrada, com aquelas fotos de nós dois que a Josefa tirou cá em casa, a dizer,

    ALEX MEU QUERIDO O TEU NÉCESSAIRE FICOU CÁ EM CASA, QUERES QUE O GUARDE PARA  A  TUA PRÓXIMA VISITA? Ou que to envie para onde, pois que nem sequer sei onde vives desde que te divorciaste da Gi?

    Ora, ele está divorciado, não faz mal, pois não? É só uma brincadeira de quem tem bom perder.

    a couple of street lamps sitting next to each other

    Maria Alice demora algum tempo a encontrar o Face de Alexandre, uma vez que não sabe todos os seus nomes. Por vezes apetece-lhe desistir, mas a raiva dá-lhe asas. Mas, quando finalmente o encontra…

    … com imagens em tempo real, aparentemente filmadas pela tal filha menina-mulher que vai fazendo um relato em voz alta de tudo o que se passa…

    Santo Deus.

    Aí está porque é que teve que sair da praia a correr.

    Alexandre Noronha está neste preciso momento a falar num comício do CHEGA em Beja[2], abraçado a Gi Medeiros, a sua linda mulher muito loira, que, vista nas imagens, parece uma modelo. E, uma vez mais, está a defender que as mulheres que fizeram abortos devem ser obrigadas a tirar os ovários.

    Do lado de fora da porta, Josefa bate insistentemente. Maria Alice ainda hesita, mas depois resolve oferecer-lhe o nécessaire para ela oferecer a algum gajo no Natal e abre assim mesmo – despenteada, de olhos vermelhos e com olheiras profundas, só de shorts e T-shirt, a própria imagem da despodência[3].

    Está alguém por trás da Josefa.

    Quando, finalmente, a porta é empurrada para o lado com toda a delicadeza, verifica-se tratar-se do próprio Bruno, o feliz proprietário da CASA DAS  BIFANAS DE ESTREMOZ, com quem Maria Alice fez tantas maldades aos vinte anos. Maria Alice nunca mais o viu a não ser nas noites em que dançaram nas festas locais. Agora, na luz do dia ainda intensa, faz mesmo vibrar o coração desabrigado da pobre esposa do amigo António José. É ele, mais maduro. É mesmo ele, como aos vinte anos mas de olhos ainda mais verdes, ainda com mais sardas, ainda mais destacadas contra a pele ainda mais morena. Assim que aperta Maria Alice contra o coração, Josefa desata num dos seus falajares.

    “Ai, menina. O menino seu marido voltou um mês mais cedo de fazer de tradução simultânea em Bruxelas. Meteu licença sem vencimento, sabe o que isso é? Eu também não sabia, mas ele contou-me tudo, é assim uma coisa como o que dá nos pobrezinhos, e nos doentinhos, e depois nós temos de ajudá-los. E eu estava maravilhada, porque ele só dizia coisas lindas. Diz que tem saudades da sua linda terra, diz que tem saudades da sua  linda casa, diz que tem saudades de viver na cidade mais luminosa do mundo… e, sobretudo, diz que tem saudades da sua linda mulher de olhos cor de mel. Diz que foi o Canadá que lhe estragou o amor pela menina que saltava melhor de que todos os homens de Estremoz…”

    “Ahahah!”, interrompe Bruno, e Maria Alice quase desfalece ao escutar de novo, sem ser ao ouvido, aquela voz que a deixava sempre sem fôlego. “Francamente, ó Josefa. Diz lá se, nos concursos, eu também não parecia um milagre a voar pelas nuvens, e a encher o lago depois dos três obstáculos de repuxos contra o sol já a descer, todo vermelho.”

    “Pois sim,” responde-lhe Maria Alice, que só de ver o Bruno recuperou o orgulho e se encheu de brios. “Tu bem podias saltar para te admirarem, mas era só assim, mesmo, com o sol a pôr-se, de maneira a ninguém ver bem os teus saltos. E depois todas as mulheres gritavam – OLÉ! – e tu ficavas tão orgulhoso, mas tão orgulhoso…”

    E continua, desta vez para a empregada:

    “E tu pára-me já com isso, ó Josefa Eufémia, que eu não quero lembrar-me nem mais de uma vez dos pobrezinhos sempre com o nariz a pingar que vinham cá a casa, todos esfarrapados, com as vozes muito roucas, a pedir ajuda ao gordo com que eu me casei. Bruno, queres vir comigo ver a sala de redacção da PANGEIA?”
    O convite faz com que se desloquem os dois para a ala da casa pejada de máquinas, telexes, televisões nas notícias internacionais cada uma ligada a seu canal com impressoras, e, no canto mais longínquo, resmas de papel, cartuchos, secretárias, estantes, e prateleiras. Mas se julgavam que podiam estar sozinhos bem podem é mas é[4] tirar daí o sentido, porque Josefa continua a bradar à porta.

    “Bem, e, dito isto, nós-as-mulheres-do-povo nunca o achámos assim tão gordo como isso. Era gorducho, talvez, e com umas entradas mas muito pequenas, para homem talvez usasse perfume a mais, mas é porventura[5] de uma grande elegância, com piada, diga-se já, aquelas piadas como a que sempre foi um homem tão à frente que comprou o carro da AUTOPERNAS[6] logo em 1658 porque mesmo naquela altura era evidente que, mais cedo ou mais tarde, ia ser preciso tirar a carta, e as do século XVII eram mais baratas, já se sabe[7]. Olhe, minha menina, o seu gorducho não era parvo, ai isso antes pelo contrário, era charmoso e divertido, e tinha aquelas maneiras bonitas de quem não descura enquanto não beijar a moça mais bonita do baile.”

    E é distraindo ambos com estas conversas que Josefa consegue insinuar-se[8] dentro do escritório.

    Vendo-a entrar, compreendendo que nunca na vida terá privacidade, Maria Alice começa a deslizar, estonteada, pela espreguiçadeira de lona riscada de azul com uma inscrição oval que diz por trás WONDERWOMAN. Josefa, que conhece bem os efeitos devastadores da sua hipoglicémia, põe-lhe logo à frente uma caixa de chocolates. Depois regressa, sozinha, para os lados da cozinha. E é aqui que, subitamente, os ouve gritar lá de dentro,

    “Vai-te embora procalhão![9]

    “Ai! Ai eu agora tenho é que me ir embora?”

    “E cala-te, que só a tua própria voz me faz mal[10]! Queres que eu te atire com um agrafador  à cabeça?”

    “Ai eu agora tenho é que apanhar com um agrafador na cabeça? E desde quando é que isso passou a ser um agrafador, já agora, ó pintassilga?”

    woman holding gray and black staple

    Maria Alice passou vinte anos sem ver Alexandre, passou vinte anos sem ver Bruno, sente-se condenada a continuar a ver António José, e sente-se muito mal. Fecha-se no escritório, Fecha as portadas. Não sabemos se, durante todo o dia seguinte, esta mulher se manteve consciente ou – nem ela seria capaz de o dizer. Quase não tem voz. Sente frio. Tem horror ao frio. Um verdadeiro horror cego. Em pequenina, por causa de tratamentos bárbaros da pele, feitos com azoto líquido, tremeu e  tremeu horas a fio, até que a tiraram de lá de dentro com a face e das orelhas e os dentes todos a baterem. Depois a vida espetou com ela no Canadá.

    Já chega, pensa Maria Alice, e é só o que pensa. Já chega.

    Mas claro, custa-lhe muito pensar “CHEGA”. E, por isso, começa a sentir-se cada vez pior.

    Finalmente, agora que já não se ouve nada, Bruno encosta um olho ao buraco negro da fechadura. Maria Alice está viva, acordada, e, a avaliar por todos os seus sinais de choro silencioso, está até mais do que consciente.

    Josefa vem trazer-lhe um grande copo de água com algum açúcar e pingos de limão. Depois, enquanto a segura e segura o copo, vai falando com calma à sua doentinha, ao mesmo tempo que Bruno, sentado do outro lado da cama, lhe acaricia a mão com gentileza.

    “Agora a menina só tem é que tratar bem o seu maridinho querido,” diz-lhe Josefa, enquanto Bruno lhe pisca o olho cheio de malandrice. “Eu chamo já as outras mulheres e limpamos-lhe todas a casa num instante. Ele está mesmo aí a chegar, e já me disse que vai convidar o Bruno, para depois irem os três para a… para a naite, pois, já se sabe. E então ele deixou-me um recado expressamente a pedir que a menina lhe faça aquele seu guizadinho de javali de que eles os dois gostam tanto, e pediu-me a mim que lhe faça aquelas lamparinas com rodelas de violetas e de cravinas vermelhas escuras, pode ser menina? Eu também posso fazer-vos a salada de beldroegas, com cebola e salsa picadinhas, e dou um dos ossos maiores do Valali ao Júnior para que ele não se sinta excluído.”

    Bruno interrompe-a com uma gargalhada sadia. 

    “Para que o cão não se sinta excluído, Josefa? É aqui a minha pintassilga que anda a ensinar-te essas palavras finas?”

    “Ora adeus vais-te-me embora[11], moinante,” rosna-lhe Josefa com todos os seus pudores linguísticos ofendidos. “Ou julgas que eu não sei o que é que tu e a chinesa da loja, enfim, cala-te boca? Ande, menina, anime-se. Vamos para o jardim lá de trás com os candeeiros amarelos nas hastes do laranjal, pomos a loiça do cavalinho, e olhe, pergunte ao Bruno o que é que ele acha, a menina vista aquele vestido azul-celeste todo flutuante e já sabe como é, este aqui também andou apaixonado por si desde novo e nunca se esqueceu do seu perfume e olhe que…”

    Bruno interrompe-a outra vez, com mais uma gargalhada sadia. 

    yellow smiley emoji on gray textile

    “Então o que é isso, Josefa, agora vais divulgar todos os segredos de Estremoz? Vê lá se também contas à Alicinha de quem é que o António José é mesmo filho, anda lá!”

    “Pois muito bem, menina Mariazinha, então fique sabendo que o menino António José é meu filho!”, responde-lhe Josefa de queixo erguido. “O bebé da Senhora nasceu morto, e então eu, que também tive o meu nessa mesma altura, dei-lho. Foi por amor, para ele poder viver melhor, compreende, menina Mariazinha? Nós éramos muito pobres e eu nem nunca fui casada.”  

    “Claro,” sussurra o Bruno para a Maria Alice.  “E enfim, deste-lhes o puto é como quem diz. Aqueles dez mil euros que eles tiveram de pagar pela criança pobrezinha ainda ajudaram mais a Josefa a não ser pobre. Devias ter pedido vinte mil, ó Josefa.”

    “Sim, ó menina,” concorda Josefa. “Passe-me aí vinte mil mocas para as mãos e eu não mostro a ninguém as suas fotos com o olho azul de Lisboa, nem o filme de vocês a dançarem, nem as cartas de amor que a menina deitou no lixo sem sequer rasgar, nem falo de nada, e depois somos todos felizes.”

    Maria Alice está agora quase a desmaiar de vertigens. 

    Nessa altura ouve-se, vinda do portão, o tom inequívoco da voz festiva de António José. Incapaz de aguentar mais tanto stress, Maria Alice desmaia nos braços de Bruno.     


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7 e o Episódio 8 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1]Abundância profusa”, Maria Alice? Ora, deixem lá as redundâncias da miúda em paz, seus voyeurs. Não é a melhor altura para exigências estilísticas.

    [2] Consta que em Beja ainda há mais ciganos do que em Estremoz. Mas será possível?

    [3] Bravo, Maria Alice. Despodência. É assim mesmo.

    [4] “Bem podem é mas é.” Isto sim, é carinho pelo português.

    [5] Pronto, pronto, pronto, hey, a malta rende-se, este “porventura” saiu mal à pobre Josefa. Mas qualquer pessoa precisa de começar por qualquer lado.

    [6] Do Lino Pernas. Foi recentemente trespassada, mas ainda não se percebeu a quem.

    [7] Piada genuinamnente alentejana, aprendida em Novembro último com um dos maqueiros das urgências do Hospital de Évora.

    [8] Insinuar-se. Hm? Hm?

    [9] “Procalhão”, foi mesmo o que ela disse. Memórias das brincadeiras de antanho, quando a ambos puxava muito o pé para a chinela naquelas alturas.

    [10] Também brincadeira de outros tempos. Inspirada na inesquecível canção MULHER FATAL, de Toy, em que a rima do refrão declara que “só o teu próprio olhar me faz mal”.

    [11] De todas as expressões locais, este “Ora adeus vais-te-me embora” está quase no cimo do TOP 10. Expressão local vencedora no último episódio.

  • O marido

    O marido

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 4


    Inicialmente, poucos biólogos levavam a sério a ideia da violência inter-específica. Existia tão pouca evidência de animais a matarem outros do seu mesmo grupo que se presumia que assassínios destes só ocorriam quando qualquer coisa corria mal – os jardins zoológicos estavam sobrelotados ou mal equipados, ou havia um acidente resultante de erros humanos. A ideia combinava-se perfeitamente com a visão da ordem natural das coisas dominante à época, segundo a qual o comportamento animal era concebido para o bem de todos. A selecção natural darwinista funcionava como um filtro desenhado com o propósito de eliminar a violência assassina. O assassínio, por suposto inexistente no restante mundo vivo, era um produto evidente das guerras humanas, pelo que havia que aceitar que, num dado momento da sua ascensão ao poder, o Homo violara as regras da Natureza ao tornar-se sapiens[1]. Aos olhos dos cientistas, os primatas assassinos, tal como os assassinos em qualquer outro grupo animal[2], não passavam de uma fantasia dos romancistas até à década de 70.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Já ficámos a saber que a violência doméstica entre os chimpanzés é de tal ordem que muitas das fêmeas agredidas chegam a morrer em consequência. Resta acrescentar que o chimpanzé também não se ensaia nada de formar um grupo de comandos que caminha pela savana vários dias até chegar à família mais próxima, a cercar discretamente, esperar pela primeira vítima desprevenida, atacar em massa com grande estridência, gerar o caos e o pânico, matar tantos machos quantos possível e violar todas as fêmeas capturáveis, que depois são arrastadas de volta ao grupo guerreiro e entregues para o resto da vida ao marido que eles lhe escolhem.

    É um cenário bastante familiar, ou não é?

    Os primeiros confrontos entre as primeiras tribos humanas não hão de ter sido muito diferentes disto, incluindo a boçalidade com que cada vencedor trata a fêmea a quem conseguir deitar as unhas.

    Há muito quem argumente que nós não somos mais do que um outro grande primata. E, assim sendo, é evidente que vale mesmo a pena continuar a usar a vida nesta cidadezinha em termos de microcosmos demonstrativo de como o demónio se aloja profundamente dentro da essência masculina.


    Devo dizer que, entre os 16 e os 19 anos, enquanto ainda não tinha idade e depois ainda não tinha dinheiro[3], andei muito à boleia pelo País inteiro. Tudo o que era homem sozinho[4], fosse qual fosse o seu veículo, ao fim de um bocado tentava a sua sorte. Eu dizia “NÃO!”, o homem em causa respondia “Está bem, está bem… mas tens que ver, se eu não tentasse era parvo, não achas?”, e a viagem seguia amena, sem mais sobressaltos.

    Até que cheguei ao Alentejo.

    Nos seis meses da minha primeira experiência corria o ano da glória de 1978, e estávamos todos em pleno PREC – o que quer dizer que, para aquelas bandas, estavam todos em plena Reforma Agrária. Num cenário destes, o que é que espera uma revolucionariazinha de dezoito anos? Oh, aquele seria sem dúvida um povo equalitário e solidário, educado e estudado, enfim: não era certamente dos camionistas daquelas estradas que eu esperava ouvir dizer “a gente damos boleia mas nã damos de graça, óvistes?”, ou “isto pra nós tudo o que tá à beira da estrada é gado”, e outros insultos abertamente insultuosos, e visivelmente perigosos. Não era no Alentejo que eu alguma vez imaginaria que ia acabar ao murro com um motociclista de FAMEL e penico que ficou a bradar impropérios do pior com uma roda torta no caminho de terra por onde tinha tentado desviar-se comigo.

    Mas enfim, tinham passado quarenta anos. Estou no Alto Alentejo, e não no Baixo Alentejo[5], como antes. De certeza que as coisas, agora, já não são assim.

    Família de chimpanzés depois de uma caçada, apanhada a empanturrar-se de carne de gazela.
    É verdade que nós, os Pan troglodytes, temos por hábito ser herbívoros. Mas isso não implica que sejamos necessariamente estúpidos. Sempre que matar não seja dispendioso em termos de energia, e não implique correr grandes riscos pessoais, a caça é uma forma perfeita de garantir quantidades substanciais de comida de alto valor proteico e de grande especial riqueza calórica. Nada que aliás vocês não saibam, ó seus humanos voyeurs que andam sempre a espiar-nos.

    Bastava-me esquecer o motociclista da FAMEL e da luta ao murro. Esse piolhoso era de Estremoz, onde eu estava a pedir boleia para Portalegre.

    O primeiro sinal que, mesmo no Alto Alentejo, tudo continuava a ser assim, veio do gajo do mercado. Eu nunca o tinha visto mais gordo, e vi-o tão pouco que se me cruzasse agora com ele na rua nem o reconheceria. Tinha finalmente conseguido transportar uma boa quantidade dos meus livros cá para casa, e andava obcecada com a questão das estantes. Naquele dia procurava uma estante especial, forte que chegasse para suportar os meus grandes álbuns de História da Biologia, e suficientemente bonita para ficar mesmo ao cimo da escada.

    E não é que encontrei isso mesmo? Era uma estante linda, que parecia um coreto todo feito em ferro forjado. Como acontece com frequência no mercado, comprei-a por tuta-e-meia, feliz da vida.

    O pior foi começar a carregá-la dali para casa num dia de calor vingativo. Eu não transportava outros pesos, mas tinha que parar o tempo todo para limpar o suor dos olhos. Ora, vendo-me fazer todo aquele esforço, um senhor simpático que estava ali à conversa com outros senhores veio oferecer-se para carregar a estante por mim.

    Eu fico-lhe muito agradecida, mas a minha casa ainda é ali no Anónimo[6]. Eu posso é segurar à frente se o senhor segurar atrás, já ajuda muito” – “Ora, menina, eu sei muito bem onde fica a sua casa, ponho-lhe lá a estante num instantinho” – “Mas com este calor...”

    O senhor sorriu, pôs a estante de ferro em cima do ombro, e começou a andar rumo à minha casa. À época ainda me enervava um bocado toda a gente saber onde era a minha casa, mas enfim. Também não deve ser todos os dias que uma menina vem viver para o centro histórico de Estremoz. E, de facto, ainda nem eu tinha acabado de pensar tudo isto e já estávamos à porta de casa.

    Pronto, deixe aqui em baixo que isto ainda são dois andares sem elevador, logo à noite, pela fresquinha, eu peço ajuda às minhas amigas e levamos a estante para cima” – “Ah, não, por favor, eu sei que a menina mora no segundo andar, ponho-lhe já lá a estante e pronto.”

    Bem… se por “e pronto” se entender “e assim que a pousar eu estendo os braços e apalpo-a toda, em todos os sítios onde conseguir apalpá-la”, foi de facto isso mesmo que o senhor simpático tentou fazer. O que quer dizer que, acto contínuo, lhe espetei com um bruto pontapé naquele sítio que faz doer muito aos senhores, ao mesmo tempo que proferia, de forma tranquila mas autoritária, “saia já daqui seu[7]”, enfatizado por um empurrão nos olhos[8], o que acto contínuo fez o senhor simpático cair de costas pela escada abaixo.

    Tinhoso.

    As minhas amigas dizem que estas coisas me acontecem, mesmo com uma idade tão adiantada, porque uma pessoa como eu devia ter um marido, e a ausência dessa entidade representativa do poder na vida em sociedade é tão grave que perturba até os homens mais lutadores.

    Ou seja, e como escreveu o grande Mao Zedong, “O poder cresce sempre no cano de uma arma[9].

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Veja-se a história da serpente, de Eva, da maçã, de Adão, da fúria de Deus, da expulsão do Homo sapiens do Jardim do Paraíso, onde o arcanjo Uriel ficou à porta com uma espada flamejante para que nenhum ser humano pudesse alguma vez voltar a entrar. Não é ciência, como toda a gente sabe. Mas há que admitir que é um pressentimento fantástico.

    [2] Bom… e tal como as plantas carnívoras, ou tal como muitos peixes, incluindo as orcas e os tubarões. Para não falar da raivosa e inolvidável Moby Dick, mas lá está – fantasia de romancista.

    [3] Primeiro para tirar a carta (diga-se em abono do meu estoicismo que passei neste exame uma hora depois de ter passado no exame de Cálculo 2, sem dúvida a mais traumatizante de todas as disciplinas do meu curso, e mesmo no fim do Primeiro Ano, quando a pessoa já se arrastava de cansaço e ainda nem tivera direito de pôr um pé na praia); e depois para comprar o Carocha quatro anos mais velho que eu, onde o nosso colega João Rabaça pintou um noitibó na porta do meu lado, e que, além de fazer toda a Lisboa-Vilar de Mouros com seis pessoas lá dentro à data do primeiro festival, também aguentou dois anos de saídas de campo pelo meio de sapais, e carreiros de terra rumo a praias desconhecidas, até ser trocado por outro ligeiramente mais jovem, exactamente da minha idade e igualmente dado a viajar sem fim. As letras da matrícula eram HB, pelo que o baptizámos com o nome controverso de Herri Batasuna.

    [4] A menos que fosse um gajo porreiro, já com um emprego fixo destinado a ajudar a família e pouco mais velho do que eu. Isso era diferente. Conversávamos imenso, falávamos do que é que gostaríamos de fazer quando pudéssemos, ouvíamos cassettes e era costume gostarmos das mesmas músicas, e nenhum de nós acreditava no casamento porque é o género de vida que mata o amor. Fomos uma geração bestial, na qual ainda hoje tenho muito orgulho.

    [5] Em 1978, eu estava a aproveitar o segundo semestre daquela interessante experiência que antecedeu o 12º ano e se chamou “ano propedêutico” para ganhar umas massinhas a trabalhar em Aljustrel com os miúdos da telescola. Até esses miúdos tinham aquele olhar alentejano que varre as mulheres de alto a baixo. Foi nessa altura, a ouvir confidência atrás de confidência das raparigas da minha idade que não tinham ninguém com quem falar, que comecei a ter umas ideias, ainda vagas, sobre um romance policial que veio a chamar-se ADEUS, PRINCESA.

    [6] AHAHAH. Não, não sou minimamente dada a distracções. Nunca direi onde fica a minha casa.

    [7] Parece-me inútil inserir a longa sequência da frase. As escadas são altas, pelo que qualquer vira-lata ainda demora o seu tempo a cair delas abaixo. E eu não me calei enquanto ele não embateu na porta e deu de frosques.

    [8] Isto tem a virtude  de perturbar a visão, fazer chorar, e em consequência assustar imenso os senhores. Quanto mais os anos passam mais nós vamos aprendendo, não é.

    [9] Não, não é nenhuma metáfora de gosto duvidoso. É uma verdadeira ideia de como viver correctamente dentro da colmeia. Resta-nos esperar que o tempo se despache a transformá-la num arquetípico tigre de papel.

  • Os assassinos

    Os assassinos

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 3


    O que poderá dizer, nos nossos dias, quem continuar a não gostar da ideia de que os humanos estão mais próximos dos chimpanzés do que os próprios gorilas? Até ao fim do século XIX, a resposta céptica mais ferrenha à descoberta de fósseis era que Deus os pusera nas rochas como uma experiência estética, ou filosófica, para fazer de conta de que a Terra tinha uma História – exactamente como dera um umbigo a Adão para fingir que ele tinha nascido de uma mulher. Para os cépticos criacionistas do fim do século XX, a explicação era mais que um qualquer artifício demoníaco organizara todos aqueles fósseis em série para que caíssemos na tentação evolucionista. Ou seja, as marcas moleculares claríssimas de relação estreita entre grandes primatas seriam um plano ou divino ou diabólico. Para quase toda a gente, no entanto, a ideia de um poder enganoso a funcionar a este nível exige demasiado da nossa imaginação. O Criador pode ser Omnipotente, mas é pouco provável que seja Maluco.”

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    As minhas citações do DEMONIC MALES estão a ficar cada vez maiores, mas a culpa não é minha, e nem sequer é do livro de onde eu as tiro: a culpa é dos leitores, que todas as semanas me dão os parabéns pela escolha, me revelam que tudo isto lhes pareceu tão interessante que foram ler o trabalho inteiro, e, de vez em quando, me contam que gostaram tanto que até já encomendaram a obra seguinte dos mesmos autores. E claro, são estes pequenos momentos que nos fazem felizes no meio do caos mais ou menos disfarçado da nossa vida quotidiana: se as nossas histórias, e as nossas citações, levaram outras pessoas como nós[1] a ler um bom livro e a querer ler ainda mais – então, e penso que todos os meus colegas sentem o mesmo, já ganhámos o dia e há poucas emoções melhores.


    Antes de passar adiante, vamos já deixar claro o que se pressupõe óbvio mas nunca se sabe: evidentemente, a maldade não é uma característica exclusiva do masculino[2]. E, se afectar o género oposto, não se fica minimamente por aquelas megeras más e vingativas do século XIX, que infestavam os romances do Charles Dickens ou das irmãs Bronte. Podia estar aqui o que ainda nos resta desta estranha e inconstante Primavera a deliciar-vos com casos horrorosos de crueldade feminina, como a das lontras marinhas, ou a das hienas, ou a das leoas quando caçam em bando. Ao contrário do que ainda me diziam quando eu andava na escola[3], o Homo sapiens está longe de ser o único animal que aprecia fazer mal aos outros, incluindo aos da sua própria espécie[4]. Talvez seja o único animal capaz de distinguir a água benta da água normal[5], mas não é, de maneira nenhuma, o único animal que, quando pode, maltrata os outros a título absolutamente desnecessário, assim mesmo, só para se divertir.

    Costumávamos considerar que a crueldade humana, particularmente manifesta nas guerras que os seres humanos travaram entre si desde que temos registo das suas actividades, era de tal forma sofisticada que requeria uma explicação especial. Talvez essa explicação fosse científica, talvez fosse bíblica – ou até talvez fosse, de facto, completamente inacessível à inteligência humana, pois que nos fora trazida por extra-terrestres, tal como Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram em 1968, por escrito e em filme, em 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO[6].

    Pois, mas se a contarmos só até aqui esta história está coxa e é tudo menos bípede.

    Um dos primeiros Homo sapiens verdadeiramente territoriais prepara a lança para dar guerra à família Neanderthal que vive na gruta que fica do outro lado da montanha, onde, neste preciso momento, sem suspeitar de nada, enche as paredes de pinturas cada vez mais bonitas de bisontes com cada vez mais cores resistentes ao tempo.
    Depois vieram o arco e a flecha, depois os códigos de gritos de batalha, depois as tácticas de cerco, depois…
    … a verdade é que os Neanderthais não estavam a fazer mal a ninguém, até podiam andar por ali em maior número do que os Homos, mas olhem. Eram uns indivíduos suficientemente pacíficos para não só co-existirem connosco como até partilharem connosco alguns dos seus genes,[A] mas nós éramos uns esganados, sempre a precisar de mais território[B]. Fizemos-lhes tantas e tão poucas que eles acabaram por extinguir-se para todo o sempre.

    Falta acrescentar que, há cerca de cinco milhões de anos, houve um grupo inteiro de primatas ainda indiferenciados que desenvolveu alguns comportamentos muito, mas mesmo muito raros. Há pouquíssimos animais que vivam em comunidades patriarcais onde os machos se unem e as fêmeas se esgueiram de um grupo para o outro no sentido de evitarem a consanguinidade. Os tais primatas vieram de um grupo detentor dessa raridade, e também se caracterizavam por manterem uma defesa territorial masculina extremamente agressiva, incluindo ataques letais a comunidades próximas, à procura de inimigos vulneráveis para atacar e matar. Hoje em dia, em quatro mil mamíferos e mais de dez milhões de outras espécies animais, este conjunto de comportamentos é único e específico das duas únicas espécies que derivaram daquela espécie ainda incaracterística que existiu há cinco milhões de anos: os homens… e os chimpanzés.

    E, nestes dois casos, o instinto da violência vem, indiscutivelmente, dos machos.

    Tal como entre os humanos a violência doméstica está geralmente ligada ao homem, que bate na mulher, e pode de igual forma bater nos filhos[7], também entre os chimpanzés são os machos quem parece considerar tudo e mais alguma coisa como um bom pretexto para dar tareias do outro mundo nas suas companheiras. Agora que podemos filmá-las no seu habitat natural com as nossas microcâmaras digitais minúsculas que não levantam suspeitas nem causam inibições, temos que aceitar o chimpanzé tal como ele é: são tareias tamanhas que as fêmeas chegam a morrer em consequência. E, tanto numa espécie como noutra, a comunidade circundante observa… e mesmo que filme, mesmo que relate na rádio, mesmo que faça manchetes de jornais[8], a verdade é que, em termos práticos, reage com tal indiferença que raios nos partam se não for causada por cinco milhões de anos de evolução que continuam a dizer-nos que aquilo é normal e até nos faz bem.

    Com tudo isto em mente, eu estava à espera de quê quando, aos 61 anos, vim viver sozinha para uma cidade pequena no interior profundo, cheia de cafés, que estão cheios de esplanadas, que estão cheias de homens, que estão todo o santo dia a beber ou cervejas ou bagaços ou assim parece? Ai a menina chegou aí e achou que tanto assédio era um bocado estranho? Mas achou mesmo? Então e porquê? Por um lado, não é bióloga? E, por outro lado – nunca ouviu dizer que a ocasião faz o ladrão e depois quem anda à chuva molha-se?

    Ora então.

    Beba mas é mais uma bjeca, senhora, que a malta oferece. E conte lá mais umas historinhas cheias de homens maus.

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu, por exemplo: não sou antropóloga, nem paleontóloga, nem propriamente evolucionista: estudei um bocadinho de tudo isto durante os cinco anos do meu Curso de Biologia no antigo Colégio dos Nobres, mas logo a seguir especializei-me na fertilização do mamífero, depois da História da Biologia, e pronto – estas escolhas não se compadecem com andarmos para aí a aprender tudo o que está nas margens dos nossos interesses. Mas deem-nos um bom livro e contem-nos uma boa história, devidamente documentada e seriamente revista pelos pares: é claro que a gente gosta de aprender!

    [2] Na Natureza, linhas divisórias assim tão taxativas são sempre meritórias de muito pouca confiança. O único diferencial que existe mesmo, no caso da crueldade, encontra-se apenas a nível estatístico, só que é um apenas cheio de penas. Os machos tendem a ser maiores, mais fortes, mais vistosos, e mais dominantes. Um veado maduro enorme, cheio de armações, que esteja na brama, ouve-se e vê-se a quilómetros de distância. As vinte e sete fêmeas pequeninas e sem armações que constituem o seu harém… pois, é mais que se confundem com a folhagem.

    [3] Na realidade, quando agora penso nisso em retrospectiva, contaram-me imensas tretas quando eu andava na escola, e não foi só em Ciências Naturais. Também não há de ter sido tudo deliberado. Agora, sempre que dou aulas, ou explicações, interrogo-me com frequência sobre qual será a grande treta que andamos a ensinar aos nossos alunos. E então desde que comecei a ouvir dizer que se calhar não foi nada um asteroide o que causou a Extinção em Massa dos Dinossauros…

    [4]Só o homem é que tortura, etc.” Ai é? Aguentem firme que eu depois hei de falar-vos de uns quantos orangotangos e gorilas, só para mencionar familiares próximos.

    [5] Remeto-me à minha modéstia. Capaz de distinguir a água benta da água normal? Ná. É evidente que eu, sozinha, nunca conseguiria inventar pérolas de cultura assim tão brilhantes. A frase original é do escritor britânico T. H. White (Mumbay, 1906-1964) e foi gravada na memória de muitos portugueses da minha geração pelas crónicas semanais que grande Augusto Abelaira publicou semanalmente no defunto O JORNAL, O ÚNICO ANIMAL QUE, protagonizadas por duas fêmeas de chimpanzé tornadas famosas à época pelos investigadores de primatologia. O quase esquecido Terence Hanbury White, entretanto, tornou-se particularmente notado em vida pela sua série de romances sobre o Rei Artur, coligidos num único volume, THE ONCE AND FUTURE KING, em 1958. Destes, foi especialmente aplaudido o primeiro da série, THE SWORD AND THE STONE, publicado separadamente em 1938.

    [6] Tanto Clarke como Kubrick tinham personalidades digamos que fortes e difíceis, o que levou à separação pelo meio do seu projecto original de trabalho em conjunto num livro e num filme que haveriam de cair-nos em cima exactamente ao mesmo tempo. Da forma como as coisas correram, o filme, atribuído só a Kubrick, acabou por estrear antes do lançamento do romance, assinado só por Clarke. Mas enfim, sempre aconteceu tudo em 1968. E sem escandaleiras na praça pública, consideradas à época de gosto duvidoso..

    [7]Éramos nove, dormíamos todos em duas camas, e sempre que ele vinha bêbedo acordávamos à noite já com o cinto em cima”: durante todos os anos da minha adolescência em que andei nas vindimas, ouvi variações sobre esta história vezes e vezes sem conta. O resto do pessoal desatava a rir, celebrando o ridículo do homem completamente enfrascado. Ninguém parecia achar nada daquilo estranho, e eu já sabia ficar tão calada como a coruja. Em casa diziam que eu era “uma sonsinha”. Não era nada. Possuía apenas uma deformação profissional que pareceria quiçá aberrante naquela idade.

    [8] E mais sabe-se lá o quê que os chimpanzés fazem para contarem as suas histórias uns aos outros, porque lá porque nós não os percebemos não está necessariamente implícito que eles não se percebam. Estamos a falar de animais capazes de aprender, entender, e utilizar a linguagem dos surdos-mudos. E até de conversar no DOS com os computadores, por muito que possam fazer-lhes pedidos que nós, na nossa eterna sobranceria, consideramos palermas, como por exemplo “vá lá, computador, faz umas festinhas à Kathy!” Animais que atravessam a ponte até este nível mais formas terão de se parecerem connosco – ou sou eu que estou a raciocinar fora do baralho? Eu e todos os primatologistas normais deste ano da graça de 2023?

    [A] E, tanto quanto a gente sabe, entre todos os mamíferos só se trocam genes de uma única maneira.  Por muito que as duas espécies que fazem o amor possam preferir diferentes posições, mudar de posição não é inventar nada nem partilhar nada.
    [B] Porque nós éramos liderados por machos, e os machos que assumiam a liderança eram sempre os mais aguerridos. Em termos de emoções, foram os pioneiros dos gangs dos nossos dias. Não era que precisassem da guerra: era mais que estavam completamente viciados naquela chuva de adrenalina de seguir o chefe, cerrar fileiras, desatar a berrar, e matar o inimigo.

  • Maria Alice não sabe o que pensar: Estremoz recebe-a em casa de braços abertos

    Maria Alice não sabe o que pensar: Estremoz recebe-a em casa de braços abertos

    CARTAS DE AMOR

    Em Julho e Agosto de 2023

    Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Já na praia, depois de muitos mojitos, depois de muitos mergulhos na água fria, depois de muitos cigarros que Maria Alice partilha com ele, Alexandre não faz nenhum dos números físicos risqués dentro de água, ou na areia molhada, que descreveu por carta a Maria Alice com tão bela eloquência[1], em resposta à forma subtil como ela previamente o avisara, também numa das suas cartas, de que tem por hábito fazer topless na praia – assim como tem por hábito não usar sutiã – e não se sabe de onde veio este travessão. Mas enfim, pelo menos Alexandre começou a ter uma conversa mais pessoal. A tónica em que ainda não parou de bater mais vezes, no entanto, não foi a do seu divórcio recente da Gi Medeiros[2], nem a da sua relação agora mais complicada com a Margarida, a linda filha adolescente de ambos, já toda tão menina-mulher.[3] Claro que, levando todo este sofrimento silencioso em linha de conta[4], talvez fizesse sentido não esperar que Alexandre Noronha lhe falasse já dos sonhos que ambos tiveram vinte anos antes. O problema é a única coisa que ele lhe diz, uma vez e mais outra e mais outra, é que na realidade anda sempre stressado porque na sua empresa trabalham 1200 pessoas. “E isto quer dizer que há 1200 pessoas que dependem de mim, e eu penso nisso todos os dias.”


    Para não dizer “vai ao psiquiatra tratar da tua ansiedade” porque sabe que os homens não toleram ouvir “psiquiatra”, Maria Alice, toda esplendorosa no seu novo topless (comprado de propósito para o glamour do momento), diz antes “então aproveita agora, que estás aqui comigo para namorar, não é para trabalhar, e ambos fizémos o pacto de mantermos os nossos telemóveis desligados.”

    Palavras não são ditas, e o telemóvel de Alexandre desata a tocar – aos berros.

    black digital device at 5

    Ele olha para a chamada, fica vagamente pálido, vagamente trémulo, diz “epá desculpa, mas esta eu tenho mesmo que atender,” levanta-se num pulo e vai atender para longe. A chamada é tão longa que Maria Alice tem tempo de ir tomar banho. Quando regressa, Alexandre está a enfiar a sua tralha toda para dentro do seu saco de praia, e a murmurar, numa aflição, “tenho que ir já para Lisboa… tenho que ir já para Lisboa… 1200 pessoas que dependem de mim, tenho que ir já para Lisboa…

    Tudo bem, mas… vais a Lisboa e voltas, é isso?”

    Alexandre nem responde.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6 e o Episódio 7 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] É verdade que foi ela quem deu o mote. Mas ele agarrou-o logo no ar, e nas suas cartas seguintes deu-lhe logo umas voltas de tal forma brilhantes, que Maria Alice, sendo culta e tendo sido obrigada a estudar francês durante vinte anos, neste momento já começa a pensar o seguinte: “Isto parece a história do Cyrano de Bergerac… o gajo escrevia tão bem… e vinha desconfiado de que alguém escrevia por mim… ai que horror… será que era outra pessoa quem escrevia por ele?

    [2]Ah – mas eu agora – agora, Bloody Mary, eu não – eu não consigo – eu não consigo nem falar-te – da Gi – foi tudo tão duro – e – e – e – e tão – sabes – tão recente,” repete ele, enquanto ela tenta perceber se o seu amante que ainda não o foi – e agora parece ensaiar-se já para nem o ser – mas eu por enquanto não quero pensar nisto –  enfim, pronto, eu por mim só gostava de saber se ele está a gaguejar ou a usar travessões.

    [3] Menina-mulher é deveras piroso, mas neste ponto vamos todos continuar a disfarçar para quê? Já todos percebemos que Alexandre Noronha, a quem é atribuída estúltima expressão, possui um discurso que resvala facilmente para o piroso. Note-se que deveras também não é flor que se cheire, e que do recurso a estúltima quanto menos se falar melhor, e no entanto ambos os termos existem na língua portuguesa. Enfim, pertencendo a frase em causa ao discurso indirecto, façam como eu e culpem o narrador. Ou é um autor ladino do século XIX determinado a não se deixar apagar pela História, ou é uma Autora dos nossos dias de tal forma ressabiada que deixa minas e armadilhas de estilo duvidoso em toda e qualquer passagem potencialmente conotável com o masculino (e concedam, já agora, que este “potencialmente conotável com o masculino” não saiu nada mal à criatura que hoje vos escreve daqui desta secretária suja e desengonçada, cheia de trabalho e morta de calor, hm?).

    [4] Silencioso homenageia agora o masculino, sem nós por enquanto sabermos se é para melhor ou para pior. Só sabemos é que se uma mulher travasse por carta a correspondência ardente das semanas anteriores, e depois aparecesse ali a falar de trabalho, já tinha levado um par de estalos. Das amigas (“o masculino” local nunca saberia de nada), dos leitores, e de quem quer fosse que a seguir ainda que tivesse o mau gosto de vir para aqui contar a sua história.

  • Maria Alice leva o seu grande amor à praia: Estremoz padece de stress

    Maria Alice leva o seu grande amor à praia: Estremoz padece de stress

    CARTAS DE AMOR

    Em Julho e Agosto de 2023

    Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    “Sabes, Alexandre,” escreveu Maria Alice, absolutamente a propósito, “nunca gostei de usar sutiã, e ainda hoje evito o mais que posso entregar-me a usos foleiros e primitivos desse teor[1]. Aliás, tive sorte: são, de facto, usos de que, se não quiser, não preciso[2]. Por isso mesmo, na praia, também só não faço topless se não puder. E então imagino que, quando chegarmos lá, ali naquele banco de areia macia, ainda antes de se ficar fora de pé mas já longe que chegue da margem muito embora raramente lá esteja alguém aos dias de semana, sinto as tuas mãos nas minhas maminhas e me sinto tão feliz que só pode ser pecado.” Ao que ele respondeu, muito breve mas com toda a evidência sonhador, “Ah – mulher endiabrada.”

    Os olhos cor de mel de Maria Alice cintilam de sonho, de antecipação, e, ocultamente, também de orgulho[3].


    A praia a que se referiu naquela carta a esposa de António José é uma espécie de pequeno paraíso, entre os muitos que abençoam as cercanias de Estremoz. Chama-se Praia dos Montejuntos[4]. Não se indica aqui o itinerário uma vez que grande parte da graça deste oásis fluvial é o seu carácter quase secreto, mas sempre podemos ir adiantando que, para quem vem da cidade luminosa, levam-se cerca de quarenta minutos por estradinhas estreitas, quietas, quase desertas e muito belas. Este timing vale, sobretudo, para quem quiser ir saboreando bem o percurso, e – porque não – conforme comentaria Alexandre Noronha – parando – talvez – numa das aldeias mais promissoras que apareçam – nos acasos do caminho – a respeito da cerveja gelada, ou – quiçá – perante a loja encantada de artesanato – da qual – uma vez mais – se omite o nome – mas aqui antes por esquecimento do que por opção[5]. São estas paragens imprevistas, e toda esta lentidão, dentro de todo este silêncio, que vão tirando de cima dos mais derreados de todos os ombros os blocos mais duros e violentos do stress lisboeta.

    Depois, de repente, a estrada começa a descer. Dois anos depois da sua estreia, ainda está mesmo a cheirar a novo, tão bem alcatroada que apetece dizer antes alcatifada. E é durante essa descida, pelo meio da sombra, que aparece de súbito a grande oval de água cristalina, de um azul que fora de pé quase atinge a beleza do verde tropical e transparente, com toldos de palha, quase todos desertos. Para lá do estacionamento grande e simples levanta-se uma varanda de madeira imponente sobre a lagoa, parte envidraçada e parte a céu aberto: é o café-bar de óptimo gosto que Maria Alice também já descreveu ao seu grande amor, onde se servem óptimos pratos e petiscos de peixe e crustáceo de rio, e se congeminam misturas alcoólicas e sumarentas perfeitas, nomeadamente os mojitos que ela adora, com as limas arrancadas das árvores vizinhas e a hortelã criada ali mesmo.

    red and green all you need is love and mojitos neon sign

    Nunca mandou nenhuma foto deste esplêndido destino a Alexandre porque respeita o código não estipulado mas perfeitamente entendido de ambos: nada de imagens. Nestes dias loucos onde toda a gente filma tudo e manda para os antípodas à velocidade da luz, aqueles dois amantes que ainda não o foram enlaçam-se apenas por carta. Longas e bonitas cartas, como as de antigamente. Com suficiente conteúdo explícito para a chama arder toda a noite. Como por exemplo, durante os últimos dias, os detalhes que vão e vêm sobre tudo o que poderão, por fim, fazer debaixo de água.

    Maria Alice espera o seu amor para cumprir todas as promessas que já lhe fez para o primeiro dia na praia, mas entretanto arranjou coragem para lhe mandar o seu primeiro pequeno conto quase erótico, com a desculpa de estar a pedir um parecer masculino ao homem em quem mais confia neste mundo. A PANGEIA vai começar uma revistinha semanal com opinião, cultura, notícias, internacional, tudo englobando o mundo inteiro[6], mas tudo escrito por alguém de Estremoz. Os contos de Maria Alice entrarão na CULTURA, evidentemente. Alguém de Estremoz que se doutorou no Canadá e sabe escrever ficção. É bué fish, como ela gosta de dizer. O primeiro esforço é de três parágrafos, respeitando os dois mil caracteres com espaços decididos na reunião de redacção. Logo no primeiro parágrafo, um casal que, por razões ainda não explicadas, subitamente já não pode mais, encosta o carro numa berma à sombra e atira-se a um longo beijo vertiginoso até ser interrompido pela BT. Esse carro é um clássico estupendo, um Citroen DS verde-garrafa descapotável sem banco de trás, todo brilhante ao sol dourado do fim da tarde no Alentejo. E o casal, que é já de uma idade considerável, ia a ouvir o TOUTS[7] LES GARÇONS ET LES FILLES DE MON ÂGE em romagem de saudade.

    Maria Alice é capaz de jurar que ia apenas escrever no gmail  “Querido Alexandre, segue em anexo o tal conto que eu te pedi que comentasses.” Mas, ao reler o que fez, verifica – travessão – não sem alguma surpresa – que escreveu antes,

    Muito obrigada pela tua companhia das últimas semanas, Meu Querido Alexandre. Estou a agradecer-te muito a sério. A ternura das tuas mensagens aguentou-me viva quando vivia com fome e adormecia com sede, e deixou que entretanto todo este conto, que, agora sim, me faz feliz por ter conseguido escrevê-lo, se fosse montando frase a frase dentro de mim enquanto eu bulia inutilmente para satisfazer interesses que não são genuinamente meus.  E estou em crer que proezas destas só nascem mesmo de relações muito especiais: ainda nem te vi, e já permitiste um pequeno milagre dentro de mim, mesmo a meio de uma das piores travessias do deserto dos meus últimos tempos. Por favor, não deixes de surtir estes pequenos actos secretos de glória depois de eu te ver. Prometes[8]?

    Macbook Pro

    Mesmo do fundo do meu coração endiabrado

    Bloody Mary”

    Enfim, a notinha não está especialmente mal escrita. Se tiver erros de composição, pois bem: isso atestará que a escreveu de jacto e não a releu, pelo que sim, é verdade[9], levou o envio dos três parágrafos profanos a sério, numa de transa profissional.

    Alexandre também responde muito profissionalmente, logo a abrir com uma frase de vários travessões a indicar que o debate sobre a parte profana será melhor travado quando estiverem calmamente sentados no bar do tal paraíso fluvial que ela lhe descreveu tão bem, através de tão belas pinceladas impressionistas às quais só faltava – mesmo – o aroma. E, logo a seguir – “Oh! – Minha Querida Bloody Mary – Viveste tu no Québèc durante vinte anos!” – adverte-a de que TOUS (“de – TOUS LES GARÇONS etc. – romagem de saudade para mim – também!”) não se escreve com aquele segundo T que ela usou. No que ela concorda logo, só prova que nem reviu o texto, tanta pressa que tinha de pô-lo à prova perante os olhos dele[10]!

    O pior é que Alexandre também lhe faz ver, com aquele género de segurança que é muito característica dos homens quando abandonam a seca dos outros temas e se põem, finalmente, a falar de carros[11] – oh! Céus! –

    Alexandre Noronha, neste ponto, trava mesmo às quatro rodas: nunca – mas nunca – na vida – existiu um Citroen DS sem banco de trás. Todos eles tiveram – sempre – e ainda têm – um banco de trás.

    E aqui, incapaz de se remeter ao mero agradecimento da preciosa correcção, Maria Alice dá luta, sublinhando que aquele DS específico pode ter sido trabalhado na oficina do fabricante de belos clássicos para ficar sem banco de trás. É-lhe necessário este detalhe para o resto da história fazer sentido, a partir do momento em que aparece a BT. Suponhamos que o carro é da mulher, que aliás era quem ia a conduzir antes de mergulhar naquele beijo-ventosa que baralhou as suas pernas com as pernas do homem, e a fez tirar as mãos do volante para as conduzir num sufoco até outros lugares, muito mais quentes, já palpitantes: uma mulher seria capaz de pensar no detalhe de criar espaço para as compras do supermercado, o que a levaria a pedir ao tal fabricante de belos brinquedos que tirasse dali o banco de trás.

    Red and Black Car Die-cast Model on Ground

    Ah!”, rosna Alexandre Noronha de volta, na margem do sarcástico, agora quase ofendido. “Então tu prepara-te – Bloody Mary! Ao supermercado – com esse carro? Vão rir – de ti!

    E ela responde logo, com um sorriso fogoso,

    Meu Querido Alexandre, tu queres que eu me prepare? Mas eu já estou absolutamente preparada!

    Aqui deixemo-nos de brincadeiras e questionemos esta estranha diferença de curso nos últimos acontecimentos.

    A que será que vêm, de repente, todos estes inesperados pontos de exclamação? Inicialmente ainda seriam perdoáveis porque foram utilizados por Alexandre, grande e confesso admirador de Cesário Verde que não tem medo de ninguém. Quando se estende a Maria Alice, que nesses arroubos de entusiasmo é muito mais comedida, ainda podem justificar-se no âmbito da sua espécie ambivalente de discurso directo. Mas como é que é possível que cheguem, finalmente, a infectar até o discurso indirecto, ameaçando-o a qualquer momento, o grande tombo no mais puro dos ridículos?

    Por que é que havia de ser?

    Ah pois é.

    Pois é.

    É que já não falta nem uma semana para chegar o primeiro dos cinco dias em que combinaram que Alexandre Noronha viria a Estremoz visitar a sua Bloody Mary, e a sua Bloody Mary já tratou de todos os detalhes de que podia tratar com antecedência, além de que já pensou em todos os outros. De manhã cedo, sentada à mesa da cozinha a tomar o seu primeiro café enquanto volta a debater com a leal Josefa a questão do que servir ao pequeno-almoço, Maria Alice só tem vontade é de recomeçar a roer as unhas.

    Como dantes.

    “A menina não brinque com o fogo e não esteja sempre a dar essas dentadinhas nos dedos,” sorri-lhe a Josefa, atenta e compreensiva. “Olhe que eu ainda me lembro de si com dezoito aninhos, quando apareceu aí toda fresquinha e morenaça, feita namorada daquele Figurão da Orada, lembra-se?, e era quando levava a égua dele aos concursos de salto, e ganhava aquilo mesmo nas barbas dos homens, ena pá, a gente, nós-as-mulheres, a gente quase que chorávamos! Olhe que eu lembro-me muito bem. De vez em quando ainda tiro as suas taças todas daquele baú lá de baixo, para as arear como deve de ser. Até devíamos pô-las num sítio qualquer onde este seu doutor dos olhos azuis as visse, assim como quem não quer a coisa, sei lá, púnhamos no seu escritório, mas isso a menina é que sabe, agora escute. Eu lembro-me do menino António José sempre por aí a farejar mal a menina aparecia, sempre a dizer ‘acredita em mim, Josefa, vais ver que eu roubo a miúda ao Conde, olha que vais ver que eu lha roubo mesmo, olha que temos muito cavalo em comum e ela rói muito as unhas, deve precisar de um homem que a sirva melhor do que aquele atrasado mental que engoliu o garfo e diz que comprou o título mas foi, ainda por cima este ano os toiros dele são bravos demais e o Conde anda com umas trombas que ninguém chega perto, a miúda precisa é de quem lhe cante ao ouvido e a leve a umas boas festas de gente rija, aquelas africanas foram todas feitas para rir e gozar bem a vida, eu é que sei dar-lhe o que ela quer, eu é que tenho o que ela precisa de ter,” e eu “ai o menino deixe-se de loucuras, não vá cruzar-se no caminho do Senhor Conde e partir de desgosto e de vergonha o coração da sua Mãe,” e ele sempre a rondar, sempre a dizer ‘tu vais ver, Josefa, tu vais ver’, e vai daí, qual não é o meu espanto quando naquela manhã a menina me entra quase nua pela cozinha adentro, perdeu-se no corredor à procura do duche que na altura só havia cá um, ainda se lembra? Claro que lembra! Pois se ainda hoje a menina anda pela casa quase nua! E a Mãezinha do menino, que já tinha falecido nesse dia, que pena! Para acabar tudo em casamento pronto, com o casamento ela ficava feliz, não casou ela mas casou o filho por ela e fez-se justiça![12] Pois é verdade que a menina, nessa altura, até mesmo no dia do casamento em que foi toda de branco com aquela cauda de vinte metros de bilros mas com essas suas lindas pernas que mais todas de fora não podiam estar, pois era, e mais aquele decote que as gordas até deram gritinhos, vieram as Lelas cá para fora fumar e tudo, então mas então, tu queres ver que a moça vai mesmo casar sem sutiã, e o que eu ia dizer era que com aquela caloraça a menina ia toda descascada mas ia de luvas, e só tirou as luvas quando foi para ele lhe meter a aliança, e nessa altura já tinham cantado os dois um para o outro, lembra-se?, e já toda a gente chorava e portanto ninguém via, mas eu vi. É que a menina sempre teve uns dedos lindos, mas trazia sempre as unhas todas roidinhas até ao sabugo, era mesmo uma pena. E vai daí eu não sei o que é que fez no Canadá para voltar de lá com elas tão lindas…

    Então, ó Josefa! Isto são unhas de gel, não se vê logo?

    Pois muito bem, e então agora a menina vai pôr-se para aí a roer umas unhas de gel, por algum caso[13]? Por isso tire mas é os dedos da boca que ainda fica mas é sem eles. Ai! Credo! Mas que tonta![14]

    Person Wearing Gold Ring and Blue Manicure

    Maria Alice afunda-se em trabalho para não permitir ao tempo que passe devagar. Trata seriamente da horta para ter a certeza que não deixará os seus braços desenvolverem um mínimo indesejado de flacidez. Bronzeia-se pouco porque já está muito bronzeada e, sobretudo, porque de momento não tem qualquer paciência para ser observada seminua por qualquer conterrâneo. E, no entretanto, deixa todas as peças de roupa que utiliza, com os seus diferentes perfumes, ficarem por cima das cadeiras, da cama, e mesmo do chão, em total desalinho. A atitude subjacente carece de qualquer explicação para quem conheça um mínimo de psique masculina.

    Quando Alexandre, finalmente, lhe bate à porta, com um ramo de flores fantástico em cada mão, o PC ao ombro, e a mala para cinco dias a assomar de dentro da caixa do espectacular BM cinzento estacionado junto ao portão, Maria Alice, a estoirar de romantismo, puxa-o para dentro, fecha logo a porta, encosta-o à parede, nem o deixa falar, e espeta-lhe com um linguado monumental[15].

    Alexandre retribui, mas é evidente – mesmo para a mulher apaixonada – que não estava à espera daquilo. Ah, pois, pensa ela em pleno beijo, sem deixar de saborear a presa. Os homens, coitados. Sentem-se logo postos em  causa se não forem eles quem dá o primeiro passo.

    E portanto, muito caritativamente, deixa-se ela própria deslizar para a parede fronteira à dele, e dali faz o seu primeiro e autêntico sorriso, rasgado e doméstico, ao seu grande amor. E sussurra-lhe, apenas,

    Bem-vindo ao lugar mais tranquilo do mundo…

    faz sabiamente uma pausa para respirar fundo, e acrescenta, apenas,

    “… querido parceiro das mornas.

    A situação lá se recompõe com esta referência ao passado, permitindo a Alexandre, por seu turno, sorrir-lhe, passar-lhe a mão pelo ombro, e murmurar, quase assombrado,

    Bloody Mary – como os anos te trataram bem…

    Alexandre está demasiado crispado para conseguir continuar logo, mas os gestos destinados a ir buscar a mala dos cinco dias compram-lhe o tempo de que precisa para ainda acrescentar, pousando a mala no chão, agora do lado de dentro da porta, que volta a fechar-se, desta vez impelida pela sua própria mão,

    “… querida parceira das noites na praia.”

    a person holding a baby

    Maria Alice, a extuar de energia[16], agarra-lhe na mala dos cinco dias como se ela não tivesse peso e leva-a ligeira pelas escadas acima, até à porta do quarto. Ele segue-a com alguma hesitação, talvez ofuscado pela luz da rua ao entrar na penumbra do corredor. Ela agora dá-lhe só a mão, com muita gentileza para não voltar a espantar a caça, mas com a preocupação de garantir que ele não esbarra em nada pelo caminho. E é assim, com um murmúrio sobre a tal bica muito curta que jurou oferecer-lhe logo à chegada, que o conduz até à cozinha, sempre a divisão mais fresca da casa.

    Josefa,” diz Maria Alice, sem esconder minimamente a sua felicidade, “antes de mais nada, queria apresentar-te o nosso hóspede dos próximos dias, este meu querido Alexandre de quem te falei tanto.

    Ai que o Senhor Doutor veio mesmo visitá-la!”, exclama a velhota, também ela com um sorriso feliz – e, acto contínuo, avança para o visitante e dá-lhe dois beijinhos, que ele retribui com alguma atrapalhação. “Ah,” continua a fiel empregada, “o Doutor não sei, porque nunca o vi antes, mas a menina, olhe, a menina eu digo-lhe já, de repente ficou dez anos mais nova. Valha-nos Deus, que fazem mesmo um lindo casalinho. Deixam-me tirar-vos uma foto, destas do telemóvel?”

    Desde que não ponhas no teu Instagram…

    “Ai menina, não brinque comigo, eu sei lá mexer naquelas porcarias que a menina aqui meteu!”

    E assim, enquanto abafam risos, fazem os dois algumas poses amorosas para o telefone da Josefa, que depois desaparece a cantarolar o FADO ERRADO pelo corredor fora[17]. Apesar da frescura da cozinha, Alexandre tem a testa suada, mesmo depois de, a convite de Maria Alice, se sentar e apreciar a tal bela bica muito curta, acompanhada por um copo alto com água muito fresca, e por um prato do Zé Carlos Rodrigues, onde um pavão sóbrio acabou de abrir o caleidoscópio da cauda,[18] com três queijadas de requeijão fresquíssimas, chegadas há meia hora da FOLIA AIROSA[19].

    Se calhar,” diz a antiga menina das noites na praia, “devia pedir-te desculpa pelos excessos da Josefa. Ela bem se calava, mas tinha estampado na cara que não via a hora de tu apareceres cá em casa. Eu aprendi contigo que nunca é tarde para se ter um futuro feliz[20]. E depois ela aprendeu isso mesmo comigo. E sabes, para uma mulher esta é uma aprendizagem tão grande, tão importante, e sobretudo tão boa, mas tão boa, a sério, tão boa e tão boa, que vira facilmente os mais simples do avesso. Escusas de perguntar se EU, que não sou tão simples como a Josefa, fiquei indiferente. Sabes muito bem que não fiquei. És a única pessoa no mundo que conhece o meu coração. E ainda me custa acreditar que vieste mesmo ter comigo.”  

    red ceramic bowl on gray spoon

    Alexandre Noronha agarra finalmente numa das queijadas de requeijão. Dá-lhe uma dentada, sorri, e acena aprovadoramente.

    Então eras mesmo tu,” comenta em voz baixa, como quem partilha um segredo.

    Era mesmo eu?”

    Por favor, não fiques zangada comigo. Mas cresceste tanto, nestes vinte anos de ausência… A tua maturidade, a tua segurança, a tua disponibilidade emocional… a qualidade da tua escrita… cheguei a temer que fosse outra pessoa quem escrevia por ti, e aqui em casa estivesse outra vez a miúda que falava comigo na praia, à noite, em Santiago. Por favor, não fiques zangada. Mas é que não escrevias como a miúda de que eu me lembrava.”

    Foi com essa miúda que tu vieste ter hoje?

    Alexandre acabou a primeira queijada, e ataca imediatamente a segunda, sem disfarçar a sua gula. No piloto automático, Maria Alice tira-lhe mais um café curto e faz cair mais cubos de gelo directamente da porta do frigorífico para dentro do jarro da água.

    Não,” responde-lhe Alexandre, muito sério. “Vim ter contigo sem saber quem és.

    Então é bom e eu fico muito feliz,” sorri ela. “Porque eu também não sei quem és.

    Senta-se à frente dele ainda dentro daquele sorriso, e ainda acrescenta,

    “… mas és um gajo que ainda vai devorar a terceira queijada de requeijão que a Josefa foi buscar ao Pelourinho de propósito para ti, ou não és? Adoro pessoas com verdadeiro apetite. E isto de não nos conhecermos parece saído direitinho das fantasias eróticas daquela senhora da tua idade que ia no DS verde-garrafa. Além disso…” – pousa, pela primeira vez, a sua mão delicada, de dedos compridos e unhas discretas, em cima do punho cerrado dele – “… agora temos imenso tempo para voltarmos a conhecer-nos. Começar de novo é sempre um bom princípio. Não é?”

    Claro que é.

    Alexandre deixou ficar a mão delicada de Maria Alice em cima do seu punho cerrado, cheio de veias salientes, que agora se vão distendendo muito devagar.

     Mas continua com um vago tique nervoso nos cantos da boca.

    E, pronto. Já mudou de posição, e já tirou a mão.

    Tudo bem, na realidade foi ele quem saiu da sua zona de conforto e se meteu à aventura pelas autoestradas, da porta do seu escritório futurista em Lisboa até à porta de uma vaga memória de juventude que foi parar a uma cidadezinha desconhecida agarrada a um castelo.

    Ou até talvez esteja tenso por motivos ainda mais simples do que aquele.

    Talvez tenha medo de cães.

    Sobretudo de cães grandes.

    Há que ver que o Júnior não pára de inspeccioná-lo desde que ele se sentou na cozinha, e os Leões da Rodésia são sempre cães impressionantes para quem está sob a sua observação pela primeira vez. O Júnior não é minimamente agressivo, mas também não mostra qualquer alegria.

    Por decisão imediata e unilateral de Maria Alice, o cão fica em casa.

    Alexandre entra com a mala na suite de pé direito altíssimo e tectos decorados a gesso, com os seus grandes janelões virados para a horta, diz “tens razão, isto é lindo”, leva os calções e o nécéssaire para a casa de banho, acrescenta “é mesmo como dizias, a pessoa aqui pode esquecer-se de tudo, até do seu próprio stress,” depois do que fecha a porta atrás de si e trata de encher os minutos seguintes com alguns ruídos próprios de estar ali dentro um homem. Por fim, quando sai, lá faz o favor de comentar, observando o desalinho em que Maria Alice foi deixando toda a sua intimidade perfumada nos últimos dias, “adoro este teu caos, Bloody Mary.

    Grayscale Animal Nose

    Ela sorri, atreve-se a piscar-lhe o olho, tem a impressão de que ele não gostou daquelas frivolidades, é como tudo o que acontece, pensa ela, não deixa de ser estranho, já que, trocadas tantas cartas, tudo o que acontece parece estar sempre a acontecer cedo demais. Mas bem, deixa cair. São os homens, não é?

    Deve ser.

    Os homens precisam sempre de mais tempo. Os homens precisam sempre de mais espaço.

    Ó criatura, relaxa. Eu dou-te todo o tempo e todo o espaço que tu quiseres.

    Já na praia, bebem por fim os tais mojitos deliciosos de tanta frescura, e petiscam tirinhas fritas de peixe do rio, que mais frescas também nunca poderiam ser. Estão instalados principescamente[21]  no tal restaurante de madeira que forma uma varanda por cima do mar e continua tão lindo e tão calmo como sempre. Alexandre, finalmente, fala muito. Depois de falar muito do seu stress, recomeça a falar muito de trabalho. Como que acordado de um sonho, faz-lhe também a ela muitas perguntas de trabalho, um pouco como já vinha fazendo no carro. Como montar um belo estaminé de software alternativo, promoção da cultura, e apoio ao domicílio, mesmo no meio de parte nenhuma e por enquanto sem patrocinadores, isso sim, a coragem e a genica – e a estaleca[22] – da sua Bloody Mary para se sair tão bem de uma aventura dessas parece-lhe fantástica, e talvez possa ajudá-la nos labirintos do mecenato, que remédio tem ele senão conhecê-los muito bem e muito por dentro, oh, o stress que é sempre, todos os dias, essa questão da publicidade.

    E este teu estaminé, sabes, este bar, este peixe, estas bebidas, esta praia, isto é fantástico[23]. A pessoa passa aqui dois ou três dias e até se esquece de que o stress existe.

    Sempre que diz isto, como quem compõe cuidadosamente um poema, Alexandre Noronha rememora, logo a seguir, o tempo em que os dois se conheceram em Cabo Verde.

    Também não existe stress em Cabo Verde, menina.

    De cada vez que ela lhe agarra na mão por cima da mesa ele repete o número da cozinha. Não protesta, mas não demora nada a inventar um pretexto para mudar de posição. “Isto passa,” pensa ela. “É tudo do stress.”


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5 e o Episódio 6 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1]Teor.” Não é para qualquer um. Esta questão nem se discute: a esposa de António José sabe escrever muito bem.

    [2] Claro que é absolutamente discutível se seria mesmo necessário inserir aqui uma frase de teor assim tão explícito, mas enfim, dê-se-lhe o devido desconto. Esta mulher está agora perdidamente apaixonada, e escreve para um amante epistolar que ainda não o foi de corpo inteiro. E esta sim, esta é que é mesmo uma linda elipse, “ainda não o foi de corpo inteiro.” Ena pá.

    [3] O adjectivo “endiabrada” (ou “endiabrado”, como por exemplo na frase de há três dias antes “o meu coração está endiabrado no segredo do meu peito”) é uma pérola de cultura sua, que o seu correspondente já começou a entalar de empréstimo entre travessões. Haverá, porventura, melhor prova inconsciente de amor e respeito?

    [4] Também conhecida pelo nome mais finaço de Praia Fluvial de Azenhas d’El-Rei, ou pelo nome mais preciso de Praia Fluvial do Alandroal.

    [5] Talvez. Lá mais para o fim da frase, se tenha instaurado algum baralhanço entre os travessões. Mas tais fragilidades são inevitáveis no discurso indirecto. Como já sabemos, os travessões são o ponto de honra epistolar de Alexandre Noronha, e de mais ninguém.

    [6] A Pangeia que existiu antes de se separarem os continentes, lá está.

    [7] Escrito assim mesmo, em galharda competição contra o corrector ortográfico.

    [8] Maria Alice não é parva, e trata rapidamente de assinalar que este ”Prometes?” é absolutamente retórico utilizando um emoji adequado ao efeito. Escolhe uma carinha desconfiada, a meditar de mão no queixo e sobrolho franzido. Sobrolho.

    [9] Mentira! Claro que é mentira! Claro que a leu e releu vezes e vezes sem conta, e que a retalhou, a modificou, a encurtou, até a notinha não poder ficar melhor sem parecer suspeita para notinha. Mas, francamente – qual é? Há azar? Não mentimos todos, homens e mulheres minimamente educados, no que toca a rever cuidadosamente o que escrevemos, antes de expormos as nossas grandes habilidades estilísticas ao escrutínio seja de quem for? Não é verdade que vai sempre existir um escrutínio, nem que mais não seja porque deixou de existir privacidade? Então vá, saiam de cima. Esta mentira nem sequer é assunto.

    [10] Aaaaah, gaita! Desde os vinte anos que meto água nesta porcaria de tous ter ou não um segundo t. Para que é que me armei em boa? Ia a correr salvar o meu pai da forca, por algum caso? Era só passar ali com o corrector ortográfico francês. Ah! Raios me partam! Raios me partam! Isto nunca mais pode voltar a acontecer!

    [11] Carros é diferente. Não é futebol. Futebol tem treinadores, tem prima-donas, tem penalties, agora ainda por cima tem o VAR, enfim, tem um sem-fim de potenciais discordâncias subjectivas que podem sempre, a qualquer momento, armadilhar as opiniões de um gajo. Carros não. São valores seguros. Só há estas marcas. Só há estes motores. Só há estes anos. E toda a gente sabe em que é que o diesel difere da gasolina. Um gajo que perceba de carros pode falar à vontade, e até pode fumar uma cigarrilha ao mesmo tempo, porque nunca é apanhado em falso.

    [12] Referência óbvia a outro folhetim que não este, passado noutros tempos, em que a Mãezinha do Menino António José deve ter vivido uma paixão ardente com o Pai deste infame Conde da Orada que cria toiros demasiado bravos, ficou porventura desonrada quando se deixou levar atrás de promessas vãs, pois claro que o Pai deste Figurão roeu a corda para se casar antes com uma espanhola muito rica e a única coisa que salvou a pobre senhora foi a dedicação que lhe tinha o pequeno contabilista das alfaias agrícolas e terras de cultivo. Ora, na geração seguinte, roubando a namorada ao filho da puta que é filho do outro filho da puta, faz-se uma magnífica justiça poética, e a história é mais ou menos esta. Toda a gente em Estremoz a conhece.

    [13]Por algum caso” é uma forma local de enfatizar perguntas absolutamente genial. Para usar com a merecida frequência.

    [14] Ao usar – também ela – não apenas um, mas mesmo uma boa dezena de pontos de exclamação de seguida, a velha Josefa permite-nos compreender que – também ela – pode muito bem ficar calada, mas a verdade é que já está que não pode nem ver a hora em que o grande amor da sua Maria Alice vai finalmente entrar ali por aquela porta.

    [15] Em grande medida, está a reproduzir o comportamento observado, no tal primeiro parágrafo do tal conto profano destinado à tal revista semanal digital da PANGEIA, pela tal mulher que vai a guiar o tal DS descapotável verde-garrafa, sem o tal banco de trás para poder transportar as compras do supermercado.

    [16] Extuar. Quanto à energia, escusado seria dizê-lo mas enfim, é aquela forma especial de energia que nós só podemos ir buscar ao amor.

    [17] Mais especicicamente, Josefa volta a demonstrar que a sabe toda, escolhendo, como quem não quer a coisa, a passagem “… quem me dera/ ter outra vez desenganos/ ter outra vez vinte anos/ para te amar outra vez…

    [18] Um dos melhores e mais sofisticados artistas locais. A sua loja e galeria, BONECOS DE ESTREMOZ, situa-se mesmo no centro da cidade, na Rua 5 de Outubro.

    [19] Recorde-se, que não se perde nada: não há um único tasco velho em Estremoz onde as queijadas de requeijão não sejam deliciosas. As do novíssimo espaço FOLIA AIROSA, numa das esquinas do Largo do Pelourinho, levam um toquezinho de limão e constituem uma inovação inesquecível. Inovação inesquecível. Bravo.

    [20] Trocadilho brilhante, improvisado mesmo ali na hora, sobre o velho lugar-comum “nunca é tarde para se ter uma infância feliz”. Se Alexandre Noronha conseguiu divorciar-se “mas ainda não consigo falar-te disso, temo que toda a perversidade do mundo me engula se mencionar sequer o nome dela”, ela também o conseguirá, certamente. No futuro. Na hora de ser feliz, para que a Josefa também o seja.

    [21] Foi ele que disse, simpático: “principescamente”. Mas podia estar só a sublinhar serem os únicos frequentadores do tal “espaço”. Se foi isso, felizmente, Maria Alice não fez conta.

    [22] Ok, mesmo omitindo coragem, admitamos que a redundância de genica e estaleca vem do amor ao ênfase que se obtém por escrito com travessões e que, oralmente, há que procurar de outra forma. Ou que não existe redundância no uso consecutivo dos qualitativos genica e estaleca, ou que, pelo menos, não existe quando a pessoa repetiu muitas vezes a mesma ideia. Ou que nada disto conta quando a pessoa está apaixonada!, meus senhores!, já que deve ser esse o caso, e Maria Alice encontrou satisfações perfeitamente legítimas para todos os outros.

    [23] É verdade, trata-se do segundo “estaminé” de Alexandre. Mas tudo o que segue será também uma repetição, e – por agora – ele já não tem muito tempo.

  • Maria Alice mente: Estremoz pede-lhe mais

    Maria Alice mente: Estremoz pede-lhe mais

    CARTAS DE AMOR

    Em Julho e Agosto de 2023

    Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Maria Alice mentiu a toda a gente ao descrever Alexandre Noronha enquanto antigo namorado da adolescência, mas isto é mesmo assim, meus amigos,

    toda a gente mente[1],

    e,

    se vamos mentir,

    que seja por uma causa gloriosa,

    como por exemplo a causa de um grande amor que tivemos em meninas e depois nos escorreu entre os dedos como a água do mar[2].

    É assim mesmo que Maria Alice descreve a sua mentira inocente na carta que escreve nessa noite ao seu Alexandre, que responde logo, naquele seu estilo – conceda-se – elegante e – sempre – sem esforço, implorando – de joelho no chão, querida Bloody Mary – que, já que – nos seus sonhos – foram os dois, em dias mais simples – e de maior leveza – miúda gira – dois namoradinhos destinados a amarem-se para sempre – então agora deveriam – mesmo – deixar-se de – chamemos-lhes assim – cortesias[3] – e retomar o seu antigo – e despreocupado – tratamento por tu.

    Maria Alice responde logo, a mordiscar os lábios cheios e brilhantes,  com uma chama a cintilar dentro dos seus olhos cor de mel,

    Olha que, realmente, a escrevermos um ao outro desta maneira, até parecemos mesmo dois namorados do tempo em que nem sequer havia internet, e as pessoas escreviam umas às outras verdadeiras cartas de amor.

    Ao que ele responde logo de seguida:

    Eu ficaria tão feliz…

    E, na manhã seguinte, Maria Alice repara que por baixo – Alexandre Noronha – num tumulto – provavelmente como ela – ainda acrescentou,

    Agora que nada me prende – e que tudo posso…


    Claro que a história do namoradinho que antecedeu a António José – e se António José roubou aquela mulher linda ao Conde da Orada, então é porque o namoradinho também antecedeu o Conde da Orada – [4]não ficou – nem um só dia – limitada ao pequeno círculo dos foliões que foram à noite praticar skinny dipping nas lagoas da pedreira. À hora do almoço do dia seguinte estava demasiado calor para alguma coisa se mexer, incluindo a alma da mais santa pessoa de Estremoz. De maneira que todas as amigas de Maria Alice, e imensas amigas dessas amigas, deram um grande prazer à Josefa, que tinha tirado do forno nessa madrugada um bolo de noz delicioso[5], e ao Júnior, que adorava ajuntamentos de mulheres porque, ao contrário dos homens, todas o consideravam adorável e lhe passavam empadas inteiras por baixo da toalha enquanto a dona fazia vista grossa. O atelier da PANGEIA era grande, confortável, com uma vista muito agradável para o jardim ao fundo da qual se via o chuveiro da horta, várias cadeiras reclináveis com mesinha de dobrar incorporável… e, benção sublime entre todas, um óptimo ar condicionado.

    walnut, nuts, chocolate

    Conta lá, Mariazinha, conta lá. Também era alentejano, esse mocinho?

    Eu já disse que, a partir de agora, quem quiser saber da minha vida pessoal que me trate por Bloody Mary.  E ele não era nenhum mocinho, porque é uns bons quinze anos mais velho do que eu. Eu é que era uma mocinha, porque só tinha dezasseis anos.”

    Ai coisa! E então pinaste com ele aos dezasseis anos?”

    Podes crer. Dentro do Castelo de Vila da Feira.

    Ai Deus! Mas como?

    Então, ele tinha uma chave para ir dar ao gabinete numa das torres onde fazia não sei que estudos, falou-me disso, pareceu-me um bom plano, e fomos lá.”

    Ai esta louca… mas então, e tu eras virgem e tudo, e vocês foram e fizeram o servicinho adonde, se foi dentro desse gabinete?”

    Ó desgraçada, isso pergunta-se? Pois está na cara que foi logo ali no chão, evidentemente. Onde é que querias que fosse?

    Ai valha-nos Deus. Coitadinha.”

    Mas coitadinha porquê? Olha que eu não achei nada. Uma coisa tão boa. E tão excitante, naquele chão todo de pedra. E ele com muito cuidadinho, muito mimo, muita conversa bonita… até que eu já estava de cabeça perdida, e então parecia um demónio. Vêem como eu ainda me lembro de tudo? Devia ter ido com ele para Oxford e ficado com ele para sempre. E a propósito, vocês desculpem este esclarecimento, mas é que o meu grande amor não foi nenhum alentejano. Era um historiador da Universidade do Porto lindo, lindo, lindo, de olhos azuis e cabelos loiros, muito inteligente, e sobretudo muito divertido. Estão a ver o meu Conde dos Toiros Bravos, o da Orada? Alguma de vocês lhe chamaria inteligente e divertido? Está bem, a pessoa é novinha, está sozinha, é tolinha, e acabou-se a conversa. E agora o vosso cabo dos forcados? Era divertido e inteligente, ou não era? Não fui ter com o meu amor porque acreditei que ia amar esta criatura para sempre. Infelizmente, com o António José, foi só ele apanhar-se casado comigo e escondido dos vossos olhares em Montréal… parece que ficou estúpido… e sem graça nenhuma… E o Alexandre… que ainda deve estar vivo...”

    Ó menina!”, interrompe-a a Josefa, pousando o seu bolo de noz em sinal de protesto.

    Todas as mulheres se viram para a Josefa.

    A Josefa vira-se para a Maria Alice, meio comovida meio indignada.

    Olhe que a menina ou cresce depressa ou ainda se aleija a sério, ouviu? E depois…

    Bate com força no ombro esquerdo.

    “… e depois, quando precisar de um ombro, acredite que tem aqui o meu, para chorar tudo o que quiser.”

    Há uma vozearia feminina que varre a sala inteira, onde mal se ouve a voz assustada de Maria Alice, que, no entanto, pergunta o mesmo do que todas as outras.

    Mas em que é que a gente não cresceu depressa, ó Josefa?

    Ai então, mas então as meninas não sabem?[6]

    Faz-se silêncio na sala, enquanto todos os olhares se cravam na Josefa.

    E a Josefa, subitamente em grande pose, canta com uma voz magnífica, de timbre perfeito,

    Quem disser que se pode amar alguém

    Durante a vida inteira, é porque mente!

    Depois volta a agarrar nos restos do bolo, diz,

    anda, Júnior,”

    e desaparece rumo à cozinha, de onde ao fim de dois minutos chega um grito a perguntar quem quer café.

    As mulheres, momentaneamente petrificadas, recomeçam a movimentar-se.

    Aquilo era o da Florbela Espanca?”

    Era. Mas não sabia que a Josefa cantava tão bem o fado.”

    Ó filha. Nem eu sabia, e já estou sozinha cá em casa com ela há umas boas semanas.

    Podias pensar em usá-la para os teus eventos.”

    Agora nem me apetece pensar nisso. Vamos desligar, vá. Isto podia ter sido tudo uma bela história de amor que eu inventei agora mesmo.”

    “Pois podia.”

    “Eh pá. Ninguém poderia dizer que esta mulher não tinha uma grande imaginação

    Nessa noite, Maria Alice conta a Alexandre toda a história daquele grande amor da sua vida, iniciado aos dezasseis anos no chão do Castelo de Vila da Feira. Ele responde que ela já não terá quarenta anos, mas que – se quiser – ainda tem tempo.

    E, neste ir e vir de cartas cada vez mais calorosas, Maria Alice vai ficando cada vez mais apaixonada por um homem de olhos azuis, por quem só tem as memórias que anda a inventar agora. O homem deve sentir o mesmo, porque às tantas começa – subtilmente – a tratá-la por “meu amor”. E ela retribui. A mulher de António José começa imediatamente a fazer dieta[7]. Até vai fazer madeixas novas no cabelo e pedir um corte “mais endiabrado”, que a faça parecer ”mais malandra e mais gira”. Até faz a depilação na esteticista, embora costume fazê-la sempre em casa. Põe um novo piercing dentro da orelha. Até fala da verdade sobre esta paixão à Josefa, que acha que tudo aquilo é muito melhor assim, já que, se o tal grande amor do Castelo de Vila da Feira tivesse mesmo existido, a menina que não cresceu que chegue ainda se arriscava em dar com ele a tocar-lhe à porta por causa destas facilidades todas dos Facebooks.

    the shadow of a window on a concrete floor

    Depois de falar com a Josefa, Maria Alice sente-se suficientemente confiante para pedir sigilo e contar tudo sobre as mensagens que anda a trocar com o seu grande amor secreto às duas melhores amigas que entretanto fez em Estremoz. Ficam logo as duas doidas para conhecerem pessoalmente o famoso designer de ilustração digital em medicina Alexandre Noronha.

    Pois foi.

    Por causa dos sonhos de Maria Alice sobre a semana em que ele viria visitá-la a Estremoz durante uma semana no mês de Setembro, acabaram os dois por combinar mesmo que ele virá mesmo visitá-la a Estremoz durante uma semana no mês de Setembro.

    De dentro da cozinha, com as notas todas perfeitamente no sítio, ainda ecoa o contralto da Josefa,

    E se um dia hei de ser pó, cinza, e nada

    Que seja a minha noite uma alvorada

    Que eu me saiba perder para me encontrar!


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4 e o Episódio 5 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] Frase que tem a vantagem de parecer um provérbio tradicional português, embora seja apenas uma gracinha simbolista de CPC – que – como toda a gente sabe – tem a mania de que é boa..

    [2] Estão a ver? Estão a ver? “Escorre entre os dedos como a água do mar”? Eles ficaram que nunca conseguiam largar-se quando se conheceram em Cabo Verde, onde todas as noites iam secretamente para a praia. Para a praia, certo? Mas tudo lhes escorreu entre os dedos como a água do mar. Bem esgalhado, malta. Admitam. Um ponto para mim!

    [3] No sentido de encurtar um pouco as sempre longas frases de Alexandre Noronha, cortámos aqui a passagem “… – porque as cortesias são para os cavalos – …”)

    [4] Nota-se que o criador está a ser infectado pela sua criatura. CPC é absolutamente adversa ao uso de travessões. Levou uma grande rabecada de Assis Pacheco aos 25 anos quando lhe pediu que revisse e comentasse uma pequena novela intitulada UM ESQUEMA, e nunca mais precisou de ouvir mais nada. E vamos mas é tomar já nota deste “nunca mais precisou de ouvir mais nada”. Ainda há de ser útil. Tipo, para a letra de um fado. Ou isso.

    [5] É verdade que esta Josefa tanto pode ser Júlio Dinis como Camilo Castelo Branco, mas não se distraiam. Um dia destes ainda pode aparecer aí feita Primo Basílio e depois sempre queremos ver quem é que lhe faz frente. Mas vão treinando. Sabem dizer-nos, porventura, o que significa a palavra PIORRINHA? Ah pois é.

    [6] “Então, mas então” é uma expressão enfática local muito do meu agrado.

    [7] Reflexo condicionado nas mulheres quando se apaixonam. Bom – ou quando ficam gordas, evidentemente. E lá deixou a gaja passar mais um travessão.