Autor: Clara Pinto Correia

  • A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?

    A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?


    OK, é verdade. Não gosto de puxar nos galões, mas acredito na voz da experiência. Para o melhor e para o pior, eu passei vinte anos na América, fui casada com um cientista americano de quem ainda hoje sou muito amiga, e sei que o que eu quero contar-vos é mesmo como eu quero contar-vos. Querem voltar a dizer-me que os americanos são uns broncos ignorantes que passam todo o seu tempo livre a beber Budweiser e a comer demais usando apenas as mãos enquanto assistem aos jogos de baseball da televisão? Porreiro, podemos ir ainda mais longe. Os americanos são os cidadãos daquele país com trezentos milhões de habitantes em que 35 por cento da população é obesa e 75 por cento tem armas, e muitas dessas armas são semi-automáticas, como se alguém precisasse de uma AK47 para caçar veados. São os imbecis que nunca tiveram um passaporte na vida[1], uma vez que ninguém precisa de passaporte para ir ao Canadá comprar as suas bebidas por preços realmente competitivos, assim como não precisa dele para ir a Puerto Rico, ao Hawai passar uma semana de férias salutares pelo meio da neve dos seus Invernos. E não hesitam em dizer que preferem este tipo de férias porque “têm medo” de vir à Europa, e se nós perguntarmos porquê respondem logo, com toda a franqueza, “sei lá, toda a gente diz que aquilo é muito perigoso”.

    Tudo bem.

    Agora, querem ver-se ao espelho? Isto é tudo verdade, mas vamos lá com calma: nós podemos ter os passaportes cheios de carimbos de todos os lugares remotos do mundo que percorremos à boleia e com a mochila às costas, podemos ler muitos livros e falar muitas línguas, que isso não nos faz menos broncos ou menos ignorantes. E esta nossa nova cegueira nocturna não poderia ridicularizar-nos melhor: então agora tudo o que está a passar-se na política americana, em alguns casos pela primeira vez desde que a América existe, está a passar-se por causa da Ucrânia?

    Ai por favor, desculpem.

    Provincianos.


    Vai daqui um alerta sentido, tanto ao povo português como a toda a coorte de “comentadores”, “observadores”, “peritos”, e outras pessoas assim, que supostamente deviam explicar estas situações ao povo português. Detesto armar-me em boa e detesto fazer inimigos, mas francamente. Quando é que alguém aparece na televisão pública – ao menos – a explicar-nos com clareza que a guerra na Ucrânia é só um estrago colateral no triste contexto daquilo que está realmente a acontecer na América?

    Muito pelo contrário, e muito em concordância com o espírito importado do Halloween que vamos ter que aturar por estes dias,  até ao momento em que a Câmara dos Representantes fica sem Alto Representante, e assim sendo o governo deixa de ser governável… bem, não. Desculpem, vou repetir-me mas há que martelar bem estas sílabas. Isto a que temos assistido não tem a ver com o apoio americano à guerra na Ucrânia.

    blue and yellow striped country flag

    Tem a ver com os piores dos perigos que podem vir a ter que ser enfrentados em democracia.

    A demissão do Senador McCarthy, e tudo o que aconteceu antes que não lhe deixou outra saída, faz antes parte de uma crise da política interna americana que entrou em rota de colisão consigo própria desde que o Colégio Eleitoral deu a vitória a Donald Trump depois de Hillary Clinton ter ganho as eleições pelo voto popular.

    Aliás, aconteceu exactamente o mesmo na corrida de Al Gore contra George W. Bush, portanto já sabemos que estas vitórias por uma unha negra são perigosíssimas. Gore teve a maioria popular, Bush foi eleito pelo Colégio. Sempre que as margens de êxito são assim tão frágeis, as democracias precisam de um amor e carinho muito especiais para não irem ao fundo. Infelizmente, “amor e carinho” não é linguagem que um, republicano americano entenda. George W. decidiu invadir o Iraque, e, em consequência, deixou-nos um Mundo em que o Califato degolava as pessoas em directo e ao vivo correndo pelo deserto em tanques americanos e a Arábia Saudita usava recursos americanos para eliminar do mapa um povo inteiro no pesadelo da Guerra do Iémen.

    Depois de tudo isto, ainda houve o Afeganistão. Que ideia foi aquela, se até a todo-poderosa URSS já tinha ido antes estampar-se naquelas montanhas inexpugnáveis[2]? Foi qualquer coisa, porque até o nosso homem Obama, por muito que tenha ganho o Nobel da Paz como incentivo, não conseguiu acabar com essa guerra, assim como não conseguiu cumprir uma das suas promessas eleitorais mais importantes e acabar mesmo com a prisão política de Guantánamo, muito embora tenha assumido a clarividência de dar a ver a todos os americanos, e aos povos do mundo inteiro, a realidade sobre o que lá se passava[3].

    people walking around white concrete building during daytime

    Toda a gente sabe que Donald Trump teve uma panóplia impressionante de consequências funestas sobre a democracia. De tudo o que fez mal no seu país, o pior ainda há de ter sido transformar a corrupção no novo normal da presidência americana – razão pela qual ainda não parou de andar de tribunal em tribunal em julgamentos horrorosos de falsificação de declarações de rendimentos e outros documentos oficiais entregues quando era presidente, em tribunais que devem ser tão corruptos como ele[4], porque nunca mais o mandam prender por forma a acabar de vez com este terrível drama de Shakespeare.  E a sua péssima influência estendeu-se, como se sabe, às democracias de todo o mundo – veja-se, entre muitos que poderiam agora vir à baila, o exemplo de Jair Bolsonaro, que decalcou todos os actos mais significativos da sua presidência do que entretanto ia acontecendo em Washington DC. E estes actos incluíram não lutar contra a pandemia até já ser tardíssimo, encorajar a destruição do Amazonas[5], e ver com bons olhos a invasão selvagem do Senado em Brasília depois de perder a Presidência para Lula da Silva.

    Claro que o pior acto destrutivo de Trump, no que diz respeito ao seu próprio país, não tem nada a ver com presidentes evangélicos corruptos de terceira categoria. Tem a ver, acima de tudo, com o que foi sempre, e desde sempre, aquele seu enorme fascínio pela figura inalcançável de Conde Drácula corporizada em Vladimir Putin. Se houve algum sentimento que Trump nunca disfarçou, desde o princípio da sua campanha eleitoral, foi o sentimento do menino pequeno, imediatamente antes de começarem as aulas, que quer desesperadamente vir a ser o melhor amigo do aluno mais cool lá da escola, aquele puto que manda em tudo e em todos, que aterroriza os professores, os pais, e a direcção, e que se chama Vladimir Putin.

    A bem da frutificação dessa amizade, que ao fim de quatro anos nunca chegou a dar qualquer espécie de fruto, Trump deixou a guarda avançada de Putin invadir os computadores americanos de forma nunca antes vista, por forma a manipular dados, falsificar estatísticas, difundir notícias falsas, e passar para o exterior uma imagem lamentável do soi-disantPaís Mais Poderoso do Mundo”. As alamedas que se abriram nessa altura continuam abertas, pelo que os Estados Unidos continuam expostos ao pior que há; mas ao menos agora os americanos sabem com o que é que estão a ter que viver e contam com isso todos os dias. É um grande rombo, mas ninguém pode acusar os americanos de não serem flexíveis.

    Silhouette of Statue Near Trump Building at Daytime

    São tão flexíveis que, entre escolher a presença desagradável de Hillary[6] e a loucura levada ao rubro de Trump, os habitantes de todos os trailer parks[7] apinhados de white trash[8], completamente fartos de nunca terem ninguém que falasse por eles, reconheceram “um dos nossos”, compareceram em peso nas urnas, e votaram em Trump.

    Mas atenção, que só lhe deram quatro anos – à experiência.

    Durante o período de experiência verificaram que o indivíduo não queria saber deles para nada, não podia ser mais insultuoso para com as mulheres esquecendo-se de que existiam mais mulheres do que homens no seu eleitorado, estava casado com uma modelo de sotaque balcânico que lhe deitava olhares de puro ódio, e, tanto quanto se percebia, o que realmente lhe importava naquela presidência era poder exibir-se a comer BigMacs com talheres de prata no seu jacto privado. Como é que um gajo vai MAKE AMERICA GREAT AGAIN[9] se não tem planos e só diz disparates?

    Motherfucker.

    Ao fim de quatro anos, perante todos os estragos do gajo, voltaram a passar a bola aos democratas e elegeram Joe Biden, que por seu turno escolheu Kamala Harris, uma mulher que é mestiça[10] e isso vê-se bem, para vice-presidente.

    Vocês podem nunca mais ter ouvido falar destes dois, mas é por todas as razões certas. É porque Biden, de facto, não gosta de gastar energias desnecessariamente, e fala baixo tanto quanto lhe é possível. Se lhe tem sido possível, so much the better[11]. É um democrata sólido e um político profissional com a vida inteira dedicada à causa. Os americanos não precisam de partilhar as convicções dele para classificarem a sua prestação enquanto excelente.

    a red hat that reads make america great again

    Toda a gente sabe que, em democracia, é muito difícil fazermos seja o que for exactamente como Joe Biden tem feito: de forma excelente.

    E, em democracia, isto da excelência mede-se mesmo ao nível traiçoeiro do preso por ter cão e preso por não ter. A maioria absoluta do Partido Socialista de António Costa, e a maneira como as suas hienas têm vindo a devorar os cadáveres que as águias de cabeça branca e os leões de Sofala[12] deixam atrás de si, recorda-nos, todos os dias, que é quase impossível um partido sentar-se no poder com uma maioria absoluta e não resvalar tão depressa quanto possível para o abuso desavergonhado do poder[13].

    Por o outro lado, os confins estreitos da organização política americana, inventados há dois séculos pelos Founding Fathers para impedir todo e qualquer abuso de poder na Pátria da Livre Iniciativa, complicam a vida dos políticos até os deixarem atados de pés e mãos. O Governo está dividido entre dois órgãos separados, o Senado e a Câmara de Representantes, e ambos precisam de, simultaneamente, satisfazer o seu eleitorado e dar satisfações ao Presidente. Neste momento, o Senado está sob um controlo mínimo dos democratas, enquanto que a câmara dos representantes está sob um controlo mínimo dos republicanos. E isto quer dizer que ambas as facções têm que ser capazes de negociar compromissos uma com a outra antes de entrarem sequer em qualquer género de negociação com o Presidente.

    Isto foi tudo desenhado friamente a régua e esquadro para proteger a democracia e estimular a maturidade daqueles que a representam perante o povo americano, e muitos parabéns. Com maturidade de ambos os lados, seria um belíssimo conceito.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    O drama é que estamos a viver num Mundo em que, já de si, a maturidade não existe em lado nenhum do Planeta porque as pessoas a deixaram todas em casa, muito bem escondida por detrás da internet. E, entre os republicanos americanos, a maturidade deixou de existir desde que o white trash pôs Donald Trump no poder e exigiu – aos berros, com chapéus de Daniel Boone, e de armas na mão – que ninguém tentasse, nunca mais, mandar nele ou exigir-lhe o pagamento de impostos, ou tirar-lhe a carta de condução por violação repetida e furiosa do limite de velocidade. Estas pessoas não exigem muito mais porque nunca estudaram e não pensam assim tanto como isso, mas são extremamente raivosas em relação àquilo que exigem. Vim para esta cidadezinha criar os meus filhos, portanto – quem é que falsificou as eleições, para de repente o presidente da Câmara ser negro, quando nós já dissemos tantas vezes que não queremos cá negros?

    Adenda: nem negros em particular nem estrangeiros em geral, estão a ouvir-nos, hey, DC? Mais uma pessoa morena com um sotaque esquisito e eu puxo da minha Beretta. Sou mãe solteira de quatro filhos loiros, e todos eles vêm treinar comigo à carreira de tiro aos sábados de manhã. A Ruth só tem cinco anos? E então? Sabe abrir as pernas para se equilibrar melhor, agarrar na Magnum 38[14] com as duas mãos para não disparar para cima com o coice, e acerta nos alvos tão bem como os irmãos mais velhos. Temos que estar preparados. Holy shit, a América não é dos estrangeiros. Take a good look at us, you stranger. Somos o artigo genuíno. O say does that star-spangled banner still wave[15]

    Depois de tudo isto, e com esta base eleitoral toda ainda aos berros, os republicanos não têm grande escolha. Podem não ter nada a ver com aquilo, mas não podem ignorar que aquilo existe. Podem perder todo o seu eleitorado de um dia para o outro se escolherem olhar para o outro lado e seguir em frente como dantes, porque a fragilidade da direita americana, depois de chegar a este ponto, nunca mais desceu deste ponto – e chama-se a isto a Força da Inércia, e é uma Lei da Física, e nenhum mero mortal consegue modificar uma Lei tão abrangente como a Lei da Gravitação Universal[16]. Dá a ideia de que basta um toque e a Terra salta mesmo do seu eixo. Vive-se no medo, e as decisões de McCarthy durante esta última semana são o espelho perfeito disso mesmo. O que é que eu devo fazer para não ficar sem o poder?

    I voted #USelections2020

    É por isso que, quando Donald Trump diz aos seus fanáticos que bloqueiem a guerra na Ucrânia uma vez que tem por Putin uma idolatria sem limites[17], eles se atirem à tarefa com unhas e dentes e cheguem ao ponto de chamar “traidor” ao Presidente, até que a manutenção do financiamento à Ucrânia, já aprovada antes deste Cheque ao Rei, tenha que saltar fora até ao Thanksgiving para existir um qualquer orçamento que assegure a viabilidade dos Estados Unidos.

    Entretanto, Biden declarou, com todas as letras, que ia tratar com o financiamento à Ucrânia “separadamente”.

    Em última análise, o Presidente dos Estados Unidos tem sempre uma caneta de tinta permanente que lhe permite aprovar sozinho toda a legislação e orçamento que muito bem entender.

    E é verdade, pelo menos no que toca aos Estados Unidos a democracia é um jogo a doer.

    Consegue ser ainda mais violenta do que o Futebol Americano propriamente dito.

    E, de facto, não há grande coisa nesta triste história que tenha realmente a ver com a Ucrânia.

    Mas a história continua, uma vez que faltam aqui vários capítulos.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A estatística ainda não mudou desde que eu fui trabalhar no meu doutoramento para Buffalo, NY, em 1989: só 10% dos americanos possuem passaportes.

    [2] Ainda alguém se lembra do filme RAMBO IV, o último da série RAMBO? Passa-se no Afeganistão, onde os maus estão escondidos algures entre os ocupantes soviéticos. Depois de uma quantidade sedativa de cenas intermináveis de porrada, e de alguns beijos trocados com a heroína local, o filme acaba com Silvester Stallone a galopar sem sela no meio da tribo afegã com quem tem lutado, enquanto um lápis mágico vai escrevendo sobre a imagem, a tinta dourada, “a equipa de RAMBO IV agradece e encoraja o corajoso povo afegão que continua a lutar pela sua liberdade face ao invasor soviético.” QUE VERGONHA, não é? Mas é a História. Como está sempre a repetir-se, torna-se frequentemente uma grande vergonha.

    [3] Eu estava lá a viver nessa altura, e aqueles primeiros dias depois de aparecerem na televisão as primeiras imagens de Guantánamo são inesquecíveis. As pessoas mal olhavam umas para as outras na rua. Os americanos têm-se em tão alta estima que não suportaram ver-se a torturar um único perigoso talibã que fosse. Transformaram logo a palavra “tortura” nas duas palavras “interrogatório intensivo.” Ficaram com a consciência tão tranquila que ainda hoje me pedem, se acham que estou a fazer-lhes demasiadas perguntas, “oh, Clarinha, please, stop waterboarding me!” Claro que o Peter, do FAMILY GUY, já interrogou intensivamente o Brian através de waterboarding. Estavam à espera de quê? Não há mais ninguém como eles, em matéria de golpe de rins.

    [4] EU NÃO SEI, nem ninguém sabe. Donald Trump está a ser julgado em 34 processos-crime diferentes movidos por muitos tribunais diferentes; e, mesmo nos Estados Unidos, a Justiça não pode deixar de ser minimamente lenta para ser maioritariamente fiável. É só que já toda a gente está traumatizada e começa a ver corrupções em toda a parte – e, à custa destes processos, o senhor tem agarrado no microfone a bem dizer em todos os dias úteis do último ano.

    [5]Ora, ora! Se querem que eu proteja a Amazónia, então paguem-me para isso!” Poucas vezes ouvi uma coisa assim tão boçal e assustadora. E atenção, que eu sei o que digo. Claro que me lembro do Dr. Salazar, mas francamente. Salazar, ao menos, não era boçal – e era um ditador católico contrário ao Vaticano II, a braços com uma guerra colonial travada já fora de tempo, portanto podia ser o que muito bem lhe apetecesse sem incorrer em riscos tão estúpidos como o de perder eleições.

    [6] Mandar a Hillary Clinton para a frente depois de já ter perdido contra um negro que ninguém conhecia e que se chamava Barak Obama e isto nem sequer é um nome normal, ainda por cima numas eleições de solução tão dramática como estas, deve ter sido o maior tiro no pé alguma vez registado nos anais da democracia americana. O pessoal tem várias óptimas razões para não gostar dela. Eu também não gosto. Hei de falar mais sobre o assunto quando vier ao caso.

    [7] Parques de estacionamento de casas em atrelados, conhecidas como Recreational Vehicules, que de recreational só têm o nome.

    [8] Pessoas brancas que são autêntico lixo. Caracteristicamente gordas, mal vestidas, de cabelo oleoso e com a pele maltratada, sempre aos berros, sempre a beber cerveja, sempre a arrotar, e sempre a fumar, num país onde já mais ninguém fuma. A Kim Basinger fez o papel de uma destas pessoas no filme biográfico 8 MILE, que conta a história da subida ao estrelato do Eminem. Sempre no seu trailer a cortar cupons de desconto dos jornais, sempre a calar-se enquanto o namorado manda vir, sempre a beber cerveja, veste a pele de mãe do Eminem. ALÔ? A KIM BASINGER? A fazer de white trash? E depois quem é que explicava aos meus filhos porque é que mais de metade das rimas do Eminem são a dizer mal da mãezinha?

    [9]FAZER A AMÉRICA GRANDE OUTRA VEZ”, era o slogan da primeira corrida de Trump para a Casa Branca. Comentário dos galinheiros, onde o mexilhão é o mesmo em todo o mundo: “Ora ora, à primeira qualquer um cai.”

    [10] Tretas. “Mestiça” digo eu, tendo em conta a sua ascendência maioritariamente caribenha. Os americanos, muito mais directos, limitam-se a dizer que ela é “preta.”

    [11] Qualquer coisa como “pois então ainda bem,” mas em inglês a expressão é bastante mais enfática.

    [12] Sobre a escolha criteriosa destas águias e destes leões: para cada uma das raças, são os maiores do mundo.

    [13] José Sócrates e os seus necrófagos também nos deixaram uma memória extremamente amarga disto mesmo, mas ao menos, no tempo de Sócrates, tanto o chefe como os boys and girls se preocupavam mais com a questão de esconder o jogo. Agora mostram-nos tudo. E ainda ficam a rir depois de desligadas as câmaras.

    [14] Puro romantismo. Era a arma do Dirty Harry.

    [15] Início da última quadra do hino nacional dos Estados Unidos.

    [16] Por alguma razão raciocinou Isaac Newton que a Força da Gravidade era a face visível de Deus. E todo o Século das Luzes concordou com ele, numa euforia de optismo sem precedentes na civilização ocidental.

    [17] Claro, ou é por isto mesmo – o que já seria suficientemente grave – ou é porque Putin está de posse de documentação relativa a Donald Trump de tal forma incriminatória de Crimes Contra a Pátria, e outros, que faz dele o que muito bem lhe apetece – o que, a confirmar-se, seria deveras horrível. Em qualquer uma das duas versões da narrativa, Trump já é bastante pior do que Richard Nixon, uma vez que já é culpado de tirar todo o seu país do sério. E o seu país é muito grande e muito poderoso, mas não é a guerra na Ucrânia.

  • Maria Alice recebe visitas: Estremoz nem as deixa entrar

    Maria Alice recebe visitas: Estremoz nem as deixa entrar

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Outubro de 2023

    Ainda com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    O DERRADEIRO EPISÓDIO DE UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Porque enfim, fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora, mas a verdade é que não era uma amante chique; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete… que diabo! Era um trambolho!”

    Eça de Queirós

    O PRIMO BASÍLIO

    1878


    Entretanto, muito longe das emoções funéreas que sacudiram o País Profundo, Alexandre Noronha esteve dois meses em Paris que fizeram dele um homem novo. Passou-os, por via de financiamentos mal explicados[1], em animada confraternização com Marine LePen. Estudaram juntos as estratégias publicitárias que podem realmente funcionar para que a extrema-direita consiga chegar ao poder com uma maioria digna desse nome[2]. De vez em quando, como que por acaso, André Ventura passa pelo Centro de Trabalho do RASSEMBLEMENT NATIONAL[3] para se obterem imagens que mostrarão como estes dois grandes partidos, representantes dos insatisfeitos que querem mudar qualquer coisa mas não querem nem saber como é que se muda o quê, têm comportamentos e valores semelhantes, sem que nenhum deles precise de fazer qualquer esforço nesse sentido[4]. Passam os três vários dias e noites juntos, cimentando as raízes de uma verdadeira amizade[5]. Como o tempo requerido por este tipo de operações é indefinido por natureza, ninguém sabe quando regressarão a Lisboa, nem no Partido nem lá em casa. Quando, finalmente, os dois homens se instalam confortavelmente na Executiva para a viagem de regresso a Lisboa, Alexandre considera as vantagens desta indefinição e tem uma inspiração súbita.


    Ó Ventura

    Hm?

    Já estavas a dormir?

    Eu sou como Deus, palerma. Não durmo.

    Mas sentes-te tão estafado como eu?

    É possível.

    E saturado de tanta alta política?

    Isso podes crer.

    Então faço-te uma proposta indecente?”

    Força.

    Estás a ver aquela minha amante incrível que vive em Estremoz, a Bloody Mary?

    Só me falta mesmo é vê-la em pessoa, homem. Passaste este tempo todo a falar dela. Até contaste algumas histórias picantezitas à Marine, não te lembras? Uma imprudência, eu bem te avisei, porque em princípio devemos defender o matrimónio.”

    “Olha que história, ela também só tem de defender o matrimónio em princípio. É muito diferente de defender seja o que for em actos, e mesmo em omissões”

    “Está bem, lá a missa a metade tu sabes. Agora, com a Marine… grande mulher, heh? Uma verdadeira figura de estilo… com a Marine, dizia eu, por acaso tivemos sorte. Mas não te esqueças que foi por acaso.”

    “Olha olha, não foste tu que defendeste publicamente o casamento gay?”

    “Não me lixes, eu apenas disse que ser homossexual não desvaloriza ninguém em nada, incluindo a capacidade de combate político, e que havia gays talvez até entre os nossos dirigentes e certamente entre os nossos apoiantes. E mais acrescentei que queria que tudo continuasse a ser assim, e que, se tivesse um filho homossexual, respeitaria sempre isso.”

    grayscale photo of three person sitting inside airplane

    “Ah pois. E era isso mesmo é que eu queria ver.”

    “Pois, mas tudo isso era, mesmo, uma questão de princípios. A Comunicação Social é que fez um circo excessivo com tudo o que eu disse, que aliás é o que eles fazem sempre. E que façam, porque somos sempre nós quem ganha com isso.”

    “Não é só a Marine. A tua retórica também há de ser lembrada nos manuais de figuras de estilo.”

    “Há maneiras bastante piores de se ser lembrado.”

    “Pois é, a tua lata também não será esquecida.”

     “Olha meu filho, e a tua proposta indecente, já agora? Se não queres que seja esquecida, explicas-me de que consta?”

    “Ah, então ouve-me esta com atenção. Não temos ninguém à nossa espera, certo?”

    “Certo. Em princípio, pelo menos.”

    “Então vamos tirar partido disso.”

    “Que género de partido, se ninguém consegue sequer perceber o que é que quer o CHEGA?

    “Homem, desliga. A minha proposta é mesmo essa, desligarmos. Assim que chegarmos alugamos um belo Volvo preto, dos automáticos, logo ali na Hertz, que eu ofereço, ouviste? Tenho um cartão de descontos. Arrumamos todas as nossas coisas na caixa de forma a não serem vistas de todo. A seguir, despimos os blasers, enrolamos as mangas das camisas, e afrouxamos o nó da gravata, porque seguimos logo para Estremoz. Hm? Que te parece? Hás de ver bem a lasca que eu ando a comer, e de caminho apresento-te as tais estilistas de Badajoz com quem andei a tomar banho todo nu nas piscinas das pedreiras.”

    “Mas essa lasca que tu andas a comer não é casada?”

    “Pois, coitada, é casada com uma corrente de ar. Um reles indivíduo de secretaria que foi para a Europa por um ano inteiro fazer uma Comissão de Serviço de tradução simultânea. Só lá está uma sopeira velha, tão indignada com o comportamento do marido que se pôs incondicionalmente do lado da mulher.”

    “Então e as espanholas? Nem um namorado, nem coisa nenhuma?”

    “Nada que eu tenha visto, pelo menos deste lado da fronteira. E eu não disse nada sobre irmos a Badajoz.”

    “Mas são duas.”

    two birds are standing on top of a nest

    “Homem de sorte. Podes ficar só com uma, ou então curtirem todos juntos! Que barbaridade!, estas espanholas quando soltam as feras e caem na dança! E depois havemos de parar todos juntos no caminho, no sopé do Castelo, porque o dono desse tasco é um grande simpatizante nosso chamado Bruno[6], que faz as melhores bifanas deste mundo. Mas o melhor no Bruno, melhor até que as bifanas, ainda são os passarinhos na chapa… assim, naquela esplanada enorme, com aquela vista das muralhas ao fim do dia… vêm para a mesa com batata frita, salada, pickles, vinho verde gelado daquele bem seco… não há lá nenhum requinte, mas aqueles passarinhos… com umas fatias de queijos do cardo duras como cornos… e umas azeitonas…[7]

    Pára. Pára, pelo amor de Deus. Vais comer isso tudo, e depois ainda vais comer a tua Maria Alice, que tu não páras de dizer que é uma verdadeira serpente na cama, e a seguir vais o quê, vais achar que não houve nada que justificasse o teu AVC?

    Então, amigo. Dramático e rústico, como na Assembleia? Eu não sou a Assembleia, boa? Eu, por mim, devoro a rapariga assim que ela me aparecer no corredor, com aquelas suas roupas transparentes e o cabelo solto ao vento[8]. Estremoz é muito ventoso, já te disse[9]?”

    Então e eu? Vou para a retrete ler o POLE POSITION[10] e babar-me todo com aquelas garotas em fio dental que estão sentadas em cima dos novos Fórmula Um?”

    Não, que eu sou solidário. Exponho o teu caso ao Bruno, e, ao fim de dez minutos, ele já vem apresentar-te las hermanitas de sangre. Queres mais?

    Não,” responde André Ventura. “Mas quero é isso tudo já[11], pela tua rica saúde.”

    Algumas horas mais tarde, a casa de Maria Alice aparece ao fundo das duas fileiras frondosas do laranjal que se estende ao longo da rua, linda, majestosa, frutuosa como a melhor das promessas. O carro da beldade escaldante de que Ventura tanto ouviu falar não se encontra mal estacionado em cima do passeio fronteiro ao edifício, o que parece indicar que foi devidamente guardado na garagem – o que, por seu turno, sugere desde logo que a grande amante está mesmo em casa. Animados e expectantes, os dois amigos já vão quase a chegar à entrada quando Josefa lhes aparece pela frente. E, desta vez, não traz minimamente um sorriso deliciado no rosto. Muito pelo contrário, barra-lhes a passagem de enxada na mão, furiosa, indignada e justiceira, saída num rompante colérico da porta da cozinha, que bate atrás de si com estrondo.

    orange tree under sunny sky

    Sai-me daqui, ordinário!”, grita ela, fora de si, para Alexandre Noronha. “E de futuro pára de tratar as mulheres todas como se fossem umas putas, que ao menos às putas vocês têm de pagar!

    Ó minha querida Josefa, Santo Deus, porque é que estás a tratar-me assim?”” pergunta Alexandre Noronha, estarrecido tanto por aqueles modos inusitados da velha senhora como por toda a cena decorrer mesmo à frente do seu líder espiritual. “E a Maria Alice? Onde está a Maria Alice? Assim que aterrámos em Lisboa viemos a correr ter com a Maria Alice.”

    Então olha,” responde a velha serviçal, com o rosto rubro de cólera, roída de saudade e de remorso, e ainda amargurada com o desaparecimento súbito dos vinte mil paus que ia embolsar graças à sua manobra brilhante de chantagem. “Vai a correr ter com o Diabo que Te Carregue, que a nossa querida menina já foi para o Céu, onde vomecê, ó Noronha, vomecê nunca há de entrar, sua besta. Foi vomecê quem lhe deu cabo do coração. Tanto amor, tanto amor, e depois chegas cá e baldas-te que nem uma porra de um paneleiro de um cabresto[12].”

    “Então afinal tu não andaste a comer a gaja?”, sussurra André Ventura, interdito.

    “A velhota é doida,” sussurra Alexandre Noronha de volta. “Deixa-me falar com ela. Josefa, ó Josefa, sabes, eu digo-te a verdade, é que eu estava muito nervoso com o discurso que ia bombar a seguir num encontro do CHEGA aqui perto…”

    “Olha lá, também não era assim tão perto como isso,” corrige André Ventura em mais um sussurro, sentindo-se agora deveras confuso.

    Não houve nenhum encontro do CHEGA aqui perto naquela altura, ó seu tratante”, atalha Josefa, confirmando sem sequer dar por isso o murmúrio de Ventura. “E, mesmo que houvesse, a Menina nunca iria lá contigo. Aquela mulher não estava à venda, seu maricas. Não estava nem podia estar, porque não tinha preço. E tu, sim tu, foste tu que a mataste, quando fugiste daqui sem chegares sequer a entrar em casa. Nem um duche tomaste, ó procalhão[13]. Chinga tu madre, perro desgraciado[14]!

    Mas então, espera aí. Tu bazaste sem comer a gaja, foi?”, volta a sussurrar André Ventura.

    A velha não bate bem, já te disse. Sei lá que história é esta. Espera aí que eu vou falar-lhe ao sentimento. Josefa, ó Josefa… Josefa, pelo amor de Deus, entende-me! Eu queria levar a Maria Alice ao nosso Encontro sem ela saber para onde íamos, queria que ela sentisse imenso orgulho em mim. Mas depois, quando já estávamos na praia, eu quanto mais pensava nisso tudo mais me enervava…”

    “Mas se dessa vez bazaste sem chegar a comê-la como é que depois andaste a comê-la?”, insiste Ventura, ávido de esclarecimentos[15].

     “Ainda por cima,” continua Noronha, firme no seu posto, “mesmo em cima da hora, a minha mulher decide que vai mandar a nossa filha arranjar-se como uma pessoa normal, e que vão as duas ter comigo à festa! Diz lá, tu não fugias, se tudo isto se passasse contigo?”

    “Mas a Gi sempre esteve no alinhamento para falar nesse Encontro, não foi aquele sobre tirar os ovários, que…?”, recomeça a murmurar André Ventura, ainda honestamente incapaz perceber ao certo o que é que se passa[16]. E, virando-se para a pequena multidão que se vai juntando para gozar bem o espectáculo, ainda acrescenta,

    “Como talvez saibam, eu, por mim, sempre disse que, eticamente, compreendo e sou contra o aborto, mas que não vou propor a sua criminalização, porque isso não funciona, e não resolve nada. Compreendo que a maioria no partido ache que o aborto deva ser crime, assim como o Alexandre e a Gi acham, por exemplo. Mas, pessoalmente, essa postura choca-me enquanto jurista e político.”

    Nem consegue palestrar todas  as declarações que tem a fazer até ao fim, porque assim que Josefa escuta as palavras “tu e a Gi”, seguidamente consubstanciadas por um “o Alexandre e a Gi” destinado à geral, explode numa fúria ainda maior, que a faz agitar ainda mais a enxada mesmo em frente do rubor que alastra nas faces de Alexandre Noronha.

    green tree on brown field under white clouds and blue sky during daytime

    “Tu e Gi! TU E A GI! Com que então! E entretanto dizias à Menina que eras divorciado, ou se calhar não dizias, grande invertido?”

    “Íamos divorciar-nos, Josefa, por favor, acredita em mim…”

    “Mas tu e a Gi não foram falar juntos àquele Encontro das Famílias, para se apresentarem oficialmente contra o divór…”

    “Aaah!”, grita de súbito André Ventura ao mesmo tempo que bate com a mão na testa, extremamente aliviado por ter, finalmente, compreendido o estranho enredo que se desenrolava à sua frente. E, já sem se preocupar sequer com a minudência de baixar a voz, mede Alexandre Noronha de alto a baixo como se estivesse a vê-lo pela primeira vez, dá-lhe uma palmada nas costas, e felicita-o com entusiasmo.

    “Grande tanguista, pá. Bravo. Bravo! Olha que nem eu sei se era capaz.”

    “Não sou tanguista!”, protesta Alexandre, que se sente cada vez mais compenetrado do papel que atribuiu a si próprio, assim como se sente cada vez mais desconfortável com a proximidade da enxada de Josefa. “Fui fraco, Josefa, fui muito fraco, sim, confesso –[17] mas a minha fraqueza não faz de mim um tanguista. Paniquei e fugi[18]. Pronto. Fugi de Estremoz para Faro, e depois de Faro para Paris. E, por sorte, aqui o meu grande amigo André Ventura estava no mesmo avião que eu[19], de maneira que assim que chegámos ele apresentou-me à Menina Le Pen[20], e olha, a verdade é que ao fim de quinze dias ela até já me falava em casamento, e por isso eu enquanto lá estava não podia…”

    Cala-te, cigano, e a tua mulher que te ature! A Menina a sonhar com o vosso dia na praia, e tu achavas o quê, achavas mesmo que ias arrastá-la para festivais populistas? Cigano! Grande cigano! Sai daqui, cigano!”

    “Festivais populistas” não é de tradução fácil para toda a gente. Mas, ao chamar cigano a um dirigente do CHEGA, Josefa atinge tais píncaros de inspiração que a assistência, cada vez mais numerosa, grita, ri, bate palmas, e, ainda insatisfeita, incita a velha senhora a subir mais a fasquia com expressões de encorajamento tais como o várias vezes repetido,

    Ah grande Josefa! Tu fazes oitos[21]!”,

    Ao mesmo tempo, e com a participação da PSP que entretanto alguém chamou à cena dos acontecimentos, inicia-se um debate inconclusivo sobre se aquele bacano que está ali ao lado do panasca é ou não é o André Ventura propriamente dito. Não é por maldade, e muito menos por ignorância – é mesmo que esse senhor é a cara chapada de largas centenas de outros senhores, todos eles vestidos da mesma forma para aumentar a confusão.

    Perante todas estas circunstâncias totalmente inesperadas, mas potencialmente hostis, o André Ventura propriamente dito percebe logo, e antes de mais nada, que se arrisca a ser chamado à esquadra para prestar declarações. Toma, portanto, as suas medidas preventivas habituais. Tira do bolso de trás das calças dois comprimidos de Diazepam de 10mg, que põe a derreter debaixo da língua[22]. A rapidez do gesto fala por si. É evidente que, depois de ter aprendido o truque com o Ricardo Salgado em pessoa[23], o líder do CHEGA já passou muitos anos a virar frangos no domínio de exorcizar pânicos em particular e controlar emoções adversas em geral. Alexandre Noronha, que registou a manobra pelo canto do olho, percebe logo a que é que aqueles comprimidos se destinam, agarra velozmente noutros dois, e engole-os com tanta pressa que quase se engasga[24]. Entretanto Josefa continua a bradar em altas vozes, atraindo cada vez mais vizinhança.

    Desaparece, assassino. Agarra no teu amigo, voltem por donde vieram, e nunca mais se atrevam a cruzar sequer o portão da minha horta. Esta casa está amaldiçoada, toda a gente anda de luto, ninguém come nem dorme, o cãozinho da Menina uiva todo o dia e toda a noite, e na Lua Cheia as teclas do computador dela mexem-se sozinhas, porque o seu pobre espírito ainda está a tentar escrever-te mais uma carta, maldito excomungado que hás de arder no Inferno para toda a Eternidade.  JÚNIOR! Ó JÚNIOR, vem cá, anda. Anda, que temos aqui dois melgas daqueles mesmo bons para tu pores na rua.

    Bem treinado e sempre obediente, e sobretudo muito satisfeito por ter alguma coisa vistosa para fazer[25], Júnior entra subitamente em cena com dois ou três saltos pneumáticos, pára, deixa pender a língua entre os dentes destituídos de simpatia, e começa a rosnar num tom puxado do fundo de uma caverna assustadora. Por fim eriça o ridgeback, agita a cauda rente ao chão exactamente como um leão faria, deixa pingar as primeiras gotas de saliva, e crava os olhos nos dois visitantes. A seguir começa a aproximar-se lentamente, com pequenos passos felinos.

    Um segundo mais tarde os dois amigos já estão no carro, a fazer marcha-atrás para sair dali depressa.

    Santo Deus,” suspira André Ventura, tentando recompôr a roupa, que ficou toda em desalinho. “Mas que mulherão, pá. O cão é capaz de ser jogo a mais, mas a velha aproveita-se já. Aquela é que ficava bem na segurança dos nossos comícios. Ou podíamos usá-la para um debate. Com voz do povo e tudo. Não achas?

    Hm,” responde Alexandre, de olhos cravados na estrada.

    Nessa altura Ventura contempla-o, compreensivo.

    Então… pelos vistos, agora… eh pá, de modo que estás sem mulher[26], não é?

    Noronha até puxa o travão de mão[27], e acto contínuo deixa o carro ir-se abaixo, para poder gesticular mais e dar melhor vazão à sua fúria justiceira.

    Pois estou,” brada ele aos quatro ventos. “Estou completamente sem mulher, só me lembrei agora que as estilistas espanholas são menores de idade, e apetece-me fazer tudo menos ir para casa. Mas que ferro, menino, que ferro. Deixei as bases cobertas por mais uma semana para conseguir espairecer. E agora? Se vinha directamente de Paris, ao menos trazia a Alphonsine.[28]

    Fica momentaneamente em silêncio, dá dois ou três murros no volante, e ainda repete mais uma vez, com a entoação de quem põe o ponto final numa história,

    Que ferro, menino.”

    E foram tomar xerez à Taverna Inglesa[29].


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9, o Episódio 10 e o Episódio 11 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] É quase uma redundância, mas vale pelo seu alerta pedagógico. Vivemos num tempo em que quase todos os financiamentos tendem a ser mal explicados.

    [2] Para seguidamente abolir o direito de voto, como pareceria evidente a quem porventura pensasse nisso.

    [3] Ai não sabiam? Pois fiquem a saber. Como parte da “des-demonização da Frente Nacional“, com o objectivo de suavizar a sua imagem, a herdeira da dinastia Le Pen mudou o nome do partido de Front National para Rassemblement National. Até que ponto Alexandre Noronha foi influente nestas precauções é matéria ainda hoje imperscrutável.

    [4] Não esqueçamos que foi André Ventura quem defendeu, lapidarmente, ser a orientação do CHEGA “uma lógica antissistema, que é uma classificação mais adequada do que extrema-direita, extrema-esquerda, esquerda, direita”.

    [5] Que é como quem diz.

    [6] Limpe-se finalmente a honra do Bruno, que o homem não é simpatizante do CHEGA coisíssima nenhuma. Segredava histórias desconcertantes ao ouvido da Maria Alice apenas para a picar enquanto dançavam juntos, e ela deixava-se picar com todo o gosto. O telemóvel dele até faz soar a GRÂNDOLA sempre que toca. E toca bastante. Como já vimos anteriormente, o Bruno é uma pessoa muito solicitada.

    [7] Claro que Alexandre Noronha não sabe nada disto por experiência pessoal. Sabe o que Maria Alice lhe descreveu com grande felicidade nas suas cartas de amor, e tanto basta.

    [8] Mera conversa de homem. Não tem absolutamente nada a ver com a forma como Noronha fugiu da Praia dos Montejuntos, disse que tinha que ir para Lisboa, e desapareceu numa grande nuvem de poeira. Imaginem que, em vez de se remeter ao silêncio, ele dizia para a amante que ainda não o era: “E agora, querida, espera por mim até às cinco da manhã porque eu vou para a praia fazer o grande discurso da festa-comício do CHEGA, onde a minha mulher e a minha filha se juntarão a mim, portanto não posso levar-te.” Enfim, esta versão podia até ser verdadeira, mas claro que era muitíssimo mais difícil de engolir. Para os dois.

    [9] Até a grande ventania de Estremoz é matéria que Noronha só conhece por ouvir-dizer, dado que no dia de má memória em que foi e veio não corria uma única aragem sob o céu escaldante do mês de Agosto, tal como é próprio do dito mês.

    [10] Tanto quanto se sabe, esta revista não existe a não ser na imaginação de André Ventura. E não é nada má ideia, esta das miúdas em fato de banho todas pausadas por cima do dernier cri da Fórmula Um.

    [11] Concordância não propositada. Claro que este personagem ignora os slogans mais imorredoiros do Mai 68. Aliás, Mai 68? Que merda é essa, Mai 68? Eu já nasci depois da morte do Salazar, se é isso que querem saber.

    [12] Qualquer coisa “de um cabresto”: partícula enfática regional de simbolismo e métrica extremamente úteis no que toca a trocar galhardetes.

    [13] Ao contrário de Bruno e Maria Alice nas suas animadas brincadeiras de antanho, Josefa faz uso do termo procalhão sem intentar surtir qualquer efeito cómico. Intentar foi bem escolhido, ou foi impressão minha?

    [14] Já vimos que o amor nos oferece dotes de oratória que de outra forma não teríamos. Além disso, numa cidade quase encostada a Badajoz, é normal que toda a gente fale espanhol, sobretudo no que se refere a insultos e palavrões.

    [15] Note-se que esclarecimentos deste teor podem sempre vir a ser de grande utilidade na vida de um gajo. E nunca se sabe quando, portanto convém, de facto, pedir imediatamente o esclarecimento em questão.

    [16] Não é por mal. É mesmo por limitação.

    [17] Travessão aqui atribuído, após uma longa ausência, ao seu legítimo utente.

    [18] Já alguém conheceu algum homem que, mais cedo ou mais tarde, não tenha recorrido à expressão “paniquei” – como se isso justificasse alguma coisa? Este foi um bom travessão.

    [19] André Ventura começa, instintivamente, a dizer que sim com a cabeça.

    [20] André Ventura estuda esta narrativa surpreendente sempre a dizer que sim com a cabeça, maravilhado.

    [21] “TU FAZES OITOS”: forma sintética da expressão “fazer oitos com pernas de noves”, destinada a ter  maior acutilância, no sentido de encorajar as loucuras de quem está a fazer os oitos em causa. A mim disseram-me isto pela primeira vez quando, aos dezoito anos acabadinhos de fazer, logicamente ainda sem carta, guiei um camião de uma ponta à outra de Aljustrel e desta forma expus diversos inocentes a sérios perigos. Os meus amigos da minha idade, que me tinham incitado a guiar o dito camião, deliraram com o espectáculo. Repisando o que já se discutiu antes, quando não há nada mais interessante para fazer…

    [22] Estes fármacos controladores do pânico são geralmente inseridos pelos poderosos no bolso interior do blaser, mas recorde-se que os dois amigos optaram por comparecer em Estremoz sem blaser, e com as mangas das camisas enroladas.

    [23] O recurso do Banqueiro ao truque do Diazepan, ou do Alprazolan, conforme a medicação disponível lá em casa, já era vox populi entre os seus pares da Banca antes do fim do Milénio. Naquele tempo, pelo menos, andavam todos com dosagens maiores ou menores de XANAX, ou de VALIUM, ou mesmo de VITAN, dentro do bolso da camisa. Os genéricos ainda não existiam, pelo que o expediente se disfarçava com maior dificuldade. A repetição constante da prática, no entanto, costumava tornar a manobra virtualmente invisível. Esta invisibilidade pela repetição, pelo menos, ainda hoje se mantém.

    Apreciem bem as coisas que eu sei.

    [24] Ao contrário de André Ventura, este seu subalterno é um principiante.

    [25] Mudar de lado da casa de manhã para a tarde, procurando a sombra no Verão e o sol no Inverno, assim como jazer no corredor e por junto bater com a cauda no chão se alguém se aproxima, não são actividades vistosas. E muito menos para um Leão da Rodésia.

    [26] Parafraseando o final de O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.

    [27] Não estava nenhum Volvo preto automático disponível na Hertz do aeroporto.

    [28] Parafraseando a última frase de Basílio ao saber que Luisinha morreu, em O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queizoz.

    [29] Frase final deste folhetim e, originalmente, do romance O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.

  • Maria Alice desiste: Estremoz chora a sua falta

    Maria Alice desiste: Estremoz chora a sua falta

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Estamos nas Urgências do Hospital de Évora, onde uma jovem noviça solitária contempla, enlevada, a imagem quase sacra de serenidade que emana do rosto inconsciente de Maria Alice. E acrescente-se, desde já, que não é só esta noviça quem tem os olhos presos naquela doce visão. Quem quer que esteja na Sala de Espera das Urgências do Hospital de Évora pode olhar para Maria Alice todo o tempo que quiser, com toda a atenção que sentir, e seja por que razões for. Os bombeiros encostaram a maca à parede, registaram a entrada e os sintomas da bonequinha[1], bateram no ombro do Bruno à despedida, e o Chefe até lhe disse “bon courage”. E depois, cumprida a sua missão, foram salvar vidas para outro lado[2]. Maria Alice está de pulseira vermelha, mas isso parece não impressionar minimamente a burocracia que rege as Urgências. A sua respiração começou a ficar de tal forma entrecortada que Bruno teve que salvá-la duas vezes por boca-a-boca. Como neste momento já toda a gente viu demasiada televisão, os restantes doentes ali aquartelados à espera de vez, partem do princípio de que estão a ser figurantes inadvertidos de um reality show de hospitais, pelo que observam as manobras todas em silêncio, tentando apenas compor mentalmente o protesto com que aproveitarão para espernear contra a destruição do Serviço Nacional de Saúde quando aparecerem as câmaras, os microfones, os megafones, as marcas de take, e a miúda gira, muito mamalhuda, que costuma apresentar aquelas coisas. Mas, por muito que o tempo passe, a verdade é que nunca aparece ninguém.


    Quem finalmente parece ter registado a ocorrência, saindo da porta de um dos gabinetes mais ao fundo do corredor, é uma jovem médica que parece estar antes a sair de um sonho, de longos cabelos quase negros e muito lisos, lindíssima e cansadíssima, que indica com o queixo aos auxiliares de serviço qual é a maca que deve entrar pela sua porta, confirma se Bruno é mesmo o companheiro da paciente[3], depois do que o segura pelo cotovelo e o conduz, também ele, para dentro do gabinete. Este é um espaço  minúsculo, que fica imediatamente sobrelotado[4]. Uma das duas meninas que ali estão a estagiar corre a fechar a porta à chave, enquanto a outra consulta o relógio e indica à médica de sonho que são duas e trinta e cinco da manhã.

    A médica insere vários dados no seu PC.

    Bruno,” diz-lhe ela, carinhosamente. “Nada é disto é fácil, seja para quem for. No entanto, já percebi que o Bruno é um homem muito corajoso e sólido como um rochedo, portanto, por favor, ajude-nos a fazer tudo bem. Não teremos muito mais do que quinze minutos para registarmos a certidão de óbito da sua companheira.”

    Certidão de óbito.

    Agora é Bruno quem gagueja, treme, e se desfaz em suores frios. A estagiária mais roliça, muito bronzeada e com o cabelo cheio de tererés, com todo o ar de quem acaba de chegar de umas merecidas férias na Meia Praia, abraça-o por trás para lhe dar coragem. Sendo verdade que há alturas para tudo, Bruno nem sequer equaciona a possibilidade de engatá-la assim que a ocasião se proporcione[5].

    Mas ó doutora… A certidão de óbito… Isso não é só quando a pessoa morre?

    A sua companheira morreu ali no corredor, Bruno.”

    Mas ó doutora… Não pode ser… Uma rosa brava que não tem medo de nada e vende saúde… Doutora, por favor… a Maria Alice morreu de quê?”

    A médica linda nem hesita. As estagiárias confirmam tudo acenando com a cabeça. Nenhuma delas está, sequer, a protestar. Estão todas, apenas, completamente esgotadas. Esgotadas de não dormirem, esgotadas de não conseguirem sequer ir a casa, esgotadas de tentarem tudo o que está ao seu alcance para salvar as pessoas numa guerra de nervos em que a grande tendência é para perderem batalha atrás de batalha. Ontem foi um puto de  catorze anos com uma fractura exposta do fémur que já estava demasiado infectada para retaliar. Hoje é Maria Alice, que no entanto vendia saúde. Amanhã não sabem quem será nem como, mas já sabem que voltará a ser um destes desastres, que são completamente demolidores porque era muito fácil evitá-los.

    Doutora… por favor, ao menos explique-me o que foi que aconteceu. A Maria Alice… ela morreu de quê?”

    A Maria Alice morreu de estar demasiado tempo à espera, Bruno. Deixaram-na morrer, se quer que eu seja franca. Não há enfermarias, não há quartos, não há camas, as pessoas estão a fazer cirurgias com anestesia local deitadas em macas logo ali na Urgência, portanto sabe o que é que eu acho?

    As duas estagiariazinhas frescas e mimosas perfilam-se por trás da cadeira da médica, trocam um sorriso entre si, depois do que ambas sorriem ao Bruno, e a seguir dizem, muito bem coordenadas,

    A doutora Mafalda acha que a administração faz os possíveis para que todos os dias morra gente que está de pulseira vermelha na sala de espera, porque assim sempre se ganha mais espaço e se dispõe de mais equipamento.”

    Bruno sente-se a única pessoa normal num mundo de doidos.

    Foi exactamente isto o que aconteceu à outra Alice, a princezinha britânica do País das Maravilhas, a partir do momento em que caiu no buraco do coelho. É interessante verificarmos que um gajo espadaúdo das bifanas como o Bruno partilha aqui este mesmo sentimento, porque, em geral, quem está sempre a sentir-se a única pessoa normal num mundo de doidos são as mulheres, sobretudo quando ainda não conseguiram contar a outra mulher o que foi que lhes aconteceu. Os homens tendem antes a andar para aí a empatar o trânsito, a ocupar o espaço, e a gastar o Oxigénio, porque estão sempre a sentir-se como autênticos monarcas destronados. Sendo assim, a comparação que melhor se lhes aplica é com o que aconteceu ao Hamlet.

    red vehicle in timelapse photography

    Mas, neste momento, um homem como o Bruno até já está a começar a ver o sorriso perverso do Gato de Cheschire.

    Mas a doutora, desculpe, eu não sei –[6] mas não podia mesmo ter ido tratar dela ao corredor?”

    Mafalda encolhe os ombros, e sorri um sorriso triste.

    Olhe Bruno, e para que conste: ainda na semana passada fomos as três expulsas do corredor porque tentávamos fazer isso mesmo diante de toda a gente. Não há vontade política, entende? Não há vontade política para nada que não seja deixar morrer as pessoas e depois passar-lhes uma certidão de óbito toda maravilhosamente floreada. Compreende bem o que eu estou a tentar dizer-lhe? É que eu, neste momento, e por esta causa, até já estou disposta a dar a cara.”

    Ó filha,” pensa o cérebro rápido de Bruno, pelo meio do terrível desgosto que vai no seu coração. “Eu cá, se tivesse uma carinha laroca  como a tua, estava sempre disposto a dá-la que era um gosto.”

    Mafalda continua a sua explanação[7].

    É que teria sido muito fácil desinfectar a ferida e dar-lhe uma transfusão de sangue para irmos ganhando tempo, mas nós…”

    Roda os braços elegantes para mostrar a Bruno o equipamento velho, o pó sobre todos os papéis, a caliça a desfazer-se nas paredes, o som do caruncho na madeira – [8]e, finalmente, conclui,

    “… nós já quase não conseguimos atender ninguém. Fazemos turnos de dezoito horas, mas só recebemos metade do ordenado, porque sabe como é, não há nenhuma alocação planeada das verbas, não há nenhuma distribuição generalizada de custos e ganhos, não há… olhe, muitas vezes não há sangue, e nestes últimos dias nem sequer houve morfina. A sorte da sua companheira foi estar inconsciente, senão teria morrido com dores horríveis. Não chore, Bruno. Por favor, não chore. Eu vou consigo ao gabinete da Servilusa, para ter a certeza de que eles lhe oferecem condições verdadeiramente camaradas. Ai, Bruno, um homem tão bonito, com tantos músculos, tantas tatuagens, esse piercing que lhe fica a matar… Ande lá, homem, dê cá a mão e venha comigo.”

    lighted candles on black metal candle holder

    “Vou consigo o caraças, doutora, que a doutora é muito simpática e tal, mas o que eu mais quero é que a sua Servilusa vá morrer longe.”

    O cérebro de Bruno parece registar, por fim, que há realmente naquelas Urgências muita miúda gira à espera de ser engatada[9]. Ao mesmo tempo, dá também alguns sinais inquietantes de depreender que, pelo menos em teoria, a Doutora Mafalda recebe uma comissãozita da Servilusa por cada defunto que lhe passa para as mãos. E, talvez pior ainda, nota ele logo a seguir –[10] como é possível que uma agência funerária opere dentro do espaço físico de um hospital? Mas enfim, a pessoa não precisa de ter lido O CAPITAL com imensa atenção para saber que estes são os benefícios da Economia de Mercado[11] para com as Grandes Multinacionais. E, à semelhança de todos os outros portugueses, o nosso herói das bifanas já viu o exemplo da corrupção e do desvio de fundos manifestar-se vindo de cima vezes demais para ainda conseguir indignar-se. É portanto quase com apatia que, em vez de ir à Servilusa, aproveita o tempo que lhe resta para continuar a escutar a Doutora. Que se lixe, para todos os efeitos a miúda é realmente bonita, além de que é boa como o milho, dentro daquela aparência muito enganosa de tábua de engomar que tanto o entusiasmava em Maria Alice.

    Três dias mais tarde, os sinos da Igreja de São Francisco dobram a Finados durante toda a manhã. O céu muito cinzento parece prometer chuva[12]. A cidade enlutada comparece em peso à missa de corpo presente da mulher de António José, enquanto o viúvo emborca copos atrás de copos das traçadinhas que o Crispim que lhe vai preparando, e jura que tudo aquilo é um castigo de Deus pela sua longa negligência matrimonial durante os vinte anos do período canadiano do casalinho que foi para o Québec cheio de sonhos e ilusões  – “e  passa aí mais outra traçadinha, ó Pacaças.

    Gray Concrete Building during Sunset

    António José e Crispim Raposo[13] fizeram juntos uma comissão de serviço em Angola durante o período da limpeza das minas antipessoais, o que lhes proporcionou da mais fortuita das formas[14] o prestígio quase inacreditável, que nem sequer era à época oficialmente não documentável[15] de terem ambos apertado a mão à Lady Di poucos dias antes da morte trágica da Princesa do Povo[16]. Cimentaram assim, na vida da tropa, uma daquelas amizades para toda a vida que os homens só conseguem fazer se estiverem mesmo com um camuflado vestido, pelos verdadeiros motivos que levaram à invenção dos camuflados. Nessa altura, aquele borracho de fazer parar o trânsito, que agora faz antes ginjinhas e compotas na encosta Sul da Serra d’Ossa[17], ganhou a glória dúbia deste seu petit nom[18] por ter conseguido fazer uma manada enorme de pacaças sair-lhes do caminho com um simples “xó-xó-xó-grandes-galinhas”, por sinal em tom bastante amaricado[19]. Agora, ao acorrer a Estremoz com quatro grades de garrafas de litro de ginjinha, Crispim Raposo pensa apenas que vem confortar o amigo pela perda, que ele próprio sente de forma quase insuportável, da mulher mais linda, e com mais talento para rebolar no feno, de todo o Alto Alentejo[20].

    Bruno senta-se em silêncio ao lado de António José, para poder ampará-lo caso ele perca o equilíbrio. Crispim senta-se do outro lado do viúvo, não vá ele precisar de pedir mais traçadinhas ao Pacaças

    Há certos momentos que são demasiado tristes para as suas próprias descrições.

    No entanto, a visita de Crispim Raposo acaba por provocar à multidão enlutada de Estremoz uma tragicomédia ao melhor estilo gilvicentino revisitado, que não foi iniciativa sua, nem do Bruno, nem do viúvo, mas que se manifesta com tamanha contundência que faz rir o próprio prior, até então tão combalido como todos os ademais presentes[21].

    Este espectáculo é proporcionado pela Prima Rikita, ali presente a título de nova namorada atitrée do Crispim Raposo[22]. Rikita é uma autêntica princesa de conto de fadas, de feições extremamente finas, com a pele muito branca, e com os olhos muito azuis por baixo das suas belas pestanas encaracoladas. É magra e flexível como um junco, de cabelo muito comprido e costas muito direitas, com todo o ar de quem jamais conseguiria dormir com uma ervilha escondida debaixo de vinte colchões[23]. Esta menina já fez cinquenta anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco. É advogada, e a esse título funcionária das Dívidas ao Estado em Lisboa, mas raramente lá vai porque habitualmente está de baixa do psiquiatra[24]. Deve-se esta situação ao facto de possuir um temperamento sem planícies nem calmarias, só com grandes montanhas, fossas abissais oceânicas, embates de meteoritos, e a explosão ocasional de um ou outro vulcão que já há muito que se considerava extinto, geralmente provocada por ciúmes desabridos, a bem dizer patológicos. Há quem diga que a culpa desta instabilidade é dela, porque nunca toma os medicamentos como os médicos lhe indicam, além de que se enfrasca, literalmente, nos seus preferidos – [25] e aqui entraria uma longa lista de party drugs, crystal meths, anfetaminas para cavalos de corrida, e ainda todos os tipos de opióides acessíveis nas nossas Farmácias[26], ingeridos de um só trago com a ajuda da maravilhosa traçadinha de ginjinha e medronho que faz os velhotes estalarem com a língua[27]. Também há quem diga que a culpa é do psiquiatra, positivamente enfatuado[28] com aquela beleza irreal, que a faz andar drogada o mais que pode para que ela nunca consiga deixar de lá voltar. Mas, não sendo nós a coluna dos mexericos, nada disto nos interessa.

    orange prescription bottle lot

    Interessa-nos é que ninguém naquele funeral conhecera previamente a prima deslumbrante, nem ninguém tinha ainda ouvido o Crispim Raposo repetir a sua frase preferida do momento, “e cheguei eu aos sessenta anos para ter que aturar isto.” Assim sendo, torna-se-nos evidente que nenhum dos presentes conseguiria prever fenómenos como os que ocorreram nesse dia ainda dentro da própria igreja, e que ficaram para sempre guardados no imaginário local[29].

    No final da missa, Crispim Raposo vem segurar por alguns minutos a mão de Maria Alice, contemplando em sincera consternação o seu rosto, tranquilo, que irradia singular beleza[30]. Quando a namorada o surpreende nestes preparos, perde por completo a paciência para tanto passado[31], e arma-lhe uma espantosa cena de ciúmes perante Estremoz em peso, mais todas as visitas lacrimosas vindas de perto e de longe. Atira-se-lhe à cara com as suas temíveis unhas de gel. Esgatanha-o todo. Tira os seus sapatos de salto-agulha para conseguir furar-lhe os olhos. Como devora as séries que passam nos inúmeros canais da FOX TV, o vocabulário sai-lhe por acréscimo: you cocksucker, you bastard, you motherfucker, eat shit and die you Infamous Green Great Hulk[32], e outros anglicismos que tais amplamente popularizados pela TVCabo. E assim acaba o funeral de Maria Alice, com o povo de Estremoz entretanto entregue a considerações apaixonadas sobre o ataque da Branca de Neve ao Green Great Hulk. Atrás da multidão fica apenas, aguardando ainda a carreta, o fétero com os despojos mortais da defunta[33]. Esta, coitada, ainda agora morreu; mas, perante a fúria de Rikita que segue o seu curso no átrio, já começou a ficar um pouco esquecida. O que aliás é normal, porque começar rapidamente a cair no esquecimento é o destino costumeiro de todos os defuntos[34].

    Seguem-se semanas de grande silêncio.

    Incapaz de aceitar que agora, de repente, ninguém lhe ligue nenhuma nem o leve a passear à trela pelas zonas mais concorridas da cidade, Júnior rói todas as roupas elegantes, sapatos de verdadeira classe, e lingeries delicadas da dona que apanha a jeito. Josefa passa horas esquecidas na cozinha, a digerir em silêncio, com digno sofrimento, a certeza que já nunca meterá ao bolso aquelas tão antecipadas vinte mil mocas que quase conseguiu arrancar à Menina com a sua chantagem. António José, diagnosticado com uma depressão profunda logo ali no Centro de Saúde, recusa-se a sair de casa, pede ajuda ao Pacaças, e fica para antes o dia inteiro a encharcar-se em traçadinhas, porque é absolutamente contra tomar comprimidos[35].

    blue and white no smoking sign

    Entretanto, Bruno anda quase sempre desaparecido.

    Concluída e assinada a certidão de óbito no gabinetezinho esconso do Hospital de Évora, a Doutora Mafalda passara-lhe para a mão um cartão de visita.

    Olhe, Bruno,” dissera ela em voz calma, pausada, francamente hipnótica. “Eu por acaso não costumo ser assim tão leviana, sabe, mas já não aguento mais, não aguento mesmo. Estão aí todos os meus contactos. Assim que puder, e se vier a propósito, passe-os à Comunicação Social. Eles que vão ter comigo à Glória, e eu conto-lhes das boas sobre o estado impraticável do nosso Serviço Nacional de Saúde nos tempos que correm. As minhas estagiárias também podem contar mais histórias. E, no fim, se o Bruno estiver cansado, pode ficar a dormir em minha casa.”

    A Aldeia da Glória.

    Bruno sabe muito bem do que se trata.

    Foi na Glória que vários actores das novelas e sobreviventes de reality shows compraram as suas casas e restauraram os seus montes. Alguns só lá vão de férias, mas outros optaram por viver mesmo lá, reencontrando a paz e o equilíbrio emocional com a generosidade da Natureza e a intervenção de coaches, yoggis, mestres de Reiki, treinadores de Artes Marciais, malucos, crianças, e pessoas de Coimbra. Ou seja, o gajo das bifanas, que lá por ter feito duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana não deixou nunca de ser o jovem moço romântico[36] que se escapulia com a jovem Maria Alice para juntos fazerem o amor[37] no HOTEL ALENTEJANO de outros tempos, acaba de descobrir que a Doutora Mafalda vive no Olimpo.

    E acaba de convidá-lo para ficar uns dias em sua casa.

    Fique o tempo que quiser,” acrescenta ela. “O que aquela casa tem de especial, além de um casal de rafeiros alentejanos, são umas janelas enormes e um espaço que nunca mais acaba. Vá, vamos a isto para que a Maria Alice  não tenha morrido em vão. Vamos arrastar esta porcaria toda à nossa frente e criar um hospital novo.

    Claro que nada disto acontece. Enfim, consta que será construído um novo hospital na periferia de Évora, libertando o excesso de doentes e outros aflitos que acorrem àquela construção vetusta situada em pleno centro da cidade. No entanto, também consta que esse hospital se destinaria antes a permitir o encerramento do já existente, que entretanto será transformado num hotel, transacção que até já se encontra fechada. Respondem os mais timoratos que uma coisa não impede a outra, porque o hospital a construir será muito maior e claro, muito menos vetusto. A verdade é que ninguém sabe nada ao certo.

    O que sabemos de ciência segura é que, de facto, e tanto quanto o gajo das bifanas vem ao caso, Maria Alice não morre em vão. Com a sua morte ali mesmo nas Urgências, e perante a revolta da Doutora Mafalda, Bruno recebe a benesse  de meter temporariamente as suas gémeas[38], ainda de férias, a trabalhar na das bifanas[39], para ir ele passar algumas temporadas extremamente interessantes na Glória[40], onde é agora chamado a consertar ou remodelar as Harleys dos actores[41]. Ao mesmo tempo, digamos que a tensão sexual nascente logo ali no Hospital não se limitou à Doutora Mafalda, e, num fim de semana particularmente inspirado, às suas duas jovens estagiárias: inevitavelmente, Bruno começa também a ser chamado, com alguma frequência e sob todo o tipo de pretextos, a socorrer a libido de toda a gente de libido meio náufraga que por ali anda. E é precisamente nesse desvairado e ardente sexo sem amor que, depois da morte de Maria Alice, o nosso herói local afoga todo o seu enorme desgosto[42].

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    Passadas algumas semanas farta-se de frivolidades e regressa às bifanas.

    Aqui as opiniões dividem-se.

    Ou este regresso ocorre porque Bruno se fartou realmente, ou ocorre antes porque, mesmo não estando em Estremoz, conseguiu detectar o rumor segundo o qual a sua brasileira se encontrava em vias de ficar novamente grávida de quatro meses e meio, se é que não estava já nesse estado interessante.

    Dirão os levianos: e então, ele não ficava muito melhor servido com a bela[43] Mafalda?

    A resposta que a experiência nos ensina é muito simples: e então, e as filhas? O homem tatuou o nome de cada uma delas em cada um dos braços. Se porventura aparecem miúdas nas Bifanas que já estão a cair de bêbedas antes da meia noite, porque é Carnaval ou por qualquer outra desculpa assim[44], e lhe pedem ainda mais uns copos seja do que for, ele manda-as sair dali, indignado. Contra o facto “mas serviram-nos vodka no não-sei-quê”, ele usa sempre o argumento “tenho duas filhas lindas lá em casa e não quero vê-las no estado em que vocês estão.” O nosso Bruno é tão homem de família como qualquer outro, e, desse ponto de vista, está bastante satisfeito com a sua instalação. Note-se que ainda nunca ninguém saiu em defesa da dama, mas convém acrescentar que a sua brasileira, por muito que carregue excessivamente no bâton vermelho-memória-Azteca dos lábios e na tinta preta-asa-de-corvo do cabelo, qualifica acima da média da amostragem local generalizada. Larguem o osso. Acabou-se a conversa.

    Servem todos estes episódios para demonstrar como, no País Profundo, e preferencialmente longe das garras da Servilusa, um verdadeiro velório, seguido de um verdadeiro funeral, ainda são verdadeiras funções sociais, tão dignas de glamour e pitoresco como qualquer outra. É um daqueles momentos em que as pessoas vão ao cabeleireiro e estreiam roupa nova. Representa, por assim dizer, um tempo e um espaço tão apropriados como qualquer outro para se fazerem publicamente uns belos de uns oitos com pernas de noves[45], como aqueles que toda a gente testemunhou aquando do acidente que envolveu o imponente Raposo e a sua belíssima namorada ciumenta que poderia ter sentido uma ervilha debaixo de vinte colchões[46]. Depois, e como em todas as outras funções sociais, estando a festividade concluída, e estando os participantes de consciência tranquila porque sabem que perdurarão sempre algumas histórias a seu respeito que os anos se encarregarão de empolar, é forçoso que a vida continue até ao ritual seguinte.

    a couple of street lamps sitting next to each other

    Recorde-se que é necessário, desde já, preparar tudo para assegurar uma festa rija no São Mateus.

    A vizinha dali da porta do lado até já foi a Elvas desenhar as sobrancelhas com aquele laser que há agora.

    Dizem as más-línguas que quem foi feito numa carroça de feno há de ficar com palha na roupa para a vida inteira[47], pelo que esta operação das sobrancelhas não surtiu qualquer efeito, pelo menos para melhor. Mas nada disso nos interessa. Só prova que as pessoas são más, como toda a gente já sabia.

    Às vezes alguém passa pela rua das laranjeiras, recorda a horta e a beldade seminua no chuveiro, e, por um instante, interroga-se,

    Que será agora da menina Alicinha, que era tão boa moça?


    A PRINCESA E A ERVILHA

    Conto tradicional de origem perdida nas brumas do tempo

    Era uma vez uma Princesa que foi passear sozinha e se perdeu completamente na floresta. Andou, andou, andou, mas nunca encontrou vivalma – só o sopro do vento no arvoredo, subidas a pique e descidas íngremes, rios secos cheios de lama, o uivo dos lobos à distância, o grunhido dos ursos bastante mais perto, e, por toda a parte, o grasnar trocista dos patos e dos gansos, debaixo de um céu de chumbo que por vezes se desfazia em farrapos de chuva. E foi depois de tudo isto, já completamente esfarrapada, descalça, e cheia de medo, que avistou ao longe um castelo bem alumiado. Foi lá bater à porta, e explicou à Rainha que veio ao postigo que era uma Princesa de um reino contíguo, que viera passear sozinha pela floresta e acabara por perder-se. A Rainha contemplou-a de alto a baixo, esfrangalhada e descabelada, e meritória do grau de Princesa apenas pelas suas mãos muito bem tratadas, pelas suas maneiras muito finas, e pela sua forma muito requintada de falar. Na dúvida, decidiu usar um truque para verificar se aquela criança assustada era ou não quem dizia ser: enquanto os seus lacaios serviam à pobre menina esfomeada toda a sorte de iguarias deliciosas, foi preparar-lhe um quarto de dormir onde colocou vinte colchões por cima da cama. E, por baixo desses vinte colchões, sem que ninguém suspeitasse de nada, colocou uma ervilha.

    Nessa noite a jovem Princesa bem tentou dormir, mas foi-lhe impossível.

    Na manhã seguinte pediu à Rainha que lhe perdoasse aquelas olheiras tão fundas e aquele seu ar estremunhado: foi que, explicou ela, alguma coisa enorme, por baixo dos colchões, rolava de um lado para o outro, impedindo a chegada de Morfeu.

    Então a Rainha ficou muito feliz, abraçou-a com ternura, e tratou-a como sua filha. Sabia perfeitamente que só uma autêntica Princesa tem a pele suficientemente delicada para sentir uma ervilha por baixo de vinte colchões.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9 e o Episódio 10 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] Bruno deu por eles a usarem este nome quando se referiam a ela, na altura em que tiravam a maca da ambulância. Não foi aos cornos de ninguém para não atrasar ainda mais o internamento. Escalonamento de prioridades também aprendido nas suas duas comissões de serviço na República Centro-Africana.

    [2] Não esquecer que ainda há que entregar o gatinho ao vizinho anónimo que se chegou à frente para o criar.

    [3] Ao contrário dos populares do episódio anterior, que continuavam a dizer “doente” como sempre se disse, quem está a falar agora é uma médica. Por isso mesmo, com toda a devida compostura, utiliza-se antes o termo “paciente”.

    [4] Senão, vejamos: a maca com Maria Alice, Bruno, a Médica Linda e as Duas Estagiárias Roliças. São cinco pessoas e uma maca num espaço previsto só para dois utentes.

    [5] Aliás, é evidente que nem precisaria de engatá-la. A miúda já está a abraçá-lo, caraças. Ai é “para lhe dar coragem”? Ó filha. Vai mas é para a bicha, como toda a gente.

    [6] Ai ai. Olha que belo travessão.

    [7] Ora nem mais, e em homenagem à nossa defunta Maria Alice: ex-pla-na-ção.

    [8] Ena pá. Outro travessão perfeitamente justificado.

    [9] Este registo confere com a experiência pessoal.

    [10] Isto está bom, está. A culpa de tanto travessão é toda do Bruno. Até parece um fungo que, em vida,  infectou todos os homens que mais se aproximaram de Maria Alice.

    [11] Ou, como dizem os americanos, que nestas coisas são muito mais dados do que nós a ir directo ao assunto, “o Capitalismo.”

    [12] Mas isto é o Alentejo, pelo que nunca choverá que chegue, nem na altura certa, nem sequer na forma certa – no outro dia apanhámos aqui com uma saraivada brutal de granizo que deitou imensas azeitonas ao chão. O aquecimento global complica ainda mais um equilíbrio que já era extremamente precário, devido, entre outros factores, às grandes Campanhas do Trigo do Doutor Salazar. End of speech. E desculpem o travessão.

    [13] O tal Crispim Raposo do cerejal na encosta Sul da Serra d’Ossa! Um gajo rico, e francamente de cair para o lado, ainda por cima! Estão a ver como o homem voltou a atacar?

    [14] Tão fortuita, de facto, que a maior parte dos seus conterrâneos não acredita neles.

    [15] Vejam bem, ainda nem existia o hábito popularizado do smartphone, as autoridades eram rígidas, e portanto, ainda por cima não há nem uma foto. Vocês acreditavam neles, se estivessem tranquilamente sentados numa das inúmeras esplanadas de Estremoz? Eu não sei, não.

    [16] A Di comia o Raposo com os olhos. A logística da situação provou, no entanto, ser absolutamente impossível. Os dirigentes da Operação Limpeza das Minas eram generais escandinavos representantes da União Europeia.

    [17] Tudo bem, confesso, sei lá se faz compotas. Agora ginjinhas… acho que nunca vi o Crispim Raposo sem uma garrafa de ginjinha na mão, e sem acabar sempre por dizer qualquer coisa relativa às suas cerejas. Mas esta imagem pode não ser mais que um mero erro estatístico, dado que, infelizmente, não vi o Crispim Raposo assim tantas vezes como isso. Ah, mas o que já vi é que já ninguém me tira.

    [18] A pacaça é um búfalo angolano de pelagem parda, enorme, pesado, enfim –  bruto como cornos e feio como a noite dos trovões. O travessão embelezou bastante a frase.

    [19] Amaricado de propósito, evidentemente. Ou, pelo menos, foi o que o Crispim Raposo disse aos camaradas do jipe.

    [20] Mas não virá fazer isso, como o tom misterioso da frase nos indica.

    [21] Ademais, malta. Em homenagem à Maria Alice.

    [22] De quem é prima, ao certo, não sabemos. Francamente, é assunto de conversa que não interessa a ninguém.

    [23] Referência ao conto tradicional A PRINCESA E A ERVILHA. Caixa de texto adicionada em serviço dos ignorantes nestas matérias, que, como todos sabemos, vão sendo cada vez mais.

    [24] Ou, pelo menos, a situação verdadeira é mais ou menos esta. E a danada da miúda é mesmo, mesmo, mesmo muito bonita. Utente dedicada de dezenas de cremes, perfumes, e outros segredos femininos guardados com incrível zelo. Capaz de reconhecer o aroma da mulher que passa por ela numa fracção de segundo e sempre sem erro. Eu até me arrepiei toda quando a conheci, lhe dei um beijinho, e a primeira coisa que ela me disse foi “L’IMPÉRATRICE”. Um verdadeiro talento desperdiçado.

    [25] Não. Nunca. Está decidido, muito bem pensado, seriamente jurado. A Autora nunca mais na puta da vida voltará a usar um único travessão que seja.

    [26] Concerteza, concerteza, podemos defender a rapariga recordando que também é verdade que a pessoa tem que experimentar um pouco de tudo para não morrer estúpida.

    [27] Crispim Raposo adora esta notazinha de rodapé. “E os velhotes até estalam com a língua”; “havias de ver como os velhotes dão estalos com a língua” – “se lá fores vais ver que, nas tascas…”. Etc.

    [28] ENFATUADO! Belo e redondo vocábulo. Favor não confundir com ENFADADO, que é o oposto preciso do primeiro termo.

    [29] Pronto, vá: não só de Estremoz e Elvas e aldeias pelo meio incluindo a Orada, mas também de todo o “triângulo verde” Portalegre – Marvão – Castelo de Vide.

    [30] Nem mais. “Irradia singular beleza.” Isto é um folhetim, malta.

    [31] As outras mulheres não estavam mortas, mas sim, é verdade: como não tem grande coisa para fazer, Crispim Raposo fez para si próprio um grande passado dentro do género “mulheres”.

    [32] Foi importante Rikita frisar que o Hulk a que se referia era o verde, uma vez que também existe um Hulk cinzento.

    [33]Os despojos mortais da defunta,” ainda por cima “no fétero”. Não é horrível?

    [34]Adelino Amaro da Costa? Sei lá quem foi o Adelino Amaro da Costa! E aliás, como é que eu havia de saber

    [35] Mais tarde fará um programa de desintoxicação, onde começarão a florir os seus novos amores com uma das enfermeiras de serviço. Mas esse é, também, ainda um outro folhetim.

    [36]Moço romântico” era o que ele dizia, evidentemente.

    [37] Idem.

    [38] Não, a brasileira não fez batota. As miúdas, que mal se distinguem uma da outra, são a cara chapada do pai. Cheguem essa intrigalhada para lá.

    [39]A das bifanas”: a esplanada das bifanas. “Meter lá as suas gémeas”: passar às meninas, que querem fazer o curso de gestão no Politécnico de Beja, a responsabilidade pelos bons frutos do estabelecimento.

    [40] Pelo menos parecem interessantes. Sobretudo de início.

    [41] Cela va sans dire, não é? Claro que um naco de carne como o Bruno gosta de consertar motos, sobretudo se forem Harleys. Tal como gosta de dar seguimento a algumas fantasias sexuais. Mas só algumas, por favor.

    [42] Isto é também o que ele diz, evidentemente.

    [43] Vá, “e rica”. Pelo  menos, supõe-se que mais rica do que a brasileira que já estava grávida de quatro meses e meio e era de gémeas.

    [44] Nomeadamente o já mencionado não-haver-nada-para-fazer. Para uma miúda, sobretudo, é bastante mais simples estar bêbeda do que estar grávida. E o que não falta aí é quem lhes venda fiado.

    [45] OITOS COM PERNAS DE NOVES! Alguém poderia exigir uma expressão regional melhor do que esta?

    [46] A sério que não conhecem o conto tradicional da Princesa e da Ervilha? Inacreditável. Ao que nós chegámos. Consulte-se, sendo assim, o resumo apresentado na CAIXA DE TEXTO.

    [47] Expressão regional de outras paragens, mas que assenta aqui que nem uma luva.

  • Maria Alice e um gatinho de prego a fundo: Estremoz troca galhardetes

    Maria Alice e um gatinho de prego a fundo: Estremoz troca galhardetes

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Do lado de fora das portas do novo escritório da PANGEIA, ouvem-se os ruídos característicos da chegada a casa de António José. Duas malas enormes LOUIS VUITTON, cheias em igual medida de propaganda informática e de roupa suja[1], caem ao chão com estrondo. A pasta estofada da GUESS que comporta três PCs e três telemóveis 5G voa para cima da poltrona da entrada com um vibrante “saia mas é já do meu ombro, sua esclavagista”. Ouvem-se ainda dois sapatos de camurça italiana a atingir o focinho do Júnior, que está tão impaciente por entrar na cozinha que se limita a soltar um único latido de advertência, para que o marido de Maria Alice, acabado de chegar a casa a morrer de saudades, tenha cuidado com o que pode acontecer-lhe por incomodar um Leão da Rodésia. Finalmente, agora indiscutivelmente barrigudo e quase careca, o homem que viu a luz assim que saiu do Canadá entra pelo escritório dentro de braços abertos, a prometer à esposa um futuro pecaminosamente feliz.

    E logo a seguir, ao ver o que ali se passa, estaca, deixa cair os braços, e fica a abrir e a fechar a boca como uma criancinha pequenina que está prestes a desatar a chorar –[2] mas que, dadas as circunstâncias, não tem nada a certeza de que essa seja a melhor das estratégias para chamar a si as atenções.


    Josefa está toda salpicada de sangue, a torcer as mãos de desespero, e a tremer tanto que é incapaz de usar sequer o telemóvel. Bruno está agora sentado, com Maria Alice ainda desmaiada nos seus braços, mas a mancha de sangue na camisa branca que entendeu por bem envergar para todo este magnífico reencontro não pára de crescer. Tudo indica que, tão cedo, não lhe será possível rebolar outra vez no feno com a sua adversária dos concursos de salto, que lhe piscava sempre o olho com um sorriso matreiro antes de se fazer  ao circuito.

             “Liga para o 112, meu!”, grita ele para António José mal o vê entrar no escritório. “A Josefa está que nem consegue marcar três dígitos seguidos no telemóvel dela. E, quanto mais o tempo passa, mais a tua mulher se vai esvaindo em sangue. Acorda, ó gordo. Caraças, pá, acorda. Eles que venham já a correr para aqui, ou então ela morre.”

             Sublinhando devidamente o horror desta última frase, o Júnior põe-se na sua melhor pose de puro pânico, com o ridgeback todo em pé e a cauda enfiada entre as pernas, e desata a uivar à janela.

             “O meu filhinho não é gordo,” choraminga Josefa, aproveitando distracção geral causada pela manifestação de agonia do pobre animal.

    a bunch of red bubbles floating in the air

    Como é evidente, afligidos por tantos gritos e prantos, e agora, ainda por cima, aterrorizados pelo uivo aflitivo de um Leão da Rodésia[3], os vizinhos não se fazem tardar. Completamente aturdido, como já chamou o 112 e por enquanto não pode fazer mais nada, António José recruta, no tom irrecusável de um filho pródigo[4], a ajuda preciosa da Josefa. Perdido por cem, perdido por mil[5], diz-lhe ele. Ao menos, a gente que ofereça aos visitantes o melhor que um marido desesperado pode oferecer. E então a Josefa traz de lá dos fundos da casa iguarias de fazer crescer a água na boca, tais como pão caseiro fresquinho em grande abundância, manteiga e queijo do cardo muito duro juntamente com um Queijo de Serpa que se desfaz na boca, e ainda um paio enguitado daqueles que se fazem todos os anos no fumeiro lá de casa cortado em fatias fininhas. Tudo isto vem acompanhado por uma profusão de caixas de Instinto tinto e branco, mais outras tantas litrosas, mais um festival de destilados em que alguns são magias da empregada. É assim que aparece na sala uma aguardente de medronho tremenda que a Josefa prepara todos os anos em Novembro, celebrando a chegada do doce Verão de São Martinho e obrigando a serviçal a diálogos que nunca mudam muito, tais como,

    Isso já se prova, ó prima Josefa?” – “Sai-me mas é daqui, grande moinante, e de caminho vai chamar prima à tua mulher, e ela que te ature que é o que para isso que as mulheres servem.” – “Mas a prima Josefa hoje está tão mimosa… como é que quer que eu hoje não venha o dia inteiro ver de si?” – “Ora adeus, vais-te-me embora[6]! Queres que eu chame o Cão, é isso que queres?” – “Pronto, priminha, eu se quer chamar o Cão vou mas é já tirar a certidão, para depois poder casar-me consigo e experimentar o seu medronho deste ano antes dos outros homens todos de Estremoz.” – “JÚNIOR! JÚNIOR, ataca.” [7]

    Outros destes produtos alquímicos podem ser trazidos de fora, que nem isso lhes tira o mérito de terem vindo ali parar trazidos directamente da origem. Este é, por exemplo, o caso da ginginha trazida da adega do Crispim Raposo, amigo do António José desde que ambos estiveram nas brigadas anti-minas de Angola e feliz herdeiro de alguns terrenos na encosta Sul da Serra d’Ossa que lhe permitem não precisar de trabalhar grande coisa.  Quando traçada com o medronho da Josefa, a ginjinha do Crispim Raposo produz uma aguardente de tal qualidade[8] que até faz os velhotes darem estalos sonoros com a língua, como se, de facto, tudo aquilo que ali se passa fosse a festa mais animada de que há memória em Estremoz.

    Para já, não conheceremos melhor o Crispim Raposo.

    Aliás, neste ajuntamento específico o Crispim Raposo nem sequer se encontra presente. Apesar de todas as acelerações do tempo criadas pela internet, as notícias de Estremoz ainda demoram um certo tempo a subir a Serra, depois a espraiar-se pela encosta Sul, e depois, finalmente, a  fazer um eco assustador nas centenas de hectares de cerejal que o Crispim herdou do pai.

    empty field during foggy weather

    Mas talvez este sexagenário de grande presença tão ainda venha a aparecer mais tarde.

    Sim, claro. Aceite-se desde já que, se aparecer, será pelos motivos que já se vão tornando óbvios, uma vez que se revelam, cada vez mais, parte de uma rotina deveras estimulante.

    Não é por nada, mas consta ali a toda a volta que também este Crispim teve uma paixão mal escondida pela menina dos raids que era então a namoradinha oficial do Conde da Orada, assim como consta que essa atracção foi mútua. Aliás, consta até que o parzinho[9] ainda teve a lata de fazer rolar algum feno na estrebaria onde o aristocrata guardava os seus preciosos Lusitanos de tourear[10]. Ah, meus ricos vinte anos.

    O que é que querem? Para todos os efeitos, isto é uma ocasião social. Por conseguinte, chega-se lá e põe-se a escrita em dia.

             Entretanto, e como é evidente, toda a gente dá os seus palpites sobre o que fazer para reanimar Maria Alice. Mas Bruno, que fez duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana para ganhar uns cobres quando decidiu assentar e constituir família, não deixa ninguém tocar-lhe. Vem em todos os manuais: não se toca no ferido até chegarem os bombeiros.

             “Ó vizinha, mas que conversa foi esta, agora assim sem mais nem menos? Assentar e constituir família? Ele não teve mas foi outro remédio senão casar, coitado do moço, que a brasileira já estava grávida de quatro meses e meio, e mais, era das gémeas.”

             “Essas brasileiras sabem muito,.”

             A camisa branca do Bruno está agora completamente ensopada em sangue.

             “Então e a que vem esse sangue todo, ó vizinho?”, pergunta-lhe em voz sinuosa[11] a mulher cheia de madeixas californianas que é de facto vizinha do Bruno, motivo mais que necessário e suficiente para já terem ido várias vezes juntos tratar de assuntos privados ao palheiro, queixando-se os dois à saída que a puta de agulha é mesmo impossível de encontrar[12].

             “A nossa Alicinha teve uma daquelas suas crises de hipoglicemia e desmaiou,” responde-lhe o Bruno numa vez tão grave que faria do grande Johnny Cash um verdadeiro menino do coro[13]. “Ainda tentei agarrá-la, mas aconteceu tudo tão depressa que não cheguei a tempo. Bateu com a base posterior do crânio, mesmo onde o cérebro se liga à espinal medula, aí nessa maldita esquina de ferro dessa puta dessa secretária. Estou que fracturou mesmo o osso[14], e que, pior ainda, um dos fragmentos desse cabrão desse osso lhe fez um corte na jugular. Está com o pulso cada vez mais fraco, e já há uns bons vinte minutos que não dá acordo de si[15]. E aqueles cabrões do INEM…

             Ergue-se uma grande chilreada de vozes desgarradas, cada uma contando os seus desaires particulares com o INEM, quase todos culminados por um inacreditável final trágico. A este propósito erguem-se mais taças e bebem-se mais traçadinhas, ao mesmo tempo que se acomoda tudo com o paio e o queijo.

             Passados mais outros bons vinte minutos de comes e bebes, do lado de fora do escritório, na estradinha de macadame que leva ao lago do jardim, ouvem-se, finalmente, as sirenes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. A agitação é tal que o chefe das operações, um homem rijo que esteve até há poucos anos em França, onde aprendeu tudo o que sabe sobre salvar as vidas dos outros, dispara imediatamente dois tiros para o ar. A sua voz, vibrante e cheia, está sem dúvida habituada a dar ordens de comando desde há tempos imemoriais.

             “C’est les Pompiers,” grita ele, para grande gáudio do Júnior, que pára finalmente de uivar e vem juntar-se à festa agitando a cauda. “Allez, allez, allez, tout le monde recule et personne ne bouge!

             Antes de mais nada, tal como ninguém é obrigado a tocar piano, também ninguém é obrigado a falar  francês, mas enfim. Os que não compreendem a língua compreendem facilmente a intenção. O pior é que a vizinhança é pródiga em emigrantes regressados de França, pelo que, infelizmente, a maioria dos presentes compreende, de facto, o que diz o Chefe. E, assim sendo, entre a ordem para recuar e a ordem para ninguém se mexer gera-se, inevitavelmente, uma enorme confusão. Esta confusão, no entanto, joga directamente a favor dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. Com todo o pessoal distraído pelo imbróglio linguístico em causa, ficam com mais margem de manobra para estancar a hemorragia, utilizando a camisa que Bruno põe logo à disposição para produzirem um garrote feito tão depressa, e com tal perícia, que ninguém saberia dizer de onde veio. Concluída mais esta manobra, e agora com toda a assembleia dos vizinhos a observar de olhos tensos, como quem assiste a um 007 numa sala de cinema[16], o Chefe e o seu Primeiro Auxiliar corrigem com suavidade o posicionamento do corpo, transferindo-o de seguida para uma maca com um cuidado absolutamente crítico. Esta maca, por seu turno, é prontamente despachada para dentro da ambulância, que aguarda a sua tripulação de motor ligado e faróis acesos.

    Ó Regadinho! Vocês despachem-se que ela está a perder o pulso, ouviste? Eu já lá vou ter convosco” grita-lhes Bruno, também ele muito bom nisto das vozes de comando desde que fez as tais Comissões de Serviço.

    E aquela chinesa, sempre a engataste?”, pergunta-lhe o dito Regadinho enquanto prende a maca com mil cuidados ao interior da ambulância[17].

    Quero lá saber da chinesa!”, berra-lhe Bruno de cabeça perdida, embora não esteja a dizer a verdade. “Eu queria era que vocês não tivessem aparecido com quarenta minutos de atraso!”

    Estávamos a salvar um gatinho que caiu por uma sarjeta,” esclarece prontamente o condutor da ambulância. “E, de cada vez que o tirávamos da sarjeta, o cabrão do gatinho desatava a miar e voltava a enfiar-se lá dentro[18]. Ah, cum caraças. Puta de noite, é ou não é?

    Um gatinho?”, gritam algumas vozes da vizinhança[19], indignadas e incrédulas. “Vão deixar morrer a senhora por causa de um gatinho?”

    woman standing near body of water

    Então, mas primeiro chamaram-nos por causa do gatinho. E depois a gente fazíamos o quê, com todo o pessoal das esplanadas a ver? E depois queriam que deixássemos lá o gatinho? E depois eles iam queixar-se à dos Animais, e depois...”

    Lá isso é verdade, ó amigo, esses dos Animais são comunas e têm as costas quentes e então abusam sempre que podem, e se querem saber eu digo-vos já, é por essas e por outras que eu voto no CHEGA.[20]

    Pois claro, vizinho, então aqui em Estremoz há mais ciganos do que pessoas e os cães têm que andar à trela mas os ciganos…[21]

    Neste ponto preciso[22], quando as vozes anónimas já começam a descambar com grande velocidade, o Chefe acha por bem pôr termo às trocas de galhardetes com mais dois disparos para o ar. Seguidamente, aperta com firmeza a mão do Bruno, enquanto lhe fala de homem para homem.

    Ó jeune homme, vomecê é que é o Marido? Vamos levar imediatamente a senhora para as Urgências de Évora e avisamos que o senhor… o…?”

    Bruno. A menina é a Maria Alice, e eu sou o Bruno. Digam que é o Bruno das sandes de carne assada, eles sabem logo quem é.”

    Carne assada? Mas então não era bifanas?[23]

    Ó Chefe! Venha depressa que alguém tem que massajar aqui o coração da nossa Alicinha![24]

    Ai vocês conhecem-se? Que grande sorte a tua, ó mabeco.”

    Ah! O chefe não me diga que também é de Angola[25]!”

    Né à Nova Lisboa, antes daquelas bêtes noires…[26]

             Foi só o Chefe distrair-se por um segundo com os mabecos e as suas origens angolanas que todos os presentes, bem comidos e melhor bebidos aquando da chegada dos Soldados da Paz, recomeçam a trocar galhardetes.

             “Mas de quem era o gatinho?

             “É um gatinho vadio, meu. Porquê, queres adoptá-lo?”

             “Dá cá que eu ponho o bicho em minha casa para dar sorte à Alicinha.”

             “Calma aí, mocinhos. Isto há papeladas a preencher para podermos transferir uma vítima da nossa ambulância…

             “Mas está tudo maluco? Agora transferem o gatinho com a senhora a esvair-se em sangue?”

             “Tecnicamente, mon cher, a senhora já não está a esvair-se…

             “Ó Chefe! Mas que caraças, ó Chefe! Venha depressa que a menina vai mesmo apagar-se!

    hands formed together with red heart paint

             Sentado no sofá do canto, com a cabeça encostada ao ombro da Josefa que entretanto abraçou o filho com todo o seu imenso amor de mãe[27], António José treme, chora, engasga-se, bebe todas as traçadinhas de medronho com ginja que os velhotes lhe passam para as mãos, e é evidente que não está em estado de ir para o Hospital de Évora, a menos que queira ser imediatamente internado na Psiquiatria. Em tronco nu, despenteado, ensanguentado, Bruno salta sem hesitações para dentro do seu velho camião, colado ao recuo da ambulância.

    A ambulância pára.

    O que é que foi agora?;” berra Bruno da janela.

    Está um caralho de um jipe estacionado atrás de nós, foda-se!”, berra o Regadinho de volta. “Mas quem é que… ah, olá, muito boa noite… e a menina quem é?

    Anabela Farto, CMTV,” responde prontamente a jovem jornalista. E prossegue, virando-se para a câmara: “Estamos aqui em directo devido ao trágico acidente…

    Ó que caralho, mas vocês tirem-me já daí essa puta gorda com as pernas tortas!”, berra Bruno da janela para quem o queira ouvir.

    Fez-lhe a ficha num segundo,” comentam entre si os velhotes, orgulhosos da sua progenia, enquanto engolem mais traçadinhas e dão mais estalos apreciativos com a língua.

    A jornalista vai averiguar quem foi o ordinário que a descreveu de forma tão eloquente, seguida pelo jipe da CMTV, com o operador de câmara a filmar tudo sentado na janela, com o torso todo virado para o exterior. Estas imagens, no entanto, virão a demonstrar-se inaproveitáveis uma vez que a equipa estava perdida de riso com a eloquência do alentejano desconhecido. De qualquer maneira, a manobra do jipe que se apresentou ali tão prontamente ao serviço da Verdade tem a vantagem de desimpedir a estrada e permitir à ambulância seguir caminho. Bruno seguiria de bom grado colado ao pára-choques dos Bombeiros, se não fosse a obstinação da jovem jornalista em obter declarações daquele jovem galante, com imagens que o mostrem bem, assim todo lindo, másculo, descamisado, e ainda por cima ensanguentado, numa sequência de 007 cada vez melhor.

    Se a minha mulher morrer por vossa culpa eu hei de perseguir-vos até ao Inferno para vos torcer o pipo aos quatro,” declara Bruno para a câmara, depois do que arranca como louco na senda da ambulância e comete tudo o que é grave infracção rodoviária para chegar a Évora mesmo atrás dos bombeiros. É interrompido à entrada por estar sem camisa, o que levanta logo protestos de todas as miúdas, mulheres, putéfias, senhoras, brasileiras, gays e LGTBs que aguardam há horas infindas que alguém os tire daquela maldita sala de espera e faça alguma coisa por eles.

             “Parece a Nossa Senhora,” comenta uma jovem noviça que também aguarda a sua vez, olhando sonhadoramente para o rosto sereno de Maria Alice.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8 e o Episódio 9 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] Toda a gente ali à volta conhece essas malas, assim como conhece o conteúdo que elas costumam transportar de cada vez que o antigo Cabo dos Forcados chega a casa. Foi a Josefa que estava tão farta de arrumar aquela tralha toda que certa noite de Verão, quando todos se sentam à soleira das suas portas, desabafou com a vizinha da casa do lado. Até falou dos slips ABANDERADO que vinham tão sujos, tão sujos, mas verdadeiramente tão sujos, que ela os agarrou com a pinça do barbecue e os pôs de saponária três dias, até já não ter nojo de lhes mexer. Claro que, no dia seguinte, esta história já fazia parte do património cultural do bairro. E sim, é verdade: do bairro à cidade basta um passo de criança.

    [2] Travessão! Logo a abrir! E se o carácter infecto-contagioso desta pontuação infame servisse para prevenir os nossos leitores de que, mais cedo ou mais tarde, Alexandre Noronha há de voltar a enfiar-se nalgum veículo bem-parecido para reaparecer em Estremoz, triunfante e vitorioso como no fim de uma produção multiplex? Ná. É mais provável que, nesta fase dos acontecimentos, já nenhum travessão queira dizer nada, a não ser que a Autora ficou seriamente afectada pelo seu uso.

    [3] Caíram mesmo nesta? Seus totós. Não se percebe logo que este som é o som de um uivo igual ao uivo de qualquer outro cão? A imagem do Leão da Rodésia a uivar, com o ar enorme e feroz de sempre e a crista castanha do ridgeback toda em pé, essa sim: é uma verdadeira imagem de filme de terror, com a grande vantagem de se ter mantido inédita até hoje. Usem à vontade, youtubers. Nós aqui no PÁGIINA UM não acreditamos em direitos de autor. E que acreditássemos. Não nos serviria de grande coisa.

    [4] Isto não nos esclarece quanto a ele saber ou não a verdade no que respeita às verdadeiras circunstâncias do seu nascimento.

    [5] Ressalve-se que este provérbio é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.  O seu a seu dono.

    [6] Enprego de um dos melhores coloquialismos locais.

    [7] E tanto basta para, por uns tempos, manchar a reputação da Josefa, seja quem fôr o engraçadinho que se insinuou na adega. Historinha de proveito e exemplo sobre o destino subalterno das mulheres, muito embora estejamos, de facto, em pleno século XXI. Inserida aqui a talho de foice por causa das idiossincrasias da Autora.

    [8] Caso porventura subsistam dúvidas: onde se lê “de tal qualidade” leia-se “de tamanho teor alcoólico.”

    [9] Na altura dizia-se mesmo “a parelha”, mas nós agora somos politicamente correctos.

    [10] Já foi aqui mencionado o rumor que consta em Estremoz à boca pequena segundo o qual o Conde é um péssimo ganadeiro porque cria toiros bravos demais para poderem entrar numa tourada. Mas toiros é uma coisa e cavalos é outra, além de que os amores de Crispim Raposo e Maria Alice datam do tempo em que o Conde era o pai do presente Conde e as coisas eram todas muito diferentes. Se é que tais amores existiram mesmo, é claro. Espalhar boatos é como fazer o amor: reveste-se de grande importância nos sítios onde não há nada para fazer.

    [11] Em voz sinuosa. Toda às curvas entre o divertido e o preocupado, a subir e descer conforme os comentários daqueles que a rodeiam. Belíssima imagem. É um desperdício o Bruno ter a Maria Alice a sangrar-lhe nos braços, mas atrás do tempo tempo vem, como toda a gente sabe. E já agora, este provérbio também é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.

    [12] Lamentamos o carácter repetitivo destes pequenos detalhes. Acontece, apenas, que quanto menos houver para fazer mais as pessoas se interessam por palheiros.

    [13] Referimo-nos aos coros, por regra religiosos ou patrióticos, em que os rapazes ainda têm a chamada voz branca. Esta voz, cujo encanto se perde depressa e foi a razão de ser por trás da emasculação destinada a criar castrati, faz soar a polifonia dos rapazinhos como um canto das meninas, ou das sereias, ou das deusas e semideusas e ninfas, ou ainda como o de qualquer outra mulher encantada incapaz de desafinar.

    [14]Estou que fracturou mesmo o osso”: as expressões regionais são para usar em toda e qualquer conversa, mesmo que ninguém ali esteja a rir.

    [15] Como toda a gente sabe, o amor faz milagres. No caso vertente, até consegue pôr o gajo das bifanas, treinado na República Centro-Africana, a falar num jargão médico perfeitamente credível.

    [16] Não confundir com a televisão, e muito menos com o telemóvel. Os vizinhos sentem-se mesmo a assistir ao DIE ANOTHER DAY em sensaround sound.

    [17] Lá está: onde não houver grande coisa para fazer…

    [18] História absolutamente verdadeira, ocorrida há cerca de ano e meio para grande gáudio da maioria dos presentes (os outros eram os dos Animais). Apenas não sabemos que destino levou realmente o gatinho, porque, na vida real, os Bombeiros acabaram por desistir de tirá-lo da sargeta e foram salvar vidas para outro lado.

    [19] As outras vozes pertencem aos dos Animais.

    [20] Mau sinal: começam a fazer-se ouvir as primeiras vozes anónimas.

    [21] Não sou eu que escuto atrás das portas. Eram os senhores que estavam a falar muito alto, a propósito de um cão branco e peludo, com todo o ar de ser roubado, que dois miúdos exibiam à trela com uma corda. A frase é aqui transcrita exactamente tal como ouvida na vida real.

    [22] Mesmo a tempo. As vozes anónimas já começavam a descambar com grande velocidade.

    [23] Mais uma voz anónima.

    [24] Voz de um dos Bombeiros.

    [25] Voz anónima, mas ao menos levantando uma questão interessante. Os mabecos são os cães selvagens da savana, que tanto podem ser predadores como necrófagos, e formam matilhas temíveis difíceis de enfrentar. Chegam a competir com leões isolados para lhes roubarem carcaças de gazelas, e são até capazes de atacar as próprias hienas, também elas ferozes e organizadas em bandos. Devido à sua necessidade de territórios muito vastos para os machos conseguirem manter a fertilidade, a espécie encontra-se neste momento ameaçada de extinção. Proteger os mabecos é um dever de todos nós, mas trata-se de um dever tão pouco estimulante como o dever de votar na Hillary Clinton contra o Donald Trump: os mabecos são feios como o diabo, o seu latido traz à ideia um sanatório cheio de tuberculosos, adoram deitar-se no meio da estrada para não deixar ninguém passar, e são desnecessariamente agressivos. O mês passado, um dos meus melhores amigos, também ele de Angola, teve a lata de chamar mabeco ao meu Sebastião. O cãozinho anda deprimido desde essa altura.

    [26] Temos pena, mas cabe-nos esclarecer: não, o Chefe não está a fazer um daqueles trocadilhos de que os homens tanto gostam. Está mesmo só a dizer “aquelas bestas daqueles pretos” no mais requintado francês desde que morreu o Stendhal.

    [27] Sim. Josefa é a verdadeira mãe de António José. Foi um dos vários shockers do episódio anterior, tantos e tão assombrosos que acabaram por levar ao desmaio da jovem. Note-se que, hoje em dia, aos quarenta anos as mulheres aparentam a juventude que anteriormente só possuíam aos vinte. Daí – por exemplo – a forma como os Bombeiros de Estremoz lhe chamam indiscriminadamente senhora ou menina, e certamente vários outros nomes que não se repetem em voz alta. Note-se, também, que a Autora voltou a cair na armadilha do travessão.

  • Agora que já não há pobres…

    Agora que já não há pobres…

    Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

                    Jorge de Sena

    ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)


    Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.


    A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.

    Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.

    A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.

    Mas são assim tão caras, essas viagens?

    Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…

    Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?

    Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.

    Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:

    Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.

    Desculpem.

    AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?

    AGORA???

    Mas esta gente vive em que mundo?

    Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.

    Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.

    O raio que os parta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.

    [2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.

    [3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.

    [4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.

    [5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.

    [6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela  – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.

    [7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?

  • A gaja interessante

    A gaja interessante

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5


    Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.


    Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.

    E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.

    Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.

    Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.

    E é tudo.

    Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].

    E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.

    Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.

    Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?

    E eu?

    E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.

    CPC descoberta pelos nossos paparazzi a frequentar um curso de bonobo.

    E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?

    É que uma fêmea farta-se.

    A sério.

    Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!

    O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.

    Eh pá, se estas escadas falassem.

    Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.

    A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”

    Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].

    No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.

    São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.         

    Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?

    Pus-me à escuta.

    E aquilo ouvia-se bem.

    Atão mas ela é uma puta?

    Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.

    Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”

    E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.

    Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.

    (fim)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.

    [2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.

    [3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…

    [4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.

    [5] As fêmeas do Pongo borneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.

    [6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.

    [7] O Desmodus rotundus é o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?

    [8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.

    [9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.

    [10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.

    [11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?

  • Maria Alice nem quer acreditar: Estremoz deita mais achas para a fogueira

    Maria Alice nem quer acreditar: Estremoz deita mais achas para a fogueira

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Setembro de 2023

    Com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    “Ao menos diz-me,” pede-lhe ela procurando manter a calma, no silêncio de cortar à faca que reina subitamente dentro do carro. “Agradeço-te as correcções… o TOUTS que passou a TOUS… os Citroens DS que eram todos de quatro lugares… Mas, afinal, como foi? Gostaste do conto? Ou não?”

    O seu grande amante que nunca o será deita-lhe um olhar de morrer de tristeza.

    “Bloody Mary,” diz ele, “eu não leio. Não tenho tempo para conseguir ler.”

    Então este homem tinha mesmo um Cyrano de Bergerac que escrevia por ele.

    Meu Deus. Quantos mais defeitos ocultos terá?


    Quando Alexandre Noronha despeja Maria Alice à porta da sua casa, Josefa vem a correr toda cúmplice e sorridente, abrir-lhe os braços para a apertar contra si com toda a força.

    Mas, para seu grande espanto, a velha e dedicada serviçal vê o BM prateado arrancar com os pneus a chiarem, estonteantes. Sábia e – por vezes – minimal, abraça a sua menina, acaricia-lhe o cabelo, sussurra aos seus ouvidos palavras de conforto, e vai tentar murmurar qualquer coisa doce quando Maria Alice, de nervos em franja, lhe pede que pare com isso e que vá mas é buscar-lhe um café muito grande à cozinha. Depois, procurando libertar-se dos vestígios de Alexandre Noronha, passa tudo a pente fino e descobre o nécessaire dele esquecido na casa de banho. Logo a seguir, incrédula, vê que ele deixou por baixo da cama uma mala grande  e dura, de rodinhas, ainda por trancar. Ao puxá-la para fora e abri-la, espalham-se por todo o chão do quarto centenas de cartazes do CHEGA.

    Bem, pensa ela, desfazendo-se em suores frios, mas há que aceitar que ser do CHEGA não é nenhum pecado.

    Então e o Ruizinho da Farmácia, tão simpático, com um pernão tão gostoso?

    Então e o rapaz do café da esquina, que está sempre a tratar-me por prima com um grande sorriso?

    Photo of White Bmw E46

    Então e o Bruno, o meu querido Bruno, aquele amigo do António José que o assistia nas pegas de cernelha? Um rapaz tão lindo, de olhos tão verdes, que, quando éramos jovenzinhos e ambos competíamos nas provas de salto, ainda fez amor comigo tão apaixonamente num daqueles quartos do antigo HOTEL ALENTEJANO que nem sequer tinham casa de banho… ah, Bruno.

    Bruno, Bruno, eu sei que te lembras de tudo. O que nós suámos, e o que nós nos beijámos, e o que nós gememos e, quando tu me fazias vir e eu me torcia toda, toda molhada, toda suada…

    É do CHEGA, o Bruno, lá isso é. Eu sei, porque agora, sempre que posso, passo as noites de festa a dançar com ele sob o olhar atento da mulher e das filhas, e o Bruno aperta-me toda contra si e não pára de dizer-me ao ouvido,

    “Eu sou militante do CHEGA, ouviste, ó pintassilga, eu não gosto dos ciganos, tu estiveste foi muito tempo no Canadá, queres que eu te arraste para o primeiro quarto do ALENTEJANO que estiver livre e volte a fazer de ti uma mulher inteligente, queres, queres, queres que eu te faça tudo o que te fazia dantes, florzinha, a ver se ganhas juízo?”

    E, nestas alturas, eu rio, rio, rio.

    E tenho mais imensos amigos aqui em Estremoz que são do CHEGA por causa da abundância profusa[1] dos ciganos. Eu chamo palhaço ao André Ventura, chamo-lhe até bobo da corte, mas a verdade é que sou mesmo amiga de muita gente da CHEGA, portanto deixa para lá que isso não conta. Vou mas é ao Facebook do Alexandre, onde nunca fui porque entre nós nunca se trocaram imagens, e deixo-lhe lá uma mensagem, bem legível e melhor ilustrada, com aquelas fotos de nós dois que a Josefa tirou cá em casa, a dizer,

    ALEX MEU QUERIDO O TEU NÉCESSAIRE FICOU CÁ EM CASA, QUERES QUE O GUARDE PARA  A  TUA PRÓXIMA VISITA? Ou que to envie para onde, pois que nem sequer sei onde vives desde que te divorciaste da Gi?

    Ora, ele está divorciado, não faz mal, pois não? É só uma brincadeira de quem tem bom perder.

    a couple of street lamps sitting next to each other

    Maria Alice demora algum tempo a encontrar o Face de Alexandre, uma vez que não sabe todos os seus nomes. Por vezes apetece-lhe desistir, mas a raiva dá-lhe asas. Mas, quando finalmente o encontra…

    … com imagens em tempo real, aparentemente filmadas pela tal filha menina-mulher que vai fazendo um relato em voz alta de tudo o que se passa…

    Santo Deus.

    Aí está porque é que teve que sair da praia a correr.

    Alexandre Noronha está neste preciso momento a falar num comício do CHEGA em Beja[2], abraçado a Gi Medeiros, a sua linda mulher muito loira, que, vista nas imagens, parece uma modelo. E, uma vez mais, está a defender que as mulheres que fizeram abortos devem ser obrigadas a tirar os ovários.

    Do lado de fora da porta, Josefa bate insistentemente. Maria Alice ainda hesita, mas depois resolve oferecer-lhe o nécessaire para ela oferecer a algum gajo no Natal e abre assim mesmo – despenteada, de olhos vermelhos e com olheiras profundas, só de shorts e T-shirt, a própria imagem da despodência[3].

    Está alguém por trás da Josefa.

    Quando, finalmente, a porta é empurrada para o lado com toda a delicadeza, verifica-se tratar-se do próprio Bruno, o feliz proprietário da CASA DAS  BIFANAS DE ESTREMOZ, com quem Maria Alice fez tantas maldades aos vinte anos. Maria Alice nunca mais o viu a não ser nas noites em que dançaram nas festas locais. Agora, na luz do dia ainda intensa, faz mesmo vibrar o coração desabrigado da pobre esposa do amigo António José. É ele, mais maduro. É mesmo ele, como aos vinte anos mas de olhos ainda mais verdes, ainda com mais sardas, ainda mais destacadas contra a pele ainda mais morena. Assim que aperta Maria Alice contra o coração, Josefa desata num dos seus falajares.

    “Ai, menina. O menino seu marido voltou um mês mais cedo de fazer de tradução simultânea em Bruxelas. Meteu licença sem vencimento, sabe o que isso é? Eu também não sabia, mas ele contou-me tudo, é assim uma coisa como o que dá nos pobrezinhos, e nos doentinhos, e depois nós temos de ajudá-los. E eu estava maravilhada, porque ele só dizia coisas lindas. Diz que tem saudades da sua linda terra, diz que tem saudades da sua  linda casa, diz que tem saudades de viver na cidade mais luminosa do mundo… e, sobretudo, diz que tem saudades da sua linda mulher de olhos cor de mel. Diz que foi o Canadá que lhe estragou o amor pela menina que saltava melhor de que todos os homens de Estremoz…”

    “Ahahah!”, interrompe Bruno, e Maria Alice quase desfalece ao escutar de novo, sem ser ao ouvido, aquela voz que a deixava sempre sem fôlego. “Francamente, ó Josefa. Diz lá se, nos concursos, eu também não parecia um milagre a voar pelas nuvens, e a encher o lago depois dos três obstáculos de repuxos contra o sol já a descer, todo vermelho.”

    “Pois sim,” responde-lhe Maria Alice, que só de ver o Bruno recuperou o orgulho e se encheu de brios. “Tu bem podias saltar para te admirarem, mas era só assim, mesmo, com o sol a pôr-se, de maneira a ninguém ver bem os teus saltos. E depois todas as mulheres gritavam – OLÉ! – e tu ficavas tão orgulhoso, mas tão orgulhoso…”

    E continua, desta vez para a empregada:

    “E tu pára-me já com isso, ó Josefa Eufémia, que eu não quero lembrar-me nem mais de uma vez dos pobrezinhos sempre com o nariz a pingar que vinham cá a casa, todos esfarrapados, com as vozes muito roucas, a pedir ajuda ao gordo com que eu me casei. Bruno, queres vir comigo ver a sala de redacção da PANGEIA?”
    O convite faz com que se desloquem os dois para a ala da casa pejada de máquinas, telexes, televisões nas notícias internacionais cada uma ligada a seu canal com impressoras, e, no canto mais longínquo, resmas de papel, cartuchos, secretárias, estantes, e prateleiras. Mas se julgavam que podiam estar sozinhos bem podem é mas é[4] tirar daí o sentido, porque Josefa continua a bradar à porta.

    “Bem, e, dito isto, nós-as-mulheres-do-povo nunca o achámos assim tão gordo como isso. Era gorducho, talvez, e com umas entradas mas muito pequenas, para homem talvez usasse perfume a mais, mas é porventura[5] de uma grande elegância, com piada, diga-se já, aquelas piadas como a que sempre foi um homem tão à frente que comprou o carro da AUTOPERNAS[6] logo em 1658 porque mesmo naquela altura era evidente que, mais cedo ou mais tarde, ia ser preciso tirar a carta, e as do século XVII eram mais baratas, já se sabe[7]. Olhe, minha menina, o seu gorducho não era parvo, ai isso antes pelo contrário, era charmoso e divertido, e tinha aquelas maneiras bonitas de quem não descura enquanto não beijar a moça mais bonita do baile.”

    E é distraindo ambos com estas conversas que Josefa consegue insinuar-se[8] dentro do escritório.

    Vendo-a entrar, compreendendo que nunca na vida terá privacidade, Maria Alice começa a deslizar, estonteada, pela espreguiçadeira de lona riscada de azul com uma inscrição oval que diz por trás WONDERWOMAN. Josefa, que conhece bem os efeitos devastadores da sua hipoglicémia, põe-lhe logo à frente uma caixa de chocolates. Depois regressa, sozinha, para os lados da cozinha. E é aqui que, subitamente, os ouve gritar lá de dentro,

    “Vai-te embora procalhão![9]

    “Ai! Ai eu agora tenho é que me ir embora?”

    “E cala-te, que só a tua própria voz me faz mal[10]! Queres que eu te atire com um agrafador  à cabeça?”

    “Ai eu agora tenho é que apanhar com um agrafador na cabeça? E desde quando é que isso passou a ser um agrafador, já agora, ó pintassilga?”

    woman holding gray and black staple

    Maria Alice passou vinte anos sem ver Alexandre, passou vinte anos sem ver Bruno, sente-se condenada a continuar a ver António José, e sente-se muito mal. Fecha-se no escritório, Fecha as portadas. Não sabemos se, durante todo o dia seguinte, esta mulher se manteve consciente ou – nem ela seria capaz de o dizer. Quase não tem voz. Sente frio. Tem horror ao frio. Um verdadeiro horror cego. Em pequenina, por causa de tratamentos bárbaros da pele, feitos com azoto líquido, tremeu e  tremeu horas a fio, até que a tiraram de lá de dentro com a face e das orelhas e os dentes todos a baterem. Depois a vida espetou com ela no Canadá.

    Já chega, pensa Maria Alice, e é só o que pensa. Já chega.

    Mas claro, custa-lhe muito pensar “CHEGA”. E, por isso, começa a sentir-se cada vez pior.

    Finalmente, agora que já não se ouve nada, Bruno encosta um olho ao buraco negro da fechadura. Maria Alice está viva, acordada, e, a avaliar por todos os seus sinais de choro silencioso, está até mais do que consciente.

    Josefa vem trazer-lhe um grande copo de água com algum açúcar e pingos de limão. Depois, enquanto a segura e segura o copo, vai falando com calma à sua doentinha, ao mesmo tempo que Bruno, sentado do outro lado da cama, lhe acaricia a mão com gentileza.

    “Agora a menina só tem é que tratar bem o seu maridinho querido,” diz-lhe Josefa, enquanto Bruno lhe pisca o olho cheio de malandrice. “Eu chamo já as outras mulheres e limpamos-lhe todas a casa num instante. Ele está mesmo aí a chegar, e já me disse que vai convidar o Bruno, para depois irem os três para a… para a naite, pois, já se sabe. E então ele deixou-me um recado expressamente a pedir que a menina lhe faça aquele seu guizadinho de javali de que eles os dois gostam tanto, e pediu-me a mim que lhe faça aquelas lamparinas com rodelas de violetas e de cravinas vermelhas escuras, pode ser menina? Eu também posso fazer-vos a salada de beldroegas, com cebola e salsa picadinhas, e dou um dos ossos maiores do Valali ao Júnior para que ele não se sinta excluído.”

    Bruno interrompe-a com uma gargalhada sadia. 

    “Para que o cão não se sinta excluído, Josefa? É aqui a minha pintassilga que anda a ensinar-te essas palavras finas?”

    “Ora adeus vais-te-me embora[11], moinante,” rosna-lhe Josefa com todos os seus pudores linguísticos ofendidos. “Ou julgas que eu não sei o que é que tu e a chinesa da loja, enfim, cala-te boca? Ande, menina, anime-se. Vamos para o jardim lá de trás com os candeeiros amarelos nas hastes do laranjal, pomos a loiça do cavalinho, e olhe, pergunte ao Bruno o que é que ele acha, a menina vista aquele vestido azul-celeste todo flutuante e já sabe como é, este aqui também andou apaixonado por si desde novo e nunca se esqueceu do seu perfume e olhe que…”

    Bruno interrompe-a outra vez, com mais uma gargalhada sadia. 

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    “Então o que é isso, Josefa, agora vais divulgar todos os segredos de Estremoz? Vê lá se também contas à Alicinha de quem é que o António José é mesmo filho, anda lá!”

    “Pois muito bem, menina Mariazinha, então fique sabendo que o menino António José é meu filho!”, responde-lhe Josefa de queixo erguido. “O bebé da Senhora nasceu morto, e então eu, que também tive o meu nessa mesma altura, dei-lho. Foi por amor, para ele poder viver melhor, compreende, menina Mariazinha? Nós éramos muito pobres e eu nem nunca fui casada.”  

    “Claro,” sussurra o Bruno para a Maria Alice.  “E enfim, deste-lhes o puto é como quem diz. Aqueles dez mil euros que eles tiveram de pagar pela criança pobrezinha ainda ajudaram mais a Josefa a não ser pobre. Devias ter pedido vinte mil, ó Josefa.”

    “Sim, ó menina,” concorda Josefa. “Passe-me aí vinte mil mocas para as mãos e eu não mostro a ninguém as suas fotos com o olho azul de Lisboa, nem o filme de vocês a dançarem, nem as cartas de amor que a menina deitou no lixo sem sequer rasgar, nem falo de nada, e depois somos todos felizes.”

    Maria Alice está agora quase a desmaiar de vertigens. 

    Nessa altura ouve-se, vinda do portão, o tom inequívoco da voz festiva de António José. Incapaz de aguentar mais tanto stress, Maria Alice desmaia nos braços de Bruno.     


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7 e o Episódio 8 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1]Abundância profusa”, Maria Alice? Ora, deixem lá as redundâncias da miúda em paz, seus voyeurs. Não é a melhor altura para exigências estilísticas.

    [2] Consta que em Beja ainda há mais ciganos do que em Estremoz. Mas será possível?

    [3] Bravo, Maria Alice. Despodência. É assim mesmo.

    [4] “Bem podem é mas é.” Isto sim, é carinho pelo português.

    [5] Pronto, pronto, pronto, hey, a malta rende-se, este “porventura” saiu mal à pobre Josefa. Mas qualquer pessoa precisa de começar por qualquer lado.

    [6] Do Lino Pernas. Foi recentemente trespassada, mas ainda não se percebeu a quem.

    [7] Piada genuinamnente alentejana, aprendida em Novembro último com um dos maqueiros das urgências do Hospital de Évora.

    [8] Insinuar-se. Hm? Hm?

    [9] “Procalhão”, foi mesmo o que ela disse. Memórias das brincadeiras de antanho, quando a ambos puxava muito o pé para a chinela naquelas alturas.

    [10] Também brincadeira de outros tempos. Inspirada na inesquecível canção MULHER FATAL, de Toy, em que a rima do refrão declara que “só o teu próprio olhar me faz mal”.

    [11] De todas as expressões locais, este “Ora adeus vais-te-me embora” está quase no cimo do TOP 10. Expressão local vencedora no último episódio.

  • O marido

    O marido

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 4


    Inicialmente, poucos biólogos levavam a sério a ideia da violência inter-específica. Existia tão pouca evidência de animais a matarem outros do seu mesmo grupo que se presumia que assassínios destes só ocorriam quando qualquer coisa corria mal – os jardins zoológicos estavam sobrelotados ou mal equipados, ou havia um acidente resultante de erros humanos. A ideia combinava-se perfeitamente com a visão da ordem natural das coisas dominante à época, segundo a qual o comportamento animal era concebido para o bem de todos. A selecção natural darwinista funcionava como um filtro desenhado com o propósito de eliminar a violência assassina. O assassínio, por suposto inexistente no restante mundo vivo, era um produto evidente das guerras humanas, pelo que havia que aceitar que, num dado momento da sua ascensão ao poder, o Homo violara as regras da Natureza ao tornar-se sapiens[1]. Aos olhos dos cientistas, os primatas assassinos, tal como os assassinos em qualquer outro grupo animal[2], não passavam de uma fantasia dos romancistas até à década de 70.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Já ficámos a saber que a violência doméstica entre os chimpanzés é de tal ordem que muitas das fêmeas agredidas chegam a morrer em consequência. Resta acrescentar que o chimpanzé também não se ensaia nada de formar um grupo de comandos que caminha pela savana vários dias até chegar à família mais próxima, a cercar discretamente, esperar pela primeira vítima desprevenida, atacar em massa com grande estridência, gerar o caos e o pânico, matar tantos machos quantos possível e violar todas as fêmeas capturáveis, que depois são arrastadas de volta ao grupo guerreiro e entregues para o resto da vida ao marido que eles lhe escolhem.

    É um cenário bastante familiar, ou não é?

    Os primeiros confrontos entre as primeiras tribos humanas não hão de ter sido muito diferentes disto, incluindo a boçalidade com que cada vencedor trata a fêmea a quem conseguir deitar as unhas.

    Há muito quem argumente que nós não somos mais do que um outro grande primata. E, assim sendo, é evidente que vale mesmo a pena continuar a usar a vida nesta cidadezinha em termos de microcosmos demonstrativo de como o demónio se aloja profundamente dentro da essência masculina.


    Devo dizer que, entre os 16 e os 19 anos, enquanto ainda não tinha idade e depois ainda não tinha dinheiro[3], andei muito à boleia pelo País inteiro. Tudo o que era homem sozinho[4], fosse qual fosse o seu veículo, ao fim de um bocado tentava a sua sorte. Eu dizia “NÃO!”, o homem em causa respondia “Está bem, está bem… mas tens que ver, se eu não tentasse era parvo, não achas?”, e a viagem seguia amena, sem mais sobressaltos.

    Até que cheguei ao Alentejo.

    Nos seis meses da minha primeira experiência corria o ano da glória de 1978, e estávamos todos em pleno PREC – o que quer dizer que, para aquelas bandas, estavam todos em plena Reforma Agrária. Num cenário destes, o que é que espera uma revolucionariazinha de dezoito anos? Oh, aquele seria sem dúvida um povo equalitário e solidário, educado e estudado, enfim: não era certamente dos camionistas daquelas estradas que eu esperava ouvir dizer “a gente damos boleia mas nã damos de graça, óvistes?”, ou “isto pra nós tudo o que tá à beira da estrada é gado”, e outros insultos abertamente insultuosos, e visivelmente perigosos. Não era no Alentejo que eu alguma vez imaginaria que ia acabar ao murro com um motociclista de FAMEL e penico que ficou a bradar impropérios do pior com uma roda torta no caminho de terra por onde tinha tentado desviar-se comigo.

    Mas enfim, tinham passado quarenta anos. Estou no Alto Alentejo, e não no Baixo Alentejo[5], como antes. De certeza que as coisas, agora, já não são assim.

    Família de chimpanzés depois de uma caçada, apanhada a empanturrar-se de carne de gazela.
    É verdade que nós, os Pan troglodytes, temos por hábito ser herbívoros. Mas isso não implica que sejamos necessariamente estúpidos. Sempre que matar não seja dispendioso em termos de energia, e não implique correr grandes riscos pessoais, a caça é uma forma perfeita de garantir quantidades substanciais de comida de alto valor proteico e de grande especial riqueza calórica. Nada que aliás vocês não saibam, ó seus humanos voyeurs que andam sempre a espiar-nos.

    Bastava-me esquecer o motociclista da FAMEL e da luta ao murro. Esse piolhoso era de Estremoz, onde eu estava a pedir boleia para Portalegre.

    O primeiro sinal que, mesmo no Alto Alentejo, tudo continuava a ser assim, veio do gajo do mercado. Eu nunca o tinha visto mais gordo, e vi-o tão pouco que se me cruzasse agora com ele na rua nem o reconheceria. Tinha finalmente conseguido transportar uma boa quantidade dos meus livros cá para casa, e andava obcecada com a questão das estantes. Naquele dia procurava uma estante especial, forte que chegasse para suportar os meus grandes álbuns de História da Biologia, e suficientemente bonita para ficar mesmo ao cimo da escada.

    E não é que encontrei isso mesmo? Era uma estante linda, que parecia um coreto todo feito em ferro forjado. Como acontece com frequência no mercado, comprei-a por tuta-e-meia, feliz da vida.

    O pior foi começar a carregá-la dali para casa num dia de calor vingativo. Eu não transportava outros pesos, mas tinha que parar o tempo todo para limpar o suor dos olhos. Ora, vendo-me fazer todo aquele esforço, um senhor simpático que estava ali à conversa com outros senhores veio oferecer-se para carregar a estante por mim.

    Eu fico-lhe muito agradecida, mas a minha casa ainda é ali no Anónimo[6]. Eu posso é segurar à frente se o senhor segurar atrás, já ajuda muito” – “Ora, menina, eu sei muito bem onde fica a sua casa, ponho-lhe lá a estante num instantinho” – “Mas com este calor...”

    O senhor sorriu, pôs a estante de ferro em cima do ombro, e começou a andar rumo à minha casa. À época ainda me enervava um bocado toda a gente saber onde era a minha casa, mas enfim. Também não deve ser todos os dias que uma menina vem viver para o centro histórico de Estremoz. E, de facto, ainda nem eu tinha acabado de pensar tudo isto e já estávamos à porta de casa.

    Pronto, deixe aqui em baixo que isto ainda são dois andares sem elevador, logo à noite, pela fresquinha, eu peço ajuda às minhas amigas e levamos a estante para cima” – “Ah, não, por favor, eu sei que a menina mora no segundo andar, ponho-lhe já lá a estante e pronto.”

    Bem… se por “e pronto” se entender “e assim que a pousar eu estendo os braços e apalpo-a toda, em todos os sítios onde conseguir apalpá-la”, foi de facto isso mesmo que o senhor simpático tentou fazer. O que quer dizer que, acto contínuo, lhe espetei com um bruto pontapé naquele sítio que faz doer muito aos senhores, ao mesmo tempo que proferia, de forma tranquila mas autoritária, “saia já daqui seu[7]”, enfatizado por um empurrão nos olhos[8], o que acto contínuo fez o senhor simpático cair de costas pela escada abaixo.

    Tinhoso.

    As minhas amigas dizem que estas coisas me acontecem, mesmo com uma idade tão adiantada, porque uma pessoa como eu devia ter um marido, e a ausência dessa entidade representativa do poder na vida em sociedade é tão grave que perturba até os homens mais lutadores.

    Ou seja, e como escreveu o grande Mao Zedong, “O poder cresce sempre no cano de uma arma[9].

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Veja-se a história da serpente, de Eva, da maçã, de Adão, da fúria de Deus, da expulsão do Homo sapiens do Jardim do Paraíso, onde o arcanjo Uriel ficou à porta com uma espada flamejante para que nenhum ser humano pudesse alguma vez voltar a entrar. Não é ciência, como toda a gente sabe. Mas há que admitir que é um pressentimento fantástico.

    [2] Bom… e tal como as plantas carnívoras, ou tal como muitos peixes, incluindo as orcas e os tubarões. Para não falar da raivosa e inolvidável Moby Dick, mas lá está – fantasia de romancista.

    [3] Primeiro para tirar a carta (diga-se em abono do meu estoicismo que passei neste exame uma hora depois de ter passado no exame de Cálculo 2, sem dúvida a mais traumatizante de todas as disciplinas do meu curso, e mesmo no fim do Primeiro Ano, quando a pessoa já se arrastava de cansaço e ainda nem tivera direito de pôr um pé na praia); e depois para comprar o Carocha quatro anos mais velho que eu, onde o nosso colega João Rabaça pintou um noitibó na porta do meu lado, e que, além de fazer toda a Lisboa-Vilar de Mouros com seis pessoas lá dentro à data do primeiro festival, também aguentou dois anos de saídas de campo pelo meio de sapais, e carreiros de terra rumo a praias desconhecidas, até ser trocado por outro ligeiramente mais jovem, exactamente da minha idade e igualmente dado a viajar sem fim. As letras da matrícula eram HB, pelo que o baptizámos com o nome controverso de Herri Batasuna.

    [4] A menos que fosse um gajo porreiro, já com um emprego fixo destinado a ajudar a família e pouco mais velho do que eu. Isso era diferente. Conversávamos imenso, falávamos do que é que gostaríamos de fazer quando pudéssemos, ouvíamos cassettes e era costume gostarmos das mesmas músicas, e nenhum de nós acreditava no casamento porque é o género de vida que mata o amor. Fomos uma geração bestial, na qual ainda hoje tenho muito orgulho.

    [5] Em 1978, eu estava a aproveitar o segundo semestre daquela interessante experiência que antecedeu o 12º ano e se chamou “ano propedêutico” para ganhar umas massinhas a trabalhar em Aljustrel com os miúdos da telescola. Até esses miúdos tinham aquele olhar alentejano que varre as mulheres de alto a baixo. Foi nessa altura, a ouvir confidência atrás de confidência das raparigas da minha idade que não tinham ninguém com quem falar, que comecei a ter umas ideias, ainda vagas, sobre um romance policial que veio a chamar-se ADEUS, PRINCESA.

    [6] AHAHAH. Não, não sou minimamente dada a distracções. Nunca direi onde fica a minha casa.

    [7] Parece-me inútil inserir a longa sequência da frase. As escadas são altas, pelo que qualquer vira-lata ainda demora o seu tempo a cair delas abaixo. E eu não me calei enquanto ele não embateu na porta e deu de frosques.

    [8] Isto tem a virtude  de perturbar a visão, fazer chorar, e em consequência assustar imenso os senhores. Quanto mais os anos passam mais nós vamos aprendendo, não é.

    [9] Não, não é nenhuma metáfora de gosto duvidoso. É uma verdadeira ideia de como viver correctamente dentro da colmeia. Resta-nos esperar que o tempo se despache a transformá-la num arquetípico tigre de papel.

  • Os assassinos

    Os assassinos

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 3


    O que poderá dizer, nos nossos dias, quem continuar a não gostar da ideia de que os humanos estão mais próximos dos chimpanzés do que os próprios gorilas? Até ao fim do século XIX, a resposta céptica mais ferrenha à descoberta de fósseis era que Deus os pusera nas rochas como uma experiência estética, ou filosófica, para fazer de conta de que a Terra tinha uma História – exactamente como dera um umbigo a Adão para fingir que ele tinha nascido de uma mulher. Para os cépticos criacionistas do fim do século XX, a explicação era mais que um qualquer artifício demoníaco organizara todos aqueles fósseis em série para que caíssemos na tentação evolucionista. Ou seja, as marcas moleculares claríssimas de relação estreita entre grandes primatas seriam um plano ou divino ou diabólico. Para quase toda a gente, no entanto, a ideia de um poder enganoso a funcionar a este nível exige demasiado da nossa imaginação. O Criador pode ser Omnipotente, mas é pouco provável que seja Maluco.”

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    As minhas citações do DEMONIC MALES estão a ficar cada vez maiores, mas a culpa não é minha, e nem sequer é do livro de onde eu as tiro: a culpa é dos leitores, que todas as semanas me dão os parabéns pela escolha, me revelam que tudo isto lhes pareceu tão interessante que foram ler o trabalho inteiro, e, de vez em quando, me contam que gostaram tanto que até já encomendaram a obra seguinte dos mesmos autores. E claro, são estes pequenos momentos que nos fazem felizes no meio do caos mais ou menos disfarçado da nossa vida quotidiana: se as nossas histórias, e as nossas citações, levaram outras pessoas como nós[1] a ler um bom livro e a querer ler ainda mais – então, e penso que todos os meus colegas sentem o mesmo, já ganhámos o dia e há poucas emoções melhores.


    Antes de passar adiante, vamos já deixar claro o que se pressupõe óbvio mas nunca se sabe: evidentemente, a maldade não é uma característica exclusiva do masculino[2]. E, se afectar o género oposto, não se fica minimamente por aquelas megeras más e vingativas do século XIX, que infestavam os romances do Charles Dickens ou das irmãs Bronte. Podia estar aqui o que ainda nos resta desta estranha e inconstante Primavera a deliciar-vos com casos horrorosos de crueldade feminina, como a das lontras marinhas, ou a das hienas, ou a das leoas quando caçam em bando. Ao contrário do que ainda me diziam quando eu andava na escola[3], o Homo sapiens está longe de ser o único animal que aprecia fazer mal aos outros, incluindo aos da sua própria espécie[4]. Talvez seja o único animal capaz de distinguir a água benta da água normal[5], mas não é, de maneira nenhuma, o único animal que, quando pode, maltrata os outros a título absolutamente desnecessário, assim mesmo, só para se divertir.

    Costumávamos considerar que a crueldade humana, particularmente manifesta nas guerras que os seres humanos travaram entre si desde que temos registo das suas actividades, era de tal forma sofisticada que requeria uma explicação especial. Talvez essa explicação fosse científica, talvez fosse bíblica – ou até talvez fosse, de facto, completamente inacessível à inteligência humana, pois que nos fora trazida por extra-terrestres, tal como Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram em 1968, por escrito e em filme, em 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO[6].

    Pois, mas se a contarmos só até aqui esta história está coxa e é tudo menos bípede.

    Um dos primeiros Homo sapiens verdadeiramente territoriais prepara a lança para dar guerra à família Neanderthal que vive na gruta que fica do outro lado da montanha, onde, neste preciso momento, sem suspeitar de nada, enche as paredes de pinturas cada vez mais bonitas de bisontes com cada vez mais cores resistentes ao tempo.
    Depois vieram o arco e a flecha, depois os códigos de gritos de batalha, depois as tácticas de cerco, depois…
    … a verdade é que os Neanderthais não estavam a fazer mal a ninguém, até podiam andar por ali em maior número do que os Homos, mas olhem. Eram uns indivíduos suficientemente pacíficos para não só co-existirem connosco como até partilharem connosco alguns dos seus genes,[A] mas nós éramos uns esganados, sempre a precisar de mais território[B]. Fizemos-lhes tantas e tão poucas que eles acabaram por extinguir-se para todo o sempre.

    Falta acrescentar que, há cerca de cinco milhões de anos, houve um grupo inteiro de primatas ainda indiferenciados que desenvolveu alguns comportamentos muito, mas mesmo muito raros. Há pouquíssimos animais que vivam em comunidades patriarcais onde os machos se unem e as fêmeas se esgueiram de um grupo para o outro no sentido de evitarem a consanguinidade. Os tais primatas vieram de um grupo detentor dessa raridade, e também se caracterizavam por manterem uma defesa territorial masculina extremamente agressiva, incluindo ataques letais a comunidades próximas, à procura de inimigos vulneráveis para atacar e matar. Hoje em dia, em quatro mil mamíferos e mais de dez milhões de outras espécies animais, este conjunto de comportamentos é único e específico das duas únicas espécies que derivaram daquela espécie ainda incaracterística que existiu há cinco milhões de anos: os homens… e os chimpanzés.

    E, nestes dois casos, o instinto da violência vem, indiscutivelmente, dos machos.

    Tal como entre os humanos a violência doméstica está geralmente ligada ao homem, que bate na mulher, e pode de igual forma bater nos filhos[7], também entre os chimpanzés são os machos quem parece considerar tudo e mais alguma coisa como um bom pretexto para dar tareias do outro mundo nas suas companheiras. Agora que podemos filmá-las no seu habitat natural com as nossas microcâmaras digitais minúsculas que não levantam suspeitas nem causam inibições, temos que aceitar o chimpanzé tal como ele é: são tareias tamanhas que as fêmeas chegam a morrer em consequência. E, tanto numa espécie como noutra, a comunidade circundante observa… e mesmo que filme, mesmo que relate na rádio, mesmo que faça manchetes de jornais[8], a verdade é que, em termos práticos, reage com tal indiferença que raios nos partam se não for causada por cinco milhões de anos de evolução que continuam a dizer-nos que aquilo é normal e até nos faz bem.

    Com tudo isto em mente, eu estava à espera de quê quando, aos 61 anos, vim viver sozinha para uma cidade pequena no interior profundo, cheia de cafés, que estão cheios de esplanadas, que estão cheias de homens, que estão todo o santo dia a beber ou cervejas ou bagaços ou assim parece? Ai a menina chegou aí e achou que tanto assédio era um bocado estranho? Mas achou mesmo? Então e porquê? Por um lado, não é bióloga? E, por outro lado – nunca ouviu dizer que a ocasião faz o ladrão e depois quem anda à chuva molha-se?

    Ora então.

    Beba mas é mais uma bjeca, senhora, que a malta oferece. E conte lá mais umas historinhas cheias de homens maus.

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu, por exemplo: não sou antropóloga, nem paleontóloga, nem propriamente evolucionista: estudei um bocadinho de tudo isto durante os cinco anos do meu Curso de Biologia no antigo Colégio dos Nobres, mas logo a seguir especializei-me na fertilização do mamífero, depois da História da Biologia, e pronto – estas escolhas não se compadecem com andarmos para aí a aprender tudo o que está nas margens dos nossos interesses. Mas deem-nos um bom livro e contem-nos uma boa história, devidamente documentada e seriamente revista pelos pares: é claro que a gente gosta de aprender!

    [2] Na Natureza, linhas divisórias assim tão taxativas são sempre meritórias de muito pouca confiança. O único diferencial que existe mesmo, no caso da crueldade, encontra-se apenas a nível estatístico, só que é um apenas cheio de penas. Os machos tendem a ser maiores, mais fortes, mais vistosos, e mais dominantes. Um veado maduro enorme, cheio de armações, que esteja na brama, ouve-se e vê-se a quilómetros de distância. As vinte e sete fêmeas pequeninas e sem armações que constituem o seu harém… pois, é mais que se confundem com a folhagem.

    [3] Na realidade, quando agora penso nisso em retrospectiva, contaram-me imensas tretas quando eu andava na escola, e não foi só em Ciências Naturais. Também não há de ter sido tudo deliberado. Agora, sempre que dou aulas, ou explicações, interrogo-me com frequência sobre qual será a grande treta que andamos a ensinar aos nossos alunos. E então desde que comecei a ouvir dizer que se calhar não foi nada um asteroide o que causou a Extinção em Massa dos Dinossauros…

    [4]Só o homem é que tortura, etc.” Ai é? Aguentem firme que eu depois hei de falar-vos de uns quantos orangotangos e gorilas, só para mencionar familiares próximos.

    [5] Remeto-me à minha modéstia. Capaz de distinguir a água benta da água normal? Ná. É evidente que eu, sozinha, nunca conseguiria inventar pérolas de cultura assim tão brilhantes. A frase original é do escritor britânico T. H. White (Mumbay, 1906-1964) e foi gravada na memória de muitos portugueses da minha geração pelas crónicas semanais que grande Augusto Abelaira publicou semanalmente no defunto O JORNAL, O ÚNICO ANIMAL QUE, protagonizadas por duas fêmeas de chimpanzé tornadas famosas à época pelos investigadores de primatologia. O quase esquecido Terence Hanbury White, entretanto, tornou-se particularmente notado em vida pela sua série de romances sobre o Rei Artur, coligidos num único volume, THE ONCE AND FUTURE KING, em 1958. Destes, foi especialmente aplaudido o primeiro da série, THE SWORD AND THE STONE, publicado separadamente em 1938.

    [6] Tanto Clarke como Kubrick tinham personalidades digamos que fortes e difíceis, o que levou à separação pelo meio do seu projecto original de trabalho em conjunto num livro e num filme que haveriam de cair-nos em cima exactamente ao mesmo tempo. Da forma como as coisas correram, o filme, atribuído só a Kubrick, acabou por estrear antes do lançamento do romance, assinado só por Clarke. Mas enfim, sempre aconteceu tudo em 1968. E sem escandaleiras na praça pública, consideradas à época de gosto duvidoso..

    [7]Éramos nove, dormíamos todos em duas camas, e sempre que ele vinha bêbedo acordávamos à noite já com o cinto em cima”: durante todos os anos da minha adolescência em que andei nas vindimas, ouvi variações sobre esta história vezes e vezes sem conta. O resto do pessoal desatava a rir, celebrando o ridículo do homem completamente enfrascado. Ninguém parecia achar nada daquilo estranho, e eu já sabia ficar tão calada como a coruja. Em casa diziam que eu era “uma sonsinha”. Não era nada. Possuía apenas uma deformação profissional que pareceria quiçá aberrante naquela idade.

    [8] E mais sabe-se lá o quê que os chimpanzés fazem para contarem as suas histórias uns aos outros, porque lá porque nós não os percebemos não está necessariamente implícito que eles não se percebam. Estamos a falar de animais capazes de aprender, entender, e utilizar a linguagem dos surdos-mudos. E até de conversar no DOS com os computadores, por muito que possam fazer-lhes pedidos que nós, na nossa eterna sobranceria, consideramos palermas, como por exemplo “vá lá, computador, faz umas festinhas à Kathy!” Animais que atravessam a ponte até este nível mais formas terão de se parecerem connosco – ou sou eu que estou a raciocinar fora do baralho? Eu e todos os primatologistas normais deste ano da graça de 2023?

    [A] E, tanto quanto a gente sabe, entre todos os mamíferos só se trocam genes de uma única maneira.  Por muito que as duas espécies que fazem o amor possam preferir diferentes posições, mudar de posição não é inventar nada nem partilhar nada.
    [B] Porque nós éramos liderados por machos, e os machos que assumiam a liderança eram sempre os mais aguerridos. Em termos de emoções, foram os pioneiros dos gangs dos nossos dias. Não era que precisassem da guerra: era mais que estavam completamente viciados naquela chuva de adrenalina de seguir o chefe, cerrar fileiras, desatar a berrar, e matar o inimigo.

  • Maria Alice não sabe o que pensar: Estremoz recebe-a em casa de braços abertos

    Maria Alice não sabe o que pensar: Estremoz recebe-a em casa de braços abertos

    CARTAS DE AMOR

    Em Julho e Agosto de 2023

    Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Já na praia, depois de muitos mojitos, depois de muitos mergulhos na água fria, depois de muitos cigarros que Maria Alice partilha com ele, Alexandre não faz nenhum dos números físicos risqués dentro de água, ou na areia molhada, que descreveu por carta a Maria Alice com tão bela eloquência[1], em resposta à forma subtil como ela previamente o avisara, também numa das suas cartas, de que tem por hábito fazer topless na praia – assim como tem por hábito não usar sutiã – e não se sabe de onde veio este travessão. Mas enfim, pelo menos Alexandre começou a ter uma conversa mais pessoal. A tónica em que ainda não parou de bater mais vezes, no entanto, não foi a do seu divórcio recente da Gi Medeiros[2], nem a da sua relação agora mais complicada com a Margarida, a linda filha adolescente de ambos, já toda tão menina-mulher.[3] Claro que, levando todo este sofrimento silencioso em linha de conta[4], talvez fizesse sentido não esperar que Alexandre Noronha lhe falasse já dos sonhos que ambos tiveram vinte anos antes. O problema é a única coisa que ele lhe diz, uma vez e mais outra e mais outra, é que na realidade anda sempre stressado porque na sua empresa trabalham 1200 pessoas. “E isto quer dizer que há 1200 pessoas que dependem de mim, e eu penso nisso todos os dias.”


    Para não dizer “vai ao psiquiatra tratar da tua ansiedade” porque sabe que os homens não toleram ouvir “psiquiatra”, Maria Alice, toda esplendorosa no seu novo topless (comprado de propósito para o glamour do momento), diz antes “então aproveita agora, que estás aqui comigo para namorar, não é para trabalhar, e ambos fizémos o pacto de mantermos os nossos telemóveis desligados.”

    Palavras não são ditas, e o telemóvel de Alexandre desata a tocar – aos berros.

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    Ele olha para a chamada, fica vagamente pálido, vagamente trémulo, diz “epá desculpa, mas esta eu tenho mesmo que atender,” levanta-se num pulo e vai atender para longe. A chamada é tão longa que Maria Alice tem tempo de ir tomar banho. Quando regressa, Alexandre está a enfiar a sua tralha toda para dentro do seu saco de praia, e a murmurar, numa aflição, “tenho que ir já para Lisboa… tenho que ir já para Lisboa… 1200 pessoas que dependem de mim, tenho que ir já para Lisboa…

    Tudo bem, mas… vais a Lisboa e voltas, é isso?”

    Alexandre nem responde.


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6 e o Episódio 7 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] É verdade que foi ela quem deu o mote. Mas ele agarrou-o logo no ar, e nas suas cartas seguintes deu-lhe logo umas voltas de tal forma brilhantes, que Maria Alice, sendo culta e tendo sido obrigada a estudar francês durante vinte anos, neste momento já começa a pensar o seguinte: “Isto parece a história do Cyrano de Bergerac… o gajo escrevia tão bem… e vinha desconfiado de que alguém escrevia por mim… ai que horror… será que era outra pessoa quem escrevia por ele?

    [2]Ah – mas eu agora – agora, Bloody Mary, eu não – eu não consigo – eu não consigo nem falar-te – da Gi – foi tudo tão duro – e – e – e – e tão – sabes – tão recente,” repete ele, enquanto ela tenta perceber se o seu amante que ainda não o foi – e agora parece ensaiar-se já para nem o ser – mas eu por enquanto não quero pensar nisto –  enfim, pronto, eu por mim só gostava de saber se ele está a gaguejar ou a usar travessões.

    [3] Menina-mulher é deveras piroso, mas neste ponto vamos todos continuar a disfarçar para quê? Já todos percebemos que Alexandre Noronha, a quem é atribuída estúltima expressão, possui um discurso que resvala facilmente para o piroso. Note-se que deveras também não é flor que se cheire, e que do recurso a estúltima quanto menos se falar melhor, e no entanto ambos os termos existem na língua portuguesa. Enfim, pertencendo a frase em causa ao discurso indirecto, façam como eu e culpem o narrador. Ou é um autor ladino do século XIX determinado a não se deixar apagar pela História, ou é uma Autora dos nossos dias de tal forma ressabiada que deixa minas e armadilhas de estilo duvidoso em toda e qualquer passagem potencialmente conotável com o masculino (e concedam, já agora, que este “potencialmente conotável com o masculino” não saiu nada mal à criatura que hoje vos escreve daqui desta secretária suja e desengonçada, cheia de trabalho e morta de calor, hm?).

    [4] Silencioso homenageia agora o masculino, sem nós por enquanto sabermos se é para melhor ou para pior. Só sabemos é que se uma mulher travasse por carta a correspondência ardente das semanas anteriores, e depois aparecesse ali a falar de trabalho, já tinha levado um par de estalos. Das amigas (“o masculino” local nunca saberia de nada), dos leitores, e de quem quer fosse que a seguir ainda que tivesse o mau gosto de vir para aqui contar a sua história.