Autor: Clara Pinto Correia

  • O rei vai nu

    O rei vai nu

    Pode-se, de uma maneira geral, confiar na confissão de um desesperado, e, como nem todos se confessam à hora da morte, a capacidade de desespero é só concedida a alguns e eu não era um deles.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    Aquilo que me foi dado ver pareceu-me uma valente porcaria de impacto deveras duvidoso, uma autêntica fábula moral daquelas em que só as crianças inocentes e os sábios videntes ousam dizer que o rei vai nu. Parecia tanto que concluí que devia ser mesmo. Mas, não vá o diabo tecê-las, decidi partilhar a história convosco. Pode ser que me tenha escapado algum grãozinho de areia que torne logo esta fábula menos degradante. E, como tal, muitíssimo menos deprimente.


    O grande feito passou esta semana nas notícias,  encavalitado entre reportagens de encontros literários e previsões de tristeza e abandono para a próxima Feira do Livro em Lisboa. A primeira coisa que me ocorre é que não estamos propriamente perante um feito – e que, mesmo que o fosse, nunca seria assim tão grande como isso. Portanto, parece-me que estes pesos e medidas ditam logo à cabeça a conclusão lógica de que esta historieta nem sequer mereceria aparecer ensanduichada nas notícias culturais do dia. Mas como isto é apenas o que me parece a mim, e eu nem sempre sigo a construção destes grandes feitos tão atentamente quanto deveria, respeitei a responsabilidade de escrever para milhares de leitores provavelmente ainda menos informados do que eu; e, antes de mais nada, tratei de organizar uma pesquisa mais séria e mais sistemática sobre o assunto.

    people having a bonfire

    Descobri logo que não há assim grande informação sobre o grande feito, o que já de si é um péssimo sinal. Não me parece que nenhuma informação deva ser promovida ao estatuto de notícia[1] se os espectadores não tiverem, caso fiquem interessados[2], mais informação disponível para começarem a saber com o que é que contarão dali em diante – neste caso específico, em termos de publicações. A editora propõe-se oferecer-nos uma colecção de quinze “grandes clássicos da literatura portuguesa”, pelo amor de Deus. Era bom sabermos qual foi o critério de escolha desses clássicos[3], e, presumindo que a resposta não é “à balda,” com que regularidade se prevê disfrutarmos do seu lançamento no mercado livreiro.

    Ainda dentro do pelouro dos desagrados de menor incómodo, a notícia disse-nos que a colecção vai ser oferecida aos portuguesas por uma editora chamada LEVOIR, que, neste caso, irá trabalhar em conjunto com a RTP[4]. De facto, a senhora que apareceu a mostrar um pouco mais de entusiasmo ao falar destes quinze livros, recordando-nos que “ainda nunca se tinha feito em Portugal nenhuma colectânea de grandes clássicos portugueses,[5]” falava português com um sotaque francês carregado. Um pouco mais de investigação, e descobrimos que as edições LEVOIR são um subsector da ALMEDINA, embora nenhum subtexto nos explique o que distingue a casa-mãe da sua filha afrancesada[6]. Enfim. Se conseguimos chegar até aqui calmamente, a culpar-nos a nós, e não aos outros, por tudo o que nos incomoda nestas modernices, agora a seguir vem de lá a parte pior.

    Estes quinze grandes clássicos não se destinam a difundir em Portugal o prazer das belas letras.

    turned on desk lamp beside pile of books

    A primeira obra a publicar será a MENSAGEM, de Fernando Pessoa, mas o livro não foi concebido para nos levar, silenciosamente, à luz da vela e em passos de veludo que não dispersem quase uma centena de anos de colónias de morcegos[7], até ao fundo do mundo interior do poeta. É mais que vai ser enfiado num funil e empurrado à força pela garganta das pessoas, mesmo com toda a força, mesmo até ao fundo.

    Nesta colecção de Grandes Clássicos da LEVOIR, fiquem sabendo que tanto a acção como o texto hão de cair-vos em cima… em banda desenhada.

    Ai, não.

    Não, não, não, não.

    Enfiar o universo da MENSAGEM numa banda desenhada de recorte pueril[8] não é nenhuma forma de “estimular entre os jovens o prazer da leitura,” ou qualquer outra parvoíce que possa dizer-se a esse respeito. Os jovens, coitados, têm sempre as costas largas. Este género de esforço é tão abominável, e tão inútil, como as tirinhas de BD de História de Portugal que constavam do manual de 6º ano dos meus filhos: alguém achava – mesmo – que os miúdos de nove e dez anos que foram criados pela televisão[9] conseguem compreender o sentido dos rostos contorcidos à frente e com grandes incêncios atrás que constam dos quadradinhos relativos ao Grande Terramoto de 1755? Quantas vezes é que pensam que eu apanhei com as perguntas fatídicas “o que é isto, mãe?”, ou “o que é isto, Clara?”, ou “Ou o que é isto, Professora?”, porque os fenómenos em causa estavam descritos em banda desenhada?

    woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

    E agora o ataque dos Grandes Eventos explicados em BD é direitinho à literatura, a demonstrar que já nada é sagrado, mesmo.

    Se mais ninguém disser que o rei vai nu, eu, por mim, chego-me já à frente. Querem o exemplo acabado de um projecto que não é bom para ninguém? Ponham os olhos neste.

    Não estou para aqui a resmungar. Estou apenas, com toda a tranquilidade possível, a reafirmar que existem áreas separadas. Se podemos argumentar com uma grande parte de verdade que as pessoas deixaram de ter tempo e de ter espaço, tanto exteriores como interiores, para continuarem a ler boa literatura[10], então devemos procurar uma forma produtiva de fazer frente a esta falta de contexto. Não é propriamente apresentar-lhes um resumosinho da história, como acontece tantas vezes na Wikipedia e na escola, que poderá, alguma vez, devolver-lhes o prazer como não há outro de serem parte integrante de uma obra de arte, já que cada livro é ele mesmo e o seu leitor – um livro que não estiver a ser lido é um livro que não existe.

    woman standing in front of mirror

    A boa BD é uma coisa. A boa literatura é outra coisa. Os formatos de suporte para cada uma destas duas coisas não podiam ser mais diferentes. É vergonhoso, positivamente vergonhoso, andarem a refugiar-se atrás de pretextos inúteis, tais como “atrair os jovens.[11]” E não poderiam inventar uma forma mais saloia de homenagear os nossos “grandes clássicos”.

    Que, à excepção do primeiro da lista, ninguém nos disse quais são.

    Mal feito, mal feito, mal feito.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E note-se que era uma notícia de mais de cinco minutos, que passou numa quarta-feira – ou seja, era uma notícia grande e passou mesmo a meio da semana, em plena competição por espaço e tempo característica dos dias úteis.

    [2] E olhem que era uma notícia concebida para espectadores muitíssimo impenitentes. Estava positivamente feita com os pés, sem o carinho e a beleza que a literatura exige para ela própria se levar a sério; e,  embora aparecessem diversas personalidades a debitar bastantes balelas, chegava-se ao fim sem sequer se perceber se o formato vai ser o do livro ou o do fascículo. Acrescente-se que o material que está postado online também não nos tira qualquer uma destas dúvidas.

    [3] A menos que a resposta seja apenas, e tão laconicamente quanto possível, “eram livros que já estavam no domínio público.

    [4] Estou a simplificar. O “em conjunto com a RTP” já foi informação que encontrei online. A notícia da televisão era mesmo minimal.

    [5] Hm? Mas… mas…

    [6] De certeza que a ALMEDINA também pertence, por seu turno, a outra grande editora qualquer; mas isso não está esclarecido em lado nenhum. Nem eu gosto de ir fazer investigação para depois voltar de lá deprimida.

    [7] A data da primeira publicação da MENSAGEM foi 1934. Vamos em 90 anos passados sobre este marco literário. E, já agora, aproveitamos para oferecer factoides aos nossos leitores.

    [8] Apareciam páginas do livro na peça informativa. Isto não é um juízo de valor sobre o talento do artista que as fez. É um grande aperto no peito quando pensamos na forma como todo este material será tratado.

    [9] Quando eu adoptei os meus filhos já não podia fazer grande coisa a esse respeito. Mas dei-me rapidamente conta de que todos os colegas e amigos deles, na escola e na rua, tinham sido criados da mesma maneira.

    [10] Até o meu Sebastião, que interioriza com grande rapidez os comportamentos-chave das pessoas, começa a dar alguns sinais de impaciência ao fim de dez minutos, quando eu estou a ler na cama, e – assim lhe parece – gaita, raios me partam, a grande malvada da mulher nunca mais apaga a luz.

    [11] A sério. É horrível. Eu já fui jovem, e lembro-me muito bem destas políticas. Tudo o que fosse destinado aos “jovens” era fatidicamente medíocre. Meu, que sufoco. Tirem as patas e deixem-nos em paz.


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  • História Universal da Infâmia

    História Universal da Infâmia

    Abandonei as surpresas inerentes ao estilo barroco e também as surpresas que levam a um final que ninguém viu chegar. Em poucas palavras, preferi satisfazer as expectativas em vez de providenciar grandes choques: depois de fazer setenta anos, creio que encontrei a minha própria voz.

    Jorge Luís Borges

    O RELATÓRIO DE BRODY – PREFÁCIO (1970)


    A mercearia da Belinha fica na rua mais estreita que ao fundo desagua no Rossio, entre a praça da minha casa e a esplanada do Zé Russo, logo seguida pela da padaria, frente aos taxis que por sua vez param à frente do tribunal, e rumo ao grande centro de tudo isto onde todos os sábados a festa vai ao rubro com o mercado e com as famílias e grupos de amigos que se juntam para almoçaradas e jantaradas infindas, dentro e fora de horas. De onde está, ou cá fora a remexer intemporalmente nos caixotes da fruta quando não tem fregueses, ou lá dentro a corujar desalmadamente quando chega alguém com uma história nova ao mesmo tempo que espreita através dos vidros, a Belinha só não vê o que não quiser ver. Ao fim da tarde, ao à hora da sesta, quando descem sobre a calçada os períodos de maior acalmia, ela aprecia sentar-se no banco sombreado pelas árvores majestáticas do Ministério da Justiça e saborear uma pausa de repouso na companhia dos taxistas, que lhe alargam ainda mais o campo de visão. Tem por melhor amiga uma menina muito apagada, magrinha e silenciosa, e de ocupação assaz duvidosa, que passa outros tantos períodos de acalmia na zona obscura junto ao fundo da loja, e que também deve dar-lhe a ver muitas e muito boas novas perspectivas sobre a vida quotidiana de Estremoz, porque a Belinha parece adorar a sua companhia. Ontem fiquei a saber que, desta vez, a Chefe da Rua tinha visto o invisível através do meu espelho. Fui até à mercearia para comprar tangerinas e uvas, porque a fruta da Belinha é verdadeira, e enquanto tal[1], nesta terra abençoada, é verdadeiramente deliciosa. Mas aquilo foi um anúncio às massas de tal forma desagradável que saí logo dali e ainda não voltei a entrar lá. Que se lixe a fruta.


    Para contar esta parte pouco interessante depressa, só preciso de contar que andei imenso tempo a sentir-me cada vez mais doente mas sem saber de quê até que fui parar ao hospital, onde me internaram nos Cuidados Intensivos. Quando acordei disseram-me que lhes tinha pregado um grande susto e viajado até às portas da morte, enquanto a mim me parecia mais, de tão estranho que aquilo era, que tinham antes conseguido fechar-me num reality show onde eu era era a última concorrente. Entre isto e o tempo que estive a comer aquela aproximação à comida quase fria e confeccionada sem qualquer espécie de sal que existe nos hospitais, e depois o tempo em que estive a recuperar do reality show dos Cuidados Intensivos numa caminha da Medicina 1[2], passou-se cerca de um mês e meio, e depois vim recuperar ainda mais para casa. E, entre uma coisa e a outra, a verdade é que só esta semana é que comecei a sair livremente à rua, a ver os meus amigos, e a celebrar com eles o meu regresso às rotinas quotidianas.

    Uma dessas rotinas costuma ser o convívio com o espírito de festa revisteira que a Belinha transporta consigo como uma bomba-relógio.

    yellow monitor

    Quando virei rumo à mercearia para ir comprar fruta e vi a sua imagem, sempre toda decorada com requintes de  capricho, a remexer nos caixotes com grande estrilho de colares e pulseiras, fiquei tão contente que apressei o passo, lhe dei um grande abraço, disse qualquer coisa como “ai, Belinha, que bom voltar a ver-te”, e lhe espetei com dois beijinhos muito sentidos. Ela olhou para mim apanhada de surpresa, e a primeira coisa que lhe saiu pela boca fora, desta vez, e por uma vez sem exemplo sem qualquer espécie de graça, foi,

    Olha lá, vais pagar-me o que me deves, não vais?

    Eu penso logo, no piloto automático,

    Porra, que chata que é esta gaja,

    e ao mesmo tempo respondo, ainda dentro meu sorriso inicial,

    Belinha, claro que te pago, então. Eu não fugi com o dinheiro, achas? É mais que fui internada no hospital e estava inconsciente. Depois fiquei lá até à semana passada, e só agora é que consegui começar a sair de casa. E não vês que vim cá logo comprar-te fruta?

    À medida que ela me ouve, os olhos azuis da Belinha tornaram-se pensativos por baixo da maquilhagem.

    Ah, no hospital. Estás doente, não é? Estás outra vez doente, cada vez mais doente. Escuta, sabes o que é que me disse aquela minha freguesa que te conhece muito bem?

    Eu cada vez duvido mais que esta freguesa da Belinha exista mesmo na vida real. Da maneira como ela repete as suas histórias, dá-me ideia de que esta freguesa é um personagem inventado que lhe permite dizer-me, e suspeito que dizer a toda a gente que lhe dê ouvidos, o que lhe apetece dizer a meu respeito mas carece de substrato fiável. Desde que alguém lhe lhe mostrou as minhas fotografias de outros tempos na internet, juntamente com os textos que noutros tempos se postaram na internet a meu respeito, a Belinha descobriu que eu agora sou uma sexagenária mas já fui uma boazona chamada Clara Pinto Correia. Ou seja, dá ideia que descobriu que, no meu caso, envelhecer foi um grave pecado em cuja indulgência eu não tinha o direito de incorrer.

    a person in a red dress sitting on the ground under a red umbrella

    Aquela minha freguesa, sempre que te vê aqui, diz-me logo, Tsss…Meu Deus… Coitada… O que aquela mulher era!

    Ó Belinha. Que disparate. Então uma mulher não tem o direito de envelhecer? Essa tua freguesa queria o quê, queria que eu fosse uma americana cheia de plásticas?

    Ah, mas ela mostrou-me as tuas fotografias, minha filha. E deixa-me que te diga, tu apresentavas-te bem.”

    Não caias de tão baixo. Tu, naquela idade, também te apresentavas bem de certeza.”

    Desta vez, no entanto, a freguesa da Belinha teria ido à mercearia contar uma história ainda mais infame a meu respeito. Ela voltou a estudar-me com um ar pensativo, e depois atirou-me com o golpe de misericórdia.

    Sabes, assim que tu voltaste para casa eu falei com a minha freguesa que te conhece. E ela disse-me assim, Aquela mulher… Como as coisas são, aquela mulher, que já deu na televisão… aquela mulher que dantes era da televisão, olha: agora anda a comer do padre!

    Aquilo inicialmente foi um choque, porque soava mesmo a “anda a comer o padre.” A pessoa até se arrepia. A comer quem? O Padre Francisco? Um senhor tão simpático? Eu? A comer o padre? Mas pronto, o choque passou depressa porque a frase fora, inequivocamente, a comer do padre. E isso só podia ter a ver com a minha situação financeira, que se resume a sobreviver com uma reforma mensal de ordenado mínimo, juntamente com a solidariedade social de Estremoz,  que é rápida e eficaz a responder às necessidades dos doentes e indigentes, e ainda juntamente com a organização protectora das minhas três irmãs, que são uma espécie de sindicato de protecção da ovelha transviada da família[3]. Juntando esforços enquanto eu jazia na minha cama da Medicina 1, tinham-se organizado para que as voluntárias do Lar de Santo André viessem cá a casa trazer-me o almoço todos os dias da semana – e é um almoço tão caseiro, tão saboroso, e tão bem servido, que chega e sobra para também ser um jantar.

    Fiquei tão mal disposta com o pressentimento óbvio do que queria dizer aquele “comer do padre” que já nem comprei tangerinas, nem uvas, nem nada – inverti a curva, afastei-me da mercearia o mais depressa possível, e quase que corri para casa num desespero de conseguir afastar-me do mal.

    man in green robe sitting on chair

    Perguntei a uma das senhoras que cá apareceu com o almoço logo a seguir ao meu encontro imediato com a “freguesa da Belinha”, e ela confirmou o meu pressentimento.

    Uma das pessoas  que se senta no conselho de direcção do Lar de Santo André é o Padre Francisco.

    E, com base nesta informação, à partida muito límpida mas à chegada certamente já extremamente turva, onde dantes eu recebia com imenso gosto esta nova rotina de o termos com o almoço caseiro muito bem servido trazido por duas senhoras da cidade, a Belinha conseguiu instaurar um autêntico Edward Jenner.

    Edward Jenner deixou a sua marca no caminho da Europa entre 1749 e 1823. Este cirurgião britânico era um menino do campo, filho de um pastor protestante e, a partir dos cinco anos, depois da morte do pai, um fruto da educação providenciada pelo irmão mais velho, que também era um pastor protestante. Isto aconteceu tudo em pleno Iluminismo, ou seja, numa época e num lugar em que a Ciência e a Religião estavam pouco menos que sobrepostas, pelo que as respostas para os grandes mistérios da Natureza se procuravam sistematicamente na Bíblia.

    Com o tempo, Jenner tornou-se um cirurgião muito popular e respeitado, amigo lá de casa dos grandes nomes da época e chamado a leccionar em Berkeley pouco depois de ter concluído a sua própria formação, prática e teórica. Juntamente com as aulas, juntou-se a dois grupos académicos que laboravam pela promoção do conhecimento médico, escreveu os seus artigos, aprendeu a tocar o seu violino com a devida doçura, compôs os seus poemas ligeiros com o devido virtuosismo, estudou com particular interesse os hábitos parasíticos de nidificação do cuco[4], e  começou a debruçar-se cada vez mais, primeiro só na população inglesa mas depois na do mundo inteiro, sobre os segredos com que a vacina da varíola se escondia do conhecimento humano.

    Fossem aqueles tempos politicamente correctos como são hoje, e Jenner seria logo proibido de inocular pessoas à vontadinha sem saber ao certo o que é que estava a fazer. Sendo assim, é muito provável que nunca tivesse descoberto coisíssima nenhuma, embora a atitude de princípio que presidia a essa ignorância fosse muito mais decente. E a ausência desta descoberta quereria dizer que o nosso conhecimento sobre inoculações contra vírus assassinos teria evoluído muito mais devagar. Mas estávamos na fronteira entre os séculos XVIII e XIX. A varíola era especialmente odiosa para as classes dominantes porque, ao contrário de outras armas mortíferas como a sarna e a sífilis, não respeitava estratos sociais. Ainda por cima, quando não matava os atingidos, deixava-os a todos desfigurados por igual para o resto da vida. Claro que, neste cenário, os grandes médicos tinham o caminho aberto para testarem as suas teorias no mundo vivo desde que fossem devidamente discretos – e que, claro, restringissem o mais que pudessem o seu campo de acção aos pobres e aos pretos[5]. Ora acontece que, graças a Deus, cobaias dessa natureza eram o material que mais abundava no planeta[6].

    Com base nas suas observações veterinárias, no campo e no laboratório, Jenner concluiu que a melhor defesa contra o agente da varíola[7] seria a inseminação de humanos com varíola bovina, que provocava no humano uma resposta muito mais suave mas aumentava imediatamente o quociente imunitário[8].

     Só para poder ter esta certeza,  não sabemos quantas pessoas é que a grande vedeta da medicina britânica teve que inseminar com soro de vacas doentes.

     No primeiro livrinho que publicou[9], enquanto outros colegas a quem tinha dado amostras do soro começavam também a testá-lo em pessoas que nunca foram identificadas, aparece, por extenso, o nome de sete voluntários.

    two guinea pigs eating carrot

    Agora, nós sabemos que sete cobaias não representam, minimamente, um valor de confiança para um investigador que está à procura de um soro capaz de desencadear uma resposta imunitária no organismo do ser humano. Talvez Jenner tenha antes seleccionado cinquenta cobaias. Ou mesmo quinhentas, para jogar pelo seguro. Hoje em dia seriam umas cinco mil, com um punhado de post-docs estafados, sempre agarrados às micropipetas onde escreveram o seu nome com uma daquelas canetas de tinta resistente à água, o dia inteiro a micropipetar o agente da vacina tirado das vacas doentes, a passar o dia inteiro o sobrenadante dos seus eppendorfs de um lado para o outro[10], tudo isto num silêncio de cortar à faca o dia inteiro porque agora é assim que se fazem as coisas[11].

    Edward Jenner descobriu mesmo a vacina para a varíola.

     Mas, pelo caminho, nunca saberemos quantos pobres e quantos pretos é que morreram nesta escalada para a nossa salvação colectiva.

    Se a história se passasse hoje, claro que o grande cirurgião seria chamado à Justiça e submetido a um longo e penoso julgamento, que, entre outras coisas, traria a público um rol angustiante de identidades das vítimas.

    Mas naquela altura, naquelas vítimas, detalhes desses eram considerados de somenos importância.

    Da mesma forma, para a Belinha, turvar as águas de um programa muito bem organizado de solidariedade social da sua cidade chamando-lhe “comer do padre” e atirando-nos a todos para a gamela dos pobrezinhos suplicantes também é de somenos importância – a malta percebeu a ideia, foi ou não foi? E, dito assim, até é mais colorido.

    topless woman holding red apple

    Se depois de ouvir a versão da “sua freguesa” eu tenho dificuldade em voltar a entrar na mercearia, muito bem – o problema é meu.

    Há mais quem queira.

    Aliás, até deve haver mais quem queira saber que “aquela mulher, que até já andou a dar na televisão”, agora anda “a comer do padre”.

    Belo romance.

    Hm, não.

    Soares de Passos não faria melhor  com as suas estrofes do que eu consegui fazer com a minha vida[12].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] … honra lhe seja…

    [2] Aqui, evidentemente, já tinha percebido que aquilo não era nenhum reality show. Mas se o que eu vi eram mesmo as portas da morte, bem – organizem-se. Que caos.

    [3] Que sou eu, caso não se entenda bem a frase.

    [4] Um verdadeiro parasita, a merecer maior desenvolvimento metafórico um dia destes. Na Primavera vem de propósito de África para acasalar, depois do que o macho desanda para casa e a fêmea espia os passarinhos pequeninos das redondezas, escolhe os que fazem o melhor ninho, despeja lá o seu ovo, e parte também ela para África. O bebé cuco costuma sair do ovo imediatamente antes dos seus irmãos adoptivos, e a primeira coisa que faz é deitar-lhes todos os ovos ao chão para se tornar filho único. A partir daí, tudo o que faz é berrar com fome, enquanto os pais adoptivos, muito mais pequeninos que o seu filho monstruoso e completamente esfalfados, correm pelos bosques o dia inteiro para lhe trazerem alimentos ao ninho. Muitos morrem quando o gigante está quase criado, mas, como o demónio é sábio, nunca morrem os dois. Quando o jovem cuco se sente capaz de voar, estica as patas, abre as asas – e parte para África, onde ficará a crescer e a engordar atá à Primavera seguinte, quando estará pronto para vir à Europa parasitar com o seu ovo o ninho de um passarinho qualquer. Por acaso, com tudo o que vimos e ouvimos, eu e o Dick ainda nos lembrámos de que poderia ser útil para outros pais adoptivos escrevermos uma autobiografia chamada O OVO DO CUCO. Mas concluímos que era uma péssima ideia.

    [5] Pedimos desculpa, mas o pensamento da época funcionava mesmo assim.

    [6] Bem, abundava na altura assim como abunda hoje. Até podemos escolher não dizer nada, mas sabemos perfeitamente que são precisos imensos pobres para sustentar um rico e que todos os pretos são pobres. Voltamos a pedir desculpa, mas esta história é mesmo tirada da vida real.

    [7] A ideia do vírus ainda estava longe da sua consolidação científica. Esta teve por esperar pelas publicações do  microbiologista russo Dmitry I. Ivanovsky, em 1980, e do microbiologista e botânico holandês Martinus W. Beijerinok, em 1893. Ambos os cientistas estavam a estudar uma doença que afectava as folhas da planta do tabaco.

    [8] Também aumentou o nosso léxico, e de que maneiro. Em português isto não é particularmente espectacular, mas pensem no negrume em que viveram os pobres ingleses, ou nos desgraçados alemães. A palavra latina para vaca é vacca, o que faz com que a varíola bovina se chame vaccinia. Jenner decidiu chamar ao processo de inoculação com o soro da vacciniavaccination. Ou, em português, vacinação, rapidamente simplificado para vacina por sucessivos acordos ortográficos. Estão a ver como se fazem as coisas?

    [9] Note-se que a introdução desta vacina foi muito polémica, sobretudo porque a classe médica não acreditava no efeito benéfico das vacinas. Os primeiros artigos que Jenner submeteu para publicação foram todos chumbados, e o grande cirurgião acabou por optar por uma primeira publicação em livro.

    [10] Ah, desculpem. Os eppendorfs. No caso das micropipetas, os eppendorfs são aquelas pontinhas translúcidas, descartáveis e renováveis, onde se processa o material em estudo. A gente fala deles tantas vezes, por tantas razões, que acaba por esquecer-se que os leigos carecem de nota de rodapé.

    [11] Eheheh! A berraria com que eu fiz as minhas coisas, no meu tempo, já ninguém me tira. Aprendíamos os palavrões mais debochados deste mundo, contávamos histórias francamente porcas, apaixonávamo-nos, chorávamos, valeu tudo. Foi bom.

    [12] Vai alta a lua! na mansão da morte. Já meia-noite com vagar soou; etc. A “mansão da morte” é o cemitério, só podia. E estes são os dois versos de abertura do famoso poema O NOIVADO DO SEPULCRO, que no final do século XIX todas as meninas sabiam de cor (também, não é tão longo nem tão difícil como isso), e que conta a história de dois jovens apaixonados, acabados de falecer, que no final conseguem abraçar-se numa única sepultura, deixando a outra vazia, com a lápide quebrada. É um bocado picante, porque para o fim o rapaz parece insinuar que vai, por fim – e já que não o fez em vida – fazer da rapariga sua mulher. Depois parece que quebrou a lápide. Estão a ver as colegiais do século XIX? Hm-hm.


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  • Somos tão pequeninos

    Somos tão pequeninos

    A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS (1874)


    Aqui de onde estamos quem é que nos vê?


    No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].


    Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.

             Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.

             Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].

    person making dough beside brown wooden rolling pin

             E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.

             “O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.

             “Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.

             “E como é que arranjaste isso?

             “Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.

             “Epá.

             Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.

             Não se fala das desgraças.

             Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.

             Há muitas alturas em que a distância dói.

             Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.

             Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.

             Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.

             “Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?

             “Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.

             A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].

    silhouette of man during sunset

             A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.

             “Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.

             “Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.

             “Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.

             Mariazinha encolhe os ombros.

             “Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.

             “Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?

             Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:

             “Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.

    brown wooden stand with black background

             De sobrancelhas erguidas ou franzidas  em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.

             “Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”

             O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,

             “Parece um filme americano”.

             E a Mariazinha, também num sussurro,

             “Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não  trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.

    [2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.

    [3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.

    [4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?

    [5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.

    [6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.

    [7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.

    [8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.

    [9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.

    A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.

    [10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.

    [11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.

    Somos cultos.

    E vocês têm que pagar para seguir em frente.

    [12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.

    [13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!

    [14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.


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  • O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”

    Jorge de Sena

    ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)


    Então,  mas…

    …é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?

    Caraças, estes malditos detalhes.

    Dão com os escribas em doidos.


    Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoasmas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, o Natal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.


    Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.

    Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.

    Na primeira década do século XVI?

    Gaita que isto foi rápido.

    Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.

    Esse Papa adoptara o nome Gregório III.

    Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.

    rock formations during daytime

    Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.

    Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.

    Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].

    Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.

    Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.

    A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.

    green grass field during sunset

    A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.

    É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.

    Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”

    Ewh.

    Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.

    É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:

    “As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]

    silhouette of people riding on camels

    Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.

    Que esta Luz caminhe agora convosco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.

    [2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos

    [3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.

    [4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.

    [5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.

    [6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.

    [7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.

    [8] E uma vez mais.

    [9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.

    [10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.

    [11] Ver  Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.

    [12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.

    [13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.

    [14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.

    [15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.


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  • Os portugueses concordam: o Sebastião é um cabrão

    Os portugueses concordam: o Sebastião é um cabrão

    No mais espesso do mato, na borda de uma clareira redonda, numa espécie de buraco dos ramos entreaberto como uma alcova, estava sentada no musgo uma mulher, tendo ao seio uma criança a mamar e no regaço as cabeças loiras de outras duas a dormir. Era essa a emboscada.

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS 1873


    É mesmo um grandessíssimo cabrão, é. Quando era mais ingénua e jovenzinha já tinha incorrido no erro de meter em casa outros cabrões, mas nunca nenhum outro com uma cara de pau tamanha. Os protectores de cabrões como o meu[1] que se deixem estar sossegado. O Sebastião não se importa minimamente com os nomes que eu lhe chamo, porque nisso é tão bom estratega como o André Ventura[2]. O Sebastião sabe que o importante é todos os dias ter muita atenção, o que requer tê-la com bastante imaginação – e, nisso, o meu ganha de longe na competição ao vosso, uma vez que o meu, ao contrário do vosso, possui uma imaginação positivamente desalmada. É uma das razões pelas quais é tão bom termos cães, não é? Podemos chamar-lhes todos os nomes feios que nos apetecerem, até podemos fazer isso na praça pública, e aliás até podemos fazer isso na praça pública PARA MILHARES DE DESCONHECIDOS. Grande coisa. Os nossos cães amam-nos incondicionalmente à mesma.


    Ainda ontem, depois de um castigo verbal e metafórico horroroso, quando finalmente o deixei deitar-se ao pé de mim o Sebastião foi extremamente discreto e deixou-me ler à vontade, mas isso foi só até sentir-me ceder, ver-me apagar a luz, e já estar devidamente posicionado para o ataque[3]. Depois virou a sua barriguinha branca toda para o ar, encolheu a parte branca das patinhas o mais que pôde, suspirou, e deitou-me aquele seu olhar meigo de quem desejaria deveras algumas festinhas no peitinho branquinho de rola. Claro que é um cabrão. Eu fiz-lhe as festinhas que ele queria, disse-lhe imensas palavrinhas meigas, ele suspirou ainda mais, andou muito de bicicleta, e eu ainda fiquei a rir-me. Palavras levas o vento. E, para as nossas palavras de insulto, estão-se os cães bem a cagar. Verbo escolhido adequadamente.

    Para quem ainda não foi obrigado a saber deste pequeno detalhe nada despiciendo para a história que se segue, o Sebastião é um galhardo exemplar daquela nossa raça muito única de proporções colossais e polivalência desconcertante que faz tudo desde pastorear ovelhas a assumir a guarda de montes inteiros, o Rafeiro Alentejano[4].

    Talvez também já saibam que o Sebastião me entrou em casa com dois meses, como prenda de Natal. Ao fim da tarde de dia 24 tocaram-me à porta já noite fechada, fui abrir de pantufas e roupão, e era o meu amigo Bruno, ali do Zé Russo[5], com um ar muito sério e uma caixinha de vinho na mão.

    O gajo é taberneiro, é normal que ofereça destilados aos amigos pelo Natal, mas quando puxei a ráfia para trás o que realmente lá estava dentro era uma coisinha minúscula, absolutamente amorosa, que dormia a sono solto mas acordou logo e se mostrou prontamente muito festiva, e ainda teve quatro dias para andar por ali a arrastar a barriguinha branca pelo chão, a fazer-me rir às gargalhadas com as suas manifestações precoces de personalidade endemoninhada, e a chamar-se Maria Alice, até eu conseguir, finalmente, aterrar com ela no Veterinário, deixando para trás em total desalinho a minha pobre cama juncada de pulgas ferozes armadas até aos dentes.

    E foi assim que nasceu o Sebastião.

    Ah, defendeu-se logo o Bruno com a audiência toda a rir. No monte, no palheiro, a chover como na rua, a cadela a dormir e oito cãezinhos aos berros? Eh pá – isto agora já era uma história para a geral – vocês estão a ver o Este, e mais o Aquele, daquela vez em que Não Sei Quê? Nessas condições até os criadores os confundem. A audiência, pelos vistos toda ela conhecedora destas questões delicadas do sexo dos cãezinhos, desatou a partilhar informação com grande primor.

    Só depois de todo este circunlóquio, que aliás é uma das razões pelas quais eu gosto tanto de conversas com alentejanos, é que o Bruno ligou de repente à terra e me gritou, como se a culpa fosse minha,

    E a Menina Clarinha está a fazer o quê aqui dentro com um cão? Não viu o sinal ali na entrada? Quer o quê, que aqui o Senhor Parente vá dar parte de mim à ASAE?”

    Eu vim só mostrar-lhe o seu menino Sebastião, que o Bruno ainda nem conhecia.”

    Vá mas é chamar pai a outro e tire-me isso daqui.”

    “Isso tem nome.”

    “Isso nunca mais cá entra.”

    A verdade é que eu na altura tinha mais que fazer do que ensinar a um cãozinho que ainda precisava de andar dentro da mochila com a cabecinha de fora fosse o que fosse a respeito de nunca mais voltar a entrar no Zé Russo, mas, a partir daí, bastou sempre o Bruno bater uma vez a bota no chão e fazer um “ssssta” que eu mal ouvia para a carinha preta do Sebastião, com as duas orelhas irrequietas e a manchinha branca na ponta do focinho curioso, desaparecer imediatamente do canto da porta.

    Podia ter sido um acaso.

    Pois, não era.

    Este raio deste cão é demasiado inteligente para seu próprio bem.

    Aos três meses, depois de passar horas infindas a observar-me, presenteou-me uma manhã com o espectáculo de ir às lágrimas da sua própria conchinha. Estava deitado de lado, como eu durmo sempre, muito bem enroscado no lugar vazio à minha frente, com a cabeça na almofada livre e a parte branca das patas de frente muito bem arrumada diante dela. Espiou-me pelo canto do olho, e, como eu me estava a rir e a fazer-lhe festinhas, sem vontade nenhuma de me levantar, foi-se encostando a mim com muita diplomacia, até nos deixarmos ficar ali os dois numa grande preguiça que infelizmente não pôde durar muito. Mas ainda hoje, muito grande e já mais que castrado ou ninguém continha aquela força toda, com uma preferência nítida por se esticar todo e me recostar a cabeça por cima dos pés, ainda tem noites em que vem procurar uma horinha de conchinha. Ou este novo truque que aprendeu entretanto de pôr a barriguinha branca para cima a pedir festinhas.

    Achei que um cão que já fazia conchinhas bem podia aprender a fazer coisas mais úteis, mas ele aprendeu o quieto, sentado, e deitado tão depressa que eu entrei numa de circo e o ensinei a dar a pata, e depois a outra pata, e já agora as duas patas. Aos quatro meses era hábil em partilhar devagarinho a banana da noite comigo, dentada da dona, dentada do cão, e assim por diante – e sabia perfeitamente que a festa não começava enquanto ele não estivesse deitadinho e todo sossegadinho. Já quase a fazer cinco meses, aprendeu finalmente, de uma vez por todas, a respeitar as regras da Grande Batalha Naval que andava a dar-me cabo da paciência e a ir, sem falta, todos os dias pelas seis da manhã, fazer cocó e xixi ao terraço.

    Como o tempo passa, pessoal.

    green tree on brown field under white clouds and blue sky during daytime

    O Sebastião fez agora um ano. Como toda a gente lhe acha muita gracinha, eu, mesmo só pela gracinha, deixei-me ir na conversa fiada do dito olhar de mel e fiz-lhe uma festinha de aniversário cá em casa. Das 18 às 21 as pessoas que foram entrando e saindo cantaram-lhe os parabéns e bateram-lhe palmas, os com mais consideração trouxeram-lhe saquinhos de biscoitos para cão[6], o animal andou ali durante três horas com a minha linda écharpe vermelha a fazer-lhe um grande laçarote ao pescoço, e estava tão vaidoso que nunca a desmanchou, levou festas de toda a gente sem precisar de pedi-las, fez uma malha tão grande num dos meus melhores collants que passei grande parte da festividade personificando com grande pose a saudosa Natália Correia…

    … e, no dia seguinte, logo pela manhã, caiu-me a alma aos pés quando descobri que o meu cãozinho encantador, afinal, é igual aos outros.

    Bastou-lhe uma festinha de anos[7] para o convencer que tinha adquirido aqueles direitos que só assistem àqueles que atingem posições especiais.

    Percebeu, sem qualquer sombra de dúvida, que a partir de agora tinha a faca e o queijo na mão.

    E fez cocó dentro de casa.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] É o que há mais, como se sabe.

    [2] O que, nas actuais circunstâncias, ainda é mais arrepiante do que já o era em dias vagamente menos calamitosos mas de alertas vermelhos já previsíveis em todo o País.

    [3] Ele sabe que eu nunca resisto à posição de ataque, embora deva pensar que quem goste daquilo só pode não bater bem: todo encostadinho a mim, aquele mastodonte peludo é um saco de água quente fantástico. Em troca, deixei de ligar o aquecimento. E ele dorme por cima da colcha, como é evidente. Enfim, uma mão lava a outra. E poupa-se ne energia. Os nossos antepassados já deviam conhecer estes expedientes.

    [4] A raça, que se distingue bem ao longe pela sua lindíssima cauda toda encaracolada, tem outras características mais perturbantes como estabelecer com os donos uma amizade de autêntica parceria, que parece absolutamente incompreensível em animais que foram seleccionados para uma rotina constante de todos os trabalhos pesados que se executam ao longo de áreas enormes conservadas por meses junto ao zeno do Inverno e a seguir levadas ao forno junto ao quarenta do Verão. Já várias pessoas de muitos géneros diferentes pararam ao meu lado quando me sentei onde pude, saturada de passear o Sebastião (a inversa nunca foi verdadeira), e desataram a falar do seu recém-desaparecido bicho igual a ele[4]; e eu acredito em tudo o que oiço porque o Sebastião tem sido a prova viva de tudo o que me contam. E uma coisa que as pessoas dizem muito, com muita intensidade, é que o Rafeiro Alentejano “é um cão de um só dono.” Não adianta nada levarem-no para um monte muito verde cheio de pessoas muito amigas, com muito espaço, muita comida gordurosa, muita água, e muita coisa séria para fazer, onde ele possa ser muito feliz: se o dono morre, ou desaparece sem ninguém saber como nem para onde, o bicho transforma-se na ilustração por excelência do antigo livro infantil inglês onde o animal fiel se deita em cima da campa do falecido e se deixa morrer sem verter uma lágrima. Claro que o gosto extremamente discutível dessas ilustrações era obra humana, e não canina; o que as pessoas me dizem é que “eles ainda esperam, mas eles já sabem, já nem são os mesmos, eles em pouco tempo lá arranjam a sua maneira de ir também.”

    [5] O famoso tasco das melhores sandes de carne assada de todo o País.

    [6] Os outros tiveram outro tipo de consideração e trouxeram comes e bebes para pessoas.

    [7] Que, para um humano, seriam sete anos.

  • O diabo existe: antes fosse uma surpresa

    O diabo existe: antes fosse uma surpresa

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    Já ninguém sabe onde foi que a borboleta bateu as asas e onde é que foi que esse movimento desencadeou o terramoto, mas esta nova versão do Caos que já tem crises na Ucrânia, na América, na Europa, no Médio Oriente… será que sabemos que as crises eram mesmo essas? Não vamos antes acordar amanhã e descobrir o quê, que de repente a República Centro-Africana tem todas as armas e todos os homens de que precisava para massacrar toda a gente de todos os países à sua volta porque andou secretamente a ser muitíssimo bem paga para dar guarida e espaço ao partido de extrema-direita que toda a gente achava que ia ganhar as eleições na Argentina[1]? Faz lembrar um certo permanentemente ébrio Edgar Albert Ponting que vem ajudar Lawrence Durrell como segundo-secretário para a Secção de Imprensa de Belgrado nas cenas da vida de diplomática coligidas em 1957 em STIFF UPPER LIP, e depois não dura mais do que um mês no posto por indecente e má figura. “Há anos li que ele tinha sido transferido para o Ministério das Colónias, e a partir desse dia, acreditem ou não, mal abria um jornal descobria que tinha rebentado uma crise na colónia onde Ponting se encontrava colocado nesse momento. É possível que se deva à influência de Ponting a rapidez com que o império britânico se desintegrou. Nada me surpreenderia.”


    Não olhem para mim. Não estou a brincar. Sempre disse a quem aguentou ouvir-me que a globalização era uma péssima ideia, mas estar hoje a assistir à demonstração exacta disso mesmo não me faz especialmente feliz.

    Num mundo horrível em que tudo é possível, a única coisa que esta nova demonstração de que o diabo existe sugere, aqui à superfície e em termos académicos, é um estudo mais aprofundado da forma como a situação americana controla o movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo. Claro que é uma sugestão muito chata[2]. O pior é que é verdadeira, portanto temos que aprender depressa a viver com ela. A nuvem negra que paira hoje sobre a qualidade e a decência do mundo não precisou sequer da invenção dos verdadeiros Anjos Caídos. É triste, é como se até o movimento de translação da Terra em torno do Sol estivesse em risco[3], mas a verdadeira sombra que paira sobre todos nós, independentemente de quem dê a cara por ela[4], vem mesmo da Terra das Oportunidades e não vai sair de cena tão cedo. Essa sombra, de costa a costa, é projectada pelo espantalho de Donald Trump e pelas leituras que o mundo faz desse espantalho. Do seu, e do número crescente dos seus imitadores[5].

    Laurence Durrell (1912-1990)

    Em 2017 eu fiquei  calada e composta no meu lugar enquanto, mesmo na minha cara, um comentador político por quem tenho o maior respeito dizia em directo para os americanos, e em diferido para uma parte impressionante do mundo, que a melhor forma de evitar a crise do petróleo e a escalada do aquecimento global era o investimento maciço no nuclear. Respeitei o meu papel[6], fechei os olhos, respirei fundo, e retrocedi no tempo por forma a ter outra vez 27 anos e estar a ouvir o Prof. Veiga Simão a dizer-me na cara que não tinha conseguido implementar o seu programa das centrais nucleares portuguesas por causa da série de seis reportagens que eu e o Henrique Monteiro publicámos em parceria no semanário O JORNAL[7].

    Ah, isso sim.

    Isso foi muito bom.

    Mas qualquer um de nós, se vive em democracia e tenciona dizer o que pensa, antes de mais nada respeita o que dizem os seus parceiros e aceita o lugar que lhe é atribuído – ou, se não respeita nem aceita, avisa antecipadamente que não poderá comparecer.

    Já agora, quem os tiver no sítio que esclareça que não pode comparecer por uma questão de princípios.

    skyline photography of nuclear plant cooling tower blowing smokes under white and orange sky at daytime

    Eu uma vez pedi desculpa ao produtor, fiz questão de acrescentar que a recusa não tinha nada a ver com ele, e a seguir disse isso mesmo: não posso ir ao seu debate por uma questão de princípios. Recuso-me a contribuir para dar qualquer espécie de visibilidade acrescida a pessoas por quem não tenho respeito moral ou intelectual ou ambos, e nem vou dizer nomes.

    Mais tarde apareceu-me no correio uma multa da BT fundamentada numa flagra de radar. Ia a guiar a a falar ao telemóvel ao mesmo tempo. E de maneira que lá passei mais uma noite a ouvir o Dick xingar-me a paciência com a questão de nós, portugueses, sermos todos uns condutores suicidas, coisa que eu, agora que era Mãe, deveria levar muitíssimo mais a sério.

    Nem sequer te orgulhas das minhas questões de princípios?”

    “Não me orgulho nada do dia em que ninguém, no teu país, te contratar seja para o que for – e depois como é que vais pagar todas estas despesas?

    Pois foi, por uma fracção de segundo até me esqueci que todos os Founding Fathers tinham escravos para o seu próprio bem e nenhum deles queria pagar impostos para o bem comum.

    woman driving car

    O Dick também tem princípios. Também recusa embarcar em imensas minudências por uma questão de princípios. Tínhamos os dois tantos princípios, baseados em tanta cultura, que às vezes, à noite, com os putos adormecidos que nem uns anjinhos, ele me abraçava e dizia,

    Ai Clarinha por favor, vamos parar com isto, parecemos dois boxers muito velhos e muito bons que já partiram a cara toda um ao outro mas nunca mais saem do ringue,”

    e adormecíamos logo que nem uns anjinhos, nós também.

    Como nos casámos em Las Vegas, ainda considerámos ir divorciar-nos a Reno. Eu ainda andei para ali a cantar aquele clássico imorredoiro do Johnny Cash, I SHOT A MAN IN RENO JUST TO WATCH HIM DIE. Mas não dá. Um casamento é uma aventura e um divórcio é a treva, e não há nada a fazer a esse respeito.

    A seguir fomos tomar café e eu disse,

    Dickinho, se conseguirmos ter menos princípios talvez daqui a uns anos…

    Não,” disse ele, muito baixo, muito firme, muito gajo. “Clarinha, tu já viste bem a grande porcaria em que o mundo inteiro tem vindo a transformar-se? Se não forem as pessoas como nós a ter princípios, quem é que vai tê-los? Desculpa, a Hillary Clinton, com todas as suas ligações a Wall Street e à Alta Finança? Achas? Mesmo? Que essa gente, que controla a América, que por seu turno faz tudo o que pode para dominar o mundo, tem princípios? Clarinha?”

    red and blue UNKs neon light signage

    O Dick sempre teve, e continua a ter, este traço de personalidade irritante de ver claramente o passado, sumarizar o presente numa frase, e ter umas ideias sobre o futuro que nunca são desinteressantes. Antes de aparecer o Obama, andava excitadíssimo com a rapidez com que os latinos e os chicanos se reproduziam. Aquela gente estava a transformar-se na nova maioria populacional, ia toda votar, era toda católica, portanto, finalmente – tiro no porta-aviões. A Compaixão ia entrar nas prioridades do País Mais Poderoso do Mundo.

    Depois apareceu o Obama e estivemos três horas aos berros de grandes visões no Skype. Ele convenceu-me que era possível quando ainda ninguém sabia dizer Barak.

    Depois vivemos durante oito anos com um governo que agora, visto daqui, parece um franchising das Nações Unidas.

    Mas, exactamente durante esse Intervalo do Bem, fomos obrigados a aprender as lições mais amargas de todas. O Presidente do País Mais Poderoso do Mundo pode ser bonito, um grande dançarino, um grande cantor, um grande stand-up comedian, um gajo que arrepia toda a gente quando se atira mesmo à jugular, um político que detesta o Putin ainda mais explicitamente do que a Princesa Diana detestava o Príncipe Carlos, o grande herói que consegue, por fim, pôr a funcionar um Sistema Nacional de Saúde tão bem montado que Donald Trump teve quatro anos para espernear mas não conseguiu desmontá-lo[8], o ser humano que chama sonhadores[9] às pessoas que dantes eram conhecidas como imigrantes ilegais e dá mesmo tudo por tudo para regularizar as suas vidas[10].

    assorted bobblehead figurines inside the store

    Os seus discursos podem ser bestiais, a sua mulher pode ser linda, podem estar os dois indiscutivelmente apaixonados e dedicar todo o tempo que tiverem às filhas, e mais. Michelle pode abraçar a solo causas dificílimas para os americanos, como por exemplo correr as escolas dos cinquenta estados para estimular alunos e professores no sentido de comerem menos[11] e se mexerem mais. Pode não ter medo de dançar ela própria na televisão, para mostrar que fácil e que curtido que é dedicar quinze minutos de intervalo a uma cena de aeróbica. Pode fazer coros para o Bruce Springsteen com um à-vontade total, e agarrar na pandeireta para marcar o ritmo do GLORY DAYS como se nunca fizesse mais nada na vida. Pode fazer discursos de improviso. E – no total oposto do desastre pessoal de Hillary – toda a gente concorda: “she’s a sweetheart.”.

    Quando aqueles dois se retiraram era só apresentador de late night show atrás de apresentador de late night show, na rádio e na televisão, a implorar-lhe que se candidatasse ela a seguir.

    Ela ria-se, mas ria-se mesmo, e começou a dar uma resposta que acabou por transformar-se num refrão extremamente apetecível,

    Watch out, DC, here I come![12]

    E era um sonho tão lindo que foi preciso aqueles dois desaparecerem mesmo de cena para…

    … que horror, foi só nessa altura que saltaram das névoas marginais todas aquelas sombras que estavam escondidas por trás da luz.

    Essas sombras continuam a nunca se ver bem, mas desde que agarraram nas rédeas nunca mais as largaram, e é exactamente como na história do Ricardo Salgado, nós não podemos provar absolutamente nada mas sabemos que são elas que mandam em nós.

    Pessoal, vocês estão bem a ver o xadrez do inferno que agora se joga a toda a nossa volta? Estão a ver bem que trémula que já se tornou a noção da democracia, quando num total de 27 países há quatro que votam contra a continuação do apoio da União Europeia à Ucrânia e toda a gente faz disso uma grande desgraça, como se fosse obrigatório votar em bloco, ao melhor estilo ditatorial? Num mundo destes, as questões de princípios não poderiam ser mais importantes. O respeito tem que começar a ser ensinado nas escolas. Anteontem, no fim de uma explicação, disse a um miúdo de catorze anos que teve a lata de me fazer perguntas muito ordinárias sobre a minha vida amorosa[13] que, antes de mais nada, ele nunca deveria ter podido fazê-las estritamente por uma questão de respeito, e ele recuou um passo, abriu muito os olhos, respirou fundo, e acabou por perguntar,

    O que é uma questão de respeito?

    Ainda por cima, não esqueçamos que o mundo sempre foi assim desde que temos registos da actividade humana. Os jardins de Shangri-La sempre estiveram à mercê de vandalismos sacralizados no intervalo entre duas batalhas sanguinolentas travadas no âmbito de uma guerra interminável com uma tendência raivosa para rebentar em nome de um deus qualquer, ou mesmo, pura e simplesmente, em nome de formas diferentes de venerar o mesmo deus – é ver como isso abunda desde que os gregos cilindraram os troianos, desde que os vikingues invadiram a Mongólia, desde que os hunos desceram até França, desde que Hypatea de Alexandria foi lapidada por uma turbamulta de cristãos em puro estado de histeria porque preferia a Filosofia à Religião, desde que Henrique VIII mandou decapitar o seu grande amigo Thomas More apenas porque ele se recusou a tornar-se anglicano e a sua filha Maria Tudor mandou cinco mil súbditos para a fogueira apenas porque eles se mantinham protestantes em vez de se converterem ao catolicismo, enfim – é rememorar todos estes lugares-comuns, mais todas as actividades diabólicas dos condutores de seitas como a dos seiscentos americanos que o reverendo Jones levou consigo para a Guiana em pleno século XX para lhes ordenar que se suicidassem em massa depois de envenenarem em massa, ordem que a seita acatou com tanta limpeza como a das meninas apaixonadas por Charlie Mason que esfaquearam a Sharon Tate, é eu contar-vos que aos dezanove anos, ao fim de três semanas, o meu filho mais velho fugiu aterrorizado da sua primeira experiência de vida independente com mais outros três rapazes num apartamento para os lados das Amoreiras porque eles passavam a noite inteira a meter linhas de coca enquanto viam na TV-Cabo programas sobre os Illuminati e sobre as seitas Satânicas, é deixar o puto dormir uma noite na cama da Mãe para conseguir dormir mesmo, é voltar a embalá-lo como dantes, engolir em seco, e recordar, uma vez mais, que a humanidade tem uma face lunar que quanto menos a gente tiver que ver melhor.

    banknote

    O pior é que, em tempos como este, temos que vê-la todos os dias.

    E o condutor de seita diabólica mais diabólico de todos é, sem dúvida, o Donald Trump.

    Se me disserem que Putin é um ditador bastante mais aflitivo do que Trump, e que, muito provavelmente, a sua longa escola no KGB lhe permite ter hoje em dia uma boa metade do mundo na mão, eu concordo incondicionalmente. Qualquer psicanalista que proponha a tese de Putin ter passado a infância a sonhar que havia de ser um novo czar de uma nova Grande Mãe Rússia está certamente cheio de razão, e qualquer geoestratega que acrescente que ainda por cima o cabrão conseguiu mesmo alçar-se exactamente a essa posição ainda completa melhor a composição. E por aí fora, devido a várias outras palavras acabadas em mente, tais como folha, automóvel, e paraquedista. Putin é o veneno russo personificado, é possível que daqui a uns anos seja o dono de nós todos e também da TAP, e tudo isto se vê bem e se entende muitíssimo bem.

    O que torna Trump incomparavelmente mais diabólico que Putin é que ele já é o dono de nós todos e também da EDP, mas, como as suas manobras foram congeminadas nas sombras que se escondiam por trás da luz dos dois mandatos Obama, e ainda por cima o gajo é bruto que nem uma porta e um consumado bandido que se orgulha da sua esperteza que lhe permitiu não pagar um cêntimo de impostos durante vários anos seguidos e ao ser desmascarado pelos democratas transforma essa esperteza num slogan de campanha[14], nada do que lhe diz respeito se vê bem ou se entende bem.

    A única coisa que se vê muito bem é que há cada vez mais dirigentes espirituais no mundo inteiro que vêem em Trump o modelo perfeito de indecência e brutalidade a seguir por forma a capturar o entusiasmo de todo o lixo dos seus países – e levem a taça que isto até Jesus sabia, qualquer país é uma lixeira infecta à espera de ter condições para cobrir todo o terreno livre à sua volta. Depois abrirá as portas às hienas e às gaivotas, esta nova fauna mantém o lixo controlado com muito prazer, e nós umas vezes somos necessários para limpar o chão de um novo arranha-céus na Malásia e outras vezes somos absolutamente descartáveis. O que já não somos, quando chegar a hora, é donos do nosso destino. E ainda bem. Quem é que quer ter que pensar no seu destino?

    Que neura.

    man in white and blue hat

    O nosso destino, para falar bem e depressa e inequivocamente, é sempre muita mau.

    Ainda por cima – e este desastre inacreditável Trump já conseguiu semear como sizânia pelas sete partidas do mundo – já nenhum povo acredita na fiabilidade do sistema eleitoral do seu próprio país. Com este horrível presente envenenado já a extrema-direita americana conseguiu minar o chão que a humanidade ainda vai tentando pisar para sair da lixeira. Não adianta. As notícias são todas falsas e os votos foram todos manipulados, portanto a democracia nem sequer existe a não ser nos tais supracitados e muito louvados romances russos onde se aprendem todos os segredos do funcionamento do Mal.

    E nós, os discípulos, já nos tornámos melhores do que os mestres.

    Até convivemos fraternalmente com as hienas.

    Somos o futuro.

    Deixem-nos passar.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Isto agora é mesmo assim, havendo um partido de extrema-direita que concorra a qualquer eleição já nem se faz trabalho de casa: é evidente que essa eleição será falsificada, e que, consequentemente, esse partido vai ganhar.

    [2] A ter que escolher uma única explicação para o controlo do movimento de rotação da Terra, eu por mim prefiro a de Isaac Newton, que atribuiu esse controlo ao trabalho árduo, constante, e seriamente matemático dos anjos. Este controlo explicava imensas passagens estranhas das Escrituras através de diversas operações de cálculo baseadas em geometrias que devem ter feito do Pitágoras o morto mais feliz do mundo.

    [3] Sobre este, Newton preferiu nem se pronunciar. Cerca de setenta anos antes, o luterano Johannes Kepler, que estava em Praga a fazer os horóscopos diários do Imperador católico Rudolfo da Baviera, já tinha estragado a festa a toda a gente quando percebeu que as posições irregulares dos planetas enquanto giravam em torno do sol se devia ao facto de as suas órbitas não serem esféricas, como sempre se pensara, mas antes elípticas. O próprio Kepler odiou este resultado, e foi muito claro a esse respeito quando o publicou “por respeito para com Filosofia”. A esfera é o símbolo da perfeição. A elipse é o símbolo de tudo quanto é caótico e ficou para sempre inacabado.

    [4] Ou queira parecer que dá, um apetite que já não serve nem para vender jornais, mas serve sempre para aumentar ainda mais a confusão.

    [5] Nem que mais não seja, porque é bastante mais fácil berrar do que reflectir. Mas isto é só a base antiquíssima por onde começa a história de todas as tragédias humanas, incluindo aquelas que nos são relatadas minuciosamente por Diogo do Couto, João Baptista Lavanha, e Francisco Vaz d’Almada, nas HISTÓRIAS TRÁGICO-MARÍTIMAS. Muito berra toda aquela gente. Às  vezes, como no caso da Grande Nau Santo Alberto, berra e morre afogada com a terra ali mesmo à vista. Mas como chegar a terra, por muito bem que ela se visse? Lá está – haveria que reflectir. Já agora, também haveria que ter reflectido antes de desobedecer sistematicamente às ordens da Coroa e não fazer qualquer espécie de manutenção nas Grandes Naus da Carreira das Índias durante todo o tempo em que elas estavam aportadas em Goa. Enfim. Banalidades.

    [6] Estava ali para falar dos benefícios e malefícios da Reprodução Medicamente Assistida, por causa do livro escrito em co-autoria com o Scott Gilbert FEAR, WONDER, AND SCIENCE, que ia ser publicado em breve pela Columbia University Press. Por acaso estudei criteriosamente a energia nuclear durante o meu curso de Biologia, sei por razões muito sérias que é a pior solução possível para toda e qualquer crise e das energéticas quanto menos se falar melhor, e claro que me apeteceu vituperar tudo isto – mas não competia a nenhum dos convidados interromper brutalmente o moderador.

    [7] Talvez o Henrique ainda tenha essa série, ou saiba onde ela está. O tema é intemporal. Lembro-me de termos começado o primeiro artigo incitando o leitor a ler mesmo, com a seguinte promessa: “Pode ler tudo até ao fim descansado. Verá que não falaremos de passarinhos nem uma única vez.” E, se bem prometemos, melhor cumprimos.

    [8] Não sei se isto, à época, ficou suficientemente claro em Portugal, mas nunca tinha existido qualquer espécie de SNS na América. Quarenta milhões de americanos sem dinheiro para comprarem o seu próprio Seguro de Saúde bem podiam esticar o pernil diante das Urgências dos Hospitais, que todos aqueles médicos, com todos os seus Juramentos Hipocráticos, nem sequer olhavam para a porta: sem Seguro de Saúde, ninguém podia entrar num hospital americano. Antes do Obamacare entrar em efeito no Massachusetts, precisei de fazer um exame mesmo chato, uma punção espinal, e nem queria acreditar: despacharam-me sem anestesia logo ali na Urgência, para eu poder voltar para casa pelo meu pé assim que os analgésicos começassem a fazer efeito. O Seguro que a Universidade proporcionava aos Professores Estrangeiros não pagava cá mordomias tais como refeições e internamentos.

    [9] Durante oito anos, antes de Trump começar a construir a vergonha do Muro e a separar as suas famílias, aquelas pessoas foram os dreamers. Os estudantes universitários que falavam inglês conseguiram chegar ao ambicionado Cartão Verde. A prazo, há de permitir-lhes naturalizarem-se, e, a seguir, chamar pais e filhos. Desde que a Duck Dynasty fique onde está a matar patos.

    [10] Conseguiu regularizar tantas, de forma tão hábil, que ainda hoje não há percentagens. Percentagens sérias implicariam que seria fácil desencadear progroms sérios. Há coisas que os negros americanos sabem melhor do que ninguém.

    [11] E melhor. A maioria dos americanos desconhece o sabor da fruta e dos legumes. E nunca bebeu água na vida.

    [12]Cuidado, Casa Branca, aqui vou eu!”

    [13] Amorosa é como quem diz. Eu com 68 anos e o menino a fazer-me perguntas sobre a minha vida sexual. A parte mais desastrosa é que o Josué não estava, com toda a evidência, minimamente consciente da sua própria ordinarice e das razões óbvias que tornavam aquelas perguntas inaceitáveis.

    [14]Yes, America! Can you hear me! I didn’t pay taxes! THAT PROVES THAT I’M SMART!” A audiência levanta-se a aplaude-o de pé. Milhões de pessoas orgulham-se da esperteza do seu dirigente espiritual. A gente nunca viu nada assim e sente a cabeça a andar à roda.

  • Nunca acordes o gato que dorme

    Nunca acordes o gato que dorme

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    O outro grande estrago que Donald Trump legou ao seu país foi o apadrinhamento silencioso da invasão do Capitólio por fundamentalistas da supremacia branca, todos eles demasiadamente armados e todos eles igualmente parvos. Ao encorajar confrontos físicos e perigosos dentro do berço da democracia americana, o presidente recém-deposto deu a todo o seu vasto eleitorado da DUCK DINASTY uma lição inesquecível de mau perder.


    Então, e antes de mais nada, o que vem a ser a tal de DUCK DINASTY? Tenho a impressão de que todos vocês dormiriam mais descansados se não soubessem nada disto, mas aqui vai.

    A DUCK DINASTY é um reality show que já dura há uns bons vinte anos, e que aparece com frequência na capa das revistas que se interessam por reality shows, o que quer dizer que é um reality show extremamente popular, muito embora esteja restrito aos canais da televisão por cabo. Mostra-nos a história de uma família enorme, que vive em meia dúzia de trailers num pântano do Louisiana a que chamaram seu sem pedir autorização a ninguém. Claro que o governo do Louisiana já deu pela sua ocupação selvagem, mas, e sobretudo enquanto eles são os heróis de um reality show de grande audiência que apareceu em massa nas revistas a dizer que ia votar no Trump – quem é que lhes vai à cara? Quem é que dá início à Guerra Civil que tanta gente teme?

    Não, nós não.

    Deixem-nos ser um emblema tresmalhado do Louisiana e filmem bem a beleza dos nossos pântanos[1].

    E quem são, exactamente, estas pessoas tão perigosas?

    Há uns avós de cabelo muito comprido e T-shirts psicadélicas, verdadeiros DEAD HEADS[2], que dão aos mais novos uns conselhos que nos dão vontade de estraçalharmos logo ali a televisão para não termos que ouvir mais.

    Os homens têm barbas de ZZTOP[3], uma bandana à volta da testa, camuflados, armas bem à vista, e botas da tropa. Passam o dia a caçar patos[4], daí o nome da série.

    As mulheres são loiras, gordas, andam de fato de treino e botas da tropa, e passam o dia a cortar cupons de desconto no supermercado, depois do que vão ao supermercado gozar-se dos descontos a que têm direito – “viste bem aquela puta da caixa?” – “então era uma latina, como é que querias que entendesse o que é um cupon?”.

    E também há crianças que andam sem nexo por ali, e são dezenas delas, tantas que nem se percebe de quem é que são filhas, muito magrinhas, muito mal vestidas, todas de botas da tropa, as meninas com o cabelo loiro comprido demais, os miúdos com o cabelo loiro cortado com pente três; e estas crianças estão sempre a ter problemas na escola pelo que as mães têm que ir lá falar com os DTs, e a única coisa que podemos fazer é louvar a paciência de santos dos professores que as recebem.

    OK, esclareça-se o mistério e sejamos honestos: as botas da tropa devem-se ao facto de eles viverem num pântano. Mas é inegável que gostam. Existem botas melhores para lidar com a terra movediça dos pântanos.

    Quase toda esta gente vivia da Segurança Social, embora neste momento viva dos rendimentos da DUCK DINASTY.

    Pode ser por efeito de hipérbole, mas a verdade é que é toda esta gente que representa o eleitorado de Donald Trump.

    E portanto, quando Trump incitou os seus seguidores a terem o pior perder do mundo, e, em consequência, eles aprenderam a lição num instante e desembarcaram em DC prontos a fazer a democracia em estilhaços.

    Não sei se estão bem a ver, mas, para a DUCK DINASTY, aprender a ter mau perder é muito fácil.

    É uma lição muito apetecível with God on our side[5], e ainda por cima é agradável.

    O drama começa a seguir.

    Uma vez aprendida, já que não custa nada a aprender, esta lição transformou-se nas vassouras do APRENDIZ DE FEITICEIRO que se multiplicam sem intervenção humana, pelo que pode agora carregar no seu próprio replay de cada vez que se sentir ameaçada. Isto é o que faz os políticos americanos normais, tanto democratas como republicanos, serem tão cautelosos com a aprovação dos orçamentos: a curto prazo, aprova-se desde já todo o bom que seja inimigo do óptimo, porque ninguém quer acordar o gato que dorme.

    E vá lá, que enquanto for só um gato estamos nós muito bem.

    O que nenhum americano com dois dedos de testa quer, acima de tudo, é que o gato volte a transformar-se silenciosamente num tigre de dentes de sabre enquanto não está ninguém a controlá-lo.

    Toda a gente com responsabilidades políticas, incluindo os presidentes, pensava que sabia tudo sobre a longa vida das ervas daninhas, e sobre as duas cabeças da hidra que crescem onde quer que se corte apenas uma. Mas isso foi só até Trump chegar à Casa Branca, eleito por toda a massa iletrada dos supremacistas  brancos, que de formação só tinham o treino em carreiras de tiro e a frequência de uns quantos campos de sobrevivalismo, mas que nunca tinham votado antes. Feito isto, basta a presença do seu fantasma, arrastado num grande carnaval de conivências de um julgamento criminal para outro onde está sempre um microfone aberto e incondicional à sua espera, para levar quase instantaneamente a grandes crises sem precedentes da História americana, como a demissão, na passada semana, do Alto Representante da Câmara dos Representantes, onde os republicanos detêm a maioria.

    Este homem, como a maioria dos outros políticos, era um republicano bastante normal. Enquanto tal, deixou de conseguir continuar a segurar a barra[6] perante a gritaria dos republicanos minoritários, alinhados por trás do espantalho de Donald Trump exactamente como os portugueses saturados da disfuncionalidade partidária se alinham por trás do André Ventura. O homem não propõe solução nenhuma, mas ao menos está todos os dias no Parlamento a dizer que tudo isto tem de mudar e isso basta-nos. E certamente alguma razão há de ele ter, para conseguir aparecer nas notícias todos os dias, como acontece desde que o vimos aparecer pela primeira vez.

    Senhoras e senhores, façam barulho para o fundamentalismo populista que está na moda neste grande final do primeiro quarto do terceiro milénio.

    Continua.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu vi muitas vezes esses pântanos. Além de serem enormes, são de uma beleza que corta a respiração. Considerados área protegida, proíbem, obviamente, a instalação de trailers. Mas estes gajos representam o que América tem de pior. Ai é proibido? As proibições são para as ditaduras. Embora instalar os trailers, pessoal.

    [2] OS DEAD HEADS eram, inicialmente, os admiradores incondicionais dos GRATEFUL DEAD por causa de Jerry Garcia, a quem chamavam Captain Trips por causa dos seus solos incríveis de guitarra. Agora que Jerry morreu, continuam a seguir os GRATEFUL DEAD pelo prazer puro e simples de apupar furiosamente quem quer que seja que se atreva a pegar na guitarra por ele. Andam todos de cabelo comprido e de T-shirts psicadélicas. Não se lavam. Numa sala cheia de gente, reconhece-se bem o Dead Head que lá foi parar sabe Deus como.

    [3] Lembram-se, ao menos, desta banda? Capturou de tal forma o imaginário americano que até aparece nos filmes pornográficos. São três músicos de barba até ao umbigo e uma preferência estranha pelos instrumentos de sopro. Ainda mexem.

    [4] Como é evidente, não quer dizer que cacem todos os patos que tentam caçar. O falhanço no tiro proporciona-nos é minutos de palavrões e insultos como raramente se usam na vida normal. You cocksucker bastard!

    [5]Com Deus do nosso lado”: toda aquela gente diz isto quanto planeia os seus piores golpes. Depois não os executa, mas só o excitex…

    [6] Muito provavelmente, também ele estava implicado em qualquer coisa que permitia uma chantagem terrível por parte de Donald Trump, ou mesmo pelo seu chefe directo, o senhor Vladimir Putin.

  • Krakatoa

    Krakatoa

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.

    Lembram-se do Jair Bolsonaro?


    Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.

    Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.

    Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”

    Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.

    Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.

    Vamos lá, Jair, há prioridades.

    Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.

    Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.

    Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.

    a crowd of people walking down a street

    Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”

    Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.

    Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.

    Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.

    Red, Blue, and Green Parrot

    Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.

    E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?

    Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.

    BLACK LIVES MATTER?

    O que é isso?

    Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?

    Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.

    grayscale photo of rally

    Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.

    Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.

    Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”

    E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.

    Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.

    man in blue crew neck t-shirt wearing white mask

    Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?

    Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.

    Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?

    Separem as águas, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.

    [2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.

    [3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.

    [4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.

    [5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.

    [6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.

    [7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”

  • A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?

    A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?


    OK, é verdade. Não gosto de puxar nos galões, mas acredito na voz da experiência. Para o melhor e para o pior, eu passei vinte anos na América, fui casada com um cientista americano de quem ainda hoje sou muito amiga, e sei que o que eu quero contar-vos é mesmo como eu quero contar-vos. Querem voltar a dizer-me que os americanos são uns broncos ignorantes que passam todo o seu tempo livre a beber Budweiser e a comer demais usando apenas as mãos enquanto assistem aos jogos de baseball da televisão? Porreiro, podemos ir ainda mais longe. Os americanos são os cidadãos daquele país com trezentos milhões de habitantes em que 35 por cento da população é obesa e 75 por cento tem armas, e muitas dessas armas são semi-automáticas, como se alguém precisasse de uma AK47 para caçar veados. São os imbecis que nunca tiveram um passaporte na vida[1], uma vez que ninguém precisa de passaporte para ir ao Canadá comprar as suas bebidas por preços realmente competitivos, assim como não precisa dele para ir a Puerto Rico, ao Hawai passar uma semana de férias salutares pelo meio da neve dos seus Invernos. E não hesitam em dizer que preferem este tipo de férias porque “têm medo” de vir à Europa, e se nós perguntarmos porquê respondem logo, com toda a franqueza, “sei lá, toda a gente diz que aquilo é muito perigoso”.

    Tudo bem.

    Agora, querem ver-se ao espelho? Isto é tudo verdade, mas vamos lá com calma: nós podemos ter os passaportes cheios de carimbos de todos os lugares remotos do mundo que percorremos à boleia e com a mochila às costas, podemos ler muitos livros e falar muitas línguas, que isso não nos faz menos broncos ou menos ignorantes. E esta nossa nova cegueira nocturna não poderia ridicularizar-nos melhor: então agora tudo o que está a passar-se na política americana, em alguns casos pela primeira vez desde que a América existe, está a passar-se por causa da Ucrânia?

    Ai por favor, desculpem.

    Provincianos.


    Vai daqui um alerta sentido, tanto ao povo português como a toda a coorte de “comentadores”, “observadores”, “peritos”, e outras pessoas assim, que supostamente deviam explicar estas situações ao povo português. Detesto armar-me em boa e detesto fazer inimigos, mas francamente. Quando é que alguém aparece na televisão pública – ao menos – a explicar-nos com clareza que a guerra na Ucrânia é só um estrago colateral no triste contexto daquilo que está realmente a acontecer na América?

    Muito pelo contrário, e muito em concordância com o espírito importado do Halloween que vamos ter que aturar por estes dias,  até ao momento em que a Câmara dos Representantes fica sem Alto Representante, e assim sendo o governo deixa de ser governável… bem, não. Desculpem, vou repetir-me mas há que martelar bem estas sílabas. Isto a que temos assistido não tem a ver com o apoio americano à guerra na Ucrânia.

    blue and yellow striped country flag

    Tem a ver com os piores dos perigos que podem vir a ter que ser enfrentados em democracia.

    A demissão do Senador McCarthy, e tudo o que aconteceu antes que não lhe deixou outra saída, faz antes parte de uma crise da política interna americana que entrou em rota de colisão consigo própria desde que o Colégio Eleitoral deu a vitória a Donald Trump depois de Hillary Clinton ter ganho as eleições pelo voto popular.

    Aliás, aconteceu exactamente o mesmo na corrida de Al Gore contra George W. Bush, portanto já sabemos que estas vitórias por uma unha negra são perigosíssimas. Gore teve a maioria popular, Bush foi eleito pelo Colégio. Sempre que as margens de êxito são assim tão frágeis, as democracias precisam de um amor e carinho muito especiais para não irem ao fundo. Infelizmente, “amor e carinho” não é linguagem que um, republicano americano entenda. George W. decidiu invadir o Iraque, e, em consequência, deixou-nos um Mundo em que o Califato degolava as pessoas em directo e ao vivo correndo pelo deserto em tanques americanos e a Arábia Saudita usava recursos americanos para eliminar do mapa um povo inteiro no pesadelo da Guerra do Iémen.

    Depois de tudo isto, ainda houve o Afeganistão. Que ideia foi aquela, se até a todo-poderosa URSS já tinha ido antes estampar-se naquelas montanhas inexpugnáveis[2]? Foi qualquer coisa, porque até o nosso homem Obama, por muito que tenha ganho o Nobel da Paz como incentivo, não conseguiu acabar com essa guerra, assim como não conseguiu cumprir uma das suas promessas eleitorais mais importantes e acabar mesmo com a prisão política de Guantánamo, muito embora tenha assumido a clarividência de dar a ver a todos os americanos, e aos povos do mundo inteiro, a realidade sobre o que lá se passava[3].

    people walking around white concrete building during daytime

    Toda a gente sabe que Donald Trump teve uma panóplia impressionante de consequências funestas sobre a democracia. De tudo o que fez mal no seu país, o pior ainda há de ter sido transformar a corrupção no novo normal da presidência americana – razão pela qual ainda não parou de andar de tribunal em tribunal em julgamentos horrorosos de falsificação de declarações de rendimentos e outros documentos oficiais entregues quando era presidente, em tribunais que devem ser tão corruptos como ele[4], porque nunca mais o mandam prender por forma a acabar de vez com este terrível drama de Shakespeare.  E a sua péssima influência estendeu-se, como se sabe, às democracias de todo o mundo – veja-se, entre muitos que poderiam agora vir à baila, o exemplo de Jair Bolsonaro, que decalcou todos os actos mais significativos da sua presidência do que entretanto ia acontecendo em Washington DC. E estes actos incluíram não lutar contra a pandemia até já ser tardíssimo, encorajar a destruição do Amazonas[5], e ver com bons olhos a invasão selvagem do Senado em Brasília depois de perder a Presidência para Lula da Silva.

    Claro que o pior acto destrutivo de Trump, no que diz respeito ao seu próprio país, não tem nada a ver com presidentes evangélicos corruptos de terceira categoria. Tem a ver, acima de tudo, com o que foi sempre, e desde sempre, aquele seu enorme fascínio pela figura inalcançável de Conde Drácula corporizada em Vladimir Putin. Se houve algum sentimento que Trump nunca disfarçou, desde o princípio da sua campanha eleitoral, foi o sentimento do menino pequeno, imediatamente antes de começarem as aulas, que quer desesperadamente vir a ser o melhor amigo do aluno mais cool lá da escola, aquele puto que manda em tudo e em todos, que aterroriza os professores, os pais, e a direcção, e que se chama Vladimir Putin.

    A bem da frutificação dessa amizade, que ao fim de quatro anos nunca chegou a dar qualquer espécie de fruto, Trump deixou a guarda avançada de Putin invadir os computadores americanos de forma nunca antes vista, por forma a manipular dados, falsificar estatísticas, difundir notícias falsas, e passar para o exterior uma imagem lamentável do soi-disantPaís Mais Poderoso do Mundo”. As alamedas que se abriram nessa altura continuam abertas, pelo que os Estados Unidos continuam expostos ao pior que há; mas ao menos agora os americanos sabem com o que é que estão a ter que viver e contam com isso todos os dias. É um grande rombo, mas ninguém pode acusar os americanos de não serem flexíveis.

    Silhouette of Statue Near Trump Building at Daytime

    São tão flexíveis que, entre escolher a presença desagradável de Hillary[6] e a loucura levada ao rubro de Trump, os habitantes de todos os trailer parks[7] apinhados de white trash[8], completamente fartos de nunca terem ninguém que falasse por eles, reconheceram “um dos nossos”, compareceram em peso nas urnas, e votaram em Trump.

    Mas atenção, que só lhe deram quatro anos – à experiência.

    Durante o período de experiência verificaram que o indivíduo não queria saber deles para nada, não podia ser mais insultuoso para com as mulheres esquecendo-se de que existiam mais mulheres do que homens no seu eleitorado, estava casado com uma modelo de sotaque balcânico que lhe deitava olhares de puro ódio, e, tanto quanto se percebia, o que realmente lhe importava naquela presidência era poder exibir-se a comer BigMacs com talheres de prata no seu jacto privado. Como é que um gajo vai MAKE AMERICA GREAT AGAIN[9] se não tem planos e só diz disparates?

    Motherfucker.

    Ao fim de quatro anos, perante todos os estragos do gajo, voltaram a passar a bola aos democratas e elegeram Joe Biden, que por seu turno escolheu Kamala Harris, uma mulher que é mestiça[10] e isso vê-se bem, para vice-presidente.

    Vocês podem nunca mais ter ouvido falar destes dois, mas é por todas as razões certas. É porque Biden, de facto, não gosta de gastar energias desnecessariamente, e fala baixo tanto quanto lhe é possível. Se lhe tem sido possível, so much the better[11]. É um democrata sólido e um político profissional com a vida inteira dedicada à causa. Os americanos não precisam de partilhar as convicções dele para classificarem a sua prestação enquanto excelente.

    a red hat that reads make america great again

    Toda a gente sabe que, em democracia, é muito difícil fazermos seja o que for exactamente como Joe Biden tem feito: de forma excelente.

    E, em democracia, isto da excelência mede-se mesmo ao nível traiçoeiro do preso por ter cão e preso por não ter. A maioria absoluta do Partido Socialista de António Costa, e a maneira como as suas hienas têm vindo a devorar os cadáveres que as águias de cabeça branca e os leões de Sofala[12] deixam atrás de si, recorda-nos, todos os dias, que é quase impossível um partido sentar-se no poder com uma maioria absoluta e não resvalar tão depressa quanto possível para o abuso desavergonhado do poder[13].

    Por o outro lado, os confins estreitos da organização política americana, inventados há dois séculos pelos Founding Fathers para impedir todo e qualquer abuso de poder na Pátria da Livre Iniciativa, complicam a vida dos políticos até os deixarem atados de pés e mãos. O Governo está dividido entre dois órgãos separados, o Senado e a Câmara de Representantes, e ambos precisam de, simultaneamente, satisfazer o seu eleitorado e dar satisfações ao Presidente. Neste momento, o Senado está sob um controlo mínimo dos democratas, enquanto que a câmara dos representantes está sob um controlo mínimo dos republicanos. E isto quer dizer que ambas as facções têm que ser capazes de negociar compromissos uma com a outra antes de entrarem sequer em qualquer género de negociação com o Presidente.

    Isto foi tudo desenhado friamente a régua e esquadro para proteger a democracia e estimular a maturidade daqueles que a representam perante o povo americano, e muitos parabéns. Com maturidade de ambos os lados, seria um belíssimo conceito.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    O drama é que estamos a viver num Mundo em que, já de si, a maturidade não existe em lado nenhum do Planeta porque as pessoas a deixaram todas em casa, muito bem escondida por detrás da internet. E, entre os republicanos americanos, a maturidade deixou de existir desde que o white trash pôs Donald Trump no poder e exigiu – aos berros, com chapéus de Daniel Boone, e de armas na mão – que ninguém tentasse, nunca mais, mandar nele ou exigir-lhe o pagamento de impostos, ou tirar-lhe a carta de condução por violação repetida e furiosa do limite de velocidade. Estas pessoas não exigem muito mais porque nunca estudaram e não pensam assim tanto como isso, mas são extremamente raivosas em relação àquilo que exigem. Vim para esta cidadezinha criar os meus filhos, portanto – quem é que falsificou as eleições, para de repente o presidente da Câmara ser negro, quando nós já dissemos tantas vezes que não queremos cá negros?

    Adenda: nem negros em particular nem estrangeiros em geral, estão a ouvir-nos, hey, DC? Mais uma pessoa morena com um sotaque esquisito e eu puxo da minha Beretta. Sou mãe solteira de quatro filhos loiros, e todos eles vêm treinar comigo à carreira de tiro aos sábados de manhã. A Ruth só tem cinco anos? E então? Sabe abrir as pernas para se equilibrar melhor, agarrar na Magnum 38[14] com as duas mãos para não disparar para cima com o coice, e acerta nos alvos tão bem como os irmãos mais velhos. Temos que estar preparados. Holy shit, a América não é dos estrangeiros. Take a good look at us, you stranger. Somos o artigo genuíno. O say does that star-spangled banner still wave[15]

    Depois de tudo isto, e com esta base eleitoral toda ainda aos berros, os republicanos não têm grande escolha. Podem não ter nada a ver com aquilo, mas não podem ignorar que aquilo existe. Podem perder todo o seu eleitorado de um dia para o outro se escolherem olhar para o outro lado e seguir em frente como dantes, porque a fragilidade da direita americana, depois de chegar a este ponto, nunca mais desceu deste ponto – e chama-se a isto a Força da Inércia, e é uma Lei da Física, e nenhum mero mortal consegue modificar uma Lei tão abrangente como a Lei da Gravitação Universal[16]. Dá a ideia de que basta um toque e a Terra salta mesmo do seu eixo. Vive-se no medo, e as decisões de McCarthy durante esta última semana são o espelho perfeito disso mesmo. O que é que eu devo fazer para não ficar sem o poder?

    I voted #USelections2020

    É por isso que, quando Donald Trump diz aos seus fanáticos que bloqueiem a guerra na Ucrânia uma vez que tem por Putin uma idolatria sem limites[17], eles se atirem à tarefa com unhas e dentes e cheguem ao ponto de chamar “traidor” ao Presidente, até que a manutenção do financiamento à Ucrânia, já aprovada antes deste Cheque ao Rei, tenha que saltar fora até ao Thanksgiving para existir um qualquer orçamento que assegure a viabilidade dos Estados Unidos.

    Entretanto, Biden declarou, com todas as letras, que ia tratar com o financiamento à Ucrânia “separadamente”.

    Em última análise, o Presidente dos Estados Unidos tem sempre uma caneta de tinta permanente que lhe permite aprovar sozinho toda a legislação e orçamento que muito bem entender.

    E é verdade, pelo menos no que toca aos Estados Unidos a democracia é um jogo a doer.

    Consegue ser ainda mais violenta do que o Futebol Americano propriamente dito.

    E, de facto, não há grande coisa nesta triste história que tenha realmente a ver com a Ucrânia.

    Mas a história continua, uma vez que faltam aqui vários capítulos.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A estatística ainda não mudou desde que eu fui trabalhar no meu doutoramento para Buffalo, NY, em 1989: só 10% dos americanos possuem passaportes.

    [2] Ainda alguém se lembra do filme RAMBO IV, o último da série RAMBO? Passa-se no Afeganistão, onde os maus estão escondidos algures entre os ocupantes soviéticos. Depois de uma quantidade sedativa de cenas intermináveis de porrada, e de alguns beijos trocados com a heroína local, o filme acaba com Silvester Stallone a galopar sem sela no meio da tribo afegã com quem tem lutado, enquanto um lápis mágico vai escrevendo sobre a imagem, a tinta dourada, “a equipa de RAMBO IV agradece e encoraja o corajoso povo afegão que continua a lutar pela sua liberdade face ao invasor soviético.” QUE VERGONHA, não é? Mas é a História. Como está sempre a repetir-se, torna-se frequentemente uma grande vergonha.

    [3] Eu estava lá a viver nessa altura, e aqueles primeiros dias depois de aparecerem na televisão as primeiras imagens de Guantánamo são inesquecíveis. As pessoas mal olhavam umas para as outras na rua. Os americanos têm-se em tão alta estima que não suportaram ver-se a torturar um único perigoso talibã que fosse. Transformaram logo a palavra “tortura” nas duas palavras “interrogatório intensivo.” Ficaram com a consciência tão tranquila que ainda hoje me pedem, se acham que estou a fazer-lhes demasiadas perguntas, “oh, Clarinha, please, stop waterboarding me!” Claro que o Peter, do FAMILY GUY, já interrogou intensivamente o Brian através de waterboarding. Estavam à espera de quê? Não há mais ninguém como eles, em matéria de golpe de rins.

    [4] EU NÃO SEI, nem ninguém sabe. Donald Trump está a ser julgado em 34 processos-crime diferentes movidos por muitos tribunais diferentes; e, mesmo nos Estados Unidos, a Justiça não pode deixar de ser minimamente lenta para ser maioritariamente fiável. É só que já toda a gente está traumatizada e começa a ver corrupções em toda a parte – e, à custa destes processos, o senhor tem agarrado no microfone a bem dizer em todos os dias úteis do último ano.

    [5]Ora, ora! Se querem que eu proteja a Amazónia, então paguem-me para isso!” Poucas vezes ouvi uma coisa assim tão boçal e assustadora. E atenção, que eu sei o que digo. Claro que me lembro do Dr. Salazar, mas francamente. Salazar, ao menos, não era boçal – e era um ditador católico contrário ao Vaticano II, a braços com uma guerra colonial travada já fora de tempo, portanto podia ser o que muito bem lhe apetecesse sem incorrer em riscos tão estúpidos como o de perder eleições.

    [6] Mandar a Hillary Clinton para a frente depois de já ter perdido contra um negro que ninguém conhecia e que se chamava Barak Obama e isto nem sequer é um nome normal, ainda por cima numas eleições de solução tão dramática como estas, deve ter sido o maior tiro no pé alguma vez registado nos anais da democracia americana. O pessoal tem várias óptimas razões para não gostar dela. Eu também não gosto. Hei de falar mais sobre o assunto quando vier ao caso.

    [7] Parques de estacionamento de casas em atrelados, conhecidas como Recreational Vehicules, que de recreational só têm o nome.

    [8] Pessoas brancas que são autêntico lixo. Caracteristicamente gordas, mal vestidas, de cabelo oleoso e com a pele maltratada, sempre aos berros, sempre a beber cerveja, sempre a arrotar, e sempre a fumar, num país onde já mais ninguém fuma. A Kim Basinger fez o papel de uma destas pessoas no filme biográfico 8 MILE, que conta a história da subida ao estrelato do Eminem. Sempre no seu trailer a cortar cupons de desconto dos jornais, sempre a calar-se enquanto o namorado manda vir, sempre a beber cerveja, veste a pele de mãe do Eminem. ALÔ? A KIM BASINGER? A fazer de white trash? E depois quem é que explicava aos meus filhos porque é que mais de metade das rimas do Eminem são a dizer mal da mãezinha?

    [9]FAZER A AMÉRICA GRANDE OUTRA VEZ”, era o slogan da primeira corrida de Trump para a Casa Branca. Comentário dos galinheiros, onde o mexilhão é o mesmo em todo o mundo: “Ora ora, à primeira qualquer um cai.”

    [10] Tretas. “Mestiça” digo eu, tendo em conta a sua ascendência maioritariamente caribenha. Os americanos, muito mais directos, limitam-se a dizer que ela é “preta.”

    [11] Qualquer coisa como “pois então ainda bem,” mas em inglês a expressão é bastante mais enfática.

    [12] Sobre a escolha criteriosa destas águias e destes leões: para cada uma das raças, são os maiores do mundo.

    [13] José Sócrates e os seus necrófagos também nos deixaram uma memória extremamente amarga disto mesmo, mas ao menos, no tempo de Sócrates, tanto o chefe como os boys and girls se preocupavam mais com a questão de esconder o jogo. Agora mostram-nos tudo. E ainda ficam a rir depois de desligadas as câmaras.

    [14] Puro romantismo. Era a arma do Dirty Harry.

    [15] Início da última quadra do hino nacional dos Estados Unidos.

    [16] Por alguma razão raciocinou Isaac Newton que a Força da Gravidade era a face visível de Deus. E todo o Século das Luzes concordou com ele, numa euforia de optismo sem precedentes na civilização ocidental.

    [17] Claro, ou é por isto mesmo – o que já seria suficientemente grave – ou é porque Putin está de posse de documentação relativa a Donald Trump de tal forma incriminatória de Crimes Contra a Pátria, e outros, que faz dele o que muito bem lhe apetece – o que, a confirmar-se, seria deveras horrível. Em qualquer uma das duas versões da narrativa, Trump já é bastante pior do que Richard Nixon, uma vez que já é culpado de tirar todo o seu país do sério. E o seu país é muito grande e muito poderoso, mas não é a guerra na Ucrânia.

  • Maria Alice recebe visitas: Estremoz nem as deixa entrar

    Maria Alice recebe visitas: Estremoz nem as deixa entrar

    CARTAS DE AMOR

    Agora em Outubro de 2023

    Ainda com uma caloraça que ninguém entende

    Todas as uvas já vindimadas

    As azeitonas maduras nos ramos

    E seja o que Deus quiser,

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    O DERRADEIRO EPISÓDIO DE UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Porque enfim, fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora, mas a verdade é que não era uma amante chique; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete… que diabo! Era um trambolho!”

    Eça de Queirós

    O PRIMO BASÍLIO

    1878


    Entretanto, muito longe das emoções funéreas que sacudiram o País Profundo, Alexandre Noronha esteve dois meses em Paris que fizeram dele um homem novo. Passou-os, por via de financiamentos mal explicados[1], em animada confraternização com Marine LePen. Estudaram juntos as estratégias publicitárias que podem realmente funcionar para que a extrema-direita consiga chegar ao poder com uma maioria digna desse nome[2]. De vez em quando, como que por acaso, André Ventura passa pelo Centro de Trabalho do RASSEMBLEMENT NATIONAL[3] para se obterem imagens que mostrarão como estes dois grandes partidos, representantes dos insatisfeitos que querem mudar qualquer coisa mas não querem nem saber como é que se muda o quê, têm comportamentos e valores semelhantes, sem que nenhum deles precise de fazer qualquer esforço nesse sentido[4]. Passam os três vários dias e noites juntos, cimentando as raízes de uma verdadeira amizade[5]. Como o tempo requerido por este tipo de operações é indefinido por natureza, ninguém sabe quando regressarão a Lisboa, nem no Partido nem lá em casa. Quando, finalmente, os dois homens se instalam confortavelmente na Executiva para a viagem de regresso a Lisboa, Alexandre considera as vantagens desta indefinição e tem uma inspiração súbita.


    Ó Ventura

    Hm?

    Já estavas a dormir?

    Eu sou como Deus, palerma. Não durmo.

    Mas sentes-te tão estafado como eu?

    É possível.

    E saturado de tanta alta política?

    Isso podes crer.

    Então faço-te uma proposta indecente?”

    Força.

    Estás a ver aquela minha amante incrível que vive em Estremoz, a Bloody Mary?

    Só me falta mesmo é vê-la em pessoa, homem. Passaste este tempo todo a falar dela. Até contaste algumas histórias picantezitas à Marine, não te lembras? Uma imprudência, eu bem te avisei, porque em princípio devemos defender o matrimónio.”

    “Olha que história, ela também só tem de defender o matrimónio em princípio. É muito diferente de defender seja o que for em actos, e mesmo em omissões”

    “Está bem, lá a missa a metade tu sabes. Agora, com a Marine… grande mulher, heh? Uma verdadeira figura de estilo… com a Marine, dizia eu, por acaso tivemos sorte. Mas não te esqueças que foi por acaso.”

    “Olha olha, não foste tu que defendeste publicamente o casamento gay?”

    “Não me lixes, eu apenas disse que ser homossexual não desvaloriza ninguém em nada, incluindo a capacidade de combate político, e que havia gays talvez até entre os nossos dirigentes e certamente entre os nossos apoiantes. E mais acrescentei que queria que tudo continuasse a ser assim, e que, se tivesse um filho homossexual, respeitaria sempre isso.”

    grayscale photo of three person sitting inside airplane

    “Ah pois. E era isso mesmo é que eu queria ver.”

    “Pois, mas tudo isso era, mesmo, uma questão de princípios. A Comunicação Social é que fez um circo excessivo com tudo o que eu disse, que aliás é o que eles fazem sempre. E que façam, porque somos sempre nós quem ganha com isso.”

    “Não é só a Marine. A tua retórica também há de ser lembrada nos manuais de figuras de estilo.”

    “Há maneiras bastante piores de se ser lembrado.”

    “Pois é, a tua lata também não será esquecida.”

     “Olha meu filho, e a tua proposta indecente, já agora? Se não queres que seja esquecida, explicas-me de que consta?”

    “Ah, então ouve-me esta com atenção. Não temos ninguém à nossa espera, certo?”

    “Certo. Em princípio, pelo menos.”

    “Então vamos tirar partido disso.”

    “Que género de partido, se ninguém consegue sequer perceber o que é que quer o CHEGA?

    “Homem, desliga. A minha proposta é mesmo essa, desligarmos. Assim que chegarmos alugamos um belo Volvo preto, dos automáticos, logo ali na Hertz, que eu ofereço, ouviste? Tenho um cartão de descontos. Arrumamos todas as nossas coisas na caixa de forma a não serem vistas de todo. A seguir, despimos os blasers, enrolamos as mangas das camisas, e afrouxamos o nó da gravata, porque seguimos logo para Estremoz. Hm? Que te parece? Hás de ver bem a lasca que eu ando a comer, e de caminho apresento-te as tais estilistas de Badajoz com quem andei a tomar banho todo nu nas piscinas das pedreiras.”

    “Mas essa lasca que tu andas a comer não é casada?”

    “Pois, coitada, é casada com uma corrente de ar. Um reles indivíduo de secretaria que foi para a Europa por um ano inteiro fazer uma Comissão de Serviço de tradução simultânea. Só lá está uma sopeira velha, tão indignada com o comportamento do marido que se pôs incondicionalmente do lado da mulher.”

    “Então e as espanholas? Nem um namorado, nem coisa nenhuma?”

    “Nada que eu tenha visto, pelo menos deste lado da fronteira. E eu não disse nada sobre irmos a Badajoz.”

    “Mas são duas.”

    two birds are standing on top of a nest

    “Homem de sorte. Podes ficar só com uma, ou então curtirem todos juntos! Que barbaridade!, estas espanholas quando soltam as feras e caem na dança! E depois havemos de parar todos juntos no caminho, no sopé do Castelo, porque o dono desse tasco é um grande simpatizante nosso chamado Bruno[6], que faz as melhores bifanas deste mundo. Mas o melhor no Bruno, melhor até que as bifanas, ainda são os passarinhos na chapa… assim, naquela esplanada enorme, com aquela vista das muralhas ao fim do dia… vêm para a mesa com batata frita, salada, pickles, vinho verde gelado daquele bem seco… não há lá nenhum requinte, mas aqueles passarinhos… com umas fatias de queijos do cardo duras como cornos… e umas azeitonas…[7]

    Pára. Pára, pelo amor de Deus. Vais comer isso tudo, e depois ainda vais comer a tua Maria Alice, que tu não páras de dizer que é uma verdadeira serpente na cama, e a seguir vais o quê, vais achar que não houve nada que justificasse o teu AVC?

    Então, amigo. Dramático e rústico, como na Assembleia? Eu não sou a Assembleia, boa? Eu, por mim, devoro a rapariga assim que ela me aparecer no corredor, com aquelas suas roupas transparentes e o cabelo solto ao vento[8]. Estremoz é muito ventoso, já te disse[9]?”

    Então e eu? Vou para a retrete ler o POLE POSITION[10] e babar-me todo com aquelas garotas em fio dental que estão sentadas em cima dos novos Fórmula Um?”

    Não, que eu sou solidário. Exponho o teu caso ao Bruno, e, ao fim de dez minutos, ele já vem apresentar-te las hermanitas de sangre. Queres mais?

    Não,” responde André Ventura. “Mas quero é isso tudo já[11], pela tua rica saúde.”

    Algumas horas mais tarde, a casa de Maria Alice aparece ao fundo das duas fileiras frondosas do laranjal que se estende ao longo da rua, linda, majestosa, frutuosa como a melhor das promessas. O carro da beldade escaldante de que Ventura tanto ouviu falar não se encontra mal estacionado em cima do passeio fronteiro ao edifício, o que parece indicar que foi devidamente guardado na garagem – o que, por seu turno, sugere desde logo que a grande amante está mesmo em casa. Animados e expectantes, os dois amigos já vão quase a chegar à entrada quando Josefa lhes aparece pela frente. E, desta vez, não traz minimamente um sorriso deliciado no rosto. Muito pelo contrário, barra-lhes a passagem de enxada na mão, furiosa, indignada e justiceira, saída num rompante colérico da porta da cozinha, que bate atrás de si com estrondo.

    orange tree under sunny sky

    Sai-me daqui, ordinário!”, grita ela, fora de si, para Alexandre Noronha. “E de futuro pára de tratar as mulheres todas como se fossem umas putas, que ao menos às putas vocês têm de pagar!

    Ó minha querida Josefa, Santo Deus, porque é que estás a tratar-me assim?”” pergunta Alexandre Noronha, estarrecido tanto por aqueles modos inusitados da velha senhora como por toda a cena decorrer mesmo à frente do seu líder espiritual. “E a Maria Alice? Onde está a Maria Alice? Assim que aterrámos em Lisboa viemos a correr ter com a Maria Alice.”

    Então olha,” responde a velha serviçal, com o rosto rubro de cólera, roída de saudade e de remorso, e ainda amargurada com o desaparecimento súbito dos vinte mil paus que ia embolsar graças à sua manobra brilhante de chantagem. “Vai a correr ter com o Diabo que Te Carregue, que a nossa querida menina já foi para o Céu, onde vomecê, ó Noronha, vomecê nunca há de entrar, sua besta. Foi vomecê quem lhe deu cabo do coração. Tanto amor, tanto amor, e depois chegas cá e baldas-te que nem uma porra de um paneleiro de um cabresto[12].”

    “Então afinal tu não andaste a comer a gaja?”, sussurra André Ventura, interdito.

    “A velhota é doida,” sussurra Alexandre Noronha de volta. “Deixa-me falar com ela. Josefa, ó Josefa, sabes, eu digo-te a verdade, é que eu estava muito nervoso com o discurso que ia bombar a seguir num encontro do CHEGA aqui perto…”

    “Olha lá, também não era assim tão perto como isso,” corrige André Ventura em mais um sussurro, sentindo-se agora deveras confuso.

    Não houve nenhum encontro do CHEGA aqui perto naquela altura, ó seu tratante”, atalha Josefa, confirmando sem sequer dar por isso o murmúrio de Ventura. “E, mesmo que houvesse, a Menina nunca iria lá contigo. Aquela mulher não estava à venda, seu maricas. Não estava nem podia estar, porque não tinha preço. E tu, sim tu, foste tu que a mataste, quando fugiste daqui sem chegares sequer a entrar em casa. Nem um duche tomaste, ó procalhão[13]. Chinga tu madre, perro desgraciado[14]!

    Mas então, espera aí. Tu bazaste sem comer a gaja, foi?”, volta a sussurrar André Ventura.

    A velha não bate bem, já te disse. Sei lá que história é esta. Espera aí que eu vou falar-lhe ao sentimento. Josefa, ó Josefa… Josefa, pelo amor de Deus, entende-me! Eu queria levar a Maria Alice ao nosso Encontro sem ela saber para onde íamos, queria que ela sentisse imenso orgulho em mim. Mas depois, quando já estávamos na praia, eu quanto mais pensava nisso tudo mais me enervava…”

    “Mas se dessa vez bazaste sem chegar a comê-la como é que depois andaste a comê-la?”, insiste Ventura, ávido de esclarecimentos[15].

     “Ainda por cima,” continua Noronha, firme no seu posto, “mesmo em cima da hora, a minha mulher decide que vai mandar a nossa filha arranjar-se como uma pessoa normal, e que vão as duas ter comigo à festa! Diz lá, tu não fugias, se tudo isto se passasse contigo?”

    “Mas a Gi sempre esteve no alinhamento para falar nesse Encontro, não foi aquele sobre tirar os ovários, que…?”, recomeça a murmurar André Ventura, ainda honestamente incapaz perceber ao certo o que é que se passa[16]. E, virando-se para a pequena multidão que se vai juntando para gozar bem o espectáculo, ainda acrescenta,

    “Como talvez saibam, eu, por mim, sempre disse que, eticamente, compreendo e sou contra o aborto, mas que não vou propor a sua criminalização, porque isso não funciona, e não resolve nada. Compreendo que a maioria no partido ache que o aborto deva ser crime, assim como o Alexandre e a Gi acham, por exemplo. Mas, pessoalmente, essa postura choca-me enquanto jurista e político.”

    Nem consegue palestrar todas  as declarações que tem a fazer até ao fim, porque assim que Josefa escuta as palavras “tu e a Gi”, seguidamente consubstanciadas por um “o Alexandre e a Gi” destinado à geral, explode numa fúria ainda maior, que a faz agitar ainda mais a enxada mesmo em frente do rubor que alastra nas faces de Alexandre Noronha.

    green tree on brown field under white clouds and blue sky during daytime

    “Tu e Gi! TU E A GI! Com que então! E entretanto dizias à Menina que eras divorciado, ou se calhar não dizias, grande invertido?”

    “Íamos divorciar-nos, Josefa, por favor, acredita em mim…”

    “Mas tu e a Gi não foram falar juntos àquele Encontro das Famílias, para se apresentarem oficialmente contra o divór…”

    “Aaah!”, grita de súbito André Ventura ao mesmo tempo que bate com a mão na testa, extremamente aliviado por ter, finalmente, compreendido o estranho enredo que se desenrolava à sua frente. E, já sem se preocupar sequer com a minudência de baixar a voz, mede Alexandre Noronha de alto a baixo como se estivesse a vê-lo pela primeira vez, dá-lhe uma palmada nas costas, e felicita-o com entusiasmo.

    “Grande tanguista, pá. Bravo. Bravo! Olha que nem eu sei se era capaz.”

    “Não sou tanguista!”, protesta Alexandre, que se sente cada vez mais compenetrado do papel que atribuiu a si próprio, assim como se sente cada vez mais desconfortável com a proximidade da enxada de Josefa. “Fui fraco, Josefa, fui muito fraco, sim, confesso –[17] mas a minha fraqueza não faz de mim um tanguista. Paniquei e fugi[18]. Pronto. Fugi de Estremoz para Faro, e depois de Faro para Paris. E, por sorte, aqui o meu grande amigo André Ventura estava no mesmo avião que eu[19], de maneira que assim que chegámos ele apresentou-me à Menina Le Pen[20], e olha, a verdade é que ao fim de quinze dias ela até já me falava em casamento, e por isso eu enquanto lá estava não podia…”

    Cala-te, cigano, e a tua mulher que te ature! A Menina a sonhar com o vosso dia na praia, e tu achavas o quê, achavas mesmo que ias arrastá-la para festivais populistas? Cigano! Grande cigano! Sai daqui, cigano!”

    “Festivais populistas” não é de tradução fácil para toda a gente. Mas, ao chamar cigano a um dirigente do CHEGA, Josefa atinge tais píncaros de inspiração que a assistência, cada vez mais numerosa, grita, ri, bate palmas, e, ainda insatisfeita, incita a velha senhora a subir mais a fasquia com expressões de encorajamento tais como o várias vezes repetido,

    Ah grande Josefa! Tu fazes oitos[21]!”,

    Ao mesmo tempo, e com a participação da PSP que entretanto alguém chamou à cena dos acontecimentos, inicia-se um debate inconclusivo sobre se aquele bacano que está ali ao lado do panasca é ou não é o André Ventura propriamente dito. Não é por maldade, e muito menos por ignorância – é mesmo que esse senhor é a cara chapada de largas centenas de outros senhores, todos eles vestidos da mesma forma para aumentar a confusão.

    Perante todas estas circunstâncias totalmente inesperadas, mas potencialmente hostis, o André Ventura propriamente dito percebe logo, e antes de mais nada, que se arrisca a ser chamado à esquadra para prestar declarações. Toma, portanto, as suas medidas preventivas habituais. Tira do bolso de trás das calças dois comprimidos de Diazepam de 10mg, que põe a derreter debaixo da língua[22]. A rapidez do gesto fala por si. É evidente que, depois de ter aprendido o truque com o Ricardo Salgado em pessoa[23], o líder do CHEGA já passou muitos anos a virar frangos no domínio de exorcizar pânicos em particular e controlar emoções adversas em geral. Alexandre Noronha, que registou a manobra pelo canto do olho, percebe logo a que é que aqueles comprimidos se destinam, agarra velozmente noutros dois, e engole-os com tanta pressa que quase se engasga[24]. Entretanto Josefa continua a bradar em altas vozes, atraindo cada vez mais vizinhança.

    Desaparece, assassino. Agarra no teu amigo, voltem por donde vieram, e nunca mais se atrevam a cruzar sequer o portão da minha horta. Esta casa está amaldiçoada, toda a gente anda de luto, ninguém come nem dorme, o cãozinho da Menina uiva todo o dia e toda a noite, e na Lua Cheia as teclas do computador dela mexem-se sozinhas, porque o seu pobre espírito ainda está a tentar escrever-te mais uma carta, maldito excomungado que hás de arder no Inferno para toda a Eternidade.  JÚNIOR! Ó JÚNIOR, vem cá, anda. Anda, que temos aqui dois melgas daqueles mesmo bons para tu pores na rua.

    Bem treinado e sempre obediente, e sobretudo muito satisfeito por ter alguma coisa vistosa para fazer[25], Júnior entra subitamente em cena com dois ou três saltos pneumáticos, pára, deixa pender a língua entre os dentes destituídos de simpatia, e começa a rosnar num tom puxado do fundo de uma caverna assustadora. Por fim eriça o ridgeback, agita a cauda rente ao chão exactamente como um leão faria, deixa pingar as primeiras gotas de saliva, e crava os olhos nos dois visitantes. A seguir começa a aproximar-se lentamente, com pequenos passos felinos.

    Um segundo mais tarde os dois amigos já estão no carro, a fazer marcha-atrás para sair dali depressa.

    Santo Deus,” suspira André Ventura, tentando recompôr a roupa, que ficou toda em desalinho. “Mas que mulherão, pá. O cão é capaz de ser jogo a mais, mas a velha aproveita-se já. Aquela é que ficava bem na segurança dos nossos comícios. Ou podíamos usá-la para um debate. Com voz do povo e tudo. Não achas?

    Hm,” responde Alexandre, de olhos cravados na estrada.

    Nessa altura Ventura contempla-o, compreensivo.

    Então… pelos vistos, agora… eh pá, de modo que estás sem mulher[26], não é?

    Noronha até puxa o travão de mão[27], e acto contínuo deixa o carro ir-se abaixo, para poder gesticular mais e dar melhor vazão à sua fúria justiceira.

    Pois estou,” brada ele aos quatro ventos. “Estou completamente sem mulher, só me lembrei agora que as estilistas espanholas são menores de idade, e apetece-me fazer tudo menos ir para casa. Mas que ferro, menino, que ferro. Deixei as bases cobertas por mais uma semana para conseguir espairecer. E agora? Se vinha directamente de Paris, ao menos trazia a Alphonsine.[28]

    Fica momentaneamente em silêncio, dá dois ou três murros no volante, e ainda repete mais uma vez, com a entoação de quem põe o ponto final numa história,

    Que ferro, menino.”

    E foram tomar xerez à Taverna Inglesa[29].


    Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9, o Episódio 10 e o Episódio 11 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


    [1] É quase uma redundância, mas vale pelo seu alerta pedagógico. Vivemos num tempo em que quase todos os financiamentos tendem a ser mal explicados.

    [2] Para seguidamente abolir o direito de voto, como pareceria evidente a quem porventura pensasse nisso.

    [3] Ai não sabiam? Pois fiquem a saber. Como parte da “des-demonização da Frente Nacional“, com o objectivo de suavizar a sua imagem, a herdeira da dinastia Le Pen mudou o nome do partido de Front National para Rassemblement National. Até que ponto Alexandre Noronha foi influente nestas precauções é matéria ainda hoje imperscrutável.

    [4] Não esqueçamos que foi André Ventura quem defendeu, lapidarmente, ser a orientação do CHEGA “uma lógica antissistema, que é uma classificação mais adequada do que extrema-direita, extrema-esquerda, esquerda, direita”.

    [5] Que é como quem diz.

    [6] Limpe-se finalmente a honra do Bruno, que o homem não é simpatizante do CHEGA coisíssima nenhuma. Segredava histórias desconcertantes ao ouvido da Maria Alice apenas para a picar enquanto dançavam juntos, e ela deixava-se picar com todo o gosto. O telemóvel dele até faz soar a GRÂNDOLA sempre que toca. E toca bastante. Como já vimos anteriormente, o Bruno é uma pessoa muito solicitada.

    [7] Claro que Alexandre Noronha não sabe nada disto por experiência pessoal. Sabe o que Maria Alice lhe descreveu com grande felicidade nas suas cartas de amor, e tanto basta.

    [8] Mera conversa de homem. Não tem absolutamente nada a ver com a forma como Noronha fugiu da Praia dos Montejuntos, disse que tinha que ir para Lisboa, e desapareceu numa grande nuvem de poeira. Imaginem que, em vez de se remeter ao silêncio, ele dizia para a amante que ainda não o era: “E agora, querida, espera por mim até às cinco da manhã porque eu vou para a praia fazer o grande discurso da festa-comício do CHEGA, onde a minha mulher e a minha filha se juntarão a mim, portanto não posso levar-te.” Enfim, esta versão podia até ser verdadeira, mas claro que era muitíssimo mais difícil de engolir. Para os dois.

    [9] Até a grande ventania de Estremoz é matéria que Noronha só conhece por ouvir-dizer, dado que no dia de má memória em que foi e veio não corria uma única aragem sob o céu escaldante do mês de Agosto, tal como é próprio do dito mês.

    [10] Tanto quanto se sabe, esta revista não existe a não ser na imaginação de André Ventura. E não é nada má ideia, esta das miúdas em fato de banho todas pausadas por cima do dernier cri da Fórmula Um.

    [11] Concordância não propositada. Claro que este personagem ignora os slogans mais imorredoiros do Mai 68. Aliás, Mai 68? Que merda é essa, Mai 68? Eu já nasci depois da morte do Salazar, se é isso que querem saber.

    [12] Qualquer coisa “de um cabresto”: partícula enfática regional de simbolismo e métrica extremamente úteis no que toca a trocar galhardetes.

    [13] Ao contrário de Bruno e Maria Alice nas suas animadas brincadeiras de antanho, Josefa faz uso do termo procalhão sem intentar surtir qualquer efeito cómico. Intentar foi bem escolhido, ou foi impressão minha?

    [14] Já vimos que o amor nos oferece dotes de oratória que de outra forma não teríamos. Além disso, numa cidade quase encostada a Badajoz, é normal que toda a gente fale espanhol, sobretudo no que se refere a insultos e palavrões.

    [15] Note-se que esclarecimentos deste teor podem sempre vir a ser de grande utilidade na vida de um gajo. E nunca se sabe quando, portanto convém, de facto, pedir imediatamente o esclarecimento em questão.

    [16] Não é por mal. É mesmo por limitação.

    [17] Travessão aqui atribuído, após uma longa ausência, ao seu legítimo utente.

    [18] Já alguém conheceu algum homem que, mais cedo ou mais tarde, não tenha recorrido à expressão “paniquei” – como se isso justificasse alguma coisa? Este foi um bom travessão.

    [19] André Ventura começa, instintivamente, a dizer que sim com a cabeça.

    [20] André Ventura estuda esta narrativa surpreendente sempre a dizer que sim com a cabeça, maravilhado.

    [21] “TU FAZES OITOS”: forma sintética da expressão “fazer oitos com pernas de noves”, destinada a ter  maior acutilância, no sentido de encorajar as loucuras de quem está a fazer os oitos em causa. A mim disseram-me isto pela primeira vez quando, aos dezoito anos acabadinhos de fazer, logicamente ainda sem carta, guiei um camião de uma ponta à outra de Aljustrel e desta forma expus diversos inocentes a sérios perigos. Os meus amigos da minha idade, que me tinham incitado a guiar o dito camião, deliraram com o espectáculo. Repisando o que já se discutiu antes, quando não há nada mais interessante para fazer…

    [22] Estes fármacos controladores do pânico são geralmente inseridos pelos poderosos no bolso interior do blaser, mas recorde-se que os dois amigos optaram por comparecer em Estremoz sem blaser, e com as mangas das camisas enroladas.

    [23] O recurso do Banqueiro ao truque do Diazepan, ou do Alprazolan, conforme a medicação disponível lá em casa, já era vox populi entre os seus pares da Banca antes do fim do Milénio. Naquele tempo, pelo menos, andavam todos com dosagens maiores ou menores de XANAX, ou de VALIUM, ou mesmo de VITAN, dentro do bolso da camisa. Os genéricos ainda não existiam, pelo que o expediente se disfarçava com maior dificuldade. A repetição constante da prática, no entanto, costumava tornar a manobra virtualmente invisível. Esta invisibilidade pela repetição, pelo menos, ainda hoje se mantém.

    Apreciem bem as coisas que eu sei.

    [24] Ao contrário de André Ventura, este seu subalterno é um principiante.

    [25] Mudar de lado da casa de manhã para a tarde, procurando a sombra no Verão e o sol no Inverno, assim como jazer no corredor e por junto bater com a cauda no chão se alguém se aproxima, não são actividades vistosas. E muito menos para um Leão da Rodésia.

    [26] Parafraseando o final de O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.

    [27] Não estava nenhum Volvo preto automático disponível na Hertz do aeroporto.

    [28] Parafraseando a última frase de Basílio ao saber que Luisinha morreu, em O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queizoz.

    [29] Frase final deste folhetim e, originalmente, do romance O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.