Autor: Clara Pinto Correia

  • O inferno é um estado de espírito

    O inferno é um estado de espírito

    Já não receio nada.

    Braço dados contigo,

    Desafio o meu século.

    Friedrich Schiller

    Século XVIII


    Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]

    E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.


    O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.

    Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.

    Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.

    O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.

    silhouette photography of trees

    No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.

    No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.

    No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.

    O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.

    No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.

    No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.

    E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Agora digam lá.

    É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?

    Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.

    Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.

    Mas acontece que há caminho.

    Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.

    Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.

    Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.

    Não parece porque não foi[8].

    Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?

    a bridge built into the side of a mountain

    Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.

    Já sabemos que vai ser muito dura.

    Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.

    [2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.

    [3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.

    [4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.

    [5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.

    [6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”

    [7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.

    [8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.

    [9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.

    [10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.

    [11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.


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  • A palavra é o mais belo dos templos

    A palavra é o mais belo dos templos

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    No início do século XVII, com a febre da microscopia que marcou o arranque da Revolução Científica, até Galileu inverteu temporariamente o seu telescópio para tentar ver aquilo que, até aí, só o semi-deus que viajou com os Argonautas era capaz de ver. Quem é que, ainda hoje, consegue resistir ao sonho de trazer guardada dentro dos olhos a visão mágica de Lynceus, aquela que mais ninguém alguma vez teve, que mais ninguém alguma vez terá, e que inspirou a aventura japonesa dos Pokemons, onde pululam criaturas tornadas semi-divinas por um único poder especial?

    Mesmo nos nossos dias, ninguém deixa de reconhecer que a capacidade de visão do lince é assombrosa, e indiscutivelmente rara entre todos os animais. Sabe-se agora que esta visão tem uma grande ajuda na audição fora de série que lhe proporcionam os tufos de pêlos no cimo das orelhas, orientando-o para o mínimo ruído nocturno a toda a sua volta[1]. Mas os olhos, aqueles olhos, aquela visão do lince que lhe permite localizar um rato no escuro a 76 metros de distância, isso leva a palma a tudo o resto. É um tecido de espelho organizado por trás dos olhos que reflecte a luz na retina, activando os receptores pela segunda vez e permitindo-lhe ver na sombra como se estivesse a nascer o dia.

    a lynx sitting on a rock in front of a stone wall

    Desde o princípio dos tempos que toda a gente sabe isto.

    A primeira Academia de Microscopistas do mundo, fundada em Roma em 1603 pelo Duque Frederiggo Cessi que era um apreciador endinheirado daquele Universo Perfeito Escondido Debaixo da Lente de que então tanto se falava, chamava-se ACADEMIA DEI LINCEI, em homenagem à visão semi-divina do animal em causa. A Visão Superior do Lince é desde sempre tão bem conhecida que muitos textos sagrados herdados do Paganismo já debatiam se Aquele que Vê Por Nós fôra criado pelas Forças do Bem ou pelos Esbirros do Mal[2]. Em 1300 AC, quando Jasão arrancou com os Argonautas na sua Incrível Viagem em busca do Velo de Ouro, levava consigo a bordo um companheiro muito especial. Foi o piloto do seu barco. Chamava-se Lynceus.

    Lynceus era um semi-deus.

    Esperava-se deste semi-deus que visse por toda a tripulação o caminho preciso, aquele que nenhuma criatura normal alguma vez poderia ver.

    Este detalhe, quase sempre ignorado, é de uma importância enorme na construção de toda a narrativa.

    Na mitologia grega, é de regra definir assim um semi-deus: trata-se de uma criatura igual a todas as criaturas que vivem em seu redor[3], com um único poder mágico que a distingue[4]. No caso de Lynceus, esse poder mágico era a capacidade de ver o que mais ninguém via. O marinheiro mágico via através das paredes, das árvores, da pele, e do chão. Há passagens das proezas dos Argonautas em que o semi-deus parece ter a mesma visão-RAIOX que tem o Superman e descobre tesouros escondidos debaixo da rocha, outras em que se revela capaz de ver no escuro, e ainda outras em que é evidentemente versado em geologia, e até em descobrir minas de ouro[5]. Na mitologia popular, Lynceus é aquele que consegue, até, ver o Céu e o Inferno.

    person holding eyeglasses

    Até consegue ver o Futuro.

    Houve uma vez em que conseguiu contar, de uma só vez e a uma distância de mais de duzentos quilómetros, o número de barcos de uma frota acabada de sair de Cartago.

    Lynceus devia o seu olhar divinalmente penetrante à grande coroa de cristais que lhe rodeava toda a pupila, cobrindo praticamente toda a extensão da íris.

    Olhos de cristal.

    Amigos, seriamente – por acaso já algum lince vos olhou de frente nos olhos?

    Eu ia a seguir uma equipa de Ecologia Vegetal, no terceiro ano do meu curso, logo no início da campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. Estávamos a esquadrinhar o Matagal Mediterrânico ali para os lados da Serra de Candeeiros, e no regresso eu escreveria uma Grande Reportagem para o defunto semanário O JORNAL, onde costumava publicar os meus textos na altura.

    Foi quando se deu aquela epifania.

    Fiquem sabendo que uma criatura ameaçada de extinção pode muito bem não deixar por isso de ser uma criatura mágica.

    Esta era, certamente, uma criatura com Poderes.

    Talvez noutros tempos a queimassem nas fogueiras.

    Quem sabe.

    É tudo muito confuso, porque aquilo foi tudo muito brutal.

    blue eye photo

    Um malandrão pardo e lesto, traçado de pintas pretas, que, na opinião avisada dos assistentes, não podia ter mais de oito meses, saltou de trás de um monte de giestas coladas ao chão pelo vento, e travou às quatro patas a olhar fixamente para mim com o recorte majestático dos seus olhos perfeitamente dourados. Depois, no que na irrealidade do nosso sobressalto nos pareceu menos de uma fracção de segundo, escolheu o curso da fuga pela esquerda, no meio do rolar de uns quantos fragmentos de xisto e de outros tantos gritos veementes de pegas rabudas, combinados com os berros roucos das gralhas de bico vermelho.  

    Como é que podem acontecer coisas destas a uma pessoa normal?

    Ainda por cima, mais tarde um grande amigo que trabalha exactamente em protecção de espécies em extinção disse-me que os casos de contacto olhos nos olhos com um lince são extraordinariamente raros.

    Para já, os linces, em si mesmo, são extraordinariamente raros. Não é costume a pessoa andar para aí a tropeçar em animais que estão em vias de extinção.

    Além disso, os linces são dos animais mais evasivos deste mundo. Um biólogo dedicado pode passar anos a palmilhar os seus territórios, ouvir os seus vocalizos, encontrar os seus excrementos, descobrir as suas pegadas – e tudo isto sem nunca chegar a ver o animal que estuda.

    Quanto a olhar um ser humano nos olhos…[6]

    Disse-me aquilo em voz baixa, sem olhar para mim, como se já estivesse com medo de alguma espécie de contágio.

    E eu não disse nada.

    Olhos de cristal, por favor.

    Quarenta e dois anos mais tarde, ainda não encontrei as palavras que entretanto precisava de ter descoberto para escrever um parágrafo inteiro que fosse capaz de falar do arrepio que correu pela minha pele quando foi tocada por aqueles dois olhos tão cintilantes e tão arrogantes, e sem qualquer espécie de dúvida tão vindos de um qualquer outro planeta, que rasgavam o focinho de uma cria silenciosa que podia fazer de nós o que muito bem lhe apetecesse e que estava perfeitamente consciente disso mesmo.

    a cat walking on a rock

    Nunca consegui domesticar essas tais palavras porque elas são as palavras perigosas do meu caminho, sempre a fervilhar num caldeirão de poção mágica onde a cultura e a ciência ousam constantemente formar uma só linguagem, e a seguir vir borbulhar à superfície num tecido linguístico bordado de uma forma que toda a gente consegue gozar. E eu, mesmo sendo especializada desde há décadas em Comunicação de Ciência, fui tão condicionada como todos os meus colegas para nunca me aventurar dentro do Poço sem Fundo ligado ao País das Maravilhas onde vale tudo, porque é lá dentro que os conhecimentos se combinam por inteiro sem terem medo de nada. É o Poço Psicadélico onde a ciência se casa com a cultura para se cantar na linguagem misteriosa da Lucy in The Sky With Diamonds. É onde o Dodó arbitra uma corrida que não faz sentido vigiada pela Lagarta que está sempre agarrada ao narguilé. E se, enquanto cultores da língua nós tememos aquilo que até a Alice prefere evitar, é porque fomos criados desde pequeninos para termos medo dos mundos que escapam ao nosso controlo.

    Falta-nos a coragem que é a Mãe do Caos, de onde tudo veio, e onde tudo nos faz dar um passo de prudência para trás.

    Podemos ser todos muito cultos ou muito galardoados cientificamente. E no entanto até nessa condição ficaremos sempre aquém, porque sem o ímpeto da visão combinada que aliou Lynceus aos Argonautas, nem toda a sabedoria do mundo nos ajudará a dar aquele grande passo em frente que nos falta há séculos de visão enevoada.

    Mas, no momento em que combinarmos as duas forças e de repente deixarmos de ter medo, vamos viver uma espécie nova de mudança de paradigma em que não haverá nada que não passe a ser possível. Nunca mais ficaremos inertes a desperdiçar os anos com as nossas hesitações. Quando nos libertarmos dessa inércia, conseguiremos soltar conjuntamente os nossos risos. E será então, nesse preciso segundo, no encanto dessa fusão mais universal do que todas as outras, que o nosso pensamento inteiro começará a rodopiar como ainda nunca tinha rodopiado antes.

    hands painting

    A diferença que vai descer sobre as nossas vidas será tão pequena que quase não nos aperceberemos de que está um milagre a atravessar-se no nosso caminho.

    Mas claro que estará mesmo. 

    E será assim que, muitos anos mais tarde, se formos capazes de nunca o esquecermos, vindo de parte nenhuma acabará por voltar até nós o olhar do lince, esse olhar do semi-deus inexplicável que nos rouba as palavras, para nos recompensar de repente com a visão distante, renovada, e limpa, de uma galáxia mais rica do que todas as outras, nascida de propósito para que possamos ser tão felizes como a primeira luz da primeira manhã.

    Exactamente aquela primeira manhã em ficou escrito que Deus viu que tudo eram bom.

    E será nessa altura que saberemos, com toda a certeza.

    Fomos abençoados.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O lince é um predador exclusivamente nocturno. Passa o dia a dormir, ou a tomar conta das crias perto  do esconderijo que tende a utilizar repetidamente ano após ano. Esta exclusividade da caça nocturna é uma das razões que faz com que seja tão difícil observá-lo no seu habitat natural.

    [2]Vê o que mais ninguém consegue ver” prestava-se a ser uma criação do Mal. “Vê por nós” parece, claramente, uma criação do Bem. Escolham o vosso lado.

    [3] Como por exemplo nós, meros mortais.

    [4] Estão a ver os Pokemons? Então pronto. Está explicada a sua entrada em cena.

    [5] A propósito, também há uma altura em que Lynceus mata Polux devido a uma questão amorosa. Não se sabe onde andava Castor nessa altura.

    [6] Subentende-se: “Achas que o lince é parvo ou quê? Ficar a olhar em vez de fugir? Olha-m’esta!”


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  • O abismo

    O abismo

    Como as de todas as outras paixões, as raízes do ódios são imprevisíveis.

    Jorge Luis Borges


    Aqui há uma semana acordei com telefones a tocar em protestos solidários, o correio electrónico cheio de mensagens encorajadoras, e o Facebook pejado de nomes feios destinados a uma pessoa que eu desconhecia em absoluto. Por fim, o meu editor fez-me chegar uma espécie de CV do Inferno que o tal desconhecido acabava de publicar no Diário de Notícias, onde até este mesmo PÁGINA UM era insultado por minha causa, e todos os acontecimentos desagradáveis de há vinte e quinze anos voltavam a ser esmiuçados em parágrafos intermináveis[1]. No entanto, e assaz curiosamente para quem se tinha dado a tanto trabalho de rememoração desagradável, tudo aquilo estava positivamente juncados de incorrecções. Comecei a ler o texto com toda a atenção, e a questão das tais incorrecções, incluindo erros nos anos dos acontecimentos e outras trapalhices muitíssimos piores, começou a despertar-me a curiosidade. Aquele chorrilho de grosserias parecia escrito à pressa por um estagiário[2] assanhado, e era um exemplo de livro de texto de como não se pode fazer jornalismo, mesmo se feito por um colunista. Comecei a tomar notas.


    A primeira estranheza era mesmo logo no princípio, na frase relativa à altura em que, quando ainda estava a meio do curso de Biologia, entrei para a redacção do semanário O JORNAL, e, quatro anos mais tarde, publiquei o meu primeiro romance. Ora, sendo que a frase começava com as palavras…

    “… nos seus tempos de oiro, muito novinha…”

              … só pude concluir que aquela pessoa estava, no mínimo, extremamente distraída.

    Não tive nenhuns tempos de oiro quando era muito novinha. Tive, isso sim, tempos exigentes em que estudava Biologia quando o resto do País estava todo bronzeado nas filas da camioneta para a Caparica[3], e trabalhava em jornalismo ao mesmo tempo, com dedicação por inteiro ao JORNAL e em mais não sei quantos ganchos para chegar ao fim do mês[4] – e, para onde quer que me virasse, esbarrava constantemente em boatos de que ia para a cama com toda a gente e mais alguém para conseguir fazer todas as coisas que fazia. Se isto são tempos de oiro vo,u ali já venho.

    A seguir o senhor admite que ADEUS, PRINCESA, o meu segundo romance, grangeou um grande respeito da crítica literária (não acrescenta, embora tivesse sido fácil de verificar, que esse respeito, e a consequente explosão de vendas, levou três anos a fazer o seu caminho). Segue-se uma passagem surpreendente, em que nos explica que, quando Vasco Pulido Valente o considerou “o melhor romance português desde OS MAIAS”, o fez apenas por “puro efeito de provocação” – e a pessoa interroga-se, “como é que ele sabe? Falou com o Vasco? E, a ser verdade, o Vasco havia de ser tão burro que lhe dizia isso mesmo na cara? Está bem que o Vasco tinha os seus defeitos – mas burro?” Quer dizer, poupem-nos. Quando eu era aprendiz de jornalista, escrevia uma patetice destas, totalmente infundada e baseada apenas no meu sentimento pessoal, e o Fernando Assis Pacheco ia-me à cara.

    Perfil’ sobre Clara Pinto Correia do ‘historiador’ António Araújo, professor universitário e também membro do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também conhecido por ‘Fundação Pingo Doce’.

    Já agora, só para atestar mais uma vez a total  falta de cuidado com que o autor destes dislates faz o seu trabalho, há uma altura em que envereda pela minha vida pessoal. E aí os seus erros, todos eles facílimos de verificar e de corrigir, acumulam-se de tal forma que alguém bem intencionado na redacção do seu jornal deveria ter arranjado uma desculpa inocente, como por exemplo falta de espaço, para cortar aquilo tudo e poupar ao mais puro dos ridículos um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.

    A primeira argolada é afirmar que eu sou a irmã mais velha das quatro.

    Valha-me Deus, o senhor, se não gosta de fazer perguntas, não pode ao menos consultar o Facebook?

    A nossa “primogénita” (como o descuidado me chama, da forma mais insultuosa deste mundo para toda a minha família) é a Maria do Rosário, não sou eu. E isto não é uma pequena curiosidade sem importância. Ao longo de toda a nossa vida adulta – e certamente da minha –, a Ró tem sido a nossa grande organizadora, protectora, aquela que no Verão nos junta a todas na praia, e no Natal e na Páscoa se certifica que toda a gente se consegue reunir, quem vigia a saúde de quem fraqueja, todo um papel de mana mais velha que nunca estaria no meu feitio assumir – e talvez todas nós perdêssemos muito com isso.

    Segue-se a história comovente dos meus passeios em Tremês com o meu Pai, de casa dos meus avós até ao pomar das macieiras. O senhor menciona as minhas palavras comoventes quando digo que as nossas conversas nesse caminho foram fulcrais para estruturar na minha mente os passos do meu futuro. E cita-me: “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois e a passarada.”.

    Porreiro.

    Para já, sou uma grandessíssima parola.

    E ademais, ao que tudo indica com a conivência do meu Pai[5], imagina-se perfeitamente o sol e a passarada a estruturarem os passos do meu futuro. Com flores no cabelo, sandálias, ganzas, e o ashram do Ravi Shankar.

    white sheep on white surface

    Ensinam-nos que os jornalistas não manipulam as fontes, mas este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco. A minha frase sobre as caminhadas com o meu Pai que foram fulcrais  na estruturação do meu futuro eram antes,

    “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois, a passarada, e o anel de benzeno.”

    OK, é possível que a total ignorância do que pudesse ser um anel de benzeno tenha tornado aquela frase, escrita assim, incompreensível ao escrevinhador. Mas, uma vez mais: o jornalismo tem regras. Uma delas é que não se alteram as fontes. E, dê lá por onde der, de certeza que a internet está cheia de textos e videos a explicar o que é o anel de benzeno, como funciona, e a importância que tem na nossa vida. De certeza que até virá contado, algures, que Michael Faraday, o cientista que descobriu a sua estrutura em 1825, conseguiu chegar lá porque a viu claramente num sonho[6]. Descobrem-se coisas lindas, quando se faz investigação. Mas, com toda a evidência, estamos perante uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca.

    A seguir, o despistado lista as várias alcunhas que fui tendo na vida. Num novo exemplo de péssimo jornalismo, mistura os nomes familiares com os nomes profissionais, e nunca percebe que eram, todos eles, nomes extremamente carinhosos[7]. Em África, os meus tios chamavam-me “Pretinha” – o que não era certamente um insulto, e aliás eu tinha imenso orgulho em ser a pessoa mais escura da família. Um namorado que tive no JORNAL chamava-me “Minhoca” com a maior ternura deste mundo. O autor que não consegue perceber nada disto estampa-se ainda mais ao comprido logo a seguir, quando explica que, “como retaliação” eu chamava aos meus colegas “os fósseis,”

    É preciso não me conhecer de todo.

    E é preciso não ter perguntado nada a ninguém.

    Antes de mais nada, não sou minimamente dada a retaliações. E depois, quem é que vai retaliar tratamentos carinhosos? Como expliquei milhares de vezes[8], a história dos fósseis vinha do tempo do liceu, em 1976, dois anos depois da Revolução. De cada vez que nós, os membros aguerridos do esquerdalho, passávamos o portão e esbarrávamos com “os fascistas” de corrente da moto na mão para darem cabo de nós, bem podíamos ficar com as pernas todas rasgadas que não nos abstínhamos da vingança. Íamos para casa de alguém que não tivesse lá os pais, ligávamos para um dos fascistas em causa, esperávamos que viesse a mãezinha ao telefone, e um de nós dizia, no tom mais ameaçador deste mundo,

    “Brigadas de Extermínio aos Fósseis. O seu filho que não saia de casa amanhã, ou não responderemos por nós.”

    Depois, no dia seguinte, o fascista faltava às aulas e nós fartávamo-nos de rir.

    black haired man making face

    É certo que eram outros tempos. Mas quando, aos vinte anos, de shortinhos e top porque era Julho, entrei para uma redacção onde as únicas mulheres eram a Edite Soeiro[9] e a Lurdes Feyo, ambas bastante mais velhas do que eu, e aqueles gajos todos, também mais velhos do que eu, começaram a atirar-se a mim como se eu tivesse nascido ontem, mas depois ficaram muito ofendidos porque os meus palavrões ainda eram mais criativos do que os deles – ah, sim, as BEFs voltaram a acender-se na minha memória e desatei a correr toda a gente a fóssil. Mas isto era no gozo. No gozo”, percebe-se a certa altura, é uma atitude que este jornalista limitado não entende.

    Vale também a pena salientar que há mais passagens interessantes relativas aos talentos de crítico literário deste personagem. A primeira é quando está a listar os diversos tipos de literatura que eu fui cobrindo nas mais de cinquenta obras que escrevi até hoje. Uma delas, segundo este entendido, é a “ficção científica” – com tanto azar, logo um género que eu francamente detesto. Ou seja, a minha produção literária está a ser-nos apresentada por uma pessoa incapaz de distinguir homenzinhos verdes de um outro género que, esse sim, é uma das grandes paixões da minha vida, a divulgação científica.

    Com uma cabeça destas, já não causa grande surpresa que, mais à frente, o grande crítico conceda que sou uma grande cientista (em matérias que ele ignora de todo) mas que os meus livros não prestam. Deduz-se que os leu todos com imensa atenção, que os sublinhou, que marcou as passagens desastrosas, porque só depois de um trabalho destes é que um bom jornalista poderia fazer semelhante afirmação. Vamos acreditar que sim e imaginar que o que deitou tudo a perder foi, digamos, o meu  livro infantil A HISTÓRIA HORROROSA DOS PEIXINHOS AMARELOS, sobre o qual seria interessante fazer-lhe algumas perguntas tão bem preparadas como a crítica literária dele. Mas já  repararam numa coisa? Santo Deus, os editores portugueses devem ser completamente cretinos, não é[10]? Para terem publicado tantos livros meus. E olhem que consegui enganar muito bem os americanos. E os japoneses, que traduzem o meu trabalho científico? Ora, nada mais fácil. Mais de metade do artigo é dedicado a dissecar a minha arte para enganar toda a gente. Por que é que não havia de enganar também os estrangeiros[11]?

    E olhem, segundo este apressado cronista de costumes também houve alguém que enganei muito bem quando fui casar-me a Las Vegas. Aquilo de que eu me lembro é de ter ido lá casar-me com o Dick, o pai dos meus filhos, o meu companheiro  de dezassete anos de vida no Massachusetts, e lembro-me de todos, todos, todos os pormenores. Mas como o autor do artigo escreve por ouvir dizer… fui a correr casar-me a Las Vegas com o autor “daquelas” fotografias, para atenuar a escandaleira nacional[12].

    Só depois disto é que volta a entrar a parte do interesse de Portugal por mim, que já agora corrijo.

    O grande interesse de Portugal por mim registou-se mais entre os 32 e os 40 anos – quando, entre várias outras coisas, já tinha clonado mamíferos muito antes de nascer a Dolly, coisa que o autor não parece ter minimamente registado… e, bem, tinha-se tornado completamente impossível ir para a cama com o mundo inteiro para conseguir fazer o que fazia, incluindo passar quinze dias na Ilha da Páscoa, correr a URSS de comboio e vir-me embora uma semana antes do sonho socialista acabar, doutorar-me, fazer clones, e ir estudar História da Ciência para Harvard. Estou a ler as trapalhadas de datas e de afirmações não atribuídas, a pensar que em jornalismo não se faz isto, e…

              … e depois descubro que o senhor distraído não é um jornalista.

    O homem que não estudou nada do que escreveu é um historiador, pelo que aqui eu já começo a ficar seriamente preocupada[13].

    Será que ele dá aulas?

    E ensinará ele aos alunos a expressarem-se desta forma que, se é errada em jornalismo, em História é pura e simplesmente inaceitável?

    black swivel chair beside rectangular brown wooden desk

    Parece que vive no Alentejo e continua a deslocar-se aos Estados Unidos.”

    Parece?

    Mas o que vem a ser esta balda, este “parece”?

    Então e a verificação das fontes?

    Deveria ser bastante fácil investigar se eu estou ou não a viver no Alentejo – aliás, bastaria ler o mesmo PÁGINA UM pelo qual o nosso historiador, para me desprezar a mim, mostrou um desprezo alarve na sua peça. Da mesma forma, era só sondar o consulado americano e ficaria logo a saber que não – já não me desloco aos Estados Unidos, ou pelo menos certamente não em trabalho. E porquê? Santo Deus, se não quisesse perguntar-me directamente que perguntasse à Segurança Social Portuguesa: estou reformada antecipadamente por invalidez, demasiadamente doente para pode manter horários lectivos constantes e fiáveis.

    O que, acto contínuo, desmente outro “parece que” do nosso brilhante historiador: claro que, se estou reformada, já não sou catedrática na Universidade Lusófona.

              E, uma vez mais, que raio de desmazelo vem a ser este? Um historiador que faz o seu trabalho com seriedade, e que pelos vistos não tem coragem para esclarecer as suas dúvidas directamente comigo (que diabo, tenho um Facebook chamado Clara Pinto Correia e é meu hábito responder às mensagens que recebo) não é pelo menos capaz de agarrar no telefone, ligar para os recursos humanos da minha antiga universidade, e perguntar se eu ainda lá estou a trabalhar? A pessoa até treme, só de imaginar o que serão os seus artigos da especialidade. Consta. Parece que. Dizem. Bibliografia por ouvir dizer. E depois dizem que os alunos portugueses são medíocres, e que têm dificuldades de concentração, e que observam terríveis graus de absentismo. Mas por favor, está toda a gente a ver bem o exemplo que lhes chega de cima?

    Miguel Relvas perdeu, muito merecidamente, o seu grau de doutor. Mais merecidamente ainda, esta nulidade devia perder já o seu grau de historiador. Pode insultar-me à vontade, se isso lhe dá prazer. Mas não pode passar aos miúdos que estão a tentar definir a sua vida a noção de que um historiador é um insultador que manda vir como muito bem lhe apetecer com a maior das leviandades. Até pode tornar a minha irmã mais velha mais nova do que eu, porque, como toda a gente sabe, essas minudências nunca tiveram, nem nunca terão, qualquer espécie de importância. E então em História.

    E este pensamento horrível traz-nos de volta aos insultos.

    Infelizmente, em toda a rodada de maledicência destinada a dizer mal de mim, não é só o PÁGINA UM que come por tabela. Mais perto do fim (porque se há uma outra coisa fundamental em História que este historiador nunca consegue observar é a regra-mestra da sequência cronológica), chegamos à parte em que eu abandono os estudos (nada podia ser mais falso) e me entrego a actividades fúteis do pior gosto e menor qualidade.

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    Logo a primeira é ter aceite um papel secundário no filme do António da Cunha Telles KISS ME. Epá, tenham dó. Cubram o Cunha Telles dos defeitos de personalidade e feitio que quiserem[14]. Agora, para me deixar mal vista, ter a lata de chamar a um dos maiores  e mais pioneiros cineastas portugueses fútil, foleiro, de mau gosto, de má qualidade… um historiador não tem que perceber de cinema, mas, à semelhança de todos os outros  académicos como nós, quando não sabe não tem que ir estudar? E, pela descrição do filme que faz a seguir, será que foi mesmo vê-lo? Mesmo, mesmo? Um verdadeiro historiador teria ido. Este limita-se a vituperar que é um filme com a Mariza Cruz. Que, diga-se de passagem, se revelou aqui uma actriz excelente.

    A minha segunda actividade fútil e de muito mau gosto foi ter aceite participar, juntamente com Rui Zink, Carlos Quevedo, e Mariza Cruz, no júri do concurso da TVI A BELA  E O MESTRE. O historiador nem sequer menciona que o nosso papel era integrarmos o júri, e ainda por cima junta a Paula Bobonne ao nosso elenco. Aqui as suas trapalhadas são ainda mais imperdoáveis, porque todos os episódios ficaram gravados, o que lhe teria permitido consultá-los e tirar a limpo o que aconteceu. Qual quê. Ao melhor estilo psicanalítico, o senhor tece várias considerações sobre o que leva uma figura do mundo cultural a aparecer ali, sem a mínima menção a razões semelhantes para o Rui ou para o Carlos, também eles pessoas do mundo cultural. A ideia evidente de que uma mãe solteira com dois adolescentes rebeldes em casa pudessse precisar de dinheiro talvez não lhe tenha passado pela cabeça[15]; mas, uma vez mais, perguntar não ofende. Agora, este historiador é de tal forma avesso a investigar os seus temas que ignorou o ponto principal: chegada ao terceiro episódio, e com o nível do concurso sempre a descer, com ou sem necessidade de dinheiro eu não aguentei mais aquilo e demiti-me. No último programa em que apareci para me despedir, entrevistada pelos apresentadores sobre a minha decisão, disse, apenas, “Sou professora Universitária. Este não é o meu mundo. De certeza que outras pessoas farão muito melhor o que se esperou de mim que eu fizesse.” E foi então – então sim – que a Paula Bobonne entrou para o meu lugar[16].

    E claro que fez aquele papel muitíssimo melhor do que eu.

    Até é uma história interessante.

    Mas, se estamos a braços com um historiador que não sabe dar-se ao trabalho sério e árduo de fazer História…

    … em vez de verdadeiros factos apanhamos antes com chorrilhos de faits divers.

    Muito foleiros, ainda por cima.

    black and white striped illustration

    E extremamente perigosos para a motivação futura de quem ainda anda a estudar, o que não pode ser dito de nenhuma forma elegante: é um verdadeiro crime.

    Sabes, caro homúnculo que se realmente estudou História depois tratou de se  esquecer dela, e cujo nome nunca serei capaz de memorizar? Vi no fim do teu textículo que, ao que parece, as citações de Nietzsche te dão prazer mesmo que sejam completamente descabidas. Então, por uma questão de caridade, sugiro-te que não gastes mais o teu Nietzsche comigo. Porque calculo que saibas como é que isto acaba:

    “Se olhares muito tempo para o abismo, é o abismo que vai olhar para ti.[17]

    Há poucas coisa mais perigosas do que o olhar de volta que o abismo nos manda quando ousamos olhar estupidamente para ele.

    Tu tem lá cuidado com os teus futuros gatafunhos, piroso.[18]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E interminavelmente maus, além de interminavelmente mal escritos.

    [2] Ou mesmo, quem sabe, um “candidato a estagiário”, o escalão onde me arrumaram quem eu comecei a trabalhar no JORNAL.

    [3] Eram os exames de Julho. Por uma questão de princípios, nunca deixei nenhum exame para a segunda época.

    [4] Claro que este detalhe a criatura não poderia aber a menos que perguntasse ao Silva Pinto, mas, quando comecei a minha vida de jornalista – muito novinha, nesses tais tempos de oiro – o meu ordenado era de seis contos por mês. E eu aguentei-me como pude.

    [5] Que, ainda por cima, ainda passou ali uns anos consideráveis com bastante medo de que viesse a acontecer-me qualquer coisa como esta.

    [6] E vocês acham, porventura, que eu decorei isto tudo nas aulas de Bioquímica do segundo ano? Pelo amor de Deus. Fui agora mesmo ver à Wikipedia. Tal como o troca-tintas deveria ter feito, em vez de omitir o anel de benzeno quando cita a minha frase.

    [7] Não sendo psicanalista, atrevo-me a sugerir, perante esta estranha interpretação do sentido de nomes que só poderiam ser ou doces ou humorísticos, que talvez todas as alcunhas dele tenham sido insultuosas, razão pela qual não consegue interpretar nomezinhos queridinhos de outra maneira.

    [8] Uma vez mais, ele que investigasse, gaita.

    [9] Que, com o tempo, veio a ser a minha querida “Mãezinha”.

    [10] Bom, os editores e as pessoas que vêm ter comigo na rua a dizer “queria só que soubesse que o MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS é o meu livro preferido!”. Ou que me escrevem para o Facebook a dizer “Fiquei  fascinada com o MAIS-QUE-PERFEITO, mas emprestei-o e nunca mais o vi. Onde poderei encontrá-lo agora?”O que é que  eu hei de dizer, “deixem-se de coisas e leiam o MOBY DICK?”

    [11] Uma vez estava no  aeroporto de Frankfurt cheia de fomne e de sede, e só tinha uma nota de dez euros no bolso das calças. Epá, meus amigos, enganei ali uns dinamarqueses que foi um gosto.História absolutamente verdadeira excepto no uso do verbo enganar. Confraternizámos enquanto comíamos e bebíamos, foi mais isso.

    [12] Desculpem, está tudo doido?

    [13] “Seriamente preocupada” é um eufemismo, claro. Quantos “historiadores”  destes existirão em Portugal?

    [14] E nem sequer são merecidos.

    [15][15] Os meus colegas do mundo cultural lá teriam razões como as minhas.

    [16] E adorou tudo Aquilo. De onde se prova que aquele não era mesmo o meu mundo, independentemente do dinheiro para pôr os meus rapazes rebeldes na linha.

    [17] Nietzche, citação muito famosa que o homúnculo certamente já conheceu mas depois esqueceu, como tudo o resto.

    [18] Citando Valete, RAP CONSCIENTE. Quem conhece o seu trabalho conhece a continuação.


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  • Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges

    Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Dinheiro sujo

    Dinheiro sujo

    A única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível.

    Mark Twain


    Esta história é absolutamente real, e, nessa condição, parece horrivelmente fantasiosa. Tem a ver com segredos que não são possíveis e sentimentos que não são credíveis, todos eles  revelados por uma única frase que um contabilista me repete duas vezes, a segunda mais contundente do que a primeira: “a doutora passe uma procuração ao seu advogado para ele ir lá ver o que se passa.” E eu, feita parva, ainda falo com o advogado a espernear: “se é para os bancários dizerem quem é que penhorou a minha conta e em quanto, porque é que não basta ir lá eu? Eles não têm a obrigação de me dizer o que se passa com a conta?” E o meu advogado, com os ouvidos cheios de conversas iguais: “Pois têm, Clarinha, pois têm. Mas nunca te vão dizer nada.” E eu, furiosa: “Mas porquê, pá? Porquê? A conta é minha, não é?” E ele, com um suspiro: “Pois é, Clarinha, pois é. Mas, quando há porcaria, eles têm um medo doido de dizerem seja o que for aos titulares das contas.” Medo? MEDO? Mas isto é o quê, é algum offshore na Colômbia onde se movimentam nas sombras personagens sem rosto de um romance do Graham Greene?


    Esclareça-se já que este sítio suspeito onde as pessoas têm medo de falar não está localizado em águas internacionais, os contabilistas que não o dizem claramente mas sabem muito bem que esse medo existe não trabalham para nenhum offshore, e os advogados que já não podem nem ouvir falar de penhoras que ninguém quer explicar aos titulares das contas não viajam em Executiva pelo mundo ao serviço de uma grande ONG de socorro aos lesados de grandes promessas a prazo que afinal eram grandes extorsões à ordem. Muito pelo contrário. Todas as pessoas envolvidas por esta novela financeira estão tranquilamente aqui, em Estremoz, à excepção dos bancários que se distribuem, em dias alternados, pelo eixo Estremoz – Vila Viçosa – Borba.

    Tanto medo, tanta procuração ao advogado, tanto conselho codificado do contabilista num cenário tão bucólico.

    a group of people walking down a hallway

    E, partindo do princípio saudável de que este estranho medo não me afecta só a mim, tanto alentejano tranquilo que tem por lei o direito de saber quem é que lhe penhorou a conta e em quanto, mas em vez disso anda para aí à toa porque os bancários se fecharam em copas e ainda hoje estão fechados.

    É que eu, vá lá. Posso estar um bocado à toa, mas sempre tenho para onde me virar. Tenho um óptimo contabilista que me dá bons conselhos e não cobra separadamente por eles, e um grande amigo que pode ser muito lento mas é seguramente muito entendido na matéria. Mas nem toda a gente tem estas benesses. Se eu já ando de cabeça perdida com o silêncio da banca, imagino o inferno que tudo isto será para quem tem que enfrentar sozinho esse mesmo silêncio. Entretanto o tempo passa, as taxas de juro aumentam, e a nossa possibilidade de falência vai crescendo, crescendo, crescendo.

    Esta penhora que afectou a minha conta foi a primeira penhora que alguma vez afectou a minha vida. Eu estava, portanto, completamente virgem na matéria. O banco tinha a obrigação legal de me fornecer todas as informações que me ajudassem a compreender a situação e depois a lidar com ela. Mas, de facto, tendo em conta a forma como funcionam as penhoras também tinha a possibilidade ilegal de me deixar completamente pendurada, já que qualquer bancário com quem eu falasse podia sempre inventar um pretexto para não me dizer fosse o que fosse.

    O primeiro bancário com quem eu falei disse-me que essas informações só podiam ser fornecidas pelo gerente do balcão.

    O gerente do balcão, misteriosamente, de cada vez que eu lá ia estava sempre em Borba ou em Vila Viçosa, e portanto não podia falar comigo.

    grayscale photo of man holding paper

    Entretanto, e ao contrário de todos os outros bancos que são normais e fecham pelas três da tarde, aquele banco passa a fechar à uma e ao meio dia e meia já está tudo em pé, de pasta na mão.

    Acabei por encostar um bocadinho mais o primeiro bancário à parede, comentando com ele que sabia perfeitamente que aquela penhora ou era das Finanças ou era da Segurança Social. Ele ouviu-me, abanou afirmativamente com a cabeça, e lá suspirou “pois é, são sempre as sanguessugas.

    Dadas as circunstâncias, foi graças a este expediente que fiquei a saber que a penhora era das Finanças.

    E fiquei, também, absolutamente furiosa, porque obter de um banco este tipo de informação não deveria obrigar nenhum cidadão a recorrer a qualquer tipo de expedientes. Mas é que nunca na vida.

    Foi quando o contabilista sensato me disse, duas vezes, para eu passar antes uma procuração ao meu advogado.

    Como se a vida fosse um filme.

    Epá, se é, tirem-me deste filme por favor.

    Eu estava tão indignada com aquele comportamente surreal dos bancários que ainda voltei sozinha ao balcão de Estremoz. Desta vez fui atendida por outro funcionário. Uma senhora madura, com aquele ar posto em sossego de quem já ali anda há muito tempo. Ah, esta de certeza que ia ajudar-me.

    Recitei outra vez a minha litania.

    Recebi um pagamento de 250 Euros por uma tradução. Esse pagamento entrou na minha conta, e logo a seguir saiu. Foi assim que suspeitei logo da penhora, embora não tenha recebido nenhum aviso nesse sentido, fiscal ou outro. O seu colega já viu isso comigo, e já confirmou que é uma penhora das Finanças. Tenho mais pagamentos para receber,  mas não quero que eles sejam sumariamente penhorados. Quero saber qual é o valor total da penhora, e como é que eu posso negociar o seu pagamento.

    a man standing in front of an atm machine

    Ãh? Pareço mesmo uma pessoa crescida a falar.

    A senhora madura esquadrinhou cuidadosamente o seu computador, foi dizendo hm-hm e ah-ah, acenou várias vezes, e por fim fez-me um sorriso profissionalmente simpático.

    Eu nem queria acreditar no que ouvi a seguir.

    Não se preocupe, porque está tudo bem com a sua conta. Está a zeros, sem nenhum saldo negativo.

    Ó sua grandessíssima cabra!

    Claro que a conta estava a zeros, uma vez que as Finanças limparam tudo o que entrou. E claro que voltarão a limpar o que voltar a entrar se eu entretanto não fizer nada para alterar o rumo das coisas.

    E claro que a senhora madura tinha a obrigação legal de me alertar para tudo isto.

    Saí dali a bater com os pés de cólera e falei com o meu advogado nesse mesmo dia. Ainda deixei escapar uns berros, porque, acima de tudo, eu não percebia. Se a lei manda os bancários fazerem uma coisa, por que é que eles se esforçam tanto para fazer outra? O que vem a ser este filme? O que é que eles ganham com isso?

    Não ganham nada,” disse-me o meu advogado. “Por causa das contas penhoradas, os bancos até perdem dinheiro.

    Então eles fazem isto porquê?

    Porque têm medo.

    Têm medo?

    Pois têm.

    Mas medo de quê?

    Então… ó Clarinha… como é que tu dizes? Ah, têm medo da própria sombra! Têm medo de fazer porcaria, têm medo uns dos outros, têm medo dos chefes, controlam-se, espiam-se, é um ambiente de cortar à faca.

    woman walking with shadow

    Eu sei, de fonte incontestável, que os bancários são uma classe muito castigada. Em plena euforia do governo Guterres e da EXPO98, eram o grupo profissional que mais procurava o acompanhamento dos psiquiatras[1]. Entre várias outras coisas horrivelmente humilhantes, chegaram a ter que vender ao balcão férias no Algarve e jogos de faqueiros, uns em aço e outros em prata[2]. A vida deles é dura? Decerto. Mas e a nossa? Se calhar não é? Precisarei de voltar a dizer que os portugueses, quando chegam ao ponto de abrir contas nos bancos de Estremoz, não estão necessariamente a usá-las para ocultar os milhões que desviaram para aquele seu opulento offshore na Grande Caymão[3]?

    Ora bolas[4].


    PÓ, CINZA, E NADA

    Já agora, para vos provar que sei mesmo imensa coisa sobre dinheiro sujo, vou contar-vos uma história que se passou comigo na Grande Caimão, quando fui velejar à volta do mundo no três mastros de um comandante sueco meu amigo.

    Aquilo a gente chega lá e a rua principal é toda ela bancos, que têm diante deles, no passeio, um porteiro muito jovem e simpático que nos convida sempre a entrar. Tudo isto se passa no rés-do-chão, e no primeiro andar ficam os bares e os restaurantes para os clientes fazerem horas, quase todos com vista para o porto. Como já estávamos todos um bocado fartos da comida do iate, decidimos ir almoçar numa daquelas esplanadas simpáticas.

    De repente vimos uma grande fumarada, e percebemos que estava alguma coisa a arder no porto.

    Perante a leviandade dos outros comensais, que nem sequer se dignaram a desviar o olhar, fomos nós a correr ter com o porteiro, a gesticular e guinchar sobre a questão do incêndio.

    Ah,” disse-nos o jovem bonitão, muito simpático. “Não se preocupem. De certeza que é alguém que pegou fogo ao barco.”

    O quê?

    Pois. Não é? Um gajo tem um montão de documentos incriminatórios, certo? Então deita-os todos para o porão do barco… faz-se ao mar… atraca na Grande Caimão e…” – gesto dramático – “up in smoke!

    Uau!” – disse logo eu, que sou uma verdadeira bandida e não consigo deixar de ficar legitimamente impressionada com estas coisas.

    E, declarando-me assim culpada, esta caixa de texto substitui por hoje as notas de rodapé.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] António José Albuquerque, com. pers., 2005.

    [2] Idem.

    [3] A avaliar pela maneira enfurecida como as Finanças me tratam, é sempre onde eu imagino que “eles” imaginam que eu tenho o meu opulento offshore.

    [4] Só para que conste, devo a caixa de texto que ilustra esta crónica ao meu grande e terno amigo e protector Luís Laureano Santos.


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  • A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]


    Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.

    No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.

    blue and white starry night

    As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.

    O problema é que ninguém trava guerras por mitos.

    A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.

    E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…

    Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.

    Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?

    Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.

    A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.

    person doing gravity lean on the shore

    Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.

    Nature and Nature’s laws

    Lay hid in the night

    God said: LET NEWTON BE!

    And all was light,”[7]

    escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].

    Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet.  Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

    a chalkboard with some writing on it

    E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.

    Eu disse uníssono?

    Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.

    Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.

    Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?

    black mountain bike

    A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.

    Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mario Vargas Lhosa, in THE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.

    [2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?

    [3]Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.

    [4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.

    [5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.

    [6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.

    [7] “A Natureza e as suas leis

    Estavam escondidos na noite

    Deus disse: “Que exista Newton!”

    E fez-se a luz.”

    [8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.

    [9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

    [10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

    [11] Os chamados “Comentadores de Newton”.

    [12] Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.

    [13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.


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  • The Deer Park: o único local inteiramente novo que conheço

    The Deer Park: o único local inteiramente novo que conheço

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges

    Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Deus dá-nos as nozes mas não é Ele quem as parte.

    Provérbio transmontano


    Homenagem a Maria Antónia Fiadeiro,

    Onde se contam as histórias

    Ocultas até hoje


    Convocámos este título inconfundível porque, já que aqui chegámos, aproveitamos a embalagem e, de caminho, homenageamos também a Grande Arietta Franklin. Pode não ter queimado um único sutiã, mas exigiu respeito a vida inteira. Tinha a voz perfeita para isso, e a legitimidade de um passado em que os avós eram escravos. Nunca militou por causas especificamente feministas, mas – ah. Que grande sobressalto causava a sua presença enorme em palco. Era o tipo de presença que nenhum homem poderia alguma vez vir a ter. Era o tipo de presença que ensinou à nossa geração umas lições muito sérias que nós, felizes e estouvadas, bem precisávamos de aprender. Porque era o tipo de presença que só podem ter aquelas que, como Arietta Franklin, ergueram o queixo e, muito naturalmente e muito assumidamente, foram m-u-l-h-e-res muito grandes. And hey, now you deal with it[1].


    Quem muda seja o que for no mundo racista, chauvinista, paternalista e sexista da música soul está evidentemente a mudar alguma coisa no mundo. Sendo assim, claro que o mundo foi mudado por esta mulher enorme que entra em palco de visom comprido, seguida por um coro de Gospel. Vai sentar-se ao piano, solta de lá aquela voz rouca de timbre assombroso que já tinha aos catorze anos, canta até chegar ao clímax final, começa a subir com o coro por trás e vamos lá, “you make me feel like a natural woman – a woman – a woman – a woman – a wo-o-o-o-man!” – e, na batida em crescendo da música, franze as sobrancelhas, salta do piano, agiganta-se de pé no palco, levanta os braços, e – ó momento! – despe e atira para o chão o seu casaco de vison, enquanto o coro explode em harmonias atrás da sua voz sempre firme. No camarote presidencial, Carole King[2] vai ter um AVC a qualquer momento. Michelle, nessa noite linda de morrer, levanta-se sobre o voo do casaco e desata a aplaudir como quem dança. O Primeiro Presidente Negro dos Estados Unidos encostou a cabeça ao espaldar do cadeirão e secou uma lágrima[3].

    Arietta foi aqui chamada como termo de comparação para a portuguesa Maria Antónia Fiadeiro, que eu ouvi cantar várias vezes quando ela se juntava ao meu bando nas nossas noitadas ocasionais de aventura pós-laboral conjunta[4]. A sua voz também era rouca, as suas harmonias também eram certas, as suas notas também eram firmes. Quando íamos aos fados vadios mandávamo-la para a frente nas desgarradas, e as suas quadras de improviso tinham sempre um duplo sentido latente, promissor e ardente[5]. Íamos sentar-nos no alto das colinas, a ver as luzes dos barcos no rio, e ela nessas noites punha sempre uma boina. Até que houve uma noite particular, numa esplanada enorme que existia nessa altura ao cimo do Bairro Alto, onde já chegámos todos completamente mocados e nas duas horas seguintes nos estivémos a deliciar com muita cerveja, muita conversa boa, e muitos peixinhos da horta inacreditáveis que se serviam ali naquela altura.

    Maria Antónia Fiadeiro (1942-2023) numa entrevista à RTP em 2003.

    Nessa noite, e apenas nessa noite, tinham aparecido mesmo no fim do espectáculo alguns Portugueses Muito Importantes. Os outros Portugueses estavam a bater-nos palmas quando se ouviu dizer que íamos fazer um encore para os recém-chegados. Ficou mais gente, entrou mais gente, nós não percebemos nada mas éramos miúdos – repetimos tudo. Fomos para os peixinhos da horta estafados e felizes, comemos e bebemos e falámos, a Fiadeiro presidiu com graça e sabedoria, e por fim toda a gente bazou.

    Estava a nascer uma linda madrugada.

     Foi quando ela me piscou o olho com um sorriso quase tramado mas quase infantil, e me falou quase ao ouvido.

    Gosto de ir ver o teu espectáculo de boina, sabes. O Fernando diz que vocês descarregam uma tal energia sexual para cima das pessoas que mais cedo ou mais tarde o bar inteiro vai acolher um verdadeiro bacanal. E eu não tenho vinte aninhos, como tu, nem uma carinha laroca, como a tua. Preciso de uma boina. Vais ver. Quando estou de boina, sou uma mulher muitíssimo mais atrevida.”

    Não tinha medo das palavras, a Maria Antónia. Pagou centenas de vezes o preço por isso, mas continuou a usá-las com bravura e beleza, de forma limpa e directa desprovida de rodeios, uma forma de falar das coisas que em grande medida eu aprendi com ela.

    É verdade, eu tinha na altura uns 25 ou 26 anos. Ela podia ser minha mãe, e além disso eu era uma miúda e ela era uma grande estrela do nosso firmamento cultural. Metemo-nos a trabalhar juntas num projecto para o Diário de Notícias que também incluía a Antónia de Souza, e quem me convidou para integrar a equipa foi “a Fiadeiro[6]”. Uma porreira, na minha linguagem.  

    Convidou-me porque gostou de mim, da minha maneira de falar[7], e das minhas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas, numa entrevista que me fez para o Diário de Notícias em 1985, assinalando o momento em que acabei o curso de Biologia, fui dar aulas de Embriologia para a Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a fazer investigação de doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, e, para grande surpresa dos meus colegas, continuei a publicar livros e a escrever crónicas mas abandonei as salas de redacção dos jornais. Ora isto, já de si, é absolutamente notável. Só uma mente brilhante como a dela se lembraria de propôr um trabalho destes ao director do maior jornal diário da capital. A grande estrela entrevista o pequeno cometa que vai a passar? Não senhor, não é costume.

    Número 3 do Cadernos de Reportagem, editado pela Relógio d’Água no final de 1983, sob direcção de Fernando Dacosta-

    Como é evidente, foi a primeira grande entrevista que eu dei na vida.

    Que diabo, eu tinha 25 anos.

    E ela não era mesmo  de pestanejar nem hesitar.

    Às tantas eu estava a falar-lhe da festa do amor e do prazer[8], e da importância da felicidade em cada um dos nossos dias e cada uma das nossas tarefas.

    Consideras-te uma hedonista?

    O que é que eu havia de responder?

    Sim.”                   

    Logo a seguir, a grande estrela conseguiu, finalmente, convencer o director a deixá-la formar uma equipa feminina para produzir uma série de reportagens sobre “A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE”. E nem sequer hesitou, convidou logo o pequeno cometa para essa equipa. Gostou da entrevista e basta.

    A sério:

    O pequeno cometa estava todo a tremer quando chegou a casa e contou tudo isto ao marido.

    O marido encolheu os ombros.

    Vocês reparem.

    Ao mesmo tempo que a Maria Antónia tinha estes gestos rasgados de generosidade para comigo, eu sabia perfeitamente que os outros jornalistas andavam antes muito ocupados a garantir uns aos outros que eu ia para a cama com toda a gente e mais alguém[9] para conseguir fazer tudo o que fazia. Era uma explicação sumária tão tentadora que o Meguinha, à época já meu marido, não resistia a usá-la ele próprio de vez em quando.

    Um dia apanhei-o em flagrante delito de cair exactamente nessa tentação mesmo à minha frente[10], e à noite cheguei derreada a casa da Antónia de Souza, em Campo d’Ourique, onde estava marcada a nossa sessão de trabalho para essa semana. Bem, nessa altura já me sentia tão segura com elas duas que desabafei logo na entrada. É que se fosse só o Meguinha, não é? – pronto, seria arrevezado, mas poderíamos imaginar que tínhamos entrado por engano dentro de um romance do Choderlos de Laclos. Elas riam. Mas é que não era só o Meguinha, eram todos os jornalistas, homens e mulheres, oh!, que horror. Elas olharam uma para a outra, e depois recomeçaram a rir. Eu já estava a esticar o beicinho, e foi quando a Fiadeiro me empurrou o braço com o cotovelo, me piscou outra vez o olho, e falou comigo em verdadeiros words of wisdom.

    Clara, essa gente toda que te imagina na cama com outra tanta gente para chegares onde eles não sabem mas tu sabes que queres porque és pérfida e manipuladora sem ter ar disso[11] – por favor, tem pena deles.” São uns desgraçados.”

    Biografia de Maria Lamas, escrita por Maria Antónia Fiadeiro.

    Sorriu para mim.

    Podia ser minha mãe.

    Só que a minha mãe nunca seria capaz de me dizer aquilo.

    Já imaginaste bem a quantidade de pessoas com quem essa gente toda já foi para a cama a tentar chegar onde quer – e nunca conseguiu chegar a lado nenhum? Coitadinhos, queres que não digam mal de ti?

    E então, de repente, vi uma data de gajas todas produzidas a tentarem engatar uns magnatas da televisão que nem olhavam para elas, pelo que acabavam por tirar a roupa para um qualquer técnico de som bexigoso que estava a mastigar pastilha elástica. Vi uns comentadores desportivos já meio carecas, esquecidos da questão de tirar as meias, num esforço patético para dar prazer a umas mulheres desagradáveis com todo o ar de quem não ia dar-lhes nem um quarto de hora nas cenas a cores de domingo[12]. Até vi uns jovens escritores a apanharem em cima com o peso de um editor obsceno que lhes bradava obscenidades e eles só queriam chorar. Vi isto tudo muito depressa, mas não suficientemente depressa, porque, entre a sugestão e o sorriso que a Fiadeiro me oferecera, já estava mas era a rir, a rir, a rir.

    Ela sabia cortar a direito, sabia separar as águas, e tinha este dom.

    Sabia consolar meninas de vinte anos.

    Desse projecto A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE[13], devo-lhe ainda mais uma dádiva rara por demais.

    Na nossa primeira reunião de projecto, com o território ainda todo virgem à nossa frente, tínhamos que começar por escolher um formato para a série. E eu, por acaso, na noite anterior já tivera uma ideia. Sabia que era uma ideia um bocado extemporânea, mas que se lixe. De certeza que a Fiadeiro não me escolhera para que tudo ficasse na mesma.

    Bom, minhas senhoras, eu tenho uma proposta. Posso?

    Elas olharam para mim de sobrancelhas levantadas e expressão curiosa.

    Podíamos pegar nisto pelo lado da ilusão: as mulheres pensam que as coisas mudaram, mas, na realidade, as putas das coisas nunca mudam. Nunca há mulheres presidentes nem mulheres primeiros-ministros, não é? Mas esse é o lugar-comum previsível. Nós vamos antes explorar o quotidiano das mulheres normais e mostrar como elas foram enganadas com a conversa da mudança. Ambos trabalham, mas em casa o homem vê televisão e a mulher cozinha, limpa, e trata dos filhos, estão a ver? Se eu vier a sair do bar no Bairro Alto depois de ter feito o BOA NOITE LUA NOVA e estiver a voltar para casa às quatro da manhã, e me sentir tão feliz que paro num banco da Praça das Flores para fumar um charrinho, o mais provável é que seja atacada por um tarado qualquer porque sou uma mulher que está sozinha à noite num banco de jardim e portanto sou uma puta, e só me resta resolver aquilo ao soco[14], o que já me aconteceu e aposto que não aconteceria a um gajo, e aliás é o mesmo que me acontece quando estou sozinha na estrada a pedir boleia, outra coisa que qualquer homem poderia fazer sem ter o mínimo problema. Se não temos quotidianos iguais, não temos paridade. A minha sugestão é cada uma de nós inventar uma mulher, com as suas características físicas e mundo pessoal próprios, que passa pelas situações em que estarão as nossas entrevistadas. Senão, se estas mulheres puderem ser identificadas com nome e apelido, vai ser terrível para elas.

    Hm,” disse uma.

    Hm,” disse a outra.

    Franziram as duas as sobrancelhas com uma expressão intensa.

    E fez-se um grande silêncio.

    Era evidente que elas não tinham gostado da minha ideia.

    Se calhar eu não me tinha explicado bem.

    Provavelmente tinham ficado ofendidas de morte quando eu disse que a nova liberdade das mulheres – essa nova liberdade pela qual elas haviam lutado a ferro e fogo durante quase toda uma vida – andava mais perto das miragens que dos oásis que íamos cruzando na nossa grande e conjunta travessia do deserto.

    Batia-me de repente o coração com mais força.

    Por fim, a Fiadeiro fez um sorriso tramado e deu uma cotovelada muito sabida à sua velha camarada de armas de Souza.

    A minha mulher,” declarou ela, “vai andar sempre a cavalo e chamar-se Madalena.

    Pausa dramática.

    E não está arrependida de coisa absolutamente nenhuma,” concluiu, mais poderosa do que nunca. “É um cavalo musculoso, de grandes crinas, que é todo negro e que se chama Trovão!

    Ah,” juntou-se-lhe a outra num tropel digno do Trovão. “Nesse caso a minha chama-se María Helena e veio de Madrid a fugir à Espanha de Franco e trabalha em publicidade mas como não consegue falar português sente-se ainda hoje um bocado inadaptada!”

    Desta vez a grande estrela estava a aceitar uma sugestão de formato avançada pelo pequeno cometa, o que era uma lição de modéstia de se lhe tirar o chapéu. E mais: estava a aceitar uma sugestão que implicava cruzar factos jornalísticos com personagens de ficção criados para proteger as fontes, uma técnica até então raramente utilizada[15], e ainda hoje extremamente polémica dentro da Comunicação Social. O género de técnica que ou se usa muito bem ou descamba no puro desastre. Ela estava a aceitar correr grandes riscos por sugestão minha.

    As outras pessoas falavam sobretudo da sua seriedade, e neste número podemos incluir até os seus filhos; mas, para lá de toda essa montanha, estava escondido um mar verde cheio de ondas redondas e de espuma branca: eu achava-a divertidíssima. E isto devia-se, sobretudo, à limpidez da sua sinceridade.

    Uma vez o trabalho era só entre nós as duas, os dias estavam a começar a ser cada vez mais compridos, pairava sobre Lisboa uma brisa balsâmica de Verão, e eu estava apaixonada já nem sei por quem. Não é isso que interessa, foi um caso brevíssimo, mas a verdade é que o amor nos faz flutuar uns bons centímetros acima da calçada dos passeios e nos faz cintilar a pele. Entrei no Bairro de São Miguel positivamente feliz, sorri para o murmúrio dos ramos das árvores, alonguei o passo pela sombra e respirei fundo. Cheguei a casa da Fiadeiro, toquei à campainha, e ela abriu-me a porta envolta pelas trevas do interior.

    Olhou-me imediatamente de alto abaixo, enquanto eu lhe acenava com toda aquela luz de Verão a iluminar-me. Tinha feito uma trança que já começava a desfazer-se em caracóis, trazia a franja por cima dos olhos, e tinha as pernas de fora e o umbigo à mostra dentro de um conjuntinho top-shorts arrancado em grande triunfo de uma pilha da Feira de Carcavelos[16], todo ele amarelo-canário e com uns grafitti pretos e vermelhos à frente numa caligrafia que supostamente era cirílico.

    Pois é, Clara.”

    Voltou a olhar-me de alto a baixo enquanto eu entrava e ia direita à cozinha, onde começávamos sempre por tomar café. Riu-se.

    A questão é que vocês, agora, já nascem assim. Já nascem todas elegantes. Podem andar para aí sem sutiã e de pernas de fora… tu, por exemplo, tu podes, tu assim ficas tão linda… A Lena d’Água… a Lena d’Água  também fica linda. Nós, na minha geração, nascíamos sempre de perna curta e anca parideira, como é que nós podíamos…”

    Deitou-me outra vez aquele olhar de medir tudo, ao mesmo tempo que começava a gesticular com grande veemência, como se estivesse a imaginar-se a si própria, e a todas as suas amigas feministas, dentro de um top-shorts amarelo-canário com dizeres em russo. Sem sutiã e de umbigo de fora.

    Oh, como é que nós alguma vez poderíamos!

    A gente deve estes corpinhos à Revolução,” disse-lhe eu. “Não houve nada em Portugal que não mudasse.

    E custou-nos bastante beber aquele café, porque estávamos constantemente a desatar a rir.

     O ano passado, a 30 de Março, os dois filhos da escritora publicaram na Edições Caixa Alta, que receberam o projecto de braços abertos, o livro ARTISTAS ARTESÃS PIONEIRAS: conversas singulares entre mulheres extraordinárias, com entrevistas da Fiadeiro a várias outras mulheres por vários pretextos. A ideia original foi dela, grafismo e sequência incluídos. Começou a preparar tudo muitos anos antes da data da publicação, e quando estava tudo pronto nenhuma editora teve o arrojo de pegar num livro que é também uma obra de arte: são 565 páginas grandes de capa dura, cheias de grandes histórias, onde  tive a honra de ver incluída esta entrevista que me pôs ao colo das feministas, e que ela intitulou A INTELIGÊNCIA É O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DAS COISAS[17].

    O ano passado o livro assinalava a data da morte da Maria Antónia, que nos deixou a 30 de Março de 2023 com uma paragem cardio-respiratória que chegou às dezanove e cumpriu o seu curso às vinte. Nenhum dos dois filhos estava em casa, portanto nunca saberemos se ela descobriu ou não que estava a ir-se embora. Acontece que este seu último livro, uma belíssima oferta que ela deixava ao povo português, saiu em plena pandemia. Quase ninguém o viu. Portanto, este ano, celebrando o primeiro aniversário da sua morte, a Caixa Alta e os dois filhos da Maria Antónia organizaram uma verdadeira festa de lançamento para os quinhentos exemplares da segunda edição, muito apropriadamente no dia oito de Março, na Biblioteca Municipal de Belém, dentro da sala do Núcleo Feminista Ana Osório de Castro que tem o espólio todo dela. E desta vez cada entrevistada pôde, por fim, ler o trecho da sua entrevista que mais lhe falou ao coração.

    Ou à cueca, vá. No meu caso, entenda-se. A Fiadeiro não era piegas, e eu agora tenho a obrigação de ser hedonista.

    Ainda ao jeito de homenagem, este livro/ obra de arte estará nas montras das livrarias a partir de dia 30 deste mês, um ano depois da morte da sua autora.

    E segue-se um brinde muito pessoal aos construtores do livro, com toda a minha ternura.

    Se querem saber como é que eu, ainda hoje, vejo a Maria Antónia Fiadeiro, pois bem – tal como aos vinte anos, vejo-a igual à WonderWoman[18], a minha grande heroína dos comics. Tinha a sabedoria de Atena e o poder de Afrodite para inspirar amor. Era mais rápida do que Mercúrio e mais forte do que Hércules. Na sua república feminina  na Ilha do Paraíso, um refúgio criado pela cultura das Amazonas, protegido dos intrusos por um campo magnético de pensamentos que o mundo conhece como Triângulo das Bermudas, desenvolvera naturalmente os seus poderes assombrosos treinando-os desde a infância com as suas outras Irmãs Amazonas, em concursos de perfeição, força, e velocidade, modelados pelos combates da Grécia Clássica. Tudo isto nos passava a mensagem de que cada uma de nós pode ter em si poderes secretos, desde que acreditemos neles e os treinemos[19]. Eu, pelo menos, agradeço a Deus ter treinado tanto com ela.

    Sim, é verdade. Nem todos os detalhes colam. Não sou feminista. Mas teria que ser? Acima de tudo, sou mulher. Vivo sozinha no Alentejo[20]. Ia escrever “os homens podem viver sozinhos à vontade que ninguém os chateia,” mas isso não é verdade – os homens não aguentam viver sozinhos. Precisam sempre, sempre, sempre de uma mulher que lhes faça companhia e trate deles. Quando são mais novos e lhes estoira o casamento escrevem imediatamente um livro de       catarse e saltam de bar em bar até arranjarem namorada. Quando são mais velhos atrelam-se sem hesitações nem demoras ao Grupo Excursionista mais próximo. Em ambos os casos, o padrão não muda. Um homem sozinho considera prioritário arranjar uma mulher ao seu serviço.

    Mas eu, que sou uma mulher, há uns bons vinte anos que vivo sozinha.

    A Maria Antónia treinou-me maravilhosamente para este tipo de travessia.                                      

    Conheço muito bem o Inferno, e não faço juízos de valor.

    WonderWoman saves the day.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Nestas circunstâncias, a expressão pode traduzir-se livrement por “Hey, e agora aguentem-se à bronca.”

    [2] Co-autora, juntamente com o seu então-marido, da canção “(YOU MAKE ME FEEL LIKE) A NATURAL WOMAN”. Sempre considerei a canção, enfim – simpática para quem gosta do género. Mas isso foi só até ouvir a rendição de Ms. Franklin com o seu longo vison, o seu piano, e o seu coro de Gospel.

    [3] Este concerto, com este momento inesquecível, está postado no YouTube. Sugestão obrigatória para quem ainda não viu e não conhece as mulheres.

    [4] SURPRESA!

    [5] Nunca me esqueci de uma quadra que ela cantou nos fados da Rua do Diário de Notícias e que fez o jovem muito bem parecido com quem ela foi a despique desistir logo: “Não cantava à desgarrada/ Desde  a minha mocidade/ Mas cada um de nós chora/ Por onde tem mais saudade.” Digam-me lá, quantos níveis de leitura poderia aquilo ter. Chora por onde tem saudade? Ah-ah-ah. Grande danada.

    [6] Na imprensa tratávamo-nos todos pelo apelido. Durante anos e anos, até desaparecer nas neves eternas de Buffalo, eu fui “a Pinto Correia”. Razão pela qual sempre tratei por Meguinha o António Mega Ferreira, a quem nunca chamei António: quando ainda não o conhecia mais intimamente, tratava-o por Mega, como toda a gente fazia. Depois do nosso casamento aquilo esteve quase a descambar porque o “Meguinha” ainda passou a “Guinha”, e o “Guinha” chegou a ser “Gui”. Depois caímos na real e emendámos rapidamente a mão. Ah, e ele nisto dos nomes foi um porreiro. Nunca me tratou por “Pinto-Correia”. Incapaz de pronunciar o terno “Clarinha” do comum dos mortais, informou-se quanto a antecedentes familiares e começou rapidamente a tratar-me por “Pretinha”. Que bom. Sempre foi a minha alcunha preferida.

    [7] A minha maneira de falar era um interesse sério para ela. Considerava-a importante para abrir novos caminhos à linguagem. Nesta entrevista, incluída neste seu livro, nota-se que faz um esforço considerável para deixar transparecer a minha autêntica voz – veja-se o uso de “porreiro”, “cenas”, “partir para outra”, “piroso”, “que nem uma besta”, tudo termos que de outra forma ela não usaria.

    [8] Parafraseando Jorge Palma, já que estamos nisto dos porreiros.

    [9] Visitantes estrangeiros de passagem incluídos. Vim a saber de alguns casos absolutamente fulminantes.

    [10]Vai acampar? Vai acampar no Inverno? Eles vão todos acampar no Inverno? Com chuva, lama, geada, e o frio que tem estado? Querem uma história mais mal contada? Reparem, eu acredito que ela vá para Águas de Moura. E basta. Deve haver lá uma pensão manhosa para brincadeiras com assistentes. Basta afundar o Carocha na lama antes de voltar para casa. Enfim, Matilde. Tenho um fim-de-semana sossegado para ler e ouvir ópera.” E a restante redacção do JL ria com as mímicas do Meguinha, mas é queria, ria, ria. Cabrões. Eu era tão jovenzinha que fiz uma cena canalha através da porta, gritei “Meguinha!”, e, quando toda a gente se calou, abri mais a porta e acrescentei: “Nunca mais escrevo para o JL!” Por acaso nem sei se estou arrependida. Imaginemos, por exemplo, que um dia a vida é um filme.

    [11] A Maria Antónia falava muitas vezes assim, como se estivesse a ler as suas próprias frases já impressas no seu novo livro. Era impressionante.

    [12] É verdade, malta. Se não quiserem acreditar não acreditem, mas eu já estava quase a fazer vinte anos quando apareceu a televisão a cores.

    [13] Trabalhámos imenso, e com muito gosto, mas ficou pelo caminho. Eu fui para Buffalo. Elas não quiseram continuar a trabalhar sem mim. De certeza que a culpa foi do formato.

    [14] História verdadeira.

    [15] A primeira vez que isto se usou em grande escala foi numa grande série de quinze reportagens sobre AS FAMÍLIAS PORTUGUESAS que eu, o Fernando Dacosta, e o António Duarte fizémos para O JORNAL. Protegidas por alter egos, as pessoas diziam mesmo tudo o que lhes ia na alma – e verificou-se então que tinham, de facto, muito para dizer. A série deu tanto brado que tive entrevistados refugiados durante meses em minha casa, entrevistados que ainda hoje não me falam (“mas queres mesmo dizer isso em público?” – “quero!” – “mas?” – escreve! escreve!” – “olha, saiu hoje.” – “cabra! por tua causa tive que ir a um psiquiatra pela primeira vez na vida!”), e, decerto, pessoas que ainda hoje cruzam a rua para virem falar-me de alguma coisa que então leram e lhes falou particularmente ao sentimento.

    [16] Eu sou do tempo eu que nasceu a Feira de Carcavelos, recheada de roupas fantásticas que Portugal nunca tinha visto antes e que não estavam à venda em mais lado nenhum. Tudo ao preço da chuva, e ainda passível de se regatear, uma arte que eu adoro. Nesses primeiros anos, eu e as minhas amigas levantávamo-nos às seis da manhã para reunir no meu carro, ir, comprar, mostrar umas às outras, tomar café, rir imenso, voltar, e estar às nove no trabalho com um ar todo impecável. Eu ia a guiar, por isso não podia trocar de roupa no carro durante o regresso. Mas havia até quem fizesse isso.

    [17] Isto foi uma frasezinha que eu soltei no meio de torrentes de palavras para ilustrar a complexidade do mundo vivo. A Maria Antónia fez logo um título bestial com ela. Um daqueles chauvinistas que pululavam nos jornais teria antes feito logo um título tipo “Parti para outra”.

    [18] Na minha geração ninguém lhe chamava “Mulher-Maravilha”. É bué foleiro.

    [19] Parafraseando Gloria Steinem, outra grande fã (e até estudiosa) da WonderWoman.

    [20] OK, OK, reconheço, vivi sozinha em vários outros sítios. Tive chatices, como as que tive quando andava à boleia. Mas isto aqui é um padrão. Estão a ver a diferença?


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  • A luz que vos baptize

    A luz que vos baptize

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU


    Graças a Deus, no meio do ruído de fundo de toda esta confusão e do cruzamento descoordenado de todos estes polegares, de vez em quando ainda conseguimos encontrar alguém que, mesmo que inicialmente não consiga recordar bem porquê, sinta um sobressalto quando ouve mencionar o ano 79 d.C.

    Não é caso para menos.

    O ano 79 da nossa era é um ano carregado a negro na  memória colectiva da civilização ocidental. Foi quando, nos dias tranquilos do início do Outono, a erupção do Monte Vesúvio congelou para sempre debaixo da cinza, em menos de um minuto, todo o esplendor e o requinte das cidades romanas de Pompeia e Herculano, onde viviam cerca de vinte mil pessoas.

    brown concrete statue under blue sky during daytime

    Foi um dos cataclismos vulcânicos mais violentos de que temos conhecimento na Europa. A nuvem de gazes superaquecidos que saiu da chaminé do Vesúvio elevou-se no ar até uma altitude de 33 quilómetros, projectando a toda a volta rocha derretida, pedra-pomes, e cinza a ferver, a um débito de 1.5 toneladas por segundo – o que deverá ter correspondido a cem vezes mais do que a energia térmica dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.

    Enquanto toda esta catástrofe monumental acontecia, ia um barco a passar ao largo com um viajante muito especial a bordo.

    O homem que havia de condicionar o nosso pensamento em relação ao mundo real e mágico que nos rodeia chamava-se Plínio, e era o autor do famoso HISTÓRIA NATURAL. O seu livro, a todos os títulos inesquecível, era um enorme manual de Biologia composto antes da Biologia ter nome, o compêndio de descrição do mundo vivo pelo qual toda a gente jurava. Os parágrafos começados por “Muitos autores garantem, segundo Plínio…” abundaram na literatura europeia até ao fim do século XVII, encaixando-se com bastante facilidade nos novos paradigmas da Revolução Científica. Incansável, extuante de energia, Plínio estava ali em mais uma viagem de exploração. Viu o Vesúvio explodir na costa, e ordenou imediatamente ao comandante que se aproximasse. Queria ir estudar os fenómenos vulcânicos mais de perto. Imaginem, a explosão do Vesúvio na mente do século I DC.

    Plínio morreu nesse dia, envenenado pelos gases tóxicos do vulcão.

    brown village arch during daytime

    É verdade que o seu HISTÓRIA NATURAL nos oferecia uma Biologia cheia de uns milagres e uns prodígios que já não cabem nesta que conhecemos hoje[1]. A título de exemplo, já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito; e a prova disso é que já nenhum marido amarra com toda a força um cordel à volta do testículo esquerdo antes de copular com a esposa, para ter a certeza de que a insemina com a seiva do testículo direito, e que, portanto, vai ter um rapaz[2]. Já ninguém acredita que o sangue menstrual consegue, “só com a sua presença,” operar sortilégios tais como embaciar os espelhos, enlouquecer os cães, fazer murchar as plantas verdes, azedar as sopas, enferrujar o cobre, tirar a força ao ferro, e assim por diante. Mas muitos autores medievais e renascentistas limitaram-se a evocar Plínio para darem mais credibilidade às suas teses – o que, por sua vez, mostra bem o respeito enorme que a sombra do autor da primeira HISTÓRIA NATURAL projectava sobre a mente europeia. E ressalve-se, também a título de exemplo, que Plínio foi dos primeiros a descrever, e com bastante minúcia, a técnica dos egípcios para incubar os ovos de pinto durante três semanas debaixo de estrume de cavalo – e esta técnica, que parece também ela tirada de uma qualquer fábula exótica, foi usada, pelo menos, até ao século XX[3].

    E, evidentemente, não há nada capaz de impedir o mundo vivo de estar literalmente pejado de maravilhas que não podiam ser mais reais, mais verdadeiras, mais cientificamente demonstradas – e, por isso mesmo, mais incrivelmente maravilhosas.

    Nesta minha apresentação do prazer que me é tão próprio que acabou por tornar-se parte integrante de mim, o prazer de falar aos outros das coisas da Natureza, deixem-me começar por protestar que não sou, de maneira nenhuma, o único autor ocidental sensível ao charme e ao conforto dos lugares-comuns. Com a sua tranquilização instantânea e gratificante de vestuário já usado ou calçado muitas vezes[4], os lugares-comuns podem ser úteis no fio condutor de certas histórias. E é exactamente por isso que aqui estão, a pôr em perspectiva tudo o que vem a seguir.

    As coisas passaram-se assim, por ordem de entrada em cena.

    Ao desenvolver o lobo frontal do cérebro, uma arma mortífera ausente em todos os outros seres vivos, o homem vê-se obrigado a pensar. O pensamento é a invenção mais perversa de toda a Evolução. Só porque os seus neurónios se multiplicam e se ligam de uma forma especial e desconhecida, o pobre primata gabro, sem presas nem garras, começa a precisar de triunfar sobre a sua angústia perante todo o vazio cognitivo que o  rodeia e o intimida. Século após século, mamute após mamute, mistério após mistério, esse vazio vai-se limpando como quando um nevoeiro denso se vai tornando cada vez mais fino. São destes primeiros esforços que nascem as histórias capazes de explicar o que são as fogueiras que aparecem no céu durante a noite, de onde vem aquele disco tão brilhante, que, de repente, vai subindo pelo ar e modificando todas as cores e odores no seu trânsito diário de um lado ao outro do horizonte, que dança estranha é aquela que esse disco maior faz com o outro que vem em sentido oposto e ao mudar de forma também muda as marés, e mais, e muito mais.

    É assim que o primeiro esboço de pensamento vai deslizando para fora de todas as ignorâncias urgentes, e, em consequência, é assim que começa a delinear-se  um mínimo de mapa primitivo que nos permite pôr tudo o que dantes não tinha nome em perspectiva, estruturando pela primeira vez, num deslumbramento feliz, todo o que conhecimento que herdámos dos primeiros sábios. E é assim que, no decurso desse primeiro preenchimento progressivo do vazio, acaba por nascer aquilo a que hoje chamamos mitologia.

    Essa mitologia, no entanto, é-nos legada em sagas e épicos que são por natureza construídos em estrutura de hipérbole interminável, além de padecerem de um excesso metafórico com uma leitura que fica de todo em todo fora do alcance do comum dos mortais. Por isso mesmo, a linguagem seguinte que a nossa espécie constrói para ler o mundo destina-se a libertar-nos dos oráculos. Trata-se, agora, de tornar as primeiras sagas e os primeiros épicos acessíveis a todos os humanos, desde que sejam crentes ou se vão deixando iniciar iniciar enquanto tal. E é por isso mesmo que, com a passagem do tempo, essa mitologia inicial  começa a oferecer-nos uma semelhança do mundo  que se conta em muito menos palavras, e que já conseguimos dominar muito melhor.

    human anatomy model

    Este novo domínio é estruturado lentamente em torno das alegorias construídas para explicar tudo o que nos barra a passagem com a sua faceta inexplicável. Quanto mais entendemos o que nos rodeia, mais se vai transitando, em todo o mundo, e numa panóplia riquíssima de dares e tomares, para aquilo a que agora chamamos religião.

    E, agora sim, de posse desta nova forma de crença, já não há fenómeno natural que não possa ser entendido pelos iluminados[5] e explicado sem  esforço à turbamulta das multidões.

    No final do percurso, há, ainda, uma terceira transição que se baseia em todo o nosso saber mais complexo que se foi acumulando ao longo do caminho. O vazio que encheu os primeiros homens de curiosidade e de temor vai-se preenchendo de uma forma cada vez mais clara, mais útil, mais eficaz para a sobrevivência humana – e tudo isto se regista numa sequência cada vez mais rápida e mais rica em dilemas impossíveis de sonhar sequer poucos séculos antes.

    Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, pela primeira vez na nossa semelhança do mundo, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal. Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira física universal como a face visível de Deus.

    grayscale photo of person holding silver necklace

    Nature and Nature’s laws

    Lay hid in the night

    God said: LET NEWTON BE!

    And all was light,”[6]

    escreveu Alexander Pope como epitáfio para o seu amigo, que, quando falou pela primeira vez da Gravidade no seu PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA[7], geralmente referido apenas como PRINCIPIA, se referiu bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[8]. Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, incluindo o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantrópica científica Madame de Châtelet[9], que depois inspirou vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitaçãoo Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou Matemática[10]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sei lá, mas assim de cabeça. Já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito. Já ninguém acredita que o sangue menstrual

    [2] Bem, era só um “conselho aos casais.” Mas os médicos repetiram-no até ao dealbar do século XVIII.

    [3] Tomem lá fresquinho. É uma pena não sabermos se os egípcios das paragens mais remotas ainda incubam os ovos dos seus pintos desta maneira. Provavelmente sim. Houve muita coisa bonita que deixámos de saber devido à estupidez da nossa arrogância “moderna”. Infelizmente, muitas vezes esta arrogância é considerada “científica”. Bem, pelos meus pecados, e pela parte que me cabe, eu juro que não.

    [4] Estou a parafrasear qualquer coisa já escrita antes pelo Agualusa, embora o original dele fosse bastante mais poético do que o meu.

    [5] Mas note-se, estes iluminados já não são oráculos. Na modéstia enorme que lhes cabe, como a modéstia que cabe ao Papa, são apenas oficiantes. Pedimos-lhes apenas, que sejam bons, leais, justos e rectos. Não lhes pedimos que vejam coisas nem que oiçam vozes. Essas pessoas são hoje consideradas esquizofrénicas, e os bons esquizofrénicos já nem sequer existem. A medicação funciona.

    [6] “A Natureza e as suas leis

    Estavam escondidos na noite

    Deus disse: “Que exista Newton!”

    E fez-se a luz.”

    [7] OS PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL. Editado originalmente em 1687

    [8] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

    [9] E tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de de campo que a senhora mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome deveras apropriado de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca”, mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante. No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, do NEWTON PARA SENHORAS a várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE, convém não nos esquecermos que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, que Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

    [10] Os chamados “Comentadores de Newton”.


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  • Inimigos infiltrados

    Inimigos infiltrados

    Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “o amor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.


    Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.

    Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.

    As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.

    Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.

    Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.

    Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontemperderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.

    Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.

    Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13]alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:

    Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?

    Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.

    Acabem com isto, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.

    [2] Desculpem, não resisti.

    [3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.

    [4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogia DER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.

    [5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.

    [6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.

    [7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.

    [8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.

    [9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.

    [10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.

    [11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.

    [12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.

    [13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.


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