Autor: Clara Pinto Correia

  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • O final do alcoolismo

    O final do alcoolismo

    Continuava a sentir-me no país de outro homem, sentia a forma como era estrangeiro, a minha solidão.

    V.S. Naipaul

    THE ENIGMA OF ARRIVAL


    Os momentos em que os governos das democracias recentes tomam posse costumam ser aqueles em que o eleitorado insuspeito sente mais dificuldades em perceber como é que vão concretizar-se novas medidas que nos façam de facto mais felizes, e o momento presente, em que se testam as primeiras águas do novo governo, não foge à regra. Um quarto dos eleitores de Estremoz votou na AD. Mas essas pessoas, agora, terão todas a ganhar com os cortes nos impostos que se perspectivam? Serão todas elas mais felizes quando entrarem em vigor as novas margens de manobra para as rendas das casas? E o pior é ouvir a Assembleia da República em peso a discutir o novo Orçamento Geral do Estado. Pergunto-me qual dos meus vizinhos é que vai beneficiar com ele e não sei. Não sou tão burra como pareço, bolas. Apenas não vivo naquele país, pela simples razão de que nem toda a gente lá vive.


    Se a democracia portuguesa fosse tão disfuncional como qualquer outra nas suas redondezas, então os portugueses não abandonavam Melides para irem trabalhar em Andorra, nem trocavam Lisboa por Berna, nem largavam São Pedro de Moel para se fixarem em Cardiff, nem tomavam mais nenhuma das muitíssimas outras opções de vida deprimentes que podiam listar-se daqui em diante, o que aliás seria completamente desnecessário porque a moral da história está mais do que implícita: a democracia portuguesa só pode ser disfuncional, porque, por mais que o seu país seja bonito e agradável, e ainda por cima cheio de gente a quem os mesmos adjectivos se aplicam, os portugueses continuam a deixá-lo para trás, geração atrás de geração atrás de geração. Temos o clima que temos e gozamo-lo com a nossa proverbial simpatia, enquanto que em Londres chove o ano inteiro, o céu do fim da tarde fica negro de estorninhos que são uma praga infestante pior que os pombos, e as pessoas têm um carácter tão tendencialmente agreste que já ninguém que partilhe a sua vida volta para casa sem passar primeiro pelas happy hours da saída dos empregos. E, no entanto, é para lá que não param de partir os jovens portugueses – em bandos, como os estorninhos. E, no entanto, ali estão os nossos novos governantes a debater as suas novas medidas, que farão dos portugueses um povo feliz. A seguir os comentadores políticos falam interminavelmente sobre quem disse o que quê nessa nova lista das compras do que desta vez se pretende fazer, como se a  lista em si nos tivesse parecido diferente de várias outras, ou como se o tempo em que todos vivíamos bem em Portugal e pagávamos em Euros essas vidas já tivesse existido.

    man and woman sitting and facing near concrete fence during golden hour

    Uma democracia não perde a sua virtude democrática por ser disfuncional. Nem Portugal é a única democracia disfuncional de toda a Europa, para não irmos mais longe. Um país pode ter o seu eleitorado dividido quase ao meio entre a extrema-direita e o socialismo, como o Brasil ou os Estados Unidos, que isso não torna a sua democracia disfuncional, por muito que possamos dizer cobras e lagartos de metade dos seus habitantes. Mas não são falsidades como as de Trump, ou manipulações de contagens de votos como as de Bush Jr., que levam levam os americanos a abandonar o seu país. O que faz partir um grande número de portugueses é a escassez de políticas frontalmente empenhadas na maior felicidade de quem não tiver garantias de meios. Ou seja, o que torna uma democracia disfuncional é notar-se que está atravessada por uma linha horizontal, e tudo o que se passa na sua política e nas suas instituições, a beneficiar alguém, beneficia quem se encontra no espaço superior a essa linha. No espaço inferior a essa linha as pessoas ou dificilmente são beneficiadas, ou – com bastante frequência – são prejudicadas.

    Como a maioria dos portugueses, as pessoas aqui em Estremoz podem ter poucos meios mas fazem tudo o que podem para se sentirem felizes, e usam todos os pretextos a que têm acesso para se divertirem. Além de todas as datas mágicas que se prestam a feriados, pontes, bandas, e danças, procuram-se pretextos especiais para almoços e jantares sempre que estes são possíveis, e basta haver sol para se juntarem grupos nas esplanadas assim como basta que as noites aqueçam para que quem vive dentro das casas se sente cá fora, nos degraus da entrada, a conversar em voz branda para um lado e outro da rua ou mesmo só a ver quem passa. Mas ultimamente festeja-se menos, porque a metade do país que fica na linha inferior da disfuncionalidade não tem dinheiro para festejos. Muita gente não tem nesse extracto não tem dinheiro nem para convidar um amigo, um único, para almoçar ou para jantar. É possível ir para uma esplanada e só tomar um café, mas só um café compra menos tempo. Isto faz todas estas pessoas verem-se quase de repente obrigadas a viver muito mais sós. E, por isso mesmo, mais tristes.

    a woman sitting on a wooden swing in the middle of a field

    Os cálculos de poupança que levavam estas pessoas a ir abastecer e comprar gás a Badajoz podiam não estar feitos a regra e esquadro, mas a verdade é que os abastecimentos em Espanha já eram um hábito antigo, que se tinham generalizado ainda mais depois de começar a Guerra da Ucrânia – e, com ela, começarem as subidas de preço da gasolina, que em Portugal pareciam suceder-se dia sim dia não. Agora quem vive abaixo da linha divisória não abastece em Espanha coisa nenhuma. Nem compra gás. Se por qualquer razão a sua vida depender mesmo de ir a Badajoz, já nem apanha a autoestrada. Ir passear a Espanha, fazer umas compras, e de caminho meter gasolina, podia ser uma tradição que perdeu todo o sentido financeiro com o passar do tempo. Mas foi uma tradição de décadas, e os preços recentes da gasolina portuguesa rejuvenesceram-na. Até pode não ser ir abastecer a Badajoz que faz falta. Mas saber-se que se pode, mesmo que pouco ou nada se ganhe com a manobra – isso sim, isso claro que faz falta. E, para quem já tem pouco dinheiro, é uma recordação acrescida de que passou a haver ainda menos dinheiro, de tal forma que já praticamente nada depende do que queremos fazer mas antes do que somos obrigados a fazer. As grandes depressões não têm só por causa grandes desgostos de amor.

    Tenho ouvido várias vezes falar da falta de dinheiro para comprar medicação prescrita para tomar duas vezes ao dia pela mãe, pelo pai, por um dos filhos, ou pela própria pessoa que está a falar comigo. O ano passado, as farmácias armaram-se de umas maquinetas que não deixam sair um único medicamento que não seja pago primeiro – e não devem ter feito isso por acaso. Às vezes eu por acaso sei que os fármacos que as pessoas não conseguem comprar são fundamentais para o convívio com uma ou outra doença mais ou menos séria. “Então mas estás sem comprar isso há quanto tempo?” – “Há uns dois ou três meses, o que é que tu queres?

    A história mais impressionante daqui do fundo da linha, no entanto, para mim foi a dos bêbedos.

    Quando acaba a folia do Carnaval, tenho por hábito ir tomar café, tão cedo quanto possível, a um barzinho que fica aberto a noite inteira, e de onde, por vezes, ainda vão os últimos bêbedos a retirar-se aos risos, caminhando sem tombos por forma a homenagearem as suas máscaras de mulheres. Faço isto para ouvir as conversas dos velhotes, que entretanto chegam a passo vagaroso, de samarra vestida e boné na cabeça em qualquer altura do ano, para se encostarem ao balcão, pedirem o seu café com bagaço ou então só o seu bagaço, e começarem a questionar o jovem proprietário sobre os bêbedos do Carnaval.

    clear glass tumbler on brown wooden tray

    Ainda no ano passado, a conversa, quando eu entrei, ia nisto:

    Então oh pá. E tivestes cá muito bêbedo?

    O rapaz até apoiou a cabeça na mão antes de se pôr a acenar.

    Ai deixem-me cá.

    Os velhotes inclinaram-se por cima do balcão.

    Tudo maluco, era? Tudo aos berros? Dá-me aí outra pinguinha. Muita bêbedo, hã?

    O rapaz tinha um pano na mão, que pousou de repente para calar toda a assembleia num só gesto.

    Vocês não imaginam a quantidade de miúdas bêbedas que me entraram por aqui adentro, ouviram? Miúdas novinhas, miúdas da idade da minha filha, pois acreditem, aparecem-me aqui com catorze anos e nem se têm em pé, e lá fora umas gritam, outras vomitam, e eu só insisto que não as sirvo, mas é que não as sirvo, e que não as sirvo nem por nada, e elas a dizerem-me de todas as tendinhas onde as serviram e eu que dali que se ponham mas é a andar antes que eu chame a polícia, e elas num estado que já nem queriam saber, eu não servia nem rapazes de catorze anos mas olhem que elas são piores, até tentaram ir-me à cara, se não estivessem tão bêbedas ainda me matavam.

    Os velhotes ouviram aquilo tudo sem dizer uma palavra, e a seguir puseram-se a debater baixinho qual deles é que já se metia assim nos copos aos catorze anos. E, sobretudo, se no tempo deles alguma miúda faria o mesmo.

    Fazer, faziam,” concluiu lapidarmente um dos mais velhos. “Aí por esses montes, onde não havia mais nada, onde não vivia mais ninguém, onde os pais e as mães estavam sempre borrachos e toda a gente sabia onde é que ficavam as chaves para as adegas, vá que às vezes faziam. Mas não faziam era essas figuras, e muito menos vinham fazê-las às claras para o centro da cidade.

    O centro histórico, ainda por cima,” protestou outro velho, menos velho.

    Na esperança de testemunhar mais material que pode sempre vir a ser usado para qualquer coisa, este ano voltei ao barzinho logo a seguir ao Carnaval.

    a man laying in the grass with a bottle of beer

    Como cheguei bastante mais tarde, encontrei tudo muito limpo e arrumado e não estava lá dentro velho nenhum.

    O que vale é que, à custa de tanto trabalho de campo, por estes dias o rapaz já me conhece bem.

    Então conte lá,” perguntei eu, à falta de quem o fizesse por mim, “como é que foi esta noite, muitos bêbedos?

    Ele pôs-me o café e o copo de água do costume em cima do balcão, sem sequer fazer uma daquelas suas perguntas de gozo mútuo como por exemplo “ora então diga-me lá em que é que esta humilde casa pode servi-la.” Depois olhou para mim com um ar de desgosto tão sincero, tão sentido, que não podia ser nenhuma fita.

    E disse:

    Olhe, menina Clarinha. Não há mais esperança. Até já os bêbedos estão tesos.

    E foi acabar de fechar a loja sem mais uma palavra.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


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  • É certo porque é impossível

    É certo porque é impossível

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Proponho-vos aqui toda uma série[1] que será um exercício de raciocínio livre, já que, até aterrar sem aviso nesta rubrica do PÁGINA UM, ainda não constou antes de nenhum romance, de nenhum livro de texto, nem de nenhum artigo científico. Mas vamos lá, que a ideia vale por si. Ainda ninguém pensou que há diversas semelhanças entre um ornitorrinco e um urso polar?

    Entre um monotrémato oleoso com pés de pato e um caniforme desgrenhado de patas plantígradas?

    Hm.


    Toda a gente tem, pelo menos, a noção de que os ornitorrincos representam uma grande quantidade de bichos diferentes amalgamados num só. Mas como é no mínimo improvável que toda a gente saiba tudo no respeitante a esta amálgama, tenham santa paciência, mas vamos começar pela rememoração das principais características que eles partilham com vários outros grupos animais, todos muito distanciados entre si.

    Antes de mais nada, a cor e a cauda do ornitorrinco são iguaizinhas à do castor[2]. Pensaríamos de início que esta ligação seria de grande importância, porque a cauda do ornitorrinco é extremamente importante para ele: é a sua única reserva de gordura, e quem diz gordura diz protecção e energia.

    Mas não.

    Falso alarme.

    Por muito importante que seja a cauda de castor na vida de um ornitorrinco, e por absolutamente imprescindível que seja a ligação à água doce na vida de ambos os bichos, não há absolutamente mais nada que os aproxime. Mesmo a forma como o castor vive na água doce, formando grandes famílias e construindo diques que lhe dão imenso trabalho a montar e a manter, isto não se assemelha em nada à forma ensimesmada e preguiçosa característica da vida do ornitorrinco. Como toda a gente sabe, a América do Norte e a Austrália não correspondem a posturas filosóficas similares.

    Ornitorrinco (em imagem gerada por inteligência artificial).

    Seguidamente, e tal como o Urso Polar[3], estas criaturas estão de tal forma bem adaptadas à vida na água[4] que acabaram por ser classificadas como semi-aquáticas[5]. À semelhança de qualquer urso, quando se encontram em cativeiro mostram que podem perfeitamente ter um regime alimentar basicamente omnívoro. No entanto, as características particulares do seu habitat condicionaram-lhe desde há muito as preferências gastronómicas.

    E então aqui vai uma boa história de selecção convergente[6].

    Porque é que o Urso Polar, podendo ser omnívoro, se tornou carnívoro?

    Ora, não gozem com o povo normal.

    O Urso Polar é carnívoro porque, como é evidente, no Ártico há sempre focas, mas não existem plantas durante a enorme maioria do ano. Talvez o seu sistema digestivo se tivesse adaptado aos conteúdos dos caixotes de lixo das pessoas, como aconteceu com o de tantos outros ursos, especialmente nos que vivem perto dos parques naturais. Mas, para que tudo isto acontecesse, era preciso que vivessem mais pessoas nas condições extremas em que vive o Urso Polar. Estive duas vezes no Alasca, cruzei muitas estradas de terra completamente desertas, atravessaram-se-me três vezes uns ursos vagarosos à frente do carro, mas eram sempre ursos castanhos. Mesmo que um Urso Polar partilhe por breves instantes algum território com alguns Inouits, os povos do Ártico não têm  minimamente o hábito de considerar que seja o que for é lixo, pelo que procuram reciclar tudo e não deitar nada fora[7]. E o habitat do Urso Polar não desce tão baixo que atinja as regiões onde a tundra se enche de mirtilos no pino do Verão[8]. Se comesse alguns gostava de certeza – mas de certeza  que que nenhum Urso Polar fica alimentado só com umas boas razias nos mirtilos deliciosos da tundra.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Então e o Ornitorrinco?

    Se já tem milhões de anos de existência em o registo fóssil nos diz que cobriu quase toda a Terra habitável, se é o mais antigo de todos os mamíferos dos nossos dias, não poderia ter recorrido a essa primazia para tirar proveito de todos os tipos de dietas antes de existirem sequer novos rivais? E se, ainda por cima, quando observado em cativeiro demonstra que pode mesmo ser omnívoro, porque é que decidiu dar ideias ao Urso Polar e ser carnívoro?

    Ah, pois é.

    A adivinha que se segue agora é que já não é para qualquer um.

    Antes de mais nada, qual é a dieta deste carnívoro, e de onde é que ela vem?

    O ornitorrinco revolve o fundo das águas onde mora à procura de camarões, ameijoas, peixinhos, larvas, vermes, cobras, ou outras delícias fáceis de engolir, juntamente com pedrinhas, lama, ou ainda raízes e caules aquáticos[9]. Não tem dentes, mas tem placas trituradoras nos maxilares, e é com elas que faz a primeira mistura de tudo isto, para depois a guardar  de reserva nas bolsas das bochechas[10]. Quando essas bolsas estão cheias, vem até à superfície, tritura tudo até fazer uma papa, e só nessa altura é que a engole. Depois vai logo para o fundo buscar mais comida.

    Porquê?

    Porque os monotrématos não têm estômago.

    Segue-se o grande sobressalto que seria de esperar.

    Mas…mas…

    Mas como não têm estômago?

    E, se não têm,

    porque é que não têm?

    polar bear standing in front of three walrus on water

    Olha que gaita, porque sim. Porque a evolução existe, a selecção natural também, e este grupo deu-se bem com o seu regime[11].  Para satisfazerem as exigências resultantes do sistema lunático em que se especializaram, os ornitorrincos passam doze horas por dia dentro de água à procura de alimentos.[12]. São óptimos nadadores, e estão altamente especializados nesse sentido. Numa performance que volta a recordar-nos o Urso Polar, conseguem mergulhar durante dois minutos blindando os olhos, os ouvidos, e as narinas.

    Ai é?

    Ah pois é.

    Não desistam ainda, camaradas e amigos. A série continua. Dentro de mais um mês, talvez venhamos a saber como é que os ornitorrincos conseguem encontram o seu alimento debaixo de água  com todos os órgãos dos sentidos blindados. E talvez este conhecimento os aproxime ainda mais dos ursos polares.

    Algumas charadas progridem muito devagar.

    Mas progridem.

    E a sua lentidão permite-nos ir pensando.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    N.B. O título é retirado de Tertuliano, padre do século II, nas primeiras fases do Cristianismo.


    [1] Ficamo-nos por “série” porque o contéudo não estica para “telenovela”. Nem ninguém leria nada do que se segue depois de semelhante introdução. Espero eu, não sei. Vivemos tempos difíceis.

    [2] Sabiam que, no século XVIII, quando já se conhecia praticamente toda a fauna do mundo e a Europa do Iluminismo foi a votos para escolher o Rei dos Animais, várias vozes se levantaram em defesa do CASTOR? Ah pois foi. Mas essa é toda uma outra história, que, por este andar, terá que ficar para bastante mais tarde.

    [3] Ah-ah! Mais um regresso do URSO POLAR. Alguém quer apostar qual será o último? Façam concursos, façam. Quando derem pelo que aconteceu, acabaram de celebrar os vossos respeitáveis setenta anos e de contrair matrimónio com uma espécie qualquer de semideus que vos entrou à noite a voar pela janela. Será que este semideus é o Espírito Santo? Bem, isso ele nunca confirma nem desmente.

    [4] Embora, no caso do Ornitorrinco, não se encontre qualquer evidência de que começaram por ser mamíferos absolutamente terrestres, como por exemplo os ursos. Daí a necessidade de uma classificação à parte também só para eles: não são terrestres nem aquáticos, são semi-aquáticos.

    [5] Et voilà. Ou seja, “ora aí está”, mas a Autora não quer exta pequena exclamação traduzida do francês. Insiste em exibir-se culta até ao fim. NT.

    [6] Duas espécias muito diferentes adquiriram características semelhantes ao longo do tempo devido às suas adaptações progressivas ao ambiente onde vivem.

    [7] Refiro-me aos que continuam a viver naquele que é desde há milhares de anos o seu habitat natural, e onde, de facto, tudo serve para alguma coisa. Esqueçamos, por favor, todos aqueles que vieram instalare-se nas cidades, onde vivem maioritariamente de orçamentos governamentais. É uma tristeza ver uma esquimó obesa, de fato de treino cor-de-rosa e ténis pretos com luzres que acendem nas solas, o cabelo pintado de verde já com as raízes à mostra e com uma permanente que também já começou a perder o vigor, a deitar para o lixo a sua terceira lata de Coors enquanto acende um cigarro e fala ininterruptamente com um grupo de gente tão feio de ver como ela. Claro que é feio, mas enfim. A vida não é nenhum conto de fadas.

    [8] Ou antes, está agora a começar a descer por escassez de comido mais a Norte – e a consequência imediata destas explorações desesperadas é que há cada vez mais ursos polares sumariamente abatidos a tiro.

    [9] É aquilo a que se chama um bottom-dweller, ou seja, um explorador do fundo. As nossas tainhas, por exemplo, fazem exactamente a mesma coisa. E querem lá saber se estão a revolver o fundo mesmo ao lado de um esgoto. Fritam-se, temperam-se com algum sal e muito vinagre, e quando chegam à mesa estão absolutamente deliciosas.

    [10] Aqui podemos, também, considerar que o ornitorrinco tem qualquer coisa de hamster.

    [11] Tudo bem, claro – quando ainda não existiam outros grupos, era um regime tão bom como qualquer outro.

    [12] Parte deste tempo passado na água deve-se ao facto de, muito embora sejam omnívoros, precisarem de ingerir todos os dias metade do seu peso em carbohidratos para manterem a energia e a capa subcutânea de gordura que os mantêm vivos e activos. Outra parte é porque precisam de procurar todos os dias alimento que chegue para ingerir todo esse peso alimentar. E, finalmente, uma última parte destas doze horas é preguiça: a água doce não tem tão pouca gravidade como a água salgada, mas sempre tem bastante menos gravidade que a terra firme.


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  • O inferno é um estado de espírito

    O inferno é um estado de espírito

    Já não receio nada.

    Braço dados contigo,

    Desafio o meu século.

    Friedrich Schiller

    Século XVIII


    Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]

    E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.


    O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.

    Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.

    Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.

    O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.

    silhouette photography of trees

    No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.

    No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.

    No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.

    O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.

    No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.

    No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.

    E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Agora digam lá.

    É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?

    Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.

    Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.

    Mas acontece que há caminho.

    Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.

    Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.

    Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.

    Não parece porque não foi[8].

    Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?

    a bridge built into the side of a mountain

    Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.

    Já sabemos que vai ser muito dura.

    Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.

    [2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.

    [3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.

    [4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.

    [5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.

    [6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”

    [7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.

    [8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.

    [9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.

    [10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.

    [11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.


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  • A palavra é o mais belo dos templos

    A palavra é o mais belo dos templos

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    No início do século XVII, com a febre da microscopia que marcou o arranque da Revolução Científica, até Galileu inverteu temporariamente o seu telescópio para tentar ver aquilo que, até aí, só o semi-deus que viajou com os Argonautas era capaz de ver. Quem é que, ainda hoje, consegue resistir ao sonho de trazer guardada dentro dos olhos a visão mágica de Lynceus, aquela que mais ninguém alguma vez teve, que mais ninguém alguma vez terá, e que inspirou a aventura japonesa dos Pokemons, onde pululam criaturas tornadas semi-divinas por um único poder especial?

    Mesmo nos nossos dias, ninguém deixa de reconhecer que a capacidade de visão do lince é assombrosa, e indiscutivelmente rara entre todos os animais. Sabe-se agora que esta visão tem uma grande ajuda na audição fora de série que lhe proporcionam os tufos de pêlos no cimo das orelhas, orientando-o para o mínimo ruído nocturno a toda a sua volta[1]. Mas os olhos, aqueles olhos, aquela visão do lince que lhe permite localizar um rato no escuro a 76 metros de distância, isso leva a palma a tudo o resto. É um tecido de espelho organizado por trás dos olhos que reflecte a luz na retina, activando os receptores pela segunda vez e permitindo-lhe ver na sombra como se estivesse a nascer o dia.

    a lynx sitting on a rock in front of a stone wall

    Desde o princípio dos tempos que toda a gente sabe isto.

    A primeira Academia de Microscopistas do mundo, fundada em Roma em 1603 pelo Duque Frederiggo Cessi que era um apreciador endinheirado daquele Universo Perfeito Escondido Debaixo da Lente de que então tanto se falava, chamava-se ACADEMIA DEI LINCEI, em homenagem à visão semi-divina do animal em causa. A Visão Superior do Lince é desde sempre tão bem conhecida que muitos textos sagrados herdados do Paganismo já debatiam se Aquele que Vê Por Nós fôra criado pelas Forças do Bem ou pelos Esbirros do Mal[2]. Em 1300 AC, quando Jasão arrancou com os Argonautas na sua Incrível Viagem em busca do Velo de Ouro, levava consigo a bordo um companheiro muito especial. Foi o piloto do seu barco. Chamava-se Lynceus.

    Lynceus era um semi-deus.

    Esperava-se deste semi-deus que visse por toda a tripulação o caminho preciso, aquele que nenhuma criatura normal alguma vez poderia ver.

    Este detalhe, quase sempre ignorado, é de uma importância enorme na construção de toda a narrativa.

    Na mitologia grega, é de regra definir assim um semi-deus: trata-se de uma criatura igual a todas as criaturas que vivem em seu redor[3], com um único poder mágico que a distingue[4]. No caso de Lynceus, esse poder mágico era a capacidade de ver o que mais ninguém via. O marinheiro mágico via através das paredes, das árvores, da pele, e do chão. Há passagens das proezas dos Argonautas em que o semi-deus parece ter a mesma visão-RAIOX que tem o Superman e descobre tesouros escondidos debaixo da rocha, outras em que se revela capaz de ver no escuro, e ainda outras em que é evidentemente versado em geologia, e até em descobrir minas de ouro[5]. Na mitologia popular, Lynceus é aquele que consegue, até, ver o Céu e o Inferno.

    person holding eyeglasses

    Até consegue ver o Futuro.

    Houve uma vez em que conseguiu contar, de uma só vez e a uma distância de mais de duzentos quilómetros, o número de barcos de uma frota acabada de sair de Cartago.

    Lynceus devia o seu olhar divinalmente penetrante à grande coroa de cristais que lhe rodeava toda a pupila, cobrindo praticamente toda a extensão da íris.

    Olhos de cristal.

    Amigos, seriamente – por acaso já algum lince vos olhou de frente nos olhos?

    Eu ia a seguir uma equipa de Ecologia Vegetal, no terceiro ano do meu curso, logo no início da campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. Estávamos a esquadrinhar o Matagal Mediterrânico ali para os lados da Serra de Candeeiros, e no regresso eu escreveria uma Grande Reportagem para o defunto semanário O JORNAL, onde costumava publicar os meus textos na altura.

    Foi quando se deu aquela epifania.

    Fiquem sabendo que uma criatura ameaçada de extinção pode muito bem não deixar por isso de ser uma criatura mágica.

    Esta era, certamente, uma criatura com Poderes.

    Talvez noutros tempos a queimassem nas fogueiras.

    Quem sabe.

    É tudo muito confuso, porque aquilo foi tudo muito brutal.

    blue eye photo

    Um malandrão pardo e lesto, traçado de pintas pretas, que, na opinião avisada dos assistentes, não podia ter mais de oito meses, saltou de trás de um monte de giestas coladas ao chão pelo vento, e travou às quatro patas a olhar fixamente para mim com o recorte majestático dos seus olhos perfeitamente dourados. Depois, no que na irrealidade do nosso sobressalto nos pareceu menos de uma fracção de segundo, escolheu o curso da fuga pela esquerda, no meio do rolar de uns quantos fragmentos de xisto e de outros tantos gritos veementes de pegas rabudas, combinados com os berros roucos das gralhas de bico vermelho.  

    Como é que podem acontecer coisas destas a uma pessoa normal?

    Ainda por cima, mais tarde um grande amigo que trabalha exactamente em protecção de espécies em extinção disse-me que os casos de contacto olhos nos olhos com um lince são extraordinariamente raros.

    Para já, os linces, em si mesmo, são extraordinariamente raros. Não é costume a pessoa andar para aí a tropeçar em animais que estão em vias de extinção.

    Além disso, os linces são dos animais mais evasivos deste mundo. Um biólogo dedicado pode passar anos a palmilhar os seus territórios, ouvir os seus vocalizos, encontrar os seus excrementos, descobrir as suas pegadas – e tudo isto sem nunca chegar a ver o animal que estuda.

    Quanto a olhar um ser humano nos olhos…[6]

    Disse-me aquilo em voz baixa, sem olhar para mim, como se já estivesse com medo de alguma espécie de contágio.

    E eu não disse nada.

    Olhos de cristal, por favor.

    Quarenta e dois anos mais tarde, ainda não encontrei as palavras que entretanto precisava de ter descoberto para escrever um parágrafo inteiro que fosse capaz de falar do arrepio que correu pela minha pele quando foi tocada por aqueles dois olhos tão cintilantes e tão arrogantes, e sem qualquer espécie de dúvida tão vindos de um qualquer outro planeta, que rasgavam o focinho de uma cria silenciosa que podia fazer de nós o que muito bem lhe apetecesse e que estava perfeitamente consciente disso mesmo.

    a cat walking on a rock

    Nunca consegui domesticar essas tais palavras porque elas são as palavras perigosas do meu caminho, sempre a fervilhar num caldeirão de poção mágica onde a cultura e a ciência ousam constantemente formar uma só linguagem, e a seguir vir borbulhar à superfície num tecido linguístico bordado de uma forma que toda a gente consegue gozar. E eu, mesmo sendo especializada desde há décadas em Comunicação de Ciência, fui tão condicionada como todos os meus colegas para nunca me aventurar dentro do Poço sem Fundo ligado ao País das Maravilhas onde vale tudo, porque é lá dentro que os conhecimentos se combinam por inteiro sem terem medo de nada. É o Poço Psicadélico onde a ciência se casa com a cultura para se cantar na linguagem misteriosa da Lucy in The Sky With Diamonds. É onde o Dodó arbitra uma corrida que não faz sentido vigiada pela Lagarta que está sempre agarrada ao narguilé. E se, enquanto cultores da língua nós tememos aquilo que até a Alice prefere evitar, é porque fomos criados desde pequeninos para termos medo dos mundos que escapam ao nosso controlo.

    Falta-nos a coragem que é a Mãe do Caos, de onde tudo veio, e onde tudo nos faz dar um passo de prudência para trás.

    Podemos ser todos muito cultos ou muito galardoados cientificamente. E no entanto até nessa condição ficaremos sempre aquém, porque sem o ímpeto da visão combinada que aliou Lynceus aos Argonautas, nem toda a sabedoria do mundo nos ajudará a dar aquele grande passo em frente que nos falta há séculos de visão enevoada.

    Mas, no momento em que combinarmos as duas forças e de repente deixarmos de ter medo, vamos viver uma espécie nova de mudança de paradigma em que não haverá nada que não passe a ser possível. Nunca mais ficaremos inertes a desperdiçar os anos com as nossas hesitações. Quando nos libertarmos dessa inércia, conseguiremos soltar conjuntamente os nossos risos. E será então, nesse preciso segundo, no encanto dessa fusão mais universal do que todas as outras, que o nosso pensamento inteiro começará a rodopiar como ainda nunca tinha rodopiado antes.

    hands painting

    A diferença que vai descer sobre as nossas vidas será tão pequena que quase não nos aperceberemos de que está um milagre a atravessar-se no nosso caminho.

    Mas claro que estará mesmo. 

    E será assim que, muitos anos mais tarde, se formos capazes de nunca o esquecermos, vindo de parte nenhuma acabará por voltar até nós o olhar do lince, esse olhar do semi-deus inexplicável que nos rouba as palavras, para nos recompensar de repente com a visão distante, renovada, e limpa, de uma galáxia mais rica do que todas as outras, nascida de propósito para que possamos ser tão felizes como a primeira luz da primeira manhã.

    Exactamente aquela primeira manhã em ficou escrito que Deus viu que tudo eram bom.

    E será nessa altura que saberemos, com toda a certeza.

    Fomos abençoados.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O lince é um predador exclusivamente nocturno. Passa o dia a dormir, ou a tomar conta das crias perto  do esconderijo que tende a utilizar repetidamente ano após ano. Esta exclusividade da caça nocturna é uma das razões que faz com que seja tão difícil observá-lo no seu habitat natural.

    [2]Vê o que mais ninguém consegue ver” prestava-se a ser uma criação do Mal. “Vê por nós” parece, claramente, uma criação do Bem. Escolham o vosso lado.

    [3] Como por exemplo nós, meros mortais.

    [4] Estão a ver os Pokemons? Então pronto. Está explicada a sua entrada em cena.

    [5] A propósito, também há uma altura em que Lynceus mata Polux devido a uma questão amorosa. Não se sabe onde andava Castor nessa altura.

    [6] Subentende-se: “Achas que o lince é parvo ou quê? Ficar a olhar em vez de fugir? Olha-m’esta!”


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  • O abismo

    O abismo

    Como as de todas as outras paixões, as raízes do ódios são imprevisíveis.

    Jorge Luis Borges


    Aqui há uma semana acordei com telefones a tocar em protestos solidários, o correio electrónico cheio de mensagens encorajadoras, e o Facebook pejado de nomes feios destinados a uma pessoa que eu desconhecia em absoluto. Por fim, o meu editor fez-me chegar uma espécie de CV do Inferno que o tal desconhecido acabava de publicar no Diário de Notícias, onde até este mesmo PÁGINA UM era insultado por minha causa, e todos os acontecimentos desagradáveis de há vinte e quinze anos voltavam a ser esmiuçados em parágrafos intermináveis[1]. No entanto, e assaz curiosamente para quem se tinha dado a tanto trabalho de rememoração desagradável, tudo aquilo estava positivamente juncados de incorrecções. Comecei a ler o texto com toda a atenção, e a questão das tais incorrecções, incluindo erros nos anos dos acontecimentos e outras trapalhices muitíssimos piores, começou a despertar-me a curiosidade. Aquele chorrilho de grosserias parecia escrito à pressa por um estagiário[2] assanhado, e era um exemplo de livro de texto de como não se pode fazer jornalismo, mesmo se feito por um colunista. Comecei a tomar notas.


    A primeira estranheza era mesmo logo no princípio, na frase relativa à altura em que, quando ainda estava a meio do curso de Biologia, entrei para a redacção do semanário O JORNAL, e, quatro anos mais tarde, publiquei o meu primeiro romance. Ora, sendo que a frase começava com as palavras…

    “… nos seus tempos de oiro, muito novinha…”

              … só pude concluir que aquela pessoa estava, no mínimo, extremamente distraída.

    Não tive nenhuns tempos de oiro quando era muito novinha. Tive, isso sim, tempos exigentes em que estudava Biologia quando o resto do País estava todo bronzeado nas filas da camioneta para a Caparica[3], e trabalhava em jornalismo ao mesmo tempo, com dedicação por inteiro ao JORNAL e em mais não sei quantos ganchos para chegar ao fim do mês[4] – e, para onde quer que me virasse, esbarrava constantemente em boatos de que ia para a cama com toda a gente e mais alguém para conseguir fazer todas as coisas que fazia. Se isto são tempos de oiro vo,u ali já venho.

    A seguir o senhor admite que ADEUS, PRINCESA, o meu segundo romance, grangeou um grande respeito da crítica literária (não acrescenta, embora tivesse sido fácil de verificar, que esse respeito, e a consequente explosão de vendas, levou três anos a fazer o seu caminho). Segue-se uma passagem surpreendente, em que nos explica que, quando Vasco Pulido Valente o considerou “o melhor romance português desde OS MAIAS”, o fez apenas por “puro efeito de provocação” – e a pessoa interroga-se, “como é que ele sabe? Falou com o Vasco? E, a ser verdade, o Vasco havia de ser tão burro que lhe dizia isso mesmo na cara? Está bem que o Vasco tinha os seus defeitos – mas burro?” Quer dizer, poupem-nos. Quando eu era aprendiz de jornalista, escrevia uma patetice destas, totalmente infundada e baseada apenas no meu sentimento pessoal, e o Fernando Assis Pacheco ia-me à cara.

    Perfil’ sobre Clara Pinto Correia do ‘historiador’ António Araújo, professor universitário e também membro do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também conhecido por ‘Fundação Pingo Doce’.

    Já agora, só para atestar mais uma vez a total  falta de cuidado com que o autor destes dislates faz o seu trabalho, há uma altura em que envereda pela minha vida pessoal. E aí os seus erros, todos eles facílimos de verificar e de corrigir, acumulam-se de tal forma que alguém bem intencionado na redacção do seu jornal deveria ter arranjado uma desculpa inocente, como por exemplo falta de espaço, para cortar aquilo tudo e poupar ao mais puro dos ridículos um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.

    A primeira argolada é afirmar que eu sou a irmã mais velha das quatro.

    Valha-me Deus, o senhor, se não gosta de fazer perguntas, não pode ao menos consultar o Facebook?

    A nossa “primogénita” (como o descuidado me chama, da forma mais insultuosa deste mundo para toda a minha família) é a Maria do Rosário, não sou eu. E isto não é uma pequena curiosidade sem importância. Ao longo de toda a nossa vida adulta – e certamente da minha –, a Ró tem sido a nossa grande organizadora, protectora, aquela que no Verão nos junta a todas na praia, e no Natal e na Páscoa se certifica que toda a gente se consegue reunir, quem vigia a saúde de quem fraqueja, todo um papel de mana mais velha que nunca estaria no meu feitio assumir – e talvez todas nós perdêssemos muito com isso.

    Segue-se a história comovente dos meus passeios em Tremês com o meu Pai, de casa dos meus avós até ao pomar das macieiras. O senhor menciona as minhas palavras comoventes quando digo que as nossas conversas nesse caminho foram fulcrais para estruturar na minha mente os passos do meu futuro. E cita-me: “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois e a passarada.”.

    Porreiro.

    Para já, sou uma grandessíssima parola.

    E ademais, ao que tudo indica com a conivência do meu Pai[5], imagina-se perfeitamente o sol e a passarada a estruturarem os passos do meu futuro. Com flores no cabelo, sandálias, ganzas, e o ashram do Ravi Shankar.

    white sheep on white surface

    Ensinam-nos que os jornalistas não manipulam as fontes, mas este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco. A minha frase sobre as caminhadas com o meu Pai que foram fulcrais  na estruturação do meu futuro eram antes,

    “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois, a passarada, e o anel de benzeno.”

    OK, é possível que a total ignorância do que pudesse ser um anel de benzeno tenha tornado aquela frase, escrita assim, incompreensível ao escrevinhador. Mas, uma vez mais: o jornalismo tem regras. Uma delas é que não se alteram as fontes. E, dê lá por onde der, de certeza que a internet está cheia de textos e videos a explicar o que é o anel de benzeno, como funciona, e a importância que tem na nossa vida. De certeza que até virá contado, algures, que Michael Faraday, o cientista que descobriu a sua estrutura em 1825, conseguiu chegar lá porque a viu claramente num sonho[6]. Descobrem-se coisas lindas, quando se faz investigação. Mas, com toda a evidência, estamos perante uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca.

    A seguir, o despistado lista as várias alcunhas que fui tendo na vida. Num novo exemplo de péssimo jornalismo, mistura os nomes familiares com os nomes profissionais, e nunca percebe que eram, todos eles, nomes extremamente carinhosos[7]. Em África, os meus tios chamavam-me “Pretinha” – o que não era certamente um insulto, e aliás eu tinha imenso orgulho em ser a pessoa mais escura da família. Um namorado que tive no JORNAL chamava-me “Minhoca” com a maior ternura deste mundo. O autor que não consegue perceber nada disto estampa-se ainda mais ao comprido logo a seguir, quando explica que, “como retaliação” eu chamava aos meus colegas “os fósseis,”

    É preciso não me conhecer de todo.

    E é preciso não ter perguntado nada a ninguém.

    Antes de mais nada, não sou minimamente dada a retaliações. E depois, quem é que vai retaliar tratamentos carinhosos? Como expliquei milhares de vezes[8], a história dos fósseis vinha do tempo do liceu, em 1976, dois anos depois da Revolução. De cada vez que nós, os membros aguerridos do esquerdalho, passávamos o portão e esbarrávamos com “os fascistas” de corrente da moto na mão para darem cabo de nós, bem podíamos ficar com as pernas todas rasgadas que não nos abstínhamos da vingança. Íamos para casa de alguém que não tivesse lá os pais, ligávamos para um dos fascistas em causa, esperávamos que viesse a mãezinha ao telefone, e um de nós dizia, no tom mais ameaçador deste mundo,

    “Brigadas de Extermínio aos Fósseis. O seu filho que não saia de casa amanhã, ou não responderemos por nós.”

    Depois, no dia seguinte, o fascista faltava às aulas e nós fartávamo-nos de rir.

    black haired man making face

    É certo que eram outros tempos. Mas quando, aos vinte anos, de shortinhos e top porque era Julho, entrei para uma redacção onde as únicas mulheres eram a Edite Soeiro[9] e a Lurdes Feyo, ambas bastante mais velhas do que eu, e aqueles gajos todos, também mais velhos do que eu, começaram a atirar-se a mim como se eu tivesse nascido ontem, mas depois ficaram muito ofendidos porque os meus palavrões ainda eram mais criativos do que os deles – ah, sim, as BEFs voltaram a acender-se na minha memória e desatei a correr toda a gente a fóssil. Mas isto era no gozo. No gozo”, percebe-se a certa altura, é uma atitude que este jornalista limitado não entende.

    Vale também a pena salientar que há mais passagens interessantes relativas aos talentos de crítico literário deste personagem. A primeira é quando está a listar os diversos tipos de literatura que eu fui cobrindo nas mais de cinquenta obras que escrevi até hoje. Uma delas, segundo este entendido, é a “ficção científica” – com tanto azar, logo um género que eu francamente detesto. Ou seja, a minha produção literária está a ser-nos apresentada por uma pessoa incapaz de distinguir homenzinhos verdes de um outro género que, esse sim, é uma das grandes paixões da minha vida, a divulgação científica.

    Com uma cabeça destas, já não causa grande surpresa que, mais à frente, o grande crítico conceda que sou uma grande cientista (em matérias que ele ignora de todo) mas que os meus livros não prestam. Deduz-se que os leu todos com imensa atenção, que os sublinhou, que marcou as passagens desastrosas, porque só depois de um trabalho destes é que um bom jornalista poderia fazer semelhante afirmação. Vamos acreditar que sim e imaginar que o que deitou tudo a perder foi, digamos, o meu  livro infantil A HISTÓRIA HORROROSA DOS PEIXINHOS AMARELOS, sobre o qual seria interessante fazer-lhe algumas perguntas tão bem preparadas como a crítica literária dele. Mas já  repararam numa coisa? Santo Deus, os editores portugueses devem ser completamente cretinos, não é[10]? Para terem publicado tantos livros meus. E olhem que consegui enganar muito bem os americanos. E os japoneses, que traduzem o meu trabalho científico? Ora, nada mais fácil. Mais de metade do artigo é dedicado a dissecar a minha arte para enganar toda a gente. Por que é que não havia de enganar também os estrangeiros[11]?

    E olhem, segundo este apressado cronista de costumes também houve alguém que enganei muito bem quando fui casar-me a Las Vegas. Aquilo de que eu me lembro é de ter ido lá casar-me com o Dick, o pai dos meus filhos, o meu companheiro  de dezassete anos de vida no Massachusetts, e lembro-me de todos, todos, todos os pormenores. Mas como o autor do artigo escreve por ouvir dizer… fui a correr casar-me a Las Vegas com o autor “daquelas” fotografias, para atenuar a escandaleira nacional[12].

    Só depois disto é que volta a entrar a parte do interesse de Portugal por mim, que já agora corrijo.

    O grande interesse de Portugal por mim registou-se mais entre os 32 e os 40 anos – quando, entre várias outras coisas, já tinha clonado mamíferos muito antes de nascer a Dolly, coisa que o autor não parece ter minimamente registado… e, bem, tinha-se tornado completamente impossível ir para a cama com o mundo inteiro para conseguir fazer o que fazia, incluindo passar quinze dias na Ilha da Páscoa, correr a URSS de comboio e vir-me embora uma semana antes do sonho socialista acabar, doutorar-me, fazer clones, e ir estudar História da Ciência para Harvard. Estou a ler as trapalhadas de datas e de afirmações não atribuídas, a pensar que em jornalismo não se faz isto, e…

              … e depois descubro que o senhor distraído não é um jornalista.

    O homem que não estudou nada do que escreveu é um historiador, pelo que aqui eu já começo a ficar seriamente preocupada[13].

    Será que ele dá aulas?

    E ensinará ele aos alunos a expressarem-se desta forma que, se é errada em jornalismo, em História é pura e simplesmente inaceitável?

    black swivel chair beside rectangular brown wooden desk

    Parece que vive no Alentejo e continua a deslocar-se aos Estados Unidos.”

    Parece?

    Mas o que vem a ser esta balda, este “parece”?

    Então e a verificação das fontes?

    Deveria ser bastante fácil investigar se eu estou ou não a viver no Alentejo – aliás, bastaria ler o mesmo PÁGINA UM pelo qual o nosso historiador, para me desprezar a mim, mostrou um desprezo alarve na sua peça. Da mesma forma, era só sondar o consulado americano e ficaria logo a saber que não – já não me desloco aos Estados Unidos, ou pelo menos certamente não em trabalho. E porquê? Santo Deus, se não quisesse perguntar-me directamente que perguntasse à Segurança Social Portuguesa: estou reformada antecipadamente por invalidez, demasiadamente doente para pode manter horários lectivos constantes e fiáveis.

    O que, acto contínuo, desmente outro “parece que” do nosso brilhante historiador: claro que, se estou reformada, já não sou catedrática na Universidade Lusófona.

              E, uma vez mais, que raio de desmazelo vem a ser este? Um historiador que faz o seu trabalho com seriedade, e que pelos vistos não tem coragem para esclarecer as suas dúvidas directamente comigo (que diabo, tenho um Facebook chamado Clara Pinto Correia e é meu hábito responder às mensagens que recebo) não é pelo menos capaz de agarrar no telefone, ligar para os recursos humanos da minha antiga universidade, e perguntar se eu ainda lá estou a trabalhar? A pessoa até treme, só de imaginar o que serão os seus artigos da especialidade. Consta. Parece que. Dizem. Bibliografia por ouvir dizer. E depois dizem que os alunos portugueses são medíocres, e que têm dificuldades de concentração, e que observam terríveis graus de absentismo. Mas por favor, está toda a gente a ver bem o exemplo que lhes chega de cima?

    Miguel Relvas perdeu, muito merecidamente, o seu grau de doutor. Mais merecidamente ainda, esta nulidade devia perder já o seu grau de historiador. Pode insultar-me à vontade, se isso lhe dá prazer. Mas não pode passar aos miúdos que estão a tentar definir a sua vida a noção de que um historiador é um insultador que manda vir como muito bem lhe apetecer com a maior das leviandades. Até pode tornar a minha irmã mais velha mais nova do que eu, porque, como toda a gente sabe, essas minudências nunca tiveram, nem nunca terão, qualquer espécie de importância. E então em História.

    E este pensamento horrível traz-nos de volta aos insultos.

    Infelizmente, em toda a rodada de maledicência destinada a dizer mal de mim, não é só o PÁGINA UM que come por tabela. Mais perto do fim (porque se há uma outra coisa fundamental em História que este historiador nunca consegue observar é a regra-mestra da sequência cronológica), chegamos à parte em que eu abandono os estudos (nada podia ser mais falso) e me entrego a actividades fúteis do pior gosto e menor qualidade.

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    Logo a primeira é ter aceite um papel secundário no filme do António da Cunha Telles KISS ME. Epá, tenham dó. Cubram o Cunha Telles dos defeitos de personalidade e feitio que quiserem[14]. Agora, para me deixar mal vista, ter a lata de chamar a um dos maiores  e mais pioneiros cineastas portugueses fútil, foleiro, de mau gosto, de má qualidade… um historiador não tem que perceber de cinema, mas, à semelhança de todos os outros  académicos como nós, quando não sabe não tem que ir estudar? E, pela descrição do filme que faz a seguir, será que foi mesmo vê-lo? Mesmo, mesmo? Um verdadeiro historiador teria ido. Este limita-se a vituperar que é um filme com a Mariza Cruz. Que, diga-se de passagem, se revelou aqui uma actriz excelente.

    A minha segunda actividade fútil e de muito mau gosto foi ter aceite participar, juntamente com Rui Zink, Carlos Quevedo, e Mariza Cruz, no júri do concurso da TVI A BELA  E O MESTRE. O historiador nem sequer menciona que o nosso papel era integrarmos o júri, e ainda por cima junta a Paula Bobonne ao nosso elenco. Aqui as suas trapalhadas são ainda mais imperdoáveis, porque todos os episódios ficaram gravados, o que lhe teria permitido consultá-los e tirar a limpo o que aconteceu. Qual quê. Ao melhor estilo psicanalítico, o senhor tece várias considerações sobre o que leva uma figura do mundo cultural a aparecer ali, sem a mínima menção a razões semelhantes para o Rui ou para o Carlos, também eles pessoas do mundo cultural. A ideia evidente de que uma mãe solteira com dois adolescentes rebeldes em casa pudessse precisar de dinheiro talvez não lhe tenha passado pela cabeça[15]; mas, uma vez mais, perguntar não ofende. Agora, este historiador é de tal forma avesso a investigar os seus temas que ignorou o ponto principal: chegada ao terceiro episódio, e com o nível do concurso sempre a descer, com ou sem necessidade de dinheiro eu não aguentei mais aquilo e demiti-me. No último programa em que apareci para me despedir, entrevistada pelos apresentadores sobre a minha decisão, disse, apenas, “Sou professora Universitária. Este não é o meu mundo. De certeza que outras pessoas farão muito melhor o que se esperou de mim que eu fizesse.” E foi então – então sim – que a Paula Bobonne entrou para o meu lugar[16].

    E claro que fez aquele papel muitíssimo melhor do que eu.

    Até é uma história interessante.

    Mas, se estamos a braços com um historiador que não sabe dar-se ao trabalho sério e árduo de fazer História…

    … em vez de verdadeiros factos apanhamos antes com chorrilhos de faits divers.

    Muito foleiros, ainda por cima.

    black and white striped illustration

    E extremamente perigosos para a motivação futura de quem ainda anda a estudar, o que não pode ser dito de nenhuma forma elegante: é um verdadeiro crime.

    Sabes, caro homúnculo que se realmente estudou História depois tratou de se  esquecer dela, e cujo nome nunca serei capaz de memorizar? Vi no fim do teu textículo que, ao que parece, as citações de Nietzsche te dão prazer mesmo que sejam completamente descabidas. Então, por uma questão de caridade, sugiro-te que não gastes mais o teu Nietzsche comigo. Porque calculo que saibas como é que isto acaba:

    “Se olhares muito tempo para o abismo, é o abismo que vai olhar para ti.[17]

    Há poucas coisa mais perigosas do que o olhar de volta que o abismo nos manda quando ousamos olhar estupidamente para ele.

    Tu tem lá cuidado com os teus futuros gatafunhos, piroso.[18]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E interminavelmente maus, além de interminavelmente mal escritos.

    [2] Ou mesmo, quem sabe, um “candidato a estagiário”, o escalão onde me arrumaram quem eu comecei a trabalhar no JORNAL.

    [3] Eram os exames de Julho. Por uma questão de princípios, nunca deixei nenhum exame para a segunda época.

    [4] Claro que este detalhe a criatura não poderia aber a menos que perguntasse ao Silva Pinto, mas, quando comecei a minha vida de jornalista – muito novinha, nesses tais tempos de oiro – o meu ordenado era de seis contos por mês. E eu aguentei-me como pude.

    [5] Que, ainda por cima, ainda passou ali uns anos consideráveis com bastante medo de que viesse a acontecer-me qualquer coisa como esta.

    [6] E vocês acham, porventura, que eu decorei isto tudo nas aulas de Bioquímica do segundo ano? Pelo amor de Deus. Fui agora mesmo ver à Wikipedia. Tal como o troca-tintas deveria ter feito, em vez de omitir o anel de benzeno quando cita a minha frase.

    [7] Não sendo psicanalista, atrevo-me a sugerir, perante esta estranha interpretação do sentido de nomes que só poderiam ser ou doces ou humorísticos, que talvez todas as alcunhas dele tenham sido insultuosas, razão pela qual não consegue interpretar nomezinhos queridinhos de outra maneira.

    [8] Uma vez mais, ele que investigasse, gaita.

    [9] Que, com o tempo, veio a ser a minha querida “Mãezinha”.

    [10] Bom, os editores e as pessoas que vêm ter comigo na rua a dizer “queria só que soubesse que o MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS é o meu livro preferido!”. Ou que me escrevem para o Facebook a dizer “Fiquei  fascinada com o MAIS-QUE-PERFEITO, mas emprestei-o e nunca mais o vi. Onde poderei encontrá-lo agora?”O que é que  eu hei de dizer, “deixem-se de coisas e leiam o MOBY DICK?”

    [11] Uma vez estava no  aeroporto de Frankfurt cheia de fomne e de sede, e só tinha uma nota de dez euros no bolso das calças. Epá, meus amigos, enganei ali uns dinamarqueses que foi um gosto.História absolutamente verdadeira excepto no uso do verbo enganar. Confraternizámos enquanto comíamos e bebíamos, foi mais isso.

    [12] Desculpem, está tudo doido?

    [13] “Seriamente preocupada” é um eufemismo, claro. Quantos “historiadores”  destes existirão em Portugal?

    [14] E nem sequer são merecidos.

    [15][15] Os meus colegas do mundo cultural lá teriam razões como as minhas.

    [16] E adorou tudo Aquilo. De onde se prova que aquele não era mesmo o meu mundo, independentemente do dinheiro para pôr os meus rapazes rebeldes na linha.

    [17] Nietzche, citação muito famosa que o homúnculo certamente já conheceu mas depois esqueceu, como tudo o resto.

    [18] Citando Valete, RAP CONSCIENTE. Quem conhece o seu trabalho conhece a continuação.


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  • Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges

    Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Dinheiro sujo

    Dinheiro sujo

    A única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível.

    Mark Twain


    Esta história é absolutamente real, e, nessa condição, parece horrivelmente fantasiosa. Tem a ver com segredos que não são possíveis e sentimentos que não são credíveis, todos eles  revelados por uma única frase que um contabilista me repete duas vezes, a segunda mais contundente do que a primeira: “a doutora passe uma procuração ao seu advogado para ele ir lá ver o que se passa.” E eu, feita parva, ainda falo com o advogado a espernear: “se é para os bancários dizerem quem é que penhorou a minha conta e em quanto, porque é que não basta ir lá eu? Eles não têm a obrigação de me dizer o que se passa com a conta?” E o meu advogado, com os ouvidos cheios de conversas iguais: “Pois têm, Clarinha, pois têm. Mas nunca te vão dizer nada.” E eu, furiosa: “Mas porquê, pá? Porquê? A conta é minha, não é?” E ele, com um suspiro: “Pois é, Clarinha, pois é. Mas, quando há porcaria, eles têm um medo doido de dizerem seja o que for aos titulares das contas.” Medo? MEDO? Mas isto é o quê, é algum offshore na Colômbia onde se movimentam nas sombras personagens sem rosto de um romance do Graham Greene?


    Esclareça-se já que este sítio suspeito onde as pessoas têm medo de falar não está localizado em águas internacionais, os contabilistas que não o dizem claramente mas sabem muito bem que esse medo existe não trabalham para nenhum offshore, e os advogados que já não podem nem ouvir falar de penhoras que ninguém quer explicar aos titulares das contas não viajam em Executiva pelo mundo ao serviço de uma grande ONG de socorro aos lesados de grandes promessas a prazo que afinal eram grandes extorsões à ordem. Muito pelo contrário. Todas as pessoas envolvidas por esta novela financeira estão tranquilamente aqui, em Estremoz, à excepção dos bancários que se distribuem, em dias alternados, pelo eixo Estremoz – Vila Viçosa – Borba.

    Tanto medo, tanta procuração ao advogado, tanto conselho codificado do contabilista num cenário tão bucólico.

    a group of people walking down a hallway

    E, partindo do princípio saudável de que este estranho medo não me afecta só a mim, tanto alentejano tranquilo que tem por lei o direito de saber quem é que lhe penhorou a conta e em quanto, mas em vez disso anda para aí à toa porque os bancários se fecharam em copas e ainda hoje estão fechados.

    É que eu, vá lá. Posso estar um bocado à toa, mas sempre tenho para onde me virar. Tenho um óptimo contabilista que me dá bons conselhos e não cobra separadamente por eles, e um grande amigo que pode ser muito lento mas é seguramente muito entendido na matéria. Mas nem toda a gente tem estas benesses. Se eu já ando de cabeça perdida com o silêncio da banca, imagino o inferno que tudo isto será para quem tem que enfrentar sozinho esse mesmo silêncio. Entretanto o tempo passa, as taxas de juro aumentam, e a nossa possibilidade de falência vai crescendo, crescendo, crescendo.

    Esta penhora que afectou a minha conta foi a primeira penhora que alguma vez afectou a minha vida. Eu estava, portanto, completamente virgem na matéria. O banco tinha a obrigação legal de me fornecer todas as informações que me ajudassem a compreender a situação e depois a lidar com ela. Mas, de facto, tendo em conta a forma como funcionam as penhoras também tinha a possibilidade ilegal de me deixar completamente pendurada, já que qualquer bancário com quem eu falasse podia sempre inventar um pretexto para não me dizer fosse o que fosse.

    O primeiro bancário com quem eu falei disse-me que essas informações só podiam ser fornecidas pelo gerente do balcão.

    O gerente do balcão, misteriosamente, de cada vez que eu lá ia estava sempre em Borba ou em Vila Viçosa, e portanto não podia falar comigo.

    grayscale photo of man holding paper

    Entretanto, e ao contrário de todos os outros bancos que são normais e fecham pelas três da tarde, aquele banco passa a fechar à uma e ao meio dia e meia já está tudo em pé, de pasta na mão.

    Acabei por encostar um bocadinho mais o primeiro bancário à parede, comentando com ele que sabia perfeitamente que aquela penhora ou era das Finanças ou era da Segurança Social. Ele ouviu-me, abanou afirmativamente com a cabeça, e lá suspirou “pois é, são sempre as sanguessugas.

    Dadas as circunstâncias, foi graças a este expediente que fiquei a saber que a penhora era das Finanças.

    E fiquei, também, absolutamente furiosa, porque obter de um banco este tipo de informação não deveria obrigar nenhum cidadão a recorrer a qualquer tipo de expedientes. Mas é que nunca na vida.

    Foi quando o contabilista sensato me disse, duas vezes, para eu passar antes uma procuração ao meu advogado.

    Como se a vida fosse um filme.

    Epá, se é, tirem-me deste filme por favor.

    Eu estava tão indignada com aquele comportamente surreal dos bancários que ainda voltei sozinha ao balcão de Estremoz. Desta vez fui atendida por outro funcionário. Uma senhora madura, com aquele ar posto em sossego de quem já ali anda há muito tempo. Ah, esta de certeza que ia ajudar-me.

    Recitei outra vez a minha litania.

    Recebi um pagamento de 250 Euros por uma tradução. Esse pagamento entrou na minha conta, e logo a seguir saiu. Foi assim que suspeitei logo da penhora, embora não tenha recebido nenhum aviso nesse sentido, fiscal ou outro. O seu colega já viu isso comigo, e já confirmou que é uma penhora das Finanças. Tenho mais pagamentos para receber,  mas não quero que eles sejam sumariamente penhorados. Quero saber qual é o valor total da penhora, e como é que eu posso negociar o seu pagamento.

    a man standing in front of an atm machine

    Ãh? Pareço mesmo uma pessoa crescida a falar.

    A senhora madura esquadrinhou cuidadosamente o seu computador, foi dizendo hm-hm e ah-ah, acenou várias vezes, e por fim fez-me um sorriso profissionalmente simpático.

    Eu nem queria acreditar no que ouvi a seguir.

    Não se preocupe, porque está tudo bem com a sua conta. Está a zeros, sem nenhum saldo negativo.

    Ó sua grandessíssima cabra!

    Claro que a conta estava a zeros, uma vez que as Finanças limparam tudo o que entrou. E claro que voltarão a limpar o que voltar a entrar se eu entretanto não fizer nada para alterar o rumo das coisas.

    E claro que a senhora madura tinha a obrigação legal de me alertar para tudo isto.

    Saí dali a bater com os pés de cólera e falei com o meu advogado nesse mesmo dia. Ainda deixei escapar uns berros, porque, acima de tudo, eu não percebia. Se a lei manda os bancários fazerem uma coisa, por que é que eles se esforçam tanto para fazer outra? O que vem a ser este filme? O que é que eles ganham com isso?

    Não ganham nada,” disse-me o meu advogado. “Por causa das contas penhoradas, os bancos até perdem dinheiro.

    Então eles fazem isto porquê?

    Porque têm medo.

    Têm medo?

    Pois têm.

    Mas medo de quê?

    Então… ó Clarinha… como é que tu dizes? Ah, têm medo da própria sombra! Têm medo de fazer porcaria, têm medo uns dos outros, têm medo dos chefes, controlam-se, espiam-se, é um ambiente de cortar à faca.

    woman walking with shadow

    Eu sei, de fonte incontestável, que os bancários são uma classe muito castigada. Em plena euforia do governo Guterres e da EXPO98, eram o grupo profissional que mais procurava o acompanhamento dos psiquiatras[1]. Entre várias outras coisas horrivelmente humilhantes, chegaram a ter que vender ao balcão férias no Algarve e jogos de faqueiros, uns em aço e outros em prata[2]. A vida deles é dura? Decerto. Mas e a nossa? Se calhar não é? Precisarei de voltar a dizer que os portugueses, quando chegam ao ponto de abrir contas nos bancos de Estremoz, não estão necessariamente a usá-las para ocultar os milhões que desviaram para aquele seu opulento offshore na Grande Caymão[3]?

    Ora bolas[4].


    PÓ, CINZA, E NADA

    Já agora, para vos provar que sei mesmo imensa coisa sobre dinheiro sujo, vou contar-vos uma história que se passou comigo na Grande Caimão, quando fui velejar à volta do mundo no três mastros de um comandante sueco meu amigo.

    Aquilo a gente chega lá e a rua principal é toda ela bancos, que têm diante deles, no passeio, um porteiro muito jovem e simpático que nos convida sempre a entrar. Tudo isto se passa no rés-do-chão, e no primeiro andar ficam os bares e os restaurantes para os clientes fazerem horas, quase todos com vista para o porto. Como já estávamos todos um bocado fartos da comida do iate, decidimos ir almoçar numa daquelas esplanadas simpáticas.

    De repente vimos uma grande fumarada, e percebemos que estava alguma coisa a arder no porto.

    Perante a leviandade dos outros comensais, que nem sequer se dignaram a desviar o olhar, fomos nós a correr ter com o porteiro, a gesticular e guinchar sobre a questão do incêndio.

    Ah,” disse-nos o jovem bonitão, muito simpático. “Não se preocupem. De certeza que é alguém que pegou fogo ao barco.”

    O quê?

    Pois. Não é? Um gajo tem um montão de documentos incriminatórios, certo? Então deita-os todos para o porão do barco… faz-se ao mar… atraca na Grande Caimão e…” – gesto dramático – “up in smoke!

    Uau!” – disse logo eu, que sou uma verdadeira bandida e não consigo deixar de ficar legitimamente impressionada com estas coisas.

    E, declarando-me assim culpada, esta caixa de texto substitui por hoje as notas de rodapé.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] António José Albuquerque, com. pers., 2005.

    [2] Idem.

    [3] A avaliar pela maneira enfurecida como as Finanças me tratam, é sempre onde eu imagino que “eles” imaginam que eu tenho o meu opulento offshore.

    [4] Só para que conste, devo a caixa de texto que ilustra esta crónica ao meu grande e terno amigo e protector Luís Laureano Santos.


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  • A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]


    Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.

    No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.

    blue and white starry night

    As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.

    O problema é que ninguém trava guerras por mitos.

    A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.

    E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…

    Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.

    Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?

    Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.

    A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.

    person doing gravity lean on the shore

    Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.

    Nature and Nature’s laws

    Lay hid in the night

    God said: LET NEWTON BE!

    And all was light,”[7]

    escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].

    Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet.  Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

    a chalkboard with some writing on it

    E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.

    Eu disse uníssono?

    Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.

    Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.

    Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?

    black mountain bike

    A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.

    Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mario Vargas Lhosa, in THE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.

    [2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?

    [3]Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.

    [4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.

    [5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.

    [6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.

    [7] “A Natureza e as suas leis

    Estavam escondidos na noite

    Deus disse: “Que exista Newton!”

    E fez-se a luz.”

    [8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.

    [9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

    [10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

    [11] Os chamados “Comentadores de Newton”.

    [12] Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.

    [13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.


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