São irritações dos que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?
Yasunari Kawabata
O arco-íris
Tinha eu vinte e poucos aninhos, e, entre outras coisas, a certa altura dei comigo sentada à volta de uma mesa com outros camaradas trotskistas ou simpatizantes do modelo que estavam a formar o PSR[1] sob a jurisprudência do jovem Francisco Louçã. Depois desse dia, sempre que era preciso votar em partidos, eu votava no PSR. No mínimo, seria sempre um pouco bom voto de protesto. Depois do PSR nasceu o Bloco de Esquerda e com ele subiu muito a febre: agora o voto já não seria só de protesto, porque podíamos eleger mesmo deputados que nos representassem. A partir daí, toda a gente conhece a trajectória do Bloco – em que eu continuei sempre a votar, salvo raríssimas excepções. E votei em autarcas do Bloco, em presidentes da República do Bloco (salvo quando votei na Ana Gomes, mas aí a razão era bastante mais forte do que a paixão), em presidentes de Juntas de freguesia do Bloco. Conto-vos esta história para garantir que ninguém podia ter maior dedicação à causa da verdadeira esquerda[2] do que eu. Mas quando ouvi a forma bacoca e demagógica que Mariana Mortágua escolheu para falar do navio de bandeira portuguesa cheio de armas para Israel que estava no Porto de Lisboa até me arrepiei de irritação[3]. Apeteceu-me atirar-lhe à cara o preceito socrático fortificado nosce te ipsum capra[4] e espetar com ela na psicanálise. Então a senhora não vê que há coisas que um político de esquerda, que ainda por cima é uma mulher, que para mais afirma gostar de mulheres, não pode dizer do alto do púlpito?
Então vamos lá recuar umas semanas no tempo. Através do Bloco de Esquerda, ninguém nos diz como mas também ninguém parece muito interessado em saber, descobre-se que está ancorado no Porto de Lisboa, com a bandeira portuguesa hasteada, um navio com o porão carregado de armas tenebrosas com destino a Israel. Descobre-se porque, nessa manhã, o Ministério da Defesa confirma a presença escandalosa deste barco no nosso porto, a Judiciária apoia a confirmação, o Presidente da República declara-se apanhado de surpresa mas interessado em, antes de mais nada, tirar do barco a bandeira portuguesa, as autoridades portuárias ainda estão a investigar as condições da sua entrada mas consideram que se deve conduzir desde já o barco para águas menos abertas ao público… e ninguém manifesta grande sobressalto com a horrenda descoberta. Por incrível que pareça, tudo isto se passa numa grande tranquilidade de segunda-feira de manhã ensolarada, como se estivessem agentes da MOSSAD, de granada na mão, a guardar todas as saídas do estúdio – e, porque não, todas as saídas da RTP.
Felizmente, a pulsação política e jornalística sobe geometricamente de pulso assim que a acção passa para o Parlamento. Mariana Mortágua, dirigente do partido político que descobriu a presença entre nós daquele barco sinistro, está no uso da palavra. E ela, ela sim, finalmente – ela está francamente indignada. No seu melhor estilo Morticia Addams, toda vestida de preto, o cabelo asa de corvo escorrido pelos ombros, a pele glacial, a voz de além-túmulo, mas que se lixe: se Portugal estava a albergar sem nós sabermos um barco cheio de armas para Israel, é melhor que alguém com assento parlamentar se indigne, e se indigne a valer. E portanto até eu, que embirro francamente com esta escolha desastrosa de cabeça de cartaz, sinto um alívio enorme quando a oiço.
Mas isso dura um minuto ou dois.
Depois até a representante da esquerda para lá da cassette puxa ao choradinho desnecessário.
“… e todas aquelas armas se destinam a matar as mulheres e as crianças da Palestina…“
A pessoa até dá um salto no sofá e entorna sobre si própria o café ainda a ferver.
Ai filha, pela tua rica saúde.
“As mulheres e as crianças“?
Então e como é, os adolescentes, os homens, os velhos da Palestina – esses não têm direito a nada? Não é tão horrível serem massacrados como as mulheres e as crianças? Onde é que tu julgas que estás, quem é que tu julgas que és – talvez um cavalheiro vitoriano a abrir a porta e a dizer, com uma vénia para as visadas e um sorriso paternalista para os amigalhaços presentes, “primeiro as senhoras“? Mas não foi exactamente contra isso, contra a antiquíssima praga do gineceu[5] que escravizou as mulheres de todo o mundo durante milhares de anos, que lutaram as nossas avós, que lutaram as nossas mães, que lutámos nós a vida inteira e que as nossas filhas ainda têm de lutar? Isto, ainda por cima, é declamado pela mesma mulher de esquerda que teve a péssima ideia de tornar público que gostava de mulheres[6]. E depois, de repente, a puxar à lágrima sem qualquer vergonha, sai-se com esta enormidade como se as mulheres fossem menos capazes de resistir às intempéries do que os homens? Tudo bem, espera-se dos políticos que sejam demagógicos. Mas isto é muito para lá de demagógico: isto é absolutamente insultuoso.
Até para as crianças.
Tal como as mulheres, as crianças têm uma antiquíssima história de serem insultadas. O homem é o único animal com filhos que precisam de cuidados parentais durante tantos anos, e de uma aprendizagem tão complexa para poderem exercer profissões de qualquer espécie, e este crescimento lento e dependente sempre baralhou os estudiosos. Em consequência e antes de mais nada, embora se meta pelos olhos dentro que as crianças são espertíssimas, como a esperteza delas é diferente da nossa passaram milénios relegadas para o mesmo gineceu que as mulheres, e depois mais vários séculos a serem tratadas como atrasadas mentais. No século XVIII, o filósofo inglês John Locke, hoje considerado o fundador da psicologia, esclareceu finalmente o mistério do crescimento lento das crianças: era uma parte fundamental do plano divino para que as famílias não pudessem deixar de manter-se unidas.
Mariana, tu não te esqueças que foi preciso esperar até 20 de Novembro de 1959 para que a Assembleia Geral das Nações Unidas se lembrasse, por fim, de aprovar a Declaração dos Direitos da Criança[7], “considerando que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar“. Se continuares a ler, ficas cada vez mais arrepiada. “A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.” – “A criança tem direito à educação, que deve ser considerada gratuita e obrigatória” – bolas, e, sobretudo, pelo menos para mim, “A criança deve ter plena oportunidade para brincar.” É evidente que estamos a privar todas as crianças do mundo de todos os seus direitos[8]. Por isso mesmo, um bocadinho mais de respeito quando falas das crianças da Palestina não te ficava mal. Santo Deus, já lhes basta o que basta.
Aliás, implicar que as crianças são incapazes de combater ou de sobreviver sozinhas numa guerra, sobretudo se estivermos a falar das crianças da Palestina, volta a ser de um desdém de bradar aos Céus. Fui eu que enlouqueci ou foram precisamente as crianças da Palestina, quando Israel começou a ocupar os primeiros territórios a que não tinha direito por lei, que iniciaram as hostilidades com as famosas chuvas de pedras? Apanhados de surpresa, sem mais coisa nenhuma que servisse de resposta, não foram precisamente “as crianças” que ripostaram contra os tanques à pedrada, tal como ainda hoje ripostam? É muito triste, Mariana, pois é. Mas, da próxima vez que a demagogia te parecer indispensável, lembra-te das mulheres e das crianças e da forma como nos insultaste a todas. E escolhe melhor os teus recursos de oratória.
“MAS NÓS TEMOS FILHOS”
Há cerca de vinte anos, do lado de cá do Mar Morto, frente a Jericó, acabei por ter uma longa conversa com dois pastores palestinianos que se faziam passar por beduínos. Perguntaram-me se eu queria ir ver, e eu disse que sim. Depois de um valente esticão a pé com os borregos, metemo-nos num camião velho e demos uma data de voltas até chegarmos a uma colina junto ao vale do Jordão. A barulheira dos borregos sedentos encobriu a nossa escalada. E, lá de cima, era verdade: via-se perfeitamente. Os israelitas estavam a construir os primeiros blocos sólidos, resistentes, muito feios, de um novo kibutz em plena Palestina. Como se todo aquele chão fosse deles por direito.
Até eu senti raiva.
Depois olhei em volta e não pude deixar de questionar-me.
“Mas é por isto que vocês lutam tanto?”, perguntei-lhes. “Por meia dúzia de laranjeiras numas colinas quase desérticas à beira de um rio quase sem água?“
“Isto“, respondeu firmemente um dos pastores, sem sequer olhar para mim, “é a nossa terra. Se viessem uns estrangeiros invadir a tua terra – tu não lutavas por ela?“
Pergunta retórica.
Limitei-me a sorrir, e a dizer que sim com a cabeça.
Depois insisti.
“Mas estes gajos estão cheios de dinheiro. E estão cheios de armas. Como é que vocês alguma vez conseguirão impedi-los de fazer coisas destas?” – e apontei para a construção grosseira e arrogante com o queixo, enquanto os bulldozers judeus iam e vinham sem parar.
Eles sorriram com orgulho.
“Sabes uma coisa? Estes gajos não têm filhos. São como vocês. Um casal com dois filhos já é uma grande coisa, por muito que o governo lhes pague para terem três ou quatro. Mas nós” – já não me lembro qual deles é que falou, mas até levantou a voz de emoção – “nós temos filhos. Todos temos muitos filhos. E todos os nossos filhos aprendem muito cedo a odiar os judeus, e a atirar pedras aos tanques dos judeus. Havemos de ter tantos filhos que um dia os filhos deles nada poderão contra os nossos. E é assim que começa o colapso da Judeia.“
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[2] É um disparate chamar ao Bloco “Esquerda radical” ou “Extrema esquerda”.
[3] Também é preciso ver que Mariana Mortágua me irrita com uma frequência espantosa. Se eu fosse a sua coach política virava-a completamente do avesso. Em termos de proporcionar um mínimo de conforto aos portugueses, da forma que tanto Louçã como Catarina sabiam fazer tão bem, a Mortágua parece uma figura saída da Família Adams que dorme debaixo da cama deles e assusta as criancinhas durante a noite.
[5] A medicina grega considerava as mulheres meros homens incompletos, com os órgãos sexuais retidos no interior do corpo devido ao frio do útero materno, que impossibitara o seu desenvolvimento a termo. Estes “homens mutilados” existiam em grande número porque eram necessários para a reprodução, onde, aliás, morriam com frequência. Como tal, eram mantidos no seu enclave isolado, sem qualquer relação com a filosofia, a guerra, o debate, e tudo o que dissesse respeito à democracia. Os desenhos do homem mutilado demoraram muito tempo a desaparecer da literatura científica. Ainda faziam as suas aparições esporádicas nos livrinhos de cordel do século XIX.
[6] Antes de mais nada, o dito anúncio não era novidade para ninguém. Mas o pior foi que abriu um precedente gravíssimo. Deu carta branca a quem quisesse andar a vasculhar a vida privada dos políticos, com a Comunicação Social à cabeça, para avançar e fazer isso mesmo com vista a tornar públicas as suas descobertas mais palpitantes. Afinal de contas, era uma dirigente política que acabava de abrir as hostilidades.
[7] Eu nasci a 30 de Janeiro de 1960. Gozei-me desses direitos por um triz.
[8] Tanto estamos que não paramos de re-escrever o que já está escrito, com cada vez mais cláusulas e mais notas. A última CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA COM PROTOCOLOS FACULTATIVOS (!) foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21 de Setembro de 1990. Entretanto, há cada vez mais tráfego de crianças, mais criação de crianças-soldado, mais corpos pequeninos de crianças removidos dos escombros de mais algum edifício bombardeado em qualquer parte do mundo.
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Quando admiro os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali estabeleceste, pergunto: Que é o homem para que com ele te importes? E o filho de Adão para que venhas visitá-lo? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste de glória e de honra.
Este ensaio final, a despedir-se dos leitores numa noite de chuva que desaba sobre nós já em pleno Outono, foi despoletado por um filme lindíssimo, de uma complexidade espantosa, que nos recorda uma vez mais quantos homens diferentes coexistem ainda hoje no planeta. É impossível não olhar logo para trás e recordar a quantidade riquíssima de homens diferentes que conviveram connosco no planeta há já muito tempo. É impossível não sorrir perante a evidência de quanto gosta o pessoal de trocar genes. Mas vamos com calma, que o território evolutivo é sempre um terreno minado. O Comandante Fitzroy, com quem Darwin jantou todas as noites durante os cinco anos da viagem do BEAGLE, acabou por perder completamente a cabeça. Foi visto no primeiro grande debate evolutivo de Inglaterra[1] a brandir uma Bíblia, gritando “O Livro! O Livro!”. Cinco anos mais tarde, suicidou-se com um tiro na cabeça. O próprio Darwin, por muito que tenha mantido sempre a compostura, acabou por morrer consumido por uma depressão tão penetrante que o levou a desistir de fazer a barba.
Depois não digam que não vos avisei.
Com esta idade provecta, os acasos totais das afinidades electivas ainda me comovem. Há pouco mais de um ano, ainda nem sequer conhecia o Nuno Gomes, o homem que é agora o meu editor, que é biólogo como eu, e que tem entre as suas várias teimosias grandiosas, próprias dos gajos do Porto, editar em português perfeito a obra completa de Charles Darwin. Conhecemo-nos exactamente por causa destas crónicas, que levaram o Nuno a pedir-me um prefácio para um livro francês interessantíssimo sobre as mulheres pré-históricas. Agora, graças a ele, acabo de descobrir que vivemos, realmente, numa era milagrosa[2]: depois de décadas inteiras de autêntica saudade, acabo do descobrir que basta ir ao YouTube e está feito: já posso voltar a ouvir a música do filme russo URGA, realizado por Nikita Mikhalkov e levantado do chão por uma banda sonora inacreditável do compositor Eduard Artemyev, de quem as bestas como nós[3] podem nunca ter ouvido falar mas que há de ter sido, sem sombra de dúvida, uma pessoa tocada pela graça. Este homem raro morreu há dois anos e ninguém disse nada porque ninguém consegue lidar devidamente com as coisas que são demasiado belas. A música de abertura, que é de cortar o fôlego, tem várias variações ao longo do filme. Passei hoje a tarde a ouvi-las a todas, e fenómenos destes raramente nos acontecem: não sei – mesmo – dizer qual das variações é a mais bonita.
São destes pequenos mistérios pessoais que toda a gente tem para celebrar.
Mas quer dizer…
O Nuno?
Um gajo do Porto?
Substancialmente mais novo do que eu?
Também conhece o filme e também delira com a banda sonora[4]?
Ah, carago, como eles dizem. Vamos celebrar.
Graças às explorações do universo darwiniano investidas na composição destes ensaios, sempre gostava de saber quem é que sabe que ainda não sabemos, e provavelmente nunca saberemos, por que é que o Homo sapiens foi a única variação de hominídeo que sobreviveu até aos nossos dias. Os apontamentos de Darwin logo na viagem do Beagle não podiam estar mais correctos. Uma multitude de Homos, todos eles vindos de África, precederam a nossa existência. Alguns chegaram a viver no planeta juntamente connosco. Desses, os neandertais juntaram-se tão estreitamente a nós que de 2 a 4 do nosso ADN é feito do ADN deles. O que quer dizer que nunca morreram. Ficaram a viver para sempre dentro de nós, e nisso foram-nos muito úteis.
Tudo isto começou a acontecer desde o aparecimento em África dos primeiros Australopitecos, dos segundos, dos terceiros – e depois das duas ondas consecutivas de expansão para outros continentes de espécies separadas que já pertenciam ao género Homo. Danados e curiosos desde os seus primeiros dias, os Homo andaram a migrar para cá e para lá entre a África e o mundo numa amostragem cheia de nomes esquecidos pelos manuais escolares[5]: o Homo habilis, o Homo afarensis, o misteroso Homo denisovan, e o Homo heidelbergensis (que ainda conviveu connosco mas acabou assimilado pelos neandertais). Mais tarde, algures entre apenas quarenta ou trinta mil anos atrás, ainda coexistiam no planeta três espécies humanas: o Homo neanderthalensis[6] na Europa, o Homo erectus na Ásia[7], e o Homo sapiens em expansão constante.
Ou seja, até há muito pouco tempo nós não éramos, de maneira nenhuma, os únicos homens do mundo. E, depois de toda a poeirada levantada pela turbulência criada em torno do conceito evolutivo começar a assentar[8], ainda estoira a euforia que correu a ciência em 2010, quando a literatura especializada foi sacudida pelas publicações dos primeiros resultados do projecto genoma neandertal.
Tinha de ser.
Decifrado todo o genoma humano no ano 2000, e na altura já bem conhecida a partilha de territórios e tempos históricos entre as duas espécies[9], ninguém descansava enquanto não decifrasse também o genoma neandertal e verificasse cientificamente, com todo o rigor, quem é que tinha trocado genes com quem.
Os neandertais viveram de 230000 até há 30000 anos atrás. Eram homens com uma força brutal, muito superior à nossa. O primeiro espécime foi encontrado na Alemanha, no vale do rio Neander, em 1856, por operários que trabalhavam numa fábrica perto de Dusseldorf. Daí o nome atribuído à espécie, que de entrada parece sempre bizarro.
O genoma neandertal ficou sequenciado na totalidade em 2010.
A descoberta foi publicada separadamente por diferentes grupos, em diferentes datas[10], e expôs em toda a linha os primeiros vestígios, há muito pressentidos, mas ainda nunca demonstrados, de que a nossa troca de genes com os neandertais foi constante e animada[11]. É graças à herança neandertal que ficou connosco que herdámos luxúrias como o cabelo ruivo, sempre acompanhado por uma pele muito branca. Ou então o gene que possibilita e controla a linguagem articulada. Para não falar dos conjuntos de genes destinados a proteger-nos das depressões[12]. Os neandertais ainda existiam na Península Ibérica há 27 mil anos e este deve ter sido o seu último ponto de vida. Mais especificamente, Portugal deve ter sido o seu último enclave. Não é bem que dá-se um pontapé numa pedra e salta de lá um neandertal, mas é quase: os vestígios aparecem em gruta atrás de gruta, e chegamos a albegar sítios raros, como por exemplo um local ritualizado para enterro de dezenas de homens, exclusivamente os que morreram durante a juventude.
E esta, apreciem bem esta e vejam bem o ponto a que coisa já tinha chegado:
Uma criança encontrada em Leiria tem traços conjuntos de sapiens e neanderthal.
A próxima vou pôr em grande destaque:
Um crânio humano fossilizado vem à superfície ainda com dois dentes. Os dentes têm marcas de bactérias neandertais. Isto costuma acontecer quando se troca um beijo demorado.
Desculpem, mas não resisti. É grandioso, isto – quando a Ciência confirma o Amor.
Hoje é obviamente apenas um caso singular, sem leitura geral possível, existirmos enquanto espécie única.
E, se temos em nós toda esta variedade de criação cultural tão diferente, e ao mesmo tempo tão idêntica, devemo-la sem dúvida a um passado conjunto que vivemos com outras espécies do nosso género. URGA, um filme tão bizarro e ao mesmo tempo tão comovente desde o início, é um testemunho sublime dessas outras memórias, tão alheias e tão idênticas.
Vi o filme há pouco mais de trinta anos, quando estava estacionada no Massachussets a trabalhar no projecto de clonagem da University of Massachusets. É realmente em tudo diferente dos nossos, incluindo na lentidão do ritmo, nas línguas que as pessoas falam, no que é que se entende por “uma universitária” (se calhar aquela mulher fez mesmo um curso de Economia, ou então de Matemática; mas o que nós a vemos fazer é saltar para cima do cavalo com a sua urga e, completamente sozinha, reunir sem esforço, com grande velocidade e numa pose feroz, uma manada enorme de vacas tresmalhadas), ou na visão constante, profundamente sufocante, das máscaras enormes com uma rede à frente que todas as pessoas precisam de usar sempre que estão ao ar livre, para se protegerem das moscas, dos mosquitos, das varejeiras, dos abelhões, e mais de todos os outros milhares de insectos que pululam na estepe, que dariam certamente com a pessoa em doida – e da sensação que essas máscaras nos dão, sempre que estamos a ver uma cena ao ar livre durante o dia, de assistirmos a cenas estranhas de ficção científica muito antiga.
Doida, e talvez morta. Podia perfeitamente ser alérgica à ferroada de qualquer um daqueles bichos, e onde vivem os mongóis, para lá do deserto de Gobi que é o maior deserto do mundo, não vivem muito mais pessoas. O apoio médico que existe demoraria demasiado tempo a chegar na eventualidade de um choque anafilático. Como os atacantes são milhares deles, será sempre muito difícil para os camponeses e cavaleiros identificar o inimigo específico que só não o matou porque Deus não quis. Este tipo de projecto seria interessantíssimo para doutoramentos de médicos, ou de biólogos e farmacêuticos, mas a ideia de viver na estepe durante dois anos, ou mesmo um ano – até um semestre que seja parece uma violência a todos os títulos desnecessária, em condições precárias como estas.
E não temos o direito de dizer mal destes investigadores renitentes, porque, naquela altura, sujeitos àquelas tais condições, na maior parte dos casos incapazes de falar a língua dos mongóis, nós próprios também não iríamos.
A Mongólia esteve sob domínio chinês há já muito tempo. Depois de se ter autonomizado e autoproclamado enquanto país independente, acabou por ser anexada pela URSS. A rebelião antissoviética teve início em 1989; e, em 1992, a Mongólia era finalmente um país livre, com as mesmas vicissitudes e estranhezas que tem vindo a ter até agora mas sem invasão de terceiros. Esta inserção de Wikipédia vem aqui a propósito por uma boa razão.
Dá ideia de que nessa altura a Mongólia pertencia à China, ou então de que ficou por bastante tempo sob uma marcada influência chinesa, porque é assim que começa a história: o marido e a mulher defrontam-se longamente na estepe, ambos com os cavalos imobilizados e o que parece ser uma lança extremamente longa e flexível na mão[13], até que, num momento que não saberíamos distinguir, ambos arrancam a galope na direção um do outro. E, no momento preciso em que se cruzam, como num desporto perfeitamente coreografado, a mulher dá ao marido uma estocada que o faz cair ao chão.
Na cena seguinte caiu a noite, estão ambos dentro da tenda com a mãe dele a observar, e algumas crianças brincam à luz da fogueira sem fazer barulho. Ela está a tratar-lhe da mão com todo o cuidado, ao mesmo tempo que ralha, visivelmente exasperada:
“Qual é o teu problema? Não sabes contar? UM! O Governo só nos deixa ter UM filho!”
E pronto, aqui está a crise que crucifica o pobre casal: supostamente, só deveriam ter um filho. No entanto, já vão em três – feitos ao ar livre, na estepe, com aquela tal espécie de lança comprida e flexível do marido espetada no chão. Esse estranho objecto é que é a urga, e não serve objectivos guerreiros: serve para dirigir, de cima dos cavalos, as manadas de gado para dentro dos seus redis ou para a transição rumo a novas pastagens. Naquela posição, no entanto, está ali para um outro fim, bastante mais específico e tornado inequívoco pela posição: destina-se a avisar todos os outros mongóis do que se passa ali, para que mantenham as devidas distâncias enquanto o casal é feliz[14].
Embora seja perdidamente improvável que algum burocrata atravesse o deserto de Gobi (o maior do mundo, não se esqueçam) para ir espreitar dentro das tendas cheias de mongóis reportadamente ferozes e com umas armas brancas que mais ninguém sabe manejar, a verdade é que a mulher invoca a Lei do Filho Único como pretexto para se acabar ali mesmo com o sexo, e é nessa altura que a mãe do marido lhe diz, sem procurar disfarçar nem baixar a voz: “Eu bem te avisei dos perigos de te casares com uma mulher universitária.” Mas, entretanto, o marido fez uma grande amizade com um camionista russo – e este oferece-se imediatamente para o ajudar na solução óbvia do problema. Amigo, junta algum dinheiro, nem sequer é preciso muito, vens comigo à cidade, eu levo-te às lojas onde costumo ir, compramos preservativos em barda para os tempos mais próximos, e está o problema resolvido. O meu país também é comunista, não te esqueças. Um bom comunista tem sempre um saco cheio de preservativos muito bem escondido em qualquer lugar estratégico da casa. Nunca se sabe o que é que vai acontecer a seguir, mas um gajo quer pinar à mesma. E, como o camionista está ali mesmo ao lado, pronto para dar conselhos sensatos ao marido, que aliás a mulher aprova de imediato com imenso entusiasmo (“universitária“, é o que é), apenas porque tem o seu camião avariado e estão vários mongóis, marido incluído como é obrigatório, a reparar-lhe o motor, vão os dois até à cidade procurar o progresso… os dois montados no mesmo cavalo, já que o camionista não sabe montar.
A sequência de acontecimentos a partir do momento em que chegam à cidade torna-se finalmente banal, só nessa altura é que reparamos que estas pessoas têm os mesmos sonhos, os mesmos medos, e as mesmas capacidades de decisão sob pressão que todas as outras têm – veja-se a sequência em que o marido, que está numa cidade pela primeira vez e, comprados os preservativos, já sugeriu várias vezes ao camionista que se fossem logo embora, quando percebe que o amigo está metido em sarilhos encontra prontamente o bar, onde o vê podre de bêbedo, caído no chão, a ser pontapeado e insultado pelos citadinos circundantes. Nessa altura, entra calmamente no bar, tira partido da surpresa dos citadinos ao verem entrar, depois de um russo, um camponês mongol vestido de camponês mongol dos pés à cabeça, de facalhão colossal bem preso no cinto, de urga[15]na mão e tudo. E, enquanto os clientes habituais o contemplam de boca aberta, agarra no amigo, passa-o por cima do ombro, sai, prende-o bem ao cavalo, depois do que ele próprio monta, segura as rédeas, e, agora que o russo está inconsciente e portanto ele pode fazer o que quer, esporeia o animal, solta-lhe as rédeas, cola-se-lhe ao pescoço, e arranca dali naquela velocidade assombrosa dos cavalos mongóis, que se diz desde Aristóteles serem “tão rápidos como o pensamento“.
Nesta passagem, podiam perfeitamente ser Arnold Schwarzenegger e Mel Gibson, há trinta anos atrás.
À sua espera na tenda da estepe, ambas numa pilha de nervos mas ambas arrumando tudo à sua volta para não darem parte fraca, estariam Catherine Deneuve no papel de Mãe e a Julia Roberts, aqui sem nunca sorrir mas ao menos completamente ruiva, no papel de esposa “universitária“.
O papel de filha mais velha, que conversa muito com o russo sobre o comunismo, também consegue conversar com os cavalos, e por vezes tem visões pouco claras mas com protagonistas muito nítidos, seria entregue a Christina Ricci, no tempo em que tinha as longas tranças da filha mais velha da ADAMS FAMILY[16]. É evidente que já estou a meter no filme detalhes impostos completamente a martelo, mas é que entretanto o URGA deixou de ser o original mongol e passou a ser uma megaprodução de Hollywood. Vale a pena divagar um bocadinho porque aqui ressurge um tema que perturbou os nossos egrégios avós quando tentavam compreender a origem do Homem: como é que era possível que os sentimentos das pessoas, fossem elas de que “raça” fossem[17], vivessem elas onde quer que vivessem à superfície do planeta, nunca sofressem a menor alteração em relação ao que é realmente fundamental – o gosto pelo belo, a necessidade da ordem, a resposta ao apelo da arte, a criação de leis, a existência de uma linguagem articulada que tende a poder ser posta por escrito, e sim, sim, como negá-lo? – o amor, o desejo, a ternura, o perdão, e em toda esta lista é evidente que a ordem dos factores não altera o produto. Desse ponto de vista, o filme URGA é quase um soco no estômago. Quando vemos caminhar lado a lado o camionista russo, muito louro e de olhos muito azuis, e o pastor mongol, completamente mongol dos pés à cabeça, agora sabemos que eles não saíram mesmo de uma cepa igual. O russo nem se discute: é um Homo sapiens típico. Mas, e o mongol? Não parece saído de outro planeta? Pois, porque cresceu nas estepes da Ásia. Esse era o domínio do Homo erectus. Estamos mesmo a ver a descendência de duas espécies de hominídeos completamente diferentes, que pouco partilharam de território e coincidência no tempo, e muito menos de troca de genes.
E, no entanto, não é só a questão dos preservativos. Ao longo do filme, estes dois vão ficando cada vez mais amigos. E é evidente que a filha mais velha do mongol, que toca na concertina o hino à liberdade que o russo tem tatuado nas costas[18], está cada vez mais apaixonada pelo camionista, que gosta de exibir-se só de jeans e em tronco nu, enquanto os outros Homos quase desaparecem por trás da floresta daqueles trajes tradicionais todos.
“Tira lá essa roupa!”, diz o russo à miúda. “Nem sei como é que consegues mexer os braços para tocar. De cada vez que pisas para aí uma nota toda mal pisada eu penso nessa estupidez dessa roupa. Ainda por cima o teu corpinho deve estar mesmo radioso. Aposto É da idade. E tu andas a escondê-lo, agora que devias gozar-te bem dele?”
“Olha o Pai!”, ralha a miúda numa voz líquida de ribeira da floresta.
E ri, ri, ri, toda feliz da vida.
Mais trocas de genes entre espécies em perspetiva.
Tendemos a andar para aí feitos parvos, cada vez mais esquecidos da importância do amor como bloco básico da construção humana, e desculpem: quem nunca pecou que atire a primeira pedra à mulher adúltera. A gente peca por desleixo amoroso. Mas o genoma humano ganhou os contornos que tem hoje graças ao amor.
E o Darwin, no meio disto tudo? O Darwin, ainda um jovenzinho na viagem do Beagle, escreveu nos seus apontamentos secretos qualquer coisa como isto:
Deve ter existido o arquétipo do primeiro homem, de todos o que estava ainda mais próximo dos chimpanzés e gorilas[19]. Esse primeiro homem há de ter emergido onde a vida fosse fácil, com um clima quente, próximo do mar que chama sempre pelos homens, com bons terrenos para cultivar, abundância alimentar, chusmas autênticas de mulheres lindas, com rabos muito grandes, ao agrado do eterno masculino. Ou seja, é indiscutível que o primeiro homem emergiu em África. Com o tempo, a evolução e a selecção natural foram congeminando mais espécies de homens, sabe-se lá quantas. Tudo isto só seria possível em África, vendo bem as coisas. É a única parte do mundo onde um gajo deita uma beata acesa ao chão e daí a uma semana já cresceu ali uma árvore de SG FILTRO.[20]
Dois séculos antes de vermos o nosso próprio genoma, e o genoma dos outros homens com quem trocámos mais genes, Darwin viu tudo por nós antes mesmo de conhecer a linguagem sem surpresas que agora usamos para descrever o que vimos. E é graças à visão genial de Darwin que eu, pelo menos, neste preciso momento consigo voltar atrás no tempo e perceber, por fim, o que é que realmente me fascinava tanto no cozinheiro do Miramar que dirigia a célula local do MPLA. Os almoços de luxo para onde nos arrastavam duravam horas, eles bebiam bastante e deixavam de ligar às crianças, que em princípio estariam todas a brincar lá fora. Eu tirava os sapatos para não fazer barulho e fugia lá para dentro para me esconder num cantinho e ficar num deslumbre a vê-los de roda dos fogões, mas era sempre aquele homem maior do que os outros, implicitamente chefe dos outros, que me fascinava perdidamente sem eu saber porquê. Às vezes esperamos mesmo sessenta anos para ter uma visão.
E depois, quando tem, toda a sua vida valeu a pena.
Memória de infância
A VINGANÇA DAS ESPÉCIES EXTINTAS
Uma vez, nessas minhas fugas secretas para a cozinha do Hotel Miramar, descobri a técnica dum borracho todo musculado que era o Job, e que toda a gente dizia que fazia os melhores croquetes de Angola. Era hora de almoço, estava uma caloraça indescritível, o Job já se tinha posto em tronco nu para trabalhar com mais gosto e mais depressa[21], escoriam bagas e bagas grossas de suor por aquela peitaça hercúlea abaixo, os seus braços enormes pareciam girar em torno do fogão como seis ou oito, toda a gente ria e mandava bocas, e enfim – o cheiro a catinga naquela cozinha pairava do chão até ao tecto como um equinócio que se perdeu no caminho. Ainda hoje adoro o cheiro a catinga. Para mim, cheira a chegar finalmente a casa.
Nisto alguém vem carregado com pratos sujos da sala de jantar toda elegante, com imensa pressa, vira-se para o Job e pede-lhe duas doses dos seus croquetes incomparáveis. O Job diz que sim com a cabeça, o colega que fez o pedido acrescenta que as clientes são mulatas lindas de olho verde e pestana enrolada que não param de rir e de beber, ele depois do almoço vai apresentá-lo e quem sabe, há horas de sorte. O Job encolhe os ombros e diz que prefere os rapazinhos, coisa de que, aliás, tem fama na cidade inteira.
Mas nunca ninguém viu nada.
Devido à sua posição crítica no MPLA, o Job é o único do gang que tem um apartamentozinho junto à Baía. Mas, como em tudo o resto que faz, incluindo a sua receita para aqueles croquetes divinais, usa-o com gosto e alegria – só que de forma extremamente discreta.
Entretanto, na cozinha do Miramar, Job já dispôs graciosamente a salada no prato, já tem a batata frita a escorrer dentro de um papel especial chamado CHUPÓLEO[22], e vai começar a enrolar os croquetes para fritar. É só o que lhe falta, porque a carne, muito bem temperada, marinada em aguardente de cana, e devidamente picante, está sempre ali ao lado na bancada dentro de um alguidarinho azul, com uma capulana muito bem lavada por cima, pronta a entrar em acção,
Nesse dia descobri que o Job tinha aquilo a que se chama, literalmente, um dirty secret.
Depois de servir as mulatas de olhos verdes, que mais tarde apareceram na cozinha aos gritinhos, disseram que realmente valia a pena vir de Nova Lisboa até Luanda para provar aqueles croquetes mágicos, encomendaram mais duas doses com mais uma garrafa de vinho tinto, e disseram em altas vozes que, enquanto esperavam, iam levar para a mesa duas girafas com um prato de camarões picantes, dos maiores, porque, Santo Deus, aqueles croquetes eram tão bons que davam vontade de comer, comer, comer sem parar –enfim. Quando as fotos da PLAYBOY desampararam finalmente a loja ele fez uma rodada especial para nós e realmente era tudo verdade, eram os melhores croquetes do mundo, diferentes de todos os outros.
Da casa de jantar começaram a chegar subitamente mais e mais pedidos de croquete com batata-frita e vinho tinto do melhor, sem dúvida estimulados pela excitação das misteriosas bonitonas de olhos verdes e corpos de estátua, que mais tarde fiquei a saber terem chegado e partido num descapotável prateado enorme, lindo, rápido e nervoso nas manobras como um terrível leopardo das neves[23].
O que seria que aquelas estátuas nascidas sem pai nem mãe de dentro de uma buganvília quereriam realmente caçar? O cinema Miramar, com o seu anfiteatro de relva ao ar livre, ficava ali mesmo à frente. Se tivéssemos ido parar inadvertidamente a um filme de 007[24], duas miúdas com aquele corpão, aquelas mamas de aço à solta debaixo do decote, o umbigo de fora e as pernas de dois metros prolongadas pelos saltos altos dos botins, e ainda por cima aqueles shorts que lhes deixavam metade das nádegas de fora – e que nádegas, Nossa Senhora! – seriam certamente mercenárias ao serviço da Coreia do Norte. Agora ali em Luanda, sem James Bond à vista a menos que o Job tivesse uma dupla vida em que ninguém estava disposto a acreditar[25]… Tudo bem que estávamos num hotel de super-luxo, mas elas vinham numa de se atirarem ao Job e o Job vivia num secretismo feroz no andar de cima de um dos prédios do Bairro Social da Baía, deixando todos os outros à guarda da avó do Zé que era o boy lá de minha casa, no musseque da Cuca, que era animado mas que não haja equívocos, era à mesma um filho da puta dum mus-se-que. Nem eu valia grande coisa. Para já, era só uma menina branca a quem toda a gente me chamava Pretinha, e eles faziam de conta que não me viam mas todo o mundo sabia que estava ali sem licença. E depois, em termos de bens materiais, aquilo era mesmo uma cena a meia haste. A minha mãe trabalhava e tudo. Se calhar era por falta de dinheiro. Está bem que a casa dos meus pais estava na cara que era casa de branco, branco com bom gosto, branco interessado em arte de preto, branco com criada branca para as meninas que eram muitas e andavam todas no Colégio, mas nada disto era assim uma de ooooh meu mano, foda-se, morde-me só aquele branco tão rico.
Estava a cozinha toda a discutir o que quereriam as boazonas de olho verde, e ao mesmo tempo o Job, sempre em tronco nu, sempre encharcado em suor e a cheirar a catinga, ia enrolando os croquetes. Só eu olhei. Fazia perfeito sentido, perfeito sentido. Claro que assim ficavam muito mais gostosos. Mas aquilo era um nojo, foda-se. E ainda por cima o gajo estava sempre a suar.
Calma aí, sua estúpida. Quanto mais ele suar mais gostoso fica o croquete.
O Job piscou-me o olho e rimos os dois.
O grandessíssimo vira-lata enrolava os croquetes com a agilidade assombrosa daqueles seus braços enormes contra os pelos do peito, pelo meio das ondas contínuas de suor e do cheiro invencível da catinga,
Está bem que temperava muito bem a carne e a punha muito macia.
Ah, gente, mas aquele toque final é mesmo tão diferente dos conhecimentos dos nossos palatos que surte em nós um efeito quase hipnótico.
Criatividade,
Em certas pequeninas e subtis notas de rodapé, o homem é mesmo o único animal que.
E de repente, agora, vejo outra vez o Job. Vejo-lhe a testa abaulada quase inexistente, a maçã-de-Adão enorme, os braços muito mais compridos que os nossos, aqueles pelos todos no peito colossal, aquela força bruta – sim, vejo o Homo habilis intocado pelas mutações externas de todas as espécies que vieram depois, volto a piscar-lhe o olho, e presto-lhe homenagem.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
P.S. Agora vamos ver quem é que ficou mesmo culto neste verão, pelo menos no que respeita a todas as histórias mal contadas que rodeavam o grande Charles Darwin, alterador radical do nosso pensamento.
Então é assim: faço-vos sobre esta matéria um teste de 20 perguntas com quatro opções de escolha múltipla, como contributo para o vosso entretenimento na noite da passagem do ano. Cada pergunta vale 1 ponto, portanto, quem fizer sempre a escolha certa tem 20 valores e qualifica-se para curtir o jogo de pista bestial criado por mim aqui em Estremoz. Para responderem ao exame, podem reler os ensaios “Fique Culto Neste Verão”. Não posso impedir-vos de irem pedir socorro à Internet, mas aviso já que vai ser uma péssima ideia. O que aqui vos contei ainda não estava contado em lado nenhum. E têm até 31 de Dezembro para o Darwin, então.
Para a semana, regressa A Deriva dos Continentes, com uma grande cacetada na Mariana Mortágua, dada por mim, que sou apoiante e eleitora do Bloco de Esquerda – e, antes de haver o Bloco, votava sempre no PSR, um grupelho abertamente trotskista que ajudei o Louçã a formar.
Depois, há uma história nova para a História Natural, mas se vos contasse isto, perdia toda a graça.
E instala-se a rotina, antiquíssima praga do trabalho científico, um trabalho tão criativo como qualquer outra arte.
[1] O famoso Encontro da British Association de 1860, em que Thomas Huxley, também conhecido por “Darwin’s Bulldog”, arasou o bispo “Soapy Sam” Wilberforce.
[2] Cheia de defeitos, eu sei. Mas todas as eras anteriores também estavam cheias de defeitos. A Idade do Ouro nunca existiu, como todos sabemos. Mas desta vez, ao menos, existe o lado solar da internet. E isso, essa velocidade com que encontramos tesouros desde que saibamos o que é que andamos a procurar – isso é absolutamente inédito.
[3] Grupo em que eu tenho andado incluída, evidentemente.
[5] Que tenhamos identificado até hoje, claro. Provavelmente, existiram ainda mais espécies humanas que estão por descobrir.
[6] Nome científico do famoso Homem do Neandertal, que supostamente teremos sido nós a exterminar, quando invadimos a Europa durante a Idade do Gelo e do qual teremos possivelmente herdado a sequência de genes para o cabelo ruivo. Note-se que, a avaliar pelo que a genética molecular nos ajudou a compreender melhor hoje em dia, a herança do cabelo ruivo é um cenário mais provável do que o cenário do rápido extermínio causado pelo aparecimento do Homo sapiens na Europa durante a Idade do Gelo.
[7] Convivemos menos com estes: ainda não tínhamos chegado à Ásia por essa altura.
[8] Nos anos 90, o consenso geral ainda era que o Homo sapiens tinha aparecido há setenta ou sessenta mil anos, e neste ponto exterminara, muito rapidamente, as amostras ainda sobreviventes do Homem do Neandertal.
[9] Melhor conhecida ainda, escusado será dizer, é a tesão instintiva do pessoal por tudo o que é novidade.
[11] Só não foi com o Homo erectus porque não chegámos à Ásia a tempo de uma mistura em massa.
[12] Ou seja, nós temos a defesa natural contra o problema. Já imaginaram a brutalidade com que andamos a esticar a corda?
[13] A tal urga, que tanto serve como instrumento de trabalho como pode servir, se necessário, enquanto arma de defesa ou agressão.
[14] No filme, na sequência em que finalmente em que se percebia este detalhe fundamental, não consegui deixar de pensar como é que alguém consegue entregar-se às delícias da copula num sítio onde a abundância de insectos voadores (e pressupõe-se que outros tantos rastejantes) obriga as pessoas a usarem máscaras de rede na cara e luvas de cabedal nas mãos.
[15] Note-se, as urgas são imponentes. E o mais provável é que os citadinos nunca tivessem visto nenhuma.
[16] “But what will you do if a man really loves you?” – “I’ll pity him.” Sempre adorei esta deixa.
[17] A sequenciação do genoma humana demonstrou que, em termos de genética molecular, não existe a mínima diferente entre as chamadas “raças” humanas – aquelas a que Darwin teria preferido chamar “subespécies” porque sempre era mais digno (uma subespécie é apenas uma variação geográfica, causada pelo ambiente, dentro da mesma espécie), mas acrescentou logo já saber ser esta empresa impossível, tão habituados estavam já os povos a usar o termo “raça”, à época de forma francamente derrogatória: os brancos são uma raça perfeita, mas os negros são uma raça de crianças rebeldes e voluptuosas que nunca crescem e só pensam em sexo, os mongóis são atrasados mentais (daí o termo “mongoloide” para os portadores da trissomia 21, também eles brutalmente excluídos da sociedade), os chineses cheiram mal e só sabem fazer contas mas nunca escreveriam um poema (!), os habitantes da Oceania habitam-na exclusivamente para o prazer dos olhos dos Europeus, que levam rapidamente a outros prazeres – e não servem para radicalmente mais nada. As raparigas tendem a morrer muito jovens durante os partos porque é o primeiro esforço que fazem na vida.
[18] Memória de uma guerra qualquer em que a China queria invadir a Mongólia e os russos ajudaram os mongóis a expulsar os chineses. Estas partes, confesso, não percebo mesmo: quem é que quer invadir o maior deserto do mundo, onde vivem cavalos que só se reproduzem entre si, e vacas pastoreadas por uns fantásticos Homo erectus em estado puro? Aquilo tem é que ser declarado reserva mundial inviolável, gaita.
[19] Os orangotangos, que vivem pendurados nas árvores da cintura de floresta equatorial que dantes rodeava toda a Terra, com quatro mãos e nenhuns pés para se pendurarem melhor, saltarem melhor de árvore em árvore, e fazerem viagens mais espetaculares de liana em liana, para não falar daqueles filhotes de olhos enormes que as fêmeas pareciam fazer questão de trazer sempre às costas, foram afastados sem necessidade e explicações; pura e simplesmente, eram um Grande Primata demasiado louco para qualificar enquanto parente próximo do homem. Por outro lado, no tempo de Darwin ainda ninguém conhecia os bonobos, o mais pequeno dos Grandes Primatas e o único que forma sociedades justas e pacíficas, o que talvez tenha a ver com o facto dos seus dirigentes máximos serem sempre grupos de fêmeas. São Grandes Primatas que dão um grande crédito ao amor como rotina fundamental das suas sociedades, e, para grande surpresa de todos os Primatologistas que chegaram primeiro… isto, de facto, não costuma ser visto nem nos animais nem nos descendentes do Homo erectus… estes sacanas entregam-se aos prazeres do sexo… deitados num tereno macio e virados um para o outro, aos beijos e mais beijos e mais beijos!
[20] Era daquelas gracinhas que os colonos diziam aos berros enquanto bebiam girafas e se enchiam de camarão picante no relvado do Miramar. Eu não lhes achava graça nenhuma porque falavam dos “pretos” como quem fala de bichos, comportavam-se como se a escravatura ainda existisse, e deixavam-se estar para ali a fazer negócios, contar lucros, e encomendar bebidas e comidas cada vez mais caras e ornamentadas, que eu sabia que davam imenso trabalho porque adorava esgueirar-me para dentro da despensa, passar para um cantinho da cozinha já sem sapatos para não fazer mesmo barulho nenhum, e ficar ali fascinada a aprender com eles todas aquelas alquimias., até muito depois da hora de fecho, quando aqueles pretos obrigados a andar de roda deles como rodas de colibris já deviam ter ganho o direito de ir para casa.
Estes brancos eram aquele género de gente que desobedecia com gosto e exibicionismo a qualquer polícia sinaleiro preto que os mandasse parar, ou tomar o sentido obrigatório à esquerda. UM PRETO que lhes dava ordens? Faziam chiar os pneus e estoirar o motor e desobedeciam de propósito, e de caminho ainda mandavam um grande caralhete ao sinaleiro quando passavam por ele.
[21] Enfim, nessa idade eu era ingénua. Com aquele físico impressionante, o Job punha-se em tronco nu sempre que podia. Senão, qual era a graça?
[22] Alguém sabe o que é feito do CHUPÓLEO? Os que vieram de África trouxeram-no aos montões para a Metrópole. Ainda me lembro de o comprar nos supermercados portugueses. Mas, quando voltei da América, tinha desaparecido por completo. É uma dor d’alma. Nunca vi papel de secar óleo tão espantosamente eficaz. E só aquele nome tão másculo, CHUPÓLEO… Lembra qualquer coisa que se faz na cama, é ou não é, confessem?
[23] Como é evidente, em Luanda nunca ninguém, nem negro nem branco, tinha visto um leopardo das neves. Isso dava ao animal uma dimensão de perigo redobrado, uma criatura enorme, de garras retrácteis todas pausadas a que ninguém escapava, olhos cruéis, patas como molas de aço – camuflado pelos montes de neve, pronto a saltar ao caminho do primeiro ingénuo que usasse o trilho onde esse monte de neve estava. Quando saltava ao caminho da pessoa com as fauces furiosas escancaradas e um rugido infindo que retumbava no eco, já nem valia a pena tentar resistir-lhe.
[24] Quem é que não quer? Negro pode ser guerrilheiro, mas não deixa de sonhar por causa disso. “Mas sem ser o protector da meu Boss… eu vou fazer o quê para o MPLA?”, pergunta o bebé.
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A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. É verdade que o dito epíteto foi cuspido a título insultuoso por parte dos leitores irados que não podiam discordar mais do seu conteúdo. Também é verdade que em certas passagens esta obra científica quase parecia uma obra de ficção científica, tais eram os seus erros biológicos e técnicos. Mas teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi este “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda refém do texto literal da Bíblia enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para a alternativa de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands[2], onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[3].
Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[4], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes, como o Dilúvio de Noé, para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por várias vezes, de criar todas as espécies uma por uma[5]. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acesso a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”
Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas com alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[6].
Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?
Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:
“O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.”
Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.
Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas, como escreveu a um amigo ainda a bordo do BEAGLE, “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser grandes apoiantes, da selecção natural, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.
O que não quer dizer que o VESTIGES não fosse conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[7] e o próprio Príncipe Alberto.
O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?
Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.
“É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”
Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:
“Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.”
É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que
“o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.”
A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque
“a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[8]”
Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram mesmo pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo. Há que ver que estes são os dias em que Júlio Verne encheu a Europa de livros espantosos de ciência inventada que ainda hoje nos fazem sonhar[9]. Mas as invenções de Chambers não faziam sonhar ninguém, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento.[10] A verdade, no entanto, é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.
“O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.”
Irão então existir, quando as condições evoluírem,
“espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”
Muito provavelmente, embora seja inegável que
“a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[11]”
Finalmente[12], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.
“Esta regularidade estatística nos assuntos morais[13] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”
Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores vitorianos tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[14]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.
Pouco depois, Darwin parou de esperar e publicou mesmo a ORIGEM, já pronta há bastante tempo, mas à espera que a tempestade de Chambers passasse. Os mais ardentes materialistas do século XIX, Marx e Engels, reconheceram logo o que Darwin tinha conseguido, e exploraram de imediato o seu conteúdo radical. Marx chegou a oferecer-se para dedicar a Darwin o Segundo Volume do DAS KAPITAL, mas Darwin declinou gentilmente, declarando não querer sugerir que dava a sua aprovação a uma obra que não lera. Pelo contrário, e exactamente para evitar passagens que, como a de Chambers, fossem consideradas implicações filosóficas a favor do materialismo[15], preferiu escrever a Karl Marx, em 1880:
“Parece-me que a liberdade de pensamento será mais bem promovida pelo gradual esclarecimento do entendimento humano, que acompanha o progresso da ciência. Por isso tenho sempre evitado escrever sobre religião, e tenho-me confinado à ciência.”
Este era o mesmo Darwin que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo numa pequena cidade de província – o seu sonho desde o final da infância. No entanto, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam mas representam a verdade à luz da ciência e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:
“Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dosseres orgânicos, e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”
Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:
“Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”
Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.
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HISTÓRIA VERDADEIRA
O espírito experimental do senhor que acreditava na capacidade de aprendizagem dos diferentes animais
Na esquina de um tranquilo bairro lisboeta, o proprietário de uma pequena loja de animais está a dar pedacinhos mínimos de ração aos seus três coelhos anões[16]. Nisto, entra um senhor que quer comprar um papagaio, para poder ensiná-lo a falar.
“Está com azar, ó amigo,” diz o proprietário. “Vendi ontem o meu último papagaio. Agora só devo receber mais para o ano.”
“Então não tem aí nenhum pássaro bonito que eu possa levar?”, pergunta o senhor.
“Por acaso tenho. E olhe que elas nem são nada fáceis de encontrar nestas lojas. Tenho ali aquela coruja linda, toda branca, está a ver?”
A coruja em questão é uma Tyto alba, a chamada coruja-das-torres porque se diz que entra pelas frestas das torres das igrejas para ir beber o azeite às sacristias. É grande, majestática, com o corpo branco e manchas acastanhadas nas asas, os olhos enormes, redondos, dourados, já fixos nos dois homens que falam sobre ela.
“Ah, sim!”, diz o senhor. “É linda. Vou já levá-la, antes que venha outro cliente.”
“Ó amigo, mas olhe lá, ela bonita é, isso sem dúvida, e ainda por cima é muito raro alguém ter alguma em casa. Além disso, come-lhe os ratos todos que lá tiver. Não há melhor pesticida que uma boa coruja. Mas não tem nada a ver com o papagaio que o amigo queria. A minha ética profissional obriga-me a avisá-lo que as corujas não falam.”
“Ah!” responde logo o senhor. “Vai ver. Sou um homem muito paciente. Eu seja cão se não ensino esta coruja a falar.”
Três semanas mais tarde, o senhor volta à lojinha da esquina para comprar comida para a coruja. Parece muito feliz. O proprietário fica a estoirar de curiosidade.
“Estão diga lá, ó amigo. A sua coruja já fala?”
“Bem… Ela falar ainda não fala… Mas já ouve tudo com muita atenção!”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Também enquanto autodidacta, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.
[2] As montanhas mais altas e menos acessíveis da Escócia.
[3]VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.
[5] Isto explicaria os fósseis de dinossauros, e de vários outros animais claramente antecedentes ao homem, tanto marinhos como terrestres. Alguns naturalistas consideravam toda esta fauna pré-humana ensaios que Deus andara a fazer até chegar até ao ecossistema perfeito do Jardim do Paraíso, pronto para oferecer ao Homem. O termo “ecossistema” é usado aqui de forma anacrónica, evidentemente.
[6] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.
[7] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.
[8] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.
[9] Entre a produção copiosa do escritor francês que ofereceu ao século XIX um estilo absolutamente novo, recorde-se CINCO SEMANAS DE BALÃO em 1863, VIAGEM AO CENTRO DA TERRA em 1864, VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS em 1870, A VOLTA A AUNDO EM OITENTA DIAS em 1872, e assim por diante. O homem tinha uma imaginação absolutamente brilhante.
[10] Evidentemente, Chambers não era nenhum Júlio Verne.
[11] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.
[13] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.
[14] Em 1869, Marx escreveu a Engels, acerca deA ORIGEM DAS ESPÉCIES: “Embora desenvolvido no rude estilo inglês, este é o livro que contém a base de História Natural para o nosso ponto de vista.”.
[15] Embora a viagem do BEAGLE tenha tornado Darwin um homem profundamente materialista.
[16] Como se depreende dos “pedacinhos mínimos”, os coelhos anões são uma treta. Não existem. Mantêm-se anões fazendo-os passar fome. Sobretudo, nunca os empanturrem com couves e cenouras. Vão ver como num mês eles rebentam com a gaiola. Based on a true story.
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…E QUE, AINDA POR CIMA, IRRITOU PROFUNDAMENTE TODOS OS QUE VIRIAM A SER OS GRANDES APOIANTES DE DARWIN
A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique culto neste Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
“Foi um grande argumento contra a mutação das espécies, que li com medo e a tremer”
Charles Darwin
a propósito do ataque do seu antigo mestre ao livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO
Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. Mesmo que o dito epíteto tenha vindo a título insultuoso por parte dos leitores irados que na esmagadora maioria não podiam discordar mais do seu conteúdo, e apesar de todos os erros científicos e técnicos que pudesse conter, teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi esta quase-ficção científica do “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda semi-refém do texto literal da Bíblia entendido enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para considerar alternativamente o conceito de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands, onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[2].
Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[3], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes como o Dilúvio de Noé para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por duas vezes, de criar todas as espécies uma por uma. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acedido a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”
Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[4].
Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?
Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:
“O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.”
Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.
Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser seus grandes apoiantes, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.
O que não quer dizer que não fossem conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[5] e o próprio Príncipe Alberto.
O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?
Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.
“É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”
Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:
“Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.”
É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que
“o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.”
A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque
“a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[6]”
Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram quase pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento, a verdade é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.
“O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.”
Irão então existir, quando as condições evoluírem,
“espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”
Muito provavelmente, embora seja inegável que
“a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[7]”
Finalmente[8], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.
“Esta regularidade estatística nos assuntos morais[9] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”
Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[10]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.
O próprio Darwin, que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam, mas representam a verdade e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:
“Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dos, seres orgânicos e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”
Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:
“Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. – Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, que a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”
Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Também enquanto autodidata, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.
[2]VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.
[4] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.
[5] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.
[6] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.
[7] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.
[9] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.
[10] “Este é o nosso homem,” escreveria mais tarde Marx a Engels quando saiu a primeira edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
…E QUE, AINDA POR CIMA, ACABOU POR TER RESULTADOS DESASTROSOS
A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique culto neste Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION
No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação
“Uma Casa de Gosto é uma casa de bom gosto, onde todas as coisas são um reflexo de pensamentos refinados e desejos castos. Num tal lar, a Beleza preside à educação dos sentimentos, o intelecto é aperfeiçoado, e a natureza moral é depurada através dos apelos silenciosos da Natureza e da Arte, que são os alicerces do Gosto.[1]”
James Shirley[2] Hibberd, em RUSTIC ADORNMENTS FOR HOMES OF TASTE: CONTAINS SUGGESTIONS FOR THE FLORAL EMBELLISHMENT OF THE HOME, THE GARDEN, BALCONY, WINDOW, GREENHOUSE AND CONSERVATORY: WITH HINTS ON THE FORMATION AND MANAGEMENT OF FRESH-WATER AND MARINE AQUARIUMS, VIVARIUMS, ETC. Desde cerca de 1855 até à publicação em Oxford de todos os fascículos num único opúsculo de capa dura, em 1895.
Antes de mais nada, há um herói da cultura e das belas causas que pode ser uma criatura algo irritante, mas para todos os efeitos é a grande estrela desconhecida desta história. O britânicoHerbert Spencer, um dos grandes representantes do liberalismo clássico do seu tempo, nasceu em 1820 e morreu em 1903. Destacou-se a vida inteira enquanto notável opositor dos governos militares e autoritários, do colonialismo, do imperialismo, e de qualquer forma de guerra. Além disso, aplicou à sociologia ideias que eram próprias das ciências naturais, por forma a criar um sistema de pensamento que foi muito influente na sua época. As conclusões dos seus estudos levaram-no a defender a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a Natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez uma verdadeira campanha pelo ensino escolar da ciência, combateu a interferência do Estado na educação, e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter[3].
As suas cruzadas filosóficas foram sempre extremamente populares, e os números resultantes falam por si. Enquanto a maioria dos filósofos não consegue atingir muitos seguidores fora do grupo de colegas de profissão, entre 1870 e 1880 Spencer tinha alcançado uma popularidade sem precedentes. Foi provavelmente a primeira, e talvez a única vez na história, que um filósofo vendeu mais de um milhão de cópias de seus trabalhos durante a sua vida.
Não se trata aqui de um mero fenómeno de vendas, mas, muito provavelmente, de um verdadeiro benefício para a humanidade. Nos Estados Unidos, onde as edições piratas ainda eram comuns, a sua editora autorizada, a Appleton, vendeu 368.755 cópias entre 1860 e 1903. Este valor não difere muito das vendas na sua Inglaterra natal, e, quando adicionamos as edições do resto do mundo e o das edições pirata, o valor de um milhão de cópias parece ser uma estimativa conservadora. Como observou o filósofo e psicólogo americano William James,[4] Spencer “ampliou a imaginação, e libertou a mente especulativa de inúmeros médicos, engenheiros, advogados, físicos, químicos, e dos leigos em geral“. A parte do seu sistema de pensamento que enfatizava o autoaperfeiçoamento do indivíduo encontrou um público imediatamente interessado na classe trabalhadora qualificada.
Vale a pena notar, aliás, que o endeusamento da Natureza, que poderia ter sido escandaloso em tempos anteriores, e pode parecer-nos legitimamente ridículo hoje, é uma das posturas mais características dos intelectuais da segunda metade do século XIX, sobretudo nos Estados Unidos. Veja-se, por exemplo, toda a comunidade de pobres voluntários que escolheu viver em contacto estreito com a Natureza em torno do Lago Concord, no Massachusetts. Foi nesta comunidade que Louisa May Alcott escreveu, entre muitos outros, o seu quase autobiográfico MULHERZINHAS. Foi também aqui que o respeitadíssimo Ralph Waldo Emerson, considerado o grande expoente do Transcendentalismo, escreveu o livro A NATUREZA, que viria a ter uma influência impressionante sobre os jovens do seu tempo. Considerando a Natureza a fonte da verdade Herbert Spencer está, portanto, a reproduzir em Inglaterra muito do que foi escrito nos ensaios e poemas americanos, surtindo desde logo o mesmo impacto sobre o público, sobretudo o público mais jovem.
Como era próprio da época, Spencer teve várias especializações: foi antropólogo, filósofo e biólogo. Nesta última condição, tornou-se um profundo admirador da obra de Charles Darwin. Depois de ler A ORIGEM DAS ESPÉCIES, decidiu escrever um livro em que estabeleceria diversos paralelismos entre teorias económicas e teorias biológicas.
Para isso, evidentemente, era preciso que todos os leitores conseguissem compreender sem esforço as teorias biológicas – uma vez que as económicas, essas, para o efeito a que se destinavam, não levantavam qualquer problema.
Spencer não demorou muito tempo a reparar que é extremamente difícil explicar aos leigos que, tal como Darwin parecia postulá-la, a seleção natural funciona, ao que parece, e se não é bem assim é qualquer coisa deste género,
“pela sobrevivência do conjunto de mutações que, completamente por acaso, estão melhor adaptadas à transformação ambiental seguinte, sendo que ninguém pode prever que transformação vai ser essa, pelo que nunca é possível prever que mutações é que vão ser favoráveis para cada espécie; e uma espécie beneficiada num determinado contexto pode ser prejudicada logo a seguir por mudanças de contexto que também não podemos anticipar”
Portanto, temos aqui um grande problema. É importante que as pessoas percebam como é que funciona a evolução; mas, se vamos tentar explicá-la através da selecção natural, vamos mantê-las permanentemente confusas.
Com todo o seu treino de Filosofia, Psicologia, e Comunicação acessível até aos menos dotados, Spencer refletiu muito sobre este dilema, à procura de uma fórmula simples, de preferência uma única frase de uma única oração, que permitisse a toda a gente entender imediatamente como funciona a selecção natural, sem necessidade de mais explicações.
Não sabemos durante quanto tempo andou às voltas com o problema da simples frase.
Mas sabemos que conseguiu arranjá-la.
Querem saber como é que a evolução funciona, é?
Pois bem, é muito simples: a evolução funciona pela sobrevivência do mais apto.
Foi assim que a selecção natural apareceu descrita em 1864 no livro de Spencer PRINCIPLES OF BIOLOGY, que o autor se apressou a autografar e enviar ao seu Grande Herói Intelectual Charles Darwin.
Darwin, no entanto, achava a Biologia de Spencer “pouco útil”, e comentou uma vez, sigilosamente, ao seu grande amigo e colega de Geologia Sir Charles Lyell[5], que tinha uma certa dificuldade em ler todos aqueles best-sellers por causa do seu “estilo detestável”.
Consequentemente, tudo isto poderia ter-se ficado pelas páginas de um autor vitoriano de best-sellers científicos que agora ninguém recorda (os tais momentos de lugar ao sol que depois se somem no nevoeiro de que falava Charles Dickens exactamente nessa altura), se não fosse Alfred Russell Wallace. Este homem, que não conhecia Darwin de lado nenhum e chegou à teoria da origem das espécies precisamente ao mesmo tempo do que ele, publicou o seu trabalho separadamente e nunca mais deixou de trocar correspondência com o colega miraculoso. Cada um deles usava terminologia diferente, e Wallace já protestara várias vezes antes contra o termo darwiniano “selecção natural” porque, na sua opinião, era uma escolha de palavras que implicava que a existência de um “selecionador inteligente” com “pensamento e direcção” era fundamental no processo, quando na realidade o processo era totalmente aleatório, como ambos sabiam – mas os leitores com menos formação ficavam frequentemente confusos. Numa longa carta datada de 1866, Wallace pede então repetidamente a Darwin que experimente minimizar essa confusão utilizando antes “o termo de Spencer” – a saber, “a sobrevivência do mais apto”.
Mesmo sem gostar nem do termo nem da prosa de Spencer, Darwin não se furtou à experiência. Um pouco às apalpadelas, introduziu “o termo de Spencer” no seu VARIATIONS OF ANIMALS AND PLANTS UNDER DOMESTICATION de 1868, o seu livro mais volumoso de sempre[6]. Por fim, em 1869, chegou mesmo ao ponto de polvilhar com alguns “a sobrevivência” do mais apto” a sua quinta edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES, mas sempre, e fundamentalmente, enquanto auxiliar e explicação de “seleção natural”, um termo bastante mais complexo mas inescapavelmente necessário, uma vez que, tal como o autor nunca se cansou de insistir, a evolução é um processo sem vitórias: os vencedores da “luta pela existência[7]” (um termo que Darwin foi buscar ao economista e demógrafo inglês Thomas Malthus) podem tornar-se os vencidos se as circunstâncias mudarem. Por exemplo, a evidência fóssil indica que o Mamute Peludo estava perfeitamente adaptado durante a última Idade do Gelo, que acabou há cerca de 11.700 anos – mas tornou-se cada vez menos adaptado à medida que o clima foi aquecendo e os humanos aprenderam a caçá-lo cada vez melhor. Finalmente, a mesma evidência fóssil indica que este colosso terá sido dado por extinto alguns milhares de anos mais tarde.
Por esta altura, a introdução na linguagem científica da “frase de Spencer” já não causava estranheza a ninguém, gostasse-se dela ou não: toda a gente admitia que, mesmo que pudesse dar uma imagem um tanto ou quanto desfocada da selecção natural darwiniana, tinha o seu lugar justificado na literatura como forma de simplificar o entendimento do público mais generalista. E, naquela época, naquele meio, educar cientificamente o público laico era mais do que um dever: era uma missão quase sagrada a que ninguém que soubesse do seu ofício quereria furtar-se.
E foi assim, com a circulação incessante de obras e palestras destinadas à educação do público, que o chamado “darwinismo social” pôs a cabeça de fora.
Aplicado exclusivamente ao ser humano, e baseado sem mais complicações na “frase de Spencer”, o “darwinismo social[8]” defendia o que já se consegue imaginar daqui: que há pessoas melhores e pessoas piores, e é apenas justo, porque apenas normal e cientificamente justificado, que as piores morram e as melhores triunfem.
Regressemos, por exemplo, ao louvor que Shirley Hibberd fez em fascículos durante a segunda metade do século XIX, com um sucesso tão grande que foi a própria Universidade de Oxford a tomar a iniciativa de juntá-los a todos num único livro de capa dura. Tal como os fascículos que o antecederam, o livro está cheio de desenhos demonstrativos dos vários conceitos que o autor vai desenvolvendo, todos eles indiscutivelmente belos e apelativos. Todos esses desenhos foram feitos pelo próprio Shirley, na sua campanha de demonstração de como a Beleza exterior do jardim condicionaria a Beleza interior da casa – e, com ela, a Beleza e a Felicidade das famílias aí residentes.
Note-se que Shirley foi o grande e reconhecido pioneiro da jardinagem ao ar livre em grande escala, e com grande beleza, requerendo para o efeito um enorme esforço de manutenção – e tudo isto pelas suas próprias mãos. Toda a gente admirou não só o desenho dos seus jardins mas também a sua energia, aparentemente inesgotável. Mas nem toda a gente tinha qualquer espécie de interesse em ir lá para fora expor-se aos elementos (passando-se esta história em Inglaterra, deduz-se que estaria a chover quase todos os dias…) por causa de um jardim, cujo desenho, plantação, e abertura de estradas planas, de areia lisa, onde pudesse passar um automóvel, bem como pequenos caminhos de grandes pedras que pareciam ter-se encostado assim umas às outras completamente por acaso, para não falar do grande lago plácido com mesas de chá e de cartas, toldos, e encantadoras aves exóticas, poderia encomendar a Shirley – e depois pagar mal a uma série de empregados, oferecendo-lhes péssimas condições de trabalho, para manterem o seu Louvor à Beleza a funcionar de noite e de dia, melhor ainda do que VERSAILLES, para não dizer nada daquele famoso JARDIN LES DÉLICES, da famosa grande musa e mecenas Madame de Chatelêt, onde indivíduos como Voltaire e Rousseau se abrigavam para recuperarem as forças entre duas grandes batalhas da razão contra a reacção bruta, e depois se reuniam para jantar com vários outros pares interessantes que ali acorriam a convite da anfitriã, debatendo os grandes temas do momento com a mais requintada ironia e deliciosas exposições ao ridículo dos seus adversários. Entretanto, como num milagre, dezenas de tochas balsâmicas iluminavam a noite, seguradas tranquilamente, mas com grande dignidade, por jovens “de pele e feições vagamente africanas, e com enormes olhos claros, rasgados, mesmo no sorriso semelhantes aos olhos da serpente, e mais hipnóticos ainda do que os do animal. Submeti-me por mais do que uma vez à experiência quando estava pronto para ir dormir, e não posso dizer que conheça outra minimamente mais agradável.[9]” A avaliar pelas amostras de correspondência recolhidas entre vários dos membros destes jantares, parece que os comensais também eram frequentemente maravilhados por rapazes bonitos, musculosos, cuidadosamente selecionados pela sua pele morena e estatura elevada, que dançavam para eles “terríveis danças de guerra, provavelmente comparáveis às dos machos que se exibem para conquistar uma fêmea.[10]”
É assim que o darwinismo social separa as águas: quem tem meios para manter sempre a funcionar o seu jardim magnífico está no topo da pirâmide evolutiva e deve considerar-se mais apto com toda a justiça; enquanto que quem não tem meios para assegurar a presença, em torno de sua casa, de um jardim digno desse nome, está algures mais abaixo na pirâmide, vê-se obrigado a trabalhar sem descanso no jardim dos outros para conseguir sustentar a família, que já agora tende a ser cada vez mais, à medida que a escala da pobreza desce pelo interior da pirâmide, uma família em que a mulher fica envelhecida e encovada muito depressa, e muitos filhos morrem ao longo do percurso, por simples falta de acesso aos mais elementares de todos os cuidados médicos. É evidente que estão pouco aptos, e a sua sobrevivência é extremamente discutível.
Isto seria, digamos, a história de como um partido de extrema-direita da época defenderia o seu direito à existência pela lógica da razão pura.
Infelizmente, a história foi ainda pior.
O desastre consumou-se através de um meio-primo mais novo de Darwin, de seu nome Francis Galton, que se instalou cedo e confortavelmente na poltrona do darwinismo social, com tanto trabalho desenvolvido no estudo da inteligência humana e da sua transmissão que, em 1909, depois de 340 publicações, foi armado cavaleiro pelas suas contribuições para a ciência. E estas abundavam, porque o indivíduo era, no mínimo, e isto temos que conceder-lhe – era extremamente curioso. Galton foi o criador da expressão “nature versus nurture[11]”. Também foi o introdutor do uso das impressões digitais na ciência forênsica. Além disso foi antropólogo, matemático, estatístico, e especialista de metereologia, disciplina onde criou os primeiros mapas do clima e propôs a teoria dos anticiclones[12]. Ou seja, era considerado e respeitado enquanto cientista, pelo que arcava com a responsabilidade social de todos os seus pares. Portanto, quando publicou em 1883 o seu INQUIRIES INTO HUMAN FACULTY AND ITS DEVELOPMENT, apresentando pela primeira vez ao mundo culto do seu tempo o conceito de eugenia[13], legitimado cientificamente pela sobrevivência do mais apto, se fez asneira em grande estilo só fez porque quis. Era impossível que um cientista da craveira de Francis Galton, escrevendo em fins do século XIX, inspirado pelas publicações do seu primo[14], depois da redescoberta das obras de Mendel, e de tudo o que o registo fóssil já tinha revelado[15], não conseguisse entender que não pode existir nenhum fenómeno natural passível de ter como base um modelo tão simplista como a sobrevivência do mais apto.
O modelo foi-lhe muito conveniente, o que é outra coisa.
Em última análise, foi conveniente para todos os habitantes do Ocidente de pele clara, preferencialmente os de olhos azuis e cabelo louro: a sobrevivência do mais apto foi a primeira grande demonstração científica da supremacia branca, com todos os estragos que fez logo na altura e com os que ainda virá a fazer no futuro.
Extra-texto I
Pensem em todos os métodos que, hoje em dia, os bancos de sémen têm vindo a financiar para conseguirem vender produtos superiores. Por superior entende-se, sempre, “tipo escandinavo”, além de estudantes com notas mais altas e mesmo Prémios Nobel. A gente detesta engolir a parte em que a Eugenia, em vez de morrer para todo o sempre, agora voltou a acordar para nos angustiar de novo[16]. Mas a Eugenia é como a hidra. Já os gregos se temiam destas coisas. Cortem-lhe uma cabeça, cortem. Nascem-lhe logo outras duas. Não temos qualquer balística que combata este mito. Resta-nos o mais importante de tudo, que é a informação.
Por todas estas razões pouco bonitas, nesse fim de século ainda meio mundo discutia Darwin, mas já toda a gente entendia Galton[17] e respeitava sem margem para dúvidas a sua enorme respeitabilidade científica. E foi então que o futuro cavaleiro propôs que, segundo o conceito da eugenia, só deviam poder reproduzir-se os exemplares superiores da raça humana para que a população melhorasse como um todo[18]. Nesse sentido, a função reprodutiva, aquela que, de todas as que há no mundo, carrega consigo a maior das responsabilidades, passaria a ficar automaticamente vedada, fosse por esterilização ou fosse por prisão em instituições a criar para o efeito[19], aos deficientes, aos loucos, aos presos, aos criminosos, aos “débeis mentais[20]”, às prostitutas… e aos pobres.
A ideia básica deste plano era acelerar a lentidão infinda do Tempo Geológigo para a Rapidez Humana de duas ou três gerações, despachando com grande rapidez o que a selecção natural faria de forma extremamente lenta: introduzir, através de boas políticas medico-sociais, os protocolos necessários para melhorar rapidamente a espécie humana. Que é que tem? Há séculos que veterinários e agricultores vinham fazendo isso mesmo com crescente sucesso, e não menos aplauso público. Agora, meus senhores, a ciência permite finalmente esta intrépida mudança de paradigma, que leva ao mesmo melhoramento, finalmente possível no humano.
Se nos parecer estranho agora que nenhum dos visados enquanto “exemplares deletérios” da raça humana tenha armado qualquer espécie de tentativa de revolução, é apenas porque, nos mais inconscientes de todos os nossos níveis emocionais, todos somos profundamente moldados pela ideia que os outros têm de nós – e, se aqueles que nos desprezam o disserem em voz alta, se usarem até um megafone, acabamos por não conseguir sentir por quem somos mais do que um profundo desprezo. Durante as campanhas da Eugenia, houve milhões de pessoas, em todo o Ocidente, que foram seriamente pressionadas no sentido de se considerarem uma acabada porcaria, um erro crasso da natureza, até, que mais valia castrar para não contaminar a espécie no futuro. E, impotentes, baixaram a cabeça.
Os cientistas americanos que visitaram a Inglaterra durante a Idade de Ouro de Francis Galton ficaram tão seduzidos com este conceito de supremacia branca, comprovada pela sobrevivência do mais apto, e portanto com o selo de honra da aprovação científica, que agarraram na Eugenia e a levaram para casa. As ideias de Galton já tinham encontrado ecos entusiásticos em vários países europeus[21], e a resposta dos Estados Unidos não foi só um eco: foi um êxtase. E um êxtase muito bem financiado, diga-se de passagem. Os estudos sobre a questão de como melhor implantar a Eugenia Americana tiveram o apoio da Fundação Rockfeller, do Carnegie Mellon Institute, e da fortuna doada por Mary Harriman, viúva do grande barão dos caminhos de ferro americanos, E. H. Harriman, dono da linha de comboio costa a costa. Em 1906, J. H. Kellogg, o médico imortalizado na foto daquele velhote simpático que ainda hoje aparece nas caixas dos cereais que inventou, cobriu todos os custos da construção da Race Betterment Foundation[22], em Battle Creek, Michigan. Logo a seguir, em 1911, com o apoio das autoridades locais e por iniciativa do famoso e muito respeitado biólogo Charles B. Davenport, treinado em Harvard e docente na mesma universidade até ao início da sua cruzada eugénica, construiu-se em Cold Spring Harbor, Nova York, o Eugenics Record Office[23]. Davenport entregou a direcção do Departamento a um psicólogo seu amigo, também ele de enorme respeitabilidade, chamado Harry H. Laughlin. Além destes auxiliares de primeira linha mais vistosos, Davenport também contou sempre, na chuva de publicações que fizeram parte da cruzada épica que ele mesmo tratou de desencadear sobre o seu país para que a genética mendeliana pudesse ser aplicada aos humanos sem quaisquer entraves, com a colaboração da sua mulher, Gertrude Davenport, uma geneticista e embriologista de enorme renome.
Uma das tarefas a que este trio de projecção e propaganda, encarregue de assegurar novas gerações de americanos cada vez mais bem constituídos e mais inteligentes, meteu ombros sem demora, foi a questão de como diminuir os efectivos da população indesejável, que formava uma maioria ameaçadora para o melhoramento americano. Estabeleceu-se para a discussão de estratégias um regime de reuniões semestrais com um comité de sete colegas, todos eles imensamente qualificados em áreas mutuamente complementares. Foi numa destas reuniões de estratégia, realizada em 1933 sem qualquer espécie de secretismo, que se falou de Extermínio em Massa pela primeira vez.
Se o ano de 1933 vos disser alguma coisa, então deve ser porque Hitler foi democraticamente eleito a 5 de Março de 1933.
Davenport era um grande mestre da arte do lobbying, ao ponto de conseguir aliar a maioria das mulheres brancas, e até alguns intelectuais negros, na sua cruzada para elevar o povo americano acima de todas as outras raças do mundo. A definição do futuro americano ainda estava em aberto, pelo que a credibilidade científica da Eugenia, com todos os traços deletérios considerados hereditários[24], e portanto incorrigíveis, se transformou com o tempo num pretexto fantástico para impedir a entrada no país de tudo quanto fosse imigrante do Sul da Europa, de origem judaica, ou portador de outros estigmas considerados opostos à construção de uma sociedade perfeita[25]. O Immigration Act de 1924, que observa todas estas restrições, é claramente um triunfo dos eugenistas sobre os congressistas. E, ao mesmo tempo, já há uns bons dez anos que se promoviam, com grande sucesso e maior concorrência, cada vez mais concursos como “a melhor família americana”, ou “o melhor bebé americano”[26].
Logo em 1911, o problema dos defeitos hereditários, e o esforço científico de gizar bons métodos para acabar com a sua transmissão imutável de pais para filhos, levara Davenport a convocar mais uma reunião de especialistas, onde também não se observou qualquer secretismo. Ao fim de dois dias, estava elaborada, e assinada por todos os seus proponentes, uma lista de dezoito métodos para conter o flagelo imutável da hereditariedade. O oitavo método era a eutanásia. E, no sentido de tornar essa mesma eutanásia mais rápida e funcional, sugeria-se a construção de uma câmara de gás anexa aos hospitais.
Há detalhes históricos que não é prudente deixarmos cair no esquecimento, e estes fazem parte desse número: a ideia do Extermínio em Massa nasceu em Cold Spring Harbor em 1933, e a ideia da câmara de gás nasceu em Nova York logo em 1911.
O projecto não se realizou apenas porque os fundos começaram a tornar-se mais escassos, uma vez que todas as facções envolvidas sustentavam que um programa desta envergadura, destinado a salvar o povo americano do declínio, deveria por força ser financiado pelo Tesouro Federal. À falta de melhor, enquanto toda a gente discutia, foram-se explorando alternativas menos rápidas mas perfeitamente seguras, como a esterilização forçada de homens e mulheres: os números oficiais indicam que, entre 1907 e 1963, mais de sessenta e quatro mil pessoas foram anestesiadas e depois esterilizadas sem o seu conhecimento prévio[27]. A Califórnia, que só por si esterilizou mais pessoas do que todos os outros estados juntos, começou a partir de 1933 a enviar literatura especializada para hospitais, clínicas, e laboratórios farmacêuticos alemães, e a convidar os seus dirigentes a virem observar no terreno todo o seu imenso trabalho de campo.
De onde viria este cortejamento tão específico que os especialistas americanos começam a fazer à Alemanha, exactamente quando Hitler sobe ao poder? O entusiasmo popular e o interesse científico com que os alemães acompanhavam as actividades velozes da Califórnia teve de certeza um papel neste estranho noivado. Além disso, as tentativas repetidas que Davenport foi fazendo no sentido de criar Sociedades Eugénicas Internacionais não tinham surtido grande efeito entre os europeus à excepção dos escandinavos, pelo que uma aliança internacional com a aderência garantida da Alemanha caía muito bem nos seus propósitos propagandísticos.”
A avaliar pela correspondência trocada entre os investidores e empresários da época, o Grande Capital, só por si, pode muito bem ter desempenhado nesta história o papel mais relevante de todos. Qualquer capitalista que quer crescer precisa de novos clientes. Numa Europa toda ela empobrecida na sequência da I Guerra, a Alemanha aparecia como uma nação bastante rica, povoada por pessoas eugenicamente correctas, tão perfeitamente superiores como o Siegfried de Wagner. E os seus maiores expoentes tecnológicos e científicos pareciam tão interessados nas várias metodologias eugénicas americanas que, depois de todas as técnicas devidamente patenteadas, estava ali uma mina de ouro de certeza.
Não foi só a Califórnia que valorizou devidamente este interesse caloroso dos nacional-socialistas. Mostrando a boa-vontade e o interesse dos americanos em melhorar não só o seu país mas também o mundo das raças superiores, a Fundação Rockefeller estudou a fundo vários programas eugénicos alemães, apoiou o seu desenvolvimento, e, sobretudo, assegurou na totalidade o seu financiamento.
Os eruditos americanos ainda andaram ali desenganados por uns anos consideráveis, cheios de orgulho na importância que tinham adquirido junto dos grandes cientistas alemães, tão dedicados à causa eugénica e tão disciplinados na sua experimentação. Não houve conferência das diversas Sociedades Internacionais de Eugenia em que não repetissem que estavam cheios de orgulho. Aliás, deixaram-se andar cheios de orgulho até já ser tarde demais.
Todos aqueles nacional-socialistas alemães que vieram estudar o fenómeno no terreno regressaram à base cheios de grandes ideias. Sem conhecimento do resto da Europa[28], construíram com essas ideias um edifício teórico e bélico cada vez mais grandioso. No epicentro desse edifício, Adolf Hitler deixou de falar aos alemães de paz e prosperidade para falar antes da coragem de renovados sacrifícios, suficientemente grandes para que a raça alemã se tornasse superior a todas as outras. Vamos cerrar fileiras contra todos os que tentarem deter-nos, e dentro de duas ou três gerações o Siegfried seremos todos nós.
Foi este mesmo edifício que levou ao Holocausto.
Francis Galton morreu em 1944, sem poder assistir ao último acto da tragédia terrível criada no século XX pela sobrevivência do mais apto.
Quando foram julgados no Tribunal de Nuremberga, os obreiros da Solução Final garantiram que não tinham feito mais do que implementar os conhecimentos adquiridos na América junto dos maiores peritos da Ciência da Eugenia, que aliás financiaram os estudos dos nacional-socialistas, tanto quanto se percebia a fundo perdido.
Na altura, com a Europa ainda em estado de choque depois de ter visto aqueles filmes insuportáveis sobre o estado em que se descobriram os judeus encarcerados nos campos de extermínio, e com a Guerra ganha depois de, no seu último ano, os americanos se associarem aos Aliados, ninguém quis ouvi-los.
Mas, na realidade, aqueles réus detestáveis estavam positivamente cheios de razão.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
No contexto de uma nova edição, traduzida, revista, e comentada, de todas as obras de Charles Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação. O primeiro livro será exactamente o último, este A ASCENDÊNCIA DO HOMEM, onde Darwin conclui, reúne, e discute todo o seu formidável conhecimento de causa.
Extra-história
A ignorância causada pelo medo das espécies diferentes das outras que,
ouvindo notícias preocupantes,
foram esconder-se nos confins do bosque e nunca mais saíram de lá
HISTÓRIA DOS DOIS ANIMAIS DESCONHECIDOS
Dois animais que andavam há anos escondidos num bosque enorme com medo de uma razia aos animais estranhos de que toda a gente falava foram ao fim da tarde a um bebedouro num lugar onde a vegetação era tão densa que o tornava quase invisível. Ao contrário do que costumava acontecer, no entanto, chegaram ambos exactamente ao mesmo tempo. Ficaram estupefactos a olhar um para o outro, porque nunca tinham visto ninguém assim na variegada fauna do bosque.
“És um animal muito estranho,” disse, por fim, o primeiro. “Vivo há anos aqui escondido, e nunca vi nenhum animal assim. Podes dizer-me quem és?”
“Bem…”, principiou o segundo, com uma olhadela em volta para ter a certeza de que não estava mais ninguém a ouvir. “Eu sou um cão-lobo.”
“Um cão-lobo?”, indagou o primeiro. “Mas eu nunca ouvi falar disso. O que é exactamente um cão-lobo?”
“Então,” esclareceu o segundo, agora já com algum orgulho. “Eu sou um cão-lobo porque a minha mãe era uma cadelinha… muito bonita… que se perdeu neste bosque… onde encontrou o meu pai, que era um lobo… e foi assim que eu nasci. E tu, já agora, que também és muito estranho – que raio de animal é que tu és?”
“Eu? Ah, eu sou apenas um urso-formigueiro.”
“Eh pá, não gozes comigo.”
[1] Pode não parecer, e pode até aparecer à primeira vista como um opúsculo extremamente irritante destinado às donas de casa que tenham como sonho criar e manter a toda a sua volta um lar perfeito para toda a família, mas um livro destes, nesta altura, é na realidade uma autêntica bomba-relógio, pronta a explodir assim que lhe carreguem no botão. E os segredos das formas de chegar ao botão estão cheios de armadilhas. Convém ir avisando. Neste caso concreto, convém mesmo.
[3] Não admira que este Sistema fosse influente. Ainda hoje gostaríamos dele, mesmo com muito ensino de ciência na escola. Os lugares-comuns são sempre reconfortantes, e a ausência do Estado, mesmo que leve rapidamente ao caos total ou ao abandono escolar exponencial, de início é sempre uma ideia excitante. Para o período vitoriano, o conceito de procurar a verdade na Natureza não podia estar mais na ordem do dia.
[4] James também não é um psicólogo e filósofo qualquer. Na realidade, foi o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nas universidades dos Estados Unidos. James foi também um dos principais pensadores do final do século XIX, e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos, enquanto outros o rotularam mesmo como “pai da psicologia americana”.
[5] Charles Lyell é mais um destes personagens enormes do período vitoriano que operaram a grande mudança de paradigma que separa o século XIX do século XX. O seu PRINCIPLES OF GEOLOGY, e todos os debates a que deu azo, contribuíram decisivamente para alterar de vez a História do Tempo, transformando o Dilúvio numa mera cheia do rio Jordão, eliminando de vez o episódio da Arca de Noé com todos os seus animais, e estabelecendo firmemente que o tempo da vida na Terra não era mensurável em termos humanos. A sua teoria do uniformitarianismo, não obstante alguns erros de raciocínio absolutamente notáveis, teve o enorme mérito de tornar o tempo infinito de uma vez por todas.
[6] E se o são todos, escritos, como eram, num tempo em que havia tempo.
[12] Durante este período, era frequente as “mentes brilhantes”, sobretudo se não tivessem preocupações económicas, investirem a sua sabedoria e a sua capacidade de estudo em tantas áreas quantas pudessem. Hoje em dia, uma dispersão por tantas disciplinas tão diferentes como a de Galton seria impossível – e, acima de tudo, extremamente mal vista.
[13] O termo é tirado do grego para “bem-nascido”.
[14] Galton já tinha ficado entusiasmadíssimo com a leitura de A ORIGEM DAS ESPÉCIES. O que o levou a avançar até ao conceito de eugenia, no entanto, foi a leitura de A ASCENDÊNCIA DO HOMEM.
[15] Incluindo dinossauros, montes deles, correctamente entendidos e reconstruídos como tal. E algumas das aves gigantescas das ilhas onde anteriormente não existiam predadores, com uma datação dos seus ossos perfeitamente estabelecida. E tudo isto em estratos de rocha datáveis, também eles de épocas geológicas diferentes.
[16] Sobre os métodos de recolha e isolamento de sémen considerado “superior”, ver a passagem sobre SNIPs em FEAR, WONDER, AND SCIENCE.
[17] Há que ver que, mesmo para entender facilitismos como “a sobrevivência do mais apto”, é preciso saber ler e escrever, capacidade que estava vedada à esmagadora maioria das pessoas. Este “toda a gente” limita-se, portanto, apenas aos tais “bem-nascidos”. É naturalíssimo que entendessem: aquilo queria apenas dizer, agora com aprovação científica, que eles eram o topo natural da pirâmide. De TODAS as pirâmides, vendo bem as coisas.
[18] Para mais informações sobre o programa da Eugenia, as catástrofes que causou no seu tempo, e as formas como tem vindo a ser re-criada no século XXI graças aos bancos de sémen equipados com SNIPs para determinadas características genéticas do embrião, tais como os olhos azuis e o cabelo loiro, ver Gilbert & Pinto-Correia, FEAR, WONDER, AND SCIENCE, 2018.
[19] Ver Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM, 2004, para estudos alargados e bem fundamentados de todo o estrago causado pelas tentativas de implementar programas de esterilização e de encarceramento “em instituições a criar para o efeito.”
[20] Mesma fonte. O conceito de Eugenia acabou por levar ao conceito “científico” dos testes de QI, e a vasta maioria dos testes de QI usados até à II Guerra foram sendo cada vez mais inflexíveis em “provar” que todos os pobres, todos os pretos, e todos os filhos desta gentalha são “débeis mentais.” E, como isto é “hereditário”, não há nada nem ninguém que possa mudar-lhes o destino.
[21] Este “todos”, embora muito usado, é francamente relativo. A Eugenia foi acolhida de braços abertos pelos países do Norte da Europa, onde o povo era quase todo de pele clara, e pelo menos metade das pessoas era loura e de olhos azuis. Nos países do Sul, foi mais um motivo para as classes dominantes, tradicionalmente compostas por pessoas de pele clara casadas entre si, se considerarem no direito de usufruir de ainda mais privilégios, e acharem natural a proibição do voto popular.
[22] “Fundação para o Melhoramento da Raça.” A coisa promete, não é.
[23] “Departamento dos Registos Eugénicos,” que procurava reunir as árvores genealógicas de todos os americanos e detectar se algum deles, alguma vez, teria sido “contaminado” por sangue negro, o que podia levar à perda de alguns benefícios sociais, e sobretudo ditar uma esterilização imediata, para que aquele “vício” tão bem dissimulado não contaminasse mais ninguém.
[24] Estamos a falar de um tempo filosófico já habituado às ideias de Lamarck, e ainda desconhecedor, ou muito desconfiado, das ideias da Darwin. A ideia de que as características dos pais se tornavam hereditárias e eram transmitidas aos filhos (a famosa “teoria de como cresceu o pescoço da girafa”, para simplificar razões) era, portanto, perfeitamente aceitável. E, sobretudo, uma vez mais – no que respeita à inteligência humana, era muitíssimo conveniente.
[25] A este respeito, consultar uma vez mais Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM.
[26] Por “melhor” entenda-se “mais bonito” e mesmo “mais loiro”, e não “mais inteligente”. A tradição estendeu-se também à América Latina, como política preventiva contra a miscigenação. Supostamente, estas famílias, ou estes bebés, receberiam apoios estaduais, ou mesmo federais, para melhor crescerem e se multiplicarem. Não sabemos se os receberam mesmo. Para mais informações, consultar THE HOUR OF EUGENICS, de Nancy Leys Stepan, 1991. Consultar Também Gilbert e Pinto-Correia, 2018.
[27] Esta era a forma mais suave de esterilização. Utilizaram-se obviamente outras técnicas mais brutais, sobretudo em cadastrados, criminosos – e, claro, centenas e centenas daquela porcaria daqueles pretos.
[28] Um exemplo claro deste desrespeito alemão pelos acordos de paz da época, saliente-se que a RAF, a temível frota de aviação de guerra alemã, foi totalmente montada em segredo absoluto, ainda antes do início da Guerra.
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A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique estranhamente culto nesta Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION
No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação
Esta é uma história muito antiga, de traços marcadamente universalistas, onde a narrativa costuma ter mais do que três personagens: primeiro, a deusa, ou rainha, ou fada madrinha, protectoras de um principezinho que vai subir a escada da perfeição até ao cimo, mas não conseguirá fazê-lo sozinho; depois, o primeiro autor que é capaz de inventar estes cenários com escadas de perfeição que é necessário subir até ao cimo para que os nossos antepassados se transformem em nós; e, finalmente, o público culto que lê e debate estes livros, concorda ou não concorda com eles, e se diverte com frequência a resumir as suas ideias em cartoons hilariantes.
Esses mesmos cartoons, no entanto, perdem completamente a graça quando são associados ao livro errado, e assim fazendo nos baralham as pistas. Este é, por excelência, o caso do cartoon em que Darwin é um gorila, que aparece com uma frequência espantosa na capa de variadíssimas edições modernas de A ORIGENS DAS ESPÉCIES, nas mais diversas línguas europeias – quando, se pensarmos nisso durante cinco minutos, aquele desenho nunca faria sentido na capa daquelelivro, masapenas no livro que se lhe segue. Eu própria tenho uma ORIGEM DAS ESPÉCIES francesa dos anos 80, publicada em dois volumes, e a capa do primeiro volume é logo o famoso gorila com cara de Darwin. Como se algum detalhe desta cronologia fizesse sentido.
É indecente insistirem em baralhar os jovens que continuam a querer deixar a sua pequenina marca nas Ciências da Vida desta da maneira.
Embora todos os cartoons onde Darwin (ou alguns dos seus apoiantes) apareçam hoje associados à ORIGEM DAS ESPÉCIES, a verdade é que essa associação nos induz seriamente em erro. É inegável que o livro causou um frisson enorme em toda a Europa e logo a seguir na América. Embora não diga nada a este respeito, foi por várias vezes utilizado como sendo, no humano, a explicação da formação, nascimento, dureza, e sobrevivência das mulheres. Houve missionários, sobretudo em África, que usaram a selecção natural para explicarem que, formando grandes grupos de amigas tal como as hienas formam alcateias com grandes números de fêmeas, as mulheres treinassem secretamente nesses grupos as artes da sobrevivência, da obtenção e da divisão justa de alimentos, da medicina caseira elevada ao seu mais alto nível, bem como da leitura e discussão dos Clássicos[1] e das suas armas[2].
Mas não foi neste livro que Darwin falou da questão de o homem descender do macaco.
No entanto, houve anteriormente “Livros do Macaco” de outros autores antes, que causaram o escândalo que seria de esperar por muito incorretos que ainda estivessem. Também se debateram acaloradamente inúmeras “Teorias do Macaco” enquanto iam saindo várias edições da obra de Darwin. De todos estes, o debate mais notável travou-se entre o melhor anatomista do seu tempo, Richard Owen, e o melhor porta-voz da ciência natural em Inglaterra[3], Thomas Henry Huxley, que veio a abraçar e defender a teoria evolutiva de Darwin com tal fervor que ficou conhecido por Darwin’s Bulldog. O público acompanhou estas trocas de argumentos – bons argumentos, de parte a parte, vindos de homem de ciência segura – com um entusiasmo colectivo que pode ser difícil de entender nos dias de hoje, mas se compreende bem na altura. E se os macacos tivessem fé?
Owen defendia existir uma nítida discrepância entre os componentes cerebrais do macaco e sua distribuição e os do homem, provando que o homem se erguia acima de toda a Criação, sozinho numa classe superior à parte. Huxley defendia que esses componentes estavam presentes em todos os Grandes Primatas, exactamente no lugar onde estavam no homem, e o mesmo acontecia até em macacos menos desenvolvidos. Isto provava que o homem não se distinguia da restante Criação – com todos os problemas éticos, morais, espirituais e intelectuais que o conceito levantava à Europa do seu tempo. Huxley e os seus aliados acabaram por ganhar o debate, mas deixaram o campo de batalha cheio de cadáveres.
Um campo de batalha cheio de cadáveres nunca é bom para o progresso de uma ideia.
Sempre muito timorato, Charles Dickens, o escritor mais amado de todos os ingleses dos seus tempos, fez involuntariamente um grande favor a Darwin quando deitou água na fervura e acalmou os espíritos afirmando que a origem das espécies através da selecção natural era uma daquelas ideias brilhantes, que só os que não temem o trabalho e são audazes são capazes de conjurar, que de tempos a tempos vêm à superfície, norteiam o pensamento dos povos, têm o seu período de lugar ao sol – e depois somem-se no nevoeiro sem deixar vestígios, deixando tudo como era antes.
Observando toda esta agitação, Darwin sabia, sem qualquer dúvida, que escreveria o seu próprio “Livro do Macaco” mais tarde. Mas a ORIGEM DAS ESPÉCIES não é nenhum “Livro do Macaco”.
No entanto, se o autor quisesse poderia facilmente ter sido.
Aquele olhar irresistivelmente assustador de Darwin na caricatura do gorila mostra-o tão poderosamente seguro de si que, se não pagou explicitamente a algum artista menor para associar os seus traços humanos com as características do impressionante Grande Primata que afinal existia mesmo[4], então é, pelo menos, exactamente o que parece[5]. É sem dúvida um olhar de triunfo. Pela primeira vez na sua vida, está a considerar a possibilidade de tomar os comandos do lugar da selecção natural, para fazer tudo andar muitíssimo mais depressa. Darwin começou a refletir devagarinho, quando voltou da viagem do Beagle já tinha a Selecção Natural esboçada na sua cabeça, mas, consciente da violência com que a Inglaterra Vitoriana ia receber todos estes novos desvios à norma, em vez de se precipitar para a publicação dos seus resultados ficou a ver o que é que acontecia aos seus pares que também propunham modelos de Selecção Natural, que novos espécimes eram descobertos nos mundos longínquos[6] e o que que é que os seus descobridores diziam sobre eles, e ainda, pois que isso conta sempre na altura de pedir financiamento às Academias e à aristocracia, o que é a quota-parte de maledicência que vive e respira livremente em cada um de nós ia contanto, com cada vez mais audácia, sobre o dia-a-dia destas infames caças ao dinheiro.
E, seja por caça ao dinheiro seja por assegurar o respeito de suficientes colegas, Darwin não ia entrar a matar e escrever, logo à partida, um livro que diz taxativamente “o homem descende do macaco”. Em 1859, o seu professor mais estimado, Adam Sedgwick, a quem Darwin mandou uma das primeiras edições de A ORIGEM DAS ESPÉCIES com uma dedicatória cheia de estima, escreveu-lhe de volta uma longa carta, onde abundam passagens como esta:
“A coroa de glória da ciência orgânica é conseguir, através da causa final, ligar o material ao moral. Você ignorou esta ligação; e, se percebi bem a sua intenção, fez o melhor que pôde para quebrá-la. Se fosse possível quebrá-la (o que, graças a Deus, não é possível), a humanidade poderia brutalizar-se, e afundar-se num grau de degradação mais baixo do que qualquer um em que já tenha caído desde o início da sua história registada.”
Perante esta e muitas outras reacções chocadas e iradas vindas de homens profundamente respeitados por toda a comunidade científica, depois de ter começado a publicar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, de ter assustado de morte meio mundo de arcebispos e outros fiéis devotos, Darwin absteve-se sempre de estabelecer qualquer parentesco entre o homem e o macaco nas edições sucessivas do seu livro. Por junto, deixou que todas as ondas de choque e de enorme escândalo andassem à solta à solta e ficassem à vontade para irem formando os novos padrões que permitiram o entendimento generalizado de como funciona a selecção natural no processo da formação das novas espécies, e, com ele, a compreensão cada vez melhor da utilidade dos novos caracteres que os seres vivos foram adquirindo – ou perdendo – ao longo do tempo. Mas nunca falou de como nada disto acontecia especificamente no homem. Não o fez nem na famosa 6ª edição, em que deixou todo o seu quadro evolutivo por ordem, e considerou, por fim, a sua obra acabada.
É de calcular que Darwin já tivesse as suas ideias a esse respeito perfeitamente claras. Enquanto cientista, baseando-se no seu próprio raciocínio e na correspondência com dezenas de correspondentes de vários tipos localizados em todas as partes do mundo, estava certamente pronto para falar de como seria a evolução do homem a partir de um certo tipo de antepassado com vários descendentes. Mas era notório que a sociedade vitoriana que o rodeava não estava, de todo, pronta para ouvir dizer que “o homemdescende do macaco”. Observando a tempestade à sua volta desde a primeira hora – desde a publicação de livros muito anteriores ao seu – no que dizia respeito à origem do homem, Darwin limitou-se a dizer que mais tarde, depois de mais estudos, “talvez venha a fazer-se alguma luz sobre o assunto”.
E essa luz data apenas de 1871, quando, passados mais de dez anos de discussões que muitas vezes foram outros colegas que tiveram por ele, Darwin publicou finalmente “A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL”, a que o público laico, científico, e religioso prestou uma atenção muito menos raivosa de um lado e do outro das bancadas, mesmo confrontado com a implicação já muito mais aberta de que o homem era um Primata como outro qualquer, apenas sem cauda e com muito menos pelo, aqui provavelmente também por obra da selecção sexual – do arquétipo primitivo, as fêmeas da nossa espécie terão preferido, sistematicamente, os machos com menos pelo e sem cauda; e fenómenos destes podem acontecer porque “podemos admitir que o gosto é flutuante, mas não é, de todo, arbitrário.”
E aqui sim, a caricatura do gorila passa a fazer sentido.
Por isso, e de uma vez por todas, tirem-na da capa da ORIGEM DAS ESPÉCIES, quando ainda ninguém podia ter feito esta caricatura porque em 1859 ainda ninguém sabia se os gorilas existiam mesmo. Passem-na para a capa da ASCENDÊNCIA DO HOMEM, que é o seu verdadeiro lugar. Há já muito tempo que este equívoco deixou de ter graça.
Ainda por cima, é um desrespeito à sabedoria do autor, que conseguiu aguentar-se calado durante várias décadas, à espera de que os seus conterrâneos e colegas se acalmassem, e que os leitores se habituassem de tal forma à noção de selecção natural que incluir o homem no processo já não torturasse os espíritos. Pelo que lhe dizia respeito, claro que ele já sabia de tudo isto há muito tempo. Digamos que desde a sua juventude distante. Num dos seus cadernos de apontamentos preenchidos febrilmente em Londres logo a seguir à chegada da viagem do Beagle, Darwin quase que grita de alegria ao anotar a descoberta da mudança de paradigma que finalmente dá um sentido realista ao mundo vivo:
“Platão diz no FÉDON que as nossas ideias imaginárias têm origem na preexistência da alma e não provêm da experiência. Ler macacos em vez de preexistência da alma”.
Muito bem visto, Sr. Darwin.
E que sábia estratégia, essa de ficar à espera.
Entretanto Charles Dickens morreu, e nunca chegou e medir a dimensão do seu erro.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Exemplos de títulos ou citações baseados em Darwin
“A ascendência do dinheiro tem sido fundamental para a ascendência do homem”?
É preciso ter lata.
“A força mais poderosa na ascendência do homem é o prazer que lhe dá o seu próprio talento. Gosta de fazer bem aquilo que faz, e, tendo feito uma coisa bem, gosta de fazê-la ainda melhor.”
Imaginem, por exemplo, todas as escolas do País…
Extra-história
A falta de senso causada pela
possibilidade de extinção devido ao aquecimento global e
à caça furtiva para roubar o marfim
HISTÓRIA VERDADEIRA DOS TRÊS ELEFANTES AFRICANOS
Estavam três magníficos machos de elefantes africanos reunidos num bebedouro resguardado pela folhagem, trocando impressões em tom soturno sobre o futuro da sua espécie, que cada vez parecia menos promissor. O mais velho de todos recordava-lhes os tempos de Darwin, e das suas considerações sobre a reprodução dos elefantes registadas em A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL, em que o velhote considerava que a seleção sexual teria que incorporar truques ainda não conhecidos para limitar o número de animais enormes, tais como os rinocerontes e eles próprios, senão ao fim de mais algumas gerações deixariam de caber no seu habitat natural – e demonstrava tudo isto com tabelas cheias de números incompreensíveis e tudo. Agora o belíssimo rinoceronte branco estava reduzido a um macho, o que era o mesmo que dizer que estava extinto, já, que não poderia reproduzir-se antes de ele próprio morrer de velho. Os outros rinocerontes eram considerados espécies protegidas, tal era a loucura da caça furtiva para lhes levar o corno, que mais de metade das pessoas do mundo acreditava ter propriedades afrodisíacas formidáveis. E eles… da morte de Darwin em 1882 a este ano de 2024… onde o geólogo inglês pensara que as suas populações teriam que ser naturalmente limitadas ali estavam eles próprios ameaçados de extinção, incapazes de perceber a parvoíce das pessoas – que, essas sim, eram cada vez mais – com cada vez menos recursos e menos água…
… e estavam nesta tristeza quando apareceu entre eles a Entidade Protectora dos Elefantes.
– Elefantes, elefantes! – disse a Entidade – Não deixem que a tristeza destrua a vossa longevidade! Estou aqui para dar a cada um de vocês aquilo que mais quiser. Tu, elefante mais velho, o que é que mais queres?
– Ah! – disse o elefante – Quero uma tromba muito grande, muito grande, muito grande, que possa atravessar toda a África Subsaariana.
– Que bonito – respondeu a Entidade – Mas queres essa tromba para quê?
– Ah! – disse o elefante – Eu quero essa tromba para ir buscar água onde houver água, e aspergir com água todas as partes de África onde falta água, e assim tentar recomeçar a estabelecer o equilíbrio em que vivíamos dantes.
A Entidade, comovida, deu-lhe um pequeno toque na tromba, que imediatamente ficou enorme, larguíssima, capaz de regar todas as secas africanas. Depois virou-se para o segundo elefante e perguntou-lhe, da mesma forma, o que é que ele mais queria.
– Ah! – disse o segundo elefante, sem a mínima hesitação – Eu quero umas orelhas tão grandes, tão grandes, tão grandes, que possam fazer sombra sobre savanas inteiras e ponham os ventos a correr sobre o equador por forma a moverem as nuvens e provocarem as chuvas na altura certa.
E a Entidade, sempre muito comovida, tocou-lhe nas orelhas, que ficaram logo de tal forma enormes que quase permitiam ao animal levantar voo com elas. Finalmente, chegou a altura de perguntar ao terceiro elefante o que é que ele mais queria.
Ah! – respondeu logo o terceiro elefante, também ele sem a mínima hesitação – Eu quero umas pestanas tão compridas, tão escuras, tão enroladinhas, tão bonitas, que todos os outros animais parem só para me verem passar.
– Mas… – perguntou a Entidade depois de uns segundos de surpresa, enquanto os primeiros elefantes escutavam com toda a atenção – Tu queres essas pestanas para quê, terceiro elefante?
Ah! – respondeu o terceiro elefante, fechando os olhos num sorriso apetitoso ao mesmo tempo que cruzava as patas da frente – Mariquices.
[1] No caso de grupos de mulheres brancas, onde pelo menos uma ou duas fossem capazes de ler para as outras – e as outras fossem capazes de entender o enredo daquelas estranhas histórias. Os outros Grupos de Mulheres serviam para quaisquer selvagens, e eram uma boa demonstração da tendência universal das Mulheres para o secretismo.
[2] Se estão interessadas em armas, é porque não estão interessadas em nada de bom. É evidente que estão cercadas por animais ferozes, mas nunca é essa a primeira ideia que ocorre aos missionários.
[3] E também o homem que cunhou a palavra AGNOSTICISMO – o não é propriamente uma brincadeira de crianças para o período em causa.
[4] A existência do gorila foi discutida até muito tarde. Embora o animal figurasse em muitas lendas, só mesmo a partir de 1864, quando o missionário americano Thomas Savage trouxe alguns crânios do Gabão, é que os cientistas obtiveram provas materiais da sua existência. Um dos primeiros grandes anatomistas a conseguir reconstituir um gorila por inteiro a partir de material recebido pelo Museu Britânico em 1861 foi exactamente o anatomista Richard Owen, que publicou a sua monografia sobre o gorila em 1865. As descrições da famosa postura bípede do macho maior, quando enche o peito de ar e lhe bate com os punhos produzindo um som semelhante ao se um tambor, ao mesmo tempo que solta um urro possante destinado a afastar os intrusos, demoraram o seu tempo a ser levadas a sério, e impressionaram profundamente todos os leitores.
[5] Toda esta passagem é pura especulação, mas não deixa por isso de ser provável.
[6] Darwin fez a viagem enorme do Beagle através do mundo; depois disso, no entanto, nunca mais fez uma única viagem.
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O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.
Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].
A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.
Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…
É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.
Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.
Talvez pudéssemos ficar por aqui.
Mas há mais.
E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.
A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…
“…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]”
Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.
Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.
Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.
Senão, vejamos.
Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.
Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.
Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.
Ah-ah.
Apanhei-vos.
Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.
Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.
Nem quero que ninguém me entenda.
E que diremos nós a Sua Majestade?
O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.
Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.
Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.
Anatinus vem do latim para Patos.
Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.
Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.
O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.
É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?
“POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]”
Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.
O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.
Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.
“COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]”
Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.
Toda a gente sabe como é que esta história começa.
Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.
Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.
Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.
A viagem de regresso tinha começado.
Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.
A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.
Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].
Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?
Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?
É muito fácil, então.
Uma fo-foca é
um mamífero ma-marinho.
Adoro meninos.
Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?
Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].
O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.
O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.
A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta, muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.
Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?
Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].
E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.
Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:
É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.
Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.
Chama-se a isto uma extinção silenciosa.
E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.
E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.
A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.
A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. DeosSive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.
*A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.
[2]Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.
[3]E, com estas congeminações de grande importância intelectual, vamos hoje, por fim, encerrar a complexa charada relativa ao grande traço de união entre o Urso Polar e o Ornitorrinco. E sim. Conforme prometido pelo título, é banal.
[4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.
[5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.
[6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?
[7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”
[12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.
Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.
Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.
[13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal como a conhecemos agora.
[14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.
[15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.
[17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.
PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!”
[18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.
[19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA
[20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.
[21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?
[22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.
[23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.
[24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.
[25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.
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Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.
Bon Marley
Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.
O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.
Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.
Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.
Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.
“Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.”
Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]”
É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.
Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.
Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.
Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.
Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.
Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.
Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”
“Então e já decidiram em quem vão votar?”
Olharam para mim como se eu fosse de Marte.
“Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”
“Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”
Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.
“Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”
Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,
“Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”
Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.
[2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.
[3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.
[4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.
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Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.
V.S. Naipaul
THE MYSTERY OF ARRIVAL
O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain
“a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,”
porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.
Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.
Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,
“Acredito porque é impossível.”
Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.
Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.
E caiu-me a alma aos pés.
Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.
“A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”
E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.
“Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”
Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…
… e eu nem queria acreditar.
O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia
“oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”
A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:
“A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”
Lembrei-me das horas perdidas a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.
O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.
O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.
Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.
E continua.
Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.
Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.
Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.
Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.
“Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”
Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.
“Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”
Desliguei logo.
O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.
Pânico.
“Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”
O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.
Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.
Não tem que ser credível.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!
[2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.
[3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.
[4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.
[5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.
[6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.
[7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.
[8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?
[9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.
[10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.
[11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.
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Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?
Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.
Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante doze horas?
A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].
Pois, morcegos.
Nada a ver.
Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.
No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”
Os animais não costumam ter sextos sentidos.
Será porventura que os Ursos Polares…?
Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.
Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.
Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].
Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.
Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].
Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.
Meninos, para que é que isto serve?
Ah, isto é incrível.
E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.
Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.
Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.
Retomando a seriedade que a charada merece.
É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?
O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?
Não é bem.
Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.
Há um padrão.
O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.
Quanto ao Urso Polar…
O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.
As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.
São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.
E esta foi a nossa grande lição de modéstia.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.
[2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.
[3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.
[4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.
[5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.
[6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.
[7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.
[8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.
[9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.
[10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.
[11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.
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