Autor: Clara Pinto Correia

  • História de mais uma ideia de Darwin que não é de Darwin

    História de mais uma ideia de Darwin que não é de Darwin


    A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
    que até parece agir de maneira caprichosa.

    Charles Darwin


    Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. É verdade que o dito epíteto foi cuspido a título insultuoso por parte dos leitores irados que não podiam discordar mais do seu conteúdo. Também é verdade que em certas passagens esta obra científica quase parecia uma obra de ficção científica, tais eram os seus erros biológicos e técnicos. Mas teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi este “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda refém do texto literal da Bíblia enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para a alternativa de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands[2], onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[3].


    Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[4], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes, como o Dilúvio de Noé, para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por várias vezes, de criar todas as espécies uma por uma[5]. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acesso a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”

    Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas com alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[6].

    grey and black barn owl near glass window during daytime

    Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?

    Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:

    O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.

    Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.

    Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas, como escreveu a um amigo ainda a bordo do BEAGLE, “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser grandes apoiantes, da selecção natural, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.

    O que não quer dizer que o VESTIGES não fosse conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[7] e o próprio Príncipe Alberto.

    O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?

    Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.

    É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”

    Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:

    Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.

    É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que

    o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.

    A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque

    a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[8]

    Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram mesmo pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo. Há que ver que estes são os dias em que Júlio Verne encheu a Europa de livros espantosos de ciência inventada que ainda hoje nos fazem sonhar[9]. Mas as invenções de Chambers não faziam sonhar ninguém, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento.[10] A verdade, no entanto, é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.

    O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.

    Irão então existir, quando as condições evoluírem,

    espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”

    Muito provavelmente, embora seja inegável que

    a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[11]

    Finalmente[12], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.

    white barn owl

    Esta regularidade estatística nos assuntos morais[13] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”

    Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores vitorianos tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[14]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.

    Pouco depois, Darwin parou de esperar e publicou mesmo a ORIGEM, já pronta há bastante tempo, mas à espera que a tempestade de Chambers passasse. Os mais ardentes materialistas do século XIX, Marx e Engels, reconheceram logo o que Darwin tinha conseguido, e exploraram de imediato o seu conteúdo radical.  Marx chegou a oferecer-se para dedicar a Darwin o Segundo Volume do DAS KAPITAL, mas Darwin declinou gentilmente, declarando não querer sugerir que dava a sua aprovação a uma obra que não lera. Pelo contrário, e exactamente para evitar passagens que, como a de Chambers, fossem consideradas implicações filosóficas a favor do materialismo[15], preferiu escrever a Karl Marx, em 1880:

    Parece-me que a liberdade de pensamento será mais bem promovida pelo gradual esclarecimento do entendimento humano, que acompanha o progresso da ciência. Por isso tenho sempre evitado escrever sobre religião, e tenho-me confinado à ciência.

    Este era o mesmo Darwin que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo numa pequena cidade de província – o seu sonho desde o final da infância. No entanto, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam mas representam a verdade à luz da ciência e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:

    Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dos seres orgânicos, e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”

    Snowy Owl

    Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:

    “Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”

    Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.

    ­­_____________________

    HISTÓRIA VERDADEIRA

    O espírito experimental do senhor que acreditava na capacidade de aprendizagem dos diferentes animais

    Na esquina de um tranquilo bairro lisboeta, o proprietário de uma pequena loja de animais está a dar pedacinhos  mínimos de ração aos seus três coelhos anões[16]. Nisto, entra um senhor que quer comprar um papagaio, para poder ensiná-lo a falar.

    Está com azar, ó amigo,” diz o proprietário. “Vendi ontem o meu último papagaio. Agora só devo receber mais para o ano.”

    Então não tem aí nenhum pássaro bonito que eu possa levar?”, pergunta o senhor.

    Por acaso tenho. E olhe que elas nem são nada fáceis de encontrar nestas lojas. Tenho ali aquela coruja linda, toda branca, está a ver?

    A coruja em questão é uma Tyto alba, a chamada coruja-das-torres porque se diz que entra pelas frestas das torres das igrejas para ir beber o azeite às sacristias. É grande, majestática, com o corpo branco e manchas acastanhadas nas asas, os olhos enormes, redondos, dourados, já fixos nos dois homens que falam sobre ela.

    Ah, sim!”, diz o senhor. “É linda. Vou já levá-la, antes que venha outro cliente.”

    Ó amigo, mas olhe lá, ela bonita é, isso sem dúvida, e ainda por cima é muito raro alguém ter alguma em casa. Além disso, come-lhe os ratos todos que lá tiver. Não há melhor pesticida que uma boa coruja. Mas não tem nada a ver com o papagaio que o amigo queria. A minha ética profissional obriga-me a avisá-lo que as corujas não falam.”

    Ah!” responde logo o senhor. “Vai ver. Sou um homem muito paciente. Eu seja cão se não ensino esta coruja a falar.”

    Três semanas mais tarde, o senhor volta à lojinha da esquina para comprar comida para a coruja. Parece muito feliz. O proprietário fica a estoirar de curiosidade.

    Estão diga lá, ó amigo. A sua coruja já fala?”

    Bem… Ela falar ainda não fala… Mas já ouve tudo com muita atenção!”

    ­

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Também enquanto autodidacta, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.

    [2] As montanhas mais altas e menos acessíveis da Escócia.

    [3] VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.

    [4] Questão a desenvolver mais tarde.

    [5] Isto explicaria os fósseis de dinossauros, e de vários outros animais claramente antecedentes ao homem, tanto marinhos como terrestres. Alguns naturalistas consideravam toda esta fauna pré-humana ensaios que Deus andara a fazer até chegar até ao ecossistema perfeito do Jardim do Paraíso, pronto para oferecer ao Homem. O termo “ecossistema” é usado aqui de forma anacrónica, evidentemente.

    [6] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.

    [7] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.

    [8] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.

    [9] Entre a produção copiosa do escritor francês que ofereceu ao século XIX um estilo absolutamente novo, recorde-se CINCO SEMANAS DE BALÃO em 1863, VIAGEM AO CENTRO DA TERRA em 1864, VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS em 1870, A VOLTA A AUNDO EM OITENTA DIAS em 1872, e assim por diante. O homem tinha uma imaginação absolutamente brilhante.

    [10] Evidentemente, Chambers não era nenhum Júlio Verne.

    [11] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.

    [12] Como se tudo o resto não bastasse!

    [13] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.

    [14] Em 1869, Marx escreveu a Engels, acerca deA ORIGEM DAS ESPÉCIES: “Embora desenvolvido no rude estilo inglês, este é o livro que contém a base de História Natural para o nosso ponto de vista.”.

    [15] Embora a viagem do BEAGLE tenha tornado Darwin um homem profundamente materialista.

    [16] Como se depreende dos “pedacinhos mínimos”, os coelhos anões são uma treta. Não existem. Mantêm-se anões fazendo-os passar fome. Sobretudo, nunca os empanturrem com couves e cenouras. Vão ver como num mês eles rebentam com a gaiola. Based on a true story.


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  • O equívoco minimal-repetitivo da citação sistematicamente atribuída a Darwin e que não é de Darwin

    O equívoco minimal-repetitivo da citação sistematicamente atribuída a Darwin e que não é de Darwin

    …E QUE, AINDA POR CIMA, IRRITOU PROFUNDAMENTE TODOS OS QUE VIRIAM A SER OS GRANDES APOIANTES DE DARWIN


    A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
    que até parece agir de maneira caprichosa.

    Charles Darwin


    Fique culto neste Verão

    ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO

    Foi um grande argumento contra a mutação das espécies, que li com medo e a tremer

    Charles Darwin

    a propósito do ataque do seu antigo mestre ao livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO


    Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. Mesmo que o dito epíteto tenha vindo a título insultuoso por parte dos leitores irados que na esmagadora maioria não podiam discordar mais do seu conteúdo, e apesar de todos os erros científicos e técnicos que pudesse conter, teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi esta quase-ficção científica do “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda semi-refém do texto literal da Bíblia entendido enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para considerar alternativamente o conceito de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands, onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[2].


    Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[3], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes como o Dilúvio de Noé para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por duas vezes, de criar todas as espécies uma por uma. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acedido a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”

    Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[4].

    Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?

    Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:

    O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.

    Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.

    Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser seus grandes apoiantes, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.

    O que não quer dizer que não fossem conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[5] e o próprio Príncipe Alberto.

    O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?

    Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.

    É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”

    Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:

    Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.

    É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que

    o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.

    A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque

    a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[6]

    brown rocky mountain beside blue sea under white sky during daytime

    Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram quase pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento, a verdade é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.

    O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.

    Irão então existir, quando as condições evoluírem,

    espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”

    Muito provavelmente, embora seja inegável que

    a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[7]

    Finalmente[8], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.

    Esta regularidade estatística nos assuntos morais[9] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”

    white metal fence near body of water under blue sky and white clouds during daytime

    Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[10]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.

    O próprio Darwin, que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam, mas representam a verdade e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:

    Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dos, seres orgânicos e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”

    sun reflection on calm water near green mountains

    Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:

    “Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. – Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, que a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”

    Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Também enquanto autodidata, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.

    [2] VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.

    [3] Questão a desenvolver mais tarde.

    [4] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.

    [5] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.

    [6] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.

    [7] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.

    [8] Como se tudo o resto não bastasse!

    [9] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.

    [10]Este é o nosso homem,” escreveria mais tarde Marx a Engels quando saiu a primeira edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES.


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  • O equívoco minimal-repetitivo da citação sistematicamente atribuída a Darwin e que não é de Darwin

    O equívoco minimal-repetitivo da citação sistematicamente atribuída a Darwin e que não é de Darwin

    …E QUE, AINDA POR CIMA, ACABOU POR TER RESULTADOS DESASTROSOS


    A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
    que até parece agir de maneira caprichosa.

    Charles Darwin


    Fique culto neste Verão

    ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO

    A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION

    No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação


    “Uma Casa de Gosto é uma casa de bom gosto, onde todas as coisas são um reflexo de pensamentos refinados e desejos castos. Num tal lar, a Beleza preside à educação dos sentimentos, o intelecto é aperfeiçoado, e a natureza moral é depurada através dos apelos silenciosos da Natureza e da Arte, que são os alicerces do Gosto.[1]

    James Shirley[2] Hibberd, em RUSTIC ADORNMENTS FOR HOMES OF TASTE: CONTAINS SUGGESTIONS FOR THE FLORAL EMBELLISHMENT OF THE HOME, THE GARDEN, BALCONY, WINDOW, GREENHOUSE AND CONSERVATORY: WITH HINTS ON THE FORMATION AND MANAGEMENT OF FRESH-WATER AND MARINE AQUARIUMS, VIVARIUMS, ETC. Desde cerca de 1855 até à publicação em Oxford de todos os fascículos num único opúsculo de capa dura, em 1895.


    Antes de mais nada, há um herói da cultura e das belas causas que pode ser uma criatura algo irritante, mas para todos os efeitos é a grande estrela desconhecida desta história. O britânico Herbert Spencer, um dos grandes representantes do liberalismo clássico do seu tempo, nasceu em 1820 e morreu em 1903. Destacou-se a vida inteira enquanto notável opositor dos governos militares e autoritários, do colonialismo, do imperialismo, e de qualquer forma de guerra. Além disso, aplicou à sociologia ideias que eram próprias das ciências naturais, por forma a criar um sistema de pensamento que foi muito influente na sua época. As conclusões dos seus estudos levaram-no a defender a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a Natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez uma verdadeira campanha pelo ensino escolar da ciência, combateu a interferência do Estado na educação, e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter[3].

    As suas cruzadas filosóficas foram sempre extremamente populares, e os números resultantes falam por si. Enquanto a maioria dos filósofos não consegue atingir muitos seguidores fora do grupo de colegas de profissão, entre 1870 e 1880 Spencer tinha alcançado uma popularidade sem precedentes. Foi provavelmente a primeira, e talvez a única vez na história, que um filósofo vendeu mais de um milhão de cópias de seus trabalhos durante a sua vida.


    Não se trata aqui de um mero fenómeno de vendas, mas, muito provavelmente, de um verdadeiro benefício para a humanidade. Nos Estados Unidos, onde as edições piratas ainda eram comuns, a sua editora autorizada, a Appleton, vendeu 368.755 cópias entre 1860 e 1903. Este valor não difere muito das vendas na sua Inglaterra natal, e, quando adicionamos as edições do resto do mundo e o das edições pirata, o valor de um milhão de cópias parece ser uma estimativa conservadora. Como observou o filósofo e psicólogo americano William James,[4] Spencer “ampliou a imaginação, e libertou a mente especulativa de inúmeros médicos, engenheiros, advogados, físicos, químicos, e dos leigos em geral“. A parte do seu sistema de pensamento que enfatizava o autoaperfeiçoamento do indivíduo encontrou um público imediatamente interessado na classe trabalhadora qualificada.

    Vale a pena notar, aliás, que o endeusamento da Natureza, que poderia ter sido escandaloso em tempos anteriores, e pode parecer-nos legitimamente ridículo hoje, é uma das posturas mais características dos intelectuais da segunda metade do século XIX, sobretudo nos Estados Unidos. Veja-se, por exemplo, toda a comunidade de pobres voluntários que escolheu viver em contacto estreito com a Natureza em torno do Lago Concord, no Massachusetts. Foi nesta comunidade que Louisa May Alcott escreveu, entre muitos outros, o seu quase autobiográfico MULHERZINHAS. Foi também aqui que o respeitadíssimo Ralph Waldo Emerson, considerado o grande expoente do Transcendentalismo, escreveu o livro A NATUREZA, que viria a ter uma influência impressionante sobre os jovens do seu tempo. Considerando a Natureza a fonte da verdade Herbert Spencer está, portanto, a reproduzir em Inglaterra muito do que foi escrito nos ensaios e poemas americanos, surtindo desde logo o mesmo impacto sobre o público, sobretudo o público mais jovem.

    Como era próprio da época, Spencer teve várias especializações: foi antropólogo, filósofo e biólogo. Nesta última condição, tornou-se um profundo admirador da obra de Charles Darwin. Depois de ler A ORIGEM DAS ESPÉCIES, decidiu escrever um livro em que estabeleceria diversos paralelismos entre teorias económicas e teorias biológicas.

    Para isso, evidentemente, era preciso que todos os leitores conseguissem compreender sem esforço as teorias biológicas – uma vez que as económicas, essas, para o efeito a que se destinavam, não levantavam qualquer problema.

    Spencer não demorou muito tempo a reparar que é extremamente difícil explicar aos leigos que, tal como Darwin parecia postulá-la, a seleção natural funciona, ao que parece, e se não é bem assim é qualquer coisa deste género,

    pela sobrevivência do conjunto de mutações que, completamente por acaso, estão melhor adaptadas à transformação ambiental seguinte, sendo que ninguém pode prever que transformação vai ser essa, pelo que nunca é possível prever que mutações é que vão ser favoráveis para cada espécie; e uma espécie beneficiada num determinado contexto pode ser prejudicada logo a seguir por mudanças de contexto que também não podemos anticipar

    Portanto, temos aqui um grande problema. É importante que as pessoas percebam como é que funciona a evolução; mas, se vamos tentar explicá-la através da selecção natural, vamos mantê-las permanentemente confusas.

    Com todo o seu treino de Filosofia, Psicologia, e Comunicação acessível até aos menos dotados, Spencer refletiu muito sobre este dilema, à procura de uma fórmula simples, de preferência uma única frase de uma única oração, que permitisse a toda a gente entender imediatamente como funciona a selecção natural, sem necessidade de mais explicações.

    Não sabemos durante quanto tempo andou às voltas com o problema da simples frase.

    Mas sabemos que conseguiu arranjá-la.

    Querem saber como é que a evolução funciona, é?

    Pois bem, é muito simples: a evolução funciona pela sobrevivência do mais apto.

    a white butterfly sitting on top of a green plant

    Foi assim que a selecção natural apareceu descrita em 1864 no livro de Spencer PRINCIPLES OF BIOLOGY, que o autor se apressou a autografar e enviar ao seu Grande Herói Intelectual Charles Darwin.

    Darwin, no entanto, achava a Biologia de Spencer “pouco útil”, e comentou uma vez, sigilosamente, ao seu grande amigo e colega de Geologia Sir Charles Lyell[5], que tinha uma certa dificuldade em ler todos aqueles best-sellers por causa do seu “estilo detestável”.

    Consequentemente, tudo isto poderia ter-se ficado pelas páginas de um autor vitoriano de best-sellers científicos que agora ninguém recorda (os tais momentos de lugar ao sol que depois se somem no nevoeiro de que falava Charles Dickens exactamente nessa altura), se não fosse Alfred Russell Wallace. Este homem, que não conhecia Darwin de lado nenhum e chegou à teoria da origem das espécies precisamente ao mesmo tempo do que ele, publicou o seu trabalho separadamente e nunca mais deixou de trocar correspondência com o colega miraculoso. Cada um deles usava terminologia diferente, e Wallace já protestara várias vezes antes contra o termo darwiniano “selecção natural” porque, na sua opinião, era uma escolha de palavras que implicava que a existência de um “selecionador inteligente” com “pensamento e direcção” era fundamental no processo, quando na realidade o processo era totalmente aleatório, como ambos sabiam – mas os leitores com menos formação ficavam frequentemente confusos. Numa longa carta datada de 1866, Wallace pede então repetidamente a Darwin que experimente minimizar essa confusão utilizando antes “o termo de Spencer” – a saber, “a sobrevivência do mais apto”.

    Mesmo sem gostar nem do termo nem da prosa de Spencer, Darwin não se furtou à experiência. Um pouco às apalpadelas, introduziu “o termo de Spencer” no seu VARIATIONS OF ANIMALS AND PLANTS UNDER DOMESTICATION de 1868, o seu livro mais volumoso de sempre[6]. Por fim, em 1869, chegou mesmo ao ponto de polvilhar com alguns “a sobrevivência” do mais apto” a sua quinta edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES, mas sempre, e fundamentalmente, enquanto auxiliar e explicação de “seleção natural”, um termo bastante mais complexo mas inescapavelmente necessário, uma vez que, tal como o autor nunca se cansou de insistir,  a evolução é um processo sem vitórias: os vencedores da  “luta pela existência[7]” (um termo que Darwin foi buscar ao economista e demógrafo inglês Thomas Malthus) podem tornar-se os vencidos se as circunstâncias mudarem. Por exemplo, a evidência fóssil indica que o Mamute Peludo estava perfeitamente adaptado durante a última Idade do Gelo, que acabou há cerca de 11.700 anos – mas tornou-se cada vez menos adaptado à medida que o clima foi aquecendo e os humanos aprenderam a caçá-lo cada vez melhor. Finalmente, a mesma evidência fóssil indica que este colosso terá sido dado por extinto alguns milhares de anos mais tarde.

    Por esta altura, a introdução na linguagem científica da “frase de Spencer” já não causava estranheza a ninguém, gostasse-se dela ou não: toda a gente admitia que, mesmo que pudesse dar uma imagem um tanto ou quanto desfocada da selecção natural darwiniana, tinha o seu lugar justificado na literatura como forma de simplificar o entendimento do público mais generalista. E, naquela época, naquele meio, educar cientificamente o público laico era mais do que um dever: era uma missão quase sagrada a que ninguém que soubesse do seu ofício quereria furtar-se.

    E foi assim, com a circulação incessante de obras e palestras destinadas à educação do público, que o chamado “darwinismo social” pôs a cabeça de fora.

    brown and black iguana on gray rock

    Aplicado exclusivamente ao ser humano, e baseado sem mais complicações na “frase de Spencer”, o “darwinismo social[8]” defendia o que já se consegue imaginar daqui: que há pessoas melhores e pessoas piores, e é apenas justo, porque apenas normal e cientificamente justificado, que as piores morram e as melhores triunfem.

    Regressemos, por exemplo, ao louvor que Shirley Hibberd fez em fascículos durante a segunda metade do século XIX, com um sucesso tão grande que foi a própria Universidade de Oxford a tomar a iniciativa de juntá-los a todos num único livro de capa dura. Tal como os fascículos que o antecederam, o livro está cheio de desenhos demonstrativos dos vários conceitos que o autor vai desenvolvendo, todos eles indiscutivelmente belos e apelativos. Todos esses desenhos foram feitos pelo próprio Shirley, na sua campanha de demonstração de como a Beleza exterior do jardim condicionaria a Beleza interior da casa – e, com ela, a Beleza e a Felicidade das famílias aí residentes.

    Note-se que Shirley foi o grande e reconhecido pioneiro da jardinagem ao ar livre em grande escala, e com grande beleza, requerendo para o efeito um enorme esforço de manutenção – e tudo isto pelas suas próprias mãos. Toda a gente admirou não só o desenho dos seus jardins mas também a sua energia, aparentemente inesgotável. Mas nem toda a gente tinha qualquer espécie de interesse em ir lá para fora expor-se aos elementos (passando-se esta história em Inglaterra, deduz-se que estaria a chover quase todos os dias…) por causa de um jardim, cujo desenho, plantação, e abertura de estradas planas, de areia lisa, onde pudesse passar um automóvel, bem como pequenos caminhos de grandes pedras que pareciam ter-se encostado assim umas às outras completamente por acaso, para não falar do grande lago plácido com mesas de chá e de cartas, toldos, e encantadoras aves exóticas, poderia encomendar a Shirley – e depois pagar mal a uma série de empregados, oferecendo-lhes péssimas condições de trabalho, para manterem o seu Louvor à Beleza a funcionar de noite e de dia, melhor ainda do que VERSAILLES, para não dizer nada daquele famoso JARDIN LES DÉLICES, da famosa grande musa e mecenas Madame de Chatelêt, onde indivíduos como Voltaire e Rousseau se abrigavam para recuperarem as forças entre duas grandes batalhas da razão contra a reacção bruta, e depois se reuniam para jantar com vários outros pares interessantes que ali acorriam a convite da anfitriã, debatendo os grandes temas do momento com a mais requintada ironia e deliciosas exposições ao ridículo dos seus adversários. Entretanto, como num milagre, dezenas de tochas balsâmicas iluminavam a noite, seguradas tranquilamente, mas com grande dignidade, por jovens “de pele e feições vagamente africanas, e com enormes olhos claros, rasgados, mesmo no sorriso semelhantes aos olhos da serpente, e mais hipnóticos ainda do que os do animal. Submeti-me por mais do que uma vez à experiência quando estava pronto para ir dormir, e não posso dizer que conheça outra minimamente mais agradável.[9]” A avaliar pelas amostras de correspondência recolhidas entre vários dos membros destes jantares, parece que os comensais também eram frequentemente maravilhados por rapazes bonitos, musculosos, cuidadosamente selecionados pela sua pele morena e estatura elevada, que dançavam para eles “terríveis danças de guerra, provavelmente comparáveis às dos machos que se exibem para conquistar uma fêmea.[10]

    É assim que o darwinismo social separa as águas: quem tem meios para manter sempre a funcionar o seu jardim magnífico está no topo da pirâmide evolutiva  e deve considerar-se mais apto com toda a justiça; enquanto que quem não tem meios para assegurar a presença, em torno de sua casa, de um jardim digno desse nome, está algures mais abaixo na pirâmide, vê-se obrigado a trabalhar sem descanso no jardim dos outros para conseguir sustentar a família, que já agora tende a ser cada vez mais, à medida que a escala da pobreza desce pelo interior da pirâmide, uma família em que a mulher fica envelhecida e encovada muito depressa, e muitos filhos morrem ao longo do percurso, por simples falta de acesso aos mais elementares de todos os cuidados médicos. É evidente que estão pouco aptos, e a sua sobrevivência é extremamente discutível.

    green trees and plants

    Isto seria, digamos, a história de como um partido de extrema-direita da época defenderia o seu direito à existência pela lógica da razão pura.

    Infelizmente, a história foi ainda pior.

    O desastre consumou-se através de um meio-primo mais novo de Darwin, de seu nome Francis Galton, que se instalou cedo e confortavelmente na poltrona do darwinismo social, com tanto trabalho desenvolvido no estudo da inteligência humana e da sua transmissão que, em 1909, depois de 340 publicações, foi armado cavaleiro pelas suas contribuições para a ciência. E estas abundavam, porque o indivíduo era, no mínimo, e isto temos que conceder-lhe – era extremamente curioso. Galton foi o criador da expressão “nature versus nurture[11]”. Também foi o introdutor do uso das impressões digitais na ciência forênsica. Além disso foi antropólogo, matemático, estatístico, e especialista de metereologia, disciplina onde criou os primeiros mapas do clima e propôs a teoria dos anticiclones[12]. Ou seja, era considerado e respeitado enquanto cientista, pelo que arcava com a responsabilidade social de todos os seus pares. Portanto, quando publicou em 1883 o seu INQUIRIES INTO HUMAN FACULTY AND ITS DEVELOPMENT, apresentando pela primeira vez ao mundo culto do seu tempo o conceito de eugenia[13], legitimado cientificamente pela sobrevivência do mais apto, se fez asneira em grande estilo só fez porque quis. Era impossível que um cientista da craveira de Francis Galton, escrevendo em fins do século XIX, inspirado pelas publicações do seu primo[14], depois da redescoberta das obras de Mendel, e de tudo o que o registo fóssil já tinha revelado[15], não conseguisse entender que não pode existir nenhum fenómeno natural passível de ter como base um modelo tão simplista como a sobrevivência do mais apto.

    O modelo foi-lhe muito conveniente, o que é outra coisa.

    Em última análise, foi conveniente para todos os habitantes do Ocidente de pele clara, preferencialmente os de olhos azuis e cabelo louro: a sobrevivência do mais apto foi a primeira grande demonstração científica da supremacia branca, com todos os estragos que fez logo na altura e com os que ainda virá a fazer no futuro.

    Extra-texto I

    Pensem em todos os métodos que, hoje em dia, os bancos de sémen têm vindo a financiar para conseguirem vender produtos superiores. Por superior entende-se, sempre, “tipo escandinavo”, além de estudantes com notas mais altas e mesmo Prémios Nobel. A gente detesta engolir a parte em que a Eugenia, em vez de morrer para todo o sempre, agora voltou a acordar para nos angustiar de novo[16]. Mas a Eugenia é como a hidra. Já os gregos se temiam destas coisas. Cortem-lhe uma cabeça, cortem. Nascem-lhe logo outras duas. Não temos qualquer balística que combata este mito. Resta-nos o mais importante de tudo, que é a informação.

    Por todas estas razões pouco bonitas, nesse fim de século ainda meio mundo discutia Darwin, mas já toda a gente entendia Galton[17] e respeitava sem margem para dúvidas a sua enorme respeitabilidade científica. E foi então que o futuro cavaleiro propôs que, segundo o conceito da eugenia, só deviam poder reproduzir-se os exemplares superiores da raça humana para que a população melhorasse como um todo[18]. Nesse sentido, a função reprodutiva, aquela que, de todas as que há no mundo, carrega consigo a maior das responsabilidades, passaria a ficar automaticamente vedada, fosse por esterilização ou fosse por prisão em instituições a criar para o efeito[19], aos deficientes, aos loucos, aos presos, aos criminosos, aos “débeis mentais[20]”, às prostitutas… e aos pobres.

    A ideia básica deste plano era acelerar a lentidão infinda do Tempo Geológigo para a Rapidez Humana de duas ou três gerações, despachando com grande rapidez o que a selecção natural faria de forma extremamente lenta: introduzir, através de boas políticas medico-sociais, os protocolos necessários para melhorar rapidamente a espécie humana. Que é que tem? Há séculos que veterinários e agricultores vinham fazendo isso mesmo com crescente sucesso, e não menos aplauso público. Agora, meus senhores, a ciência permite finalmente esta intrépida mudança de paradigma, que leva ao mesmo melhoramento, finalmente possível no humano.

    Se nos parecer estranho agora que nenhum dos visados enquanto “exemplares deletérios” da raça humana tenha armado qualquer espécie de tentativa de revolução, é apenas porque, nos mais inconscientes de todos os nossos níveis emocionais, todos somos profundamente moldados pela ideia que os outros têm de nós – e, se aqueles que nos desprezam o disserem em voz alta, se usarem até um megafone, acabamos por não conseguir sentir por quem somos mais do que um profundo desprezo. Durante as campanhas da Eugenia, houve milhões de pessoas, em todo o Ocidente, que foram seriamente pressionadas no sentido de se considerarem uma acabada porcaria, um erro crasso da natureza, até, que mais valia castrar para não contaminar a espécie no futuro. E, impotentes, baixaram a cabeça.

    blue starry night

    Os cientistas americanos que visitaram a Inglaterra durante a Idade de Ouro de Francis Galton ficaram tão seduzidos com este conceito de supremacia branca, comprovada pela sobrevivência do mais apto, e portanto com o selo de honra da aprovação científica, que agarraram na Eugenia e a levaram para casa. As ideias de Galton já tinham encontrado ecos entusiásticos em vários países europeus[21], e a resposta dos Estados Unidos não foi só um eco: foi um êxtase. E um êxtase muito bem financiado, diga-se de passagem. Os estudos sobre a questão de como melhor implantar a Eugenia Americana tiveram o apoio da Fundação Rockfeller, do Carnegie Mellon Institute, e da fortuna doada por Mary Harriman, viúva do grande barão dos caminhos de ferro americanos, E. H. Harriman, dono da linha de comboio costa a costa. Em 1906, J. H. Kellogg, o médico imortalizado na foto daquele velhote simpático que ainda hoje aparece nas caixas dos cereais que inventou, cobriu todos os custos da construção da Race Betterment Foundation[22], em Battle Creek, Michigan. Logo a seguir, em 1911, com o apoio das autoridades locais e por iniciativa do famoso e muito respeitado biólogo Charles B. Davenport, treinado em Harvard e docente na mesma universidade até ao início da sua cruzada eugénica, construiu-se em Cold Spring Harbor, Nova York, o Eugenics Record Office[23]. Davenport entregou a direcção do Departamento a um psicólogo seu amigo, também ele de enorme respeitabilidade, chamado Harry H. Laughlin. Além destes auxiliares de primeira linha mais vistosos, Davenport também contou sempre, na chuva de publicações que fizeram parte da cruzada épica que ele mesmo tratou de desencadear sobre o seu país para que a genética mendeliana pudesse ser aplicada aos humanos sem quaisquer entraves, com a colaboração da sua mulher, Gertrude Davenport, uma geneticista e embriologista de enorme renome. 

    Uma das tarefas a que este trio de projecção e propaganda, encarregue de assegurar novas gerações de americanos cada vez mais bem constituídos e mais inteligentes, meteu ombros sem demora, foi a questão de como diminuir os efectivos da população indesejável, que formava uma maioria ameaçadora para o melhoramento americano. Estabeleceu-se para a discussão de estratégias um regime de reuniões semestrais com um comité de sete colegas, todos eles imensamente qualificados em áreas mutuamente complementares. Foi numa destas reuniões de estratégia, realizada em 1933 sem qualquer espécie de secretismo, que se falou de Extermínio em Massa pela primeira vez.

    Se o ano de 1933 vos disser alguma coisa, então deve ser porque Hitler foi democraticamente eleito a 5 de Março de 1933.

    Davenport era um grande mestre da arte do lobbying, ao ponto de conseguir aliar a maioria das mulheres brancas, e até alguns intelectuais negros, na sua cruzada para elevar o povo americano acima de todas as outras raças do mundo. A definição do futuro americano ainda estava em aberto, pelo que a credibilidade científica da Eugenia, com todos os traços deletérios considerados hereditários[24], e portanto incorrigíveis, se transformou com o tempo num pretexto fantástico para impedir a entrada no país de tudo quanto fosse imigrante do Sul da Europa, de origem judaica, ou portador de outros estigmas considerados opostos à construção de uma sociedade perfeita[25]. O Immigration Act de 1924, que observa todas estas restrições, é claramente um triunfo dos eugenistas sobre os congressistas. E, ao mesmo tempo, já há uns bons dez anos que se promoviam, com grande sucesso e maior concorrência, cada vez mais concursos como “a melhor família americana”, ou “o melhor bebé americano[26].

    Logo em 1911, o problema dos defeitos hereditários, e o esforço científico de gizar bons métodos para acabar com a sua transmissão imutável de pais para filhos, levara Davenport a convocar mais uma reunião de especialistas, onde também não se observou qualquer secretismo. Ao fim de dois dias, estava elaborada, e assinada por todos os seus proponentes, uma lista de dezoito métodos para conter o flagelo imutável da hereditariedade. O oitavo método era a eutanásia. E, no sentido de tornar essa mesma eutanásia mais rápida e funcional, sugeria-se a construção de uma câmara de gás anexa aos hospitais.

    Há detalhes históricos que não é prudente deixarmos cair no esquecimento, e estes fazem parte desse número: a ideia do Extermínio em Massa nasceu em Cold Spring Harbor em 1933, e a ideia da câmara de gás nasceu em Nova York logo em 1911.

    black and brown lizard on green plant during daytime

    O projecto não se realizou apenas porque os fundos começaram a tornar-se mais escassos, uma vez que todas as facções envolvidas sustentavam que um programa desta envergadura, destinado a salvar o povo americano do declínio, deveria por força ser financiado pelo Tesouro Federal. À falta de melhor, enquanto toda a gente discutia, foram-se explorando alternativas menos rápidas mas perfeitamente seguras, como a esterilização forçada de homens e mulheres: os números oficiais indicam que, entre 1907 e 1963, mais de sessenta e quatro mil pessoas foram anestesiadas e depois esterilizadas sem o seu conhecimento prévio[27]. A Califórnia, que só por si esterilizou mais pessoas do que todos os outros estados juntos, começou a partir de 1933 a enviar literatura especializada para hospitais, clínicas, e laboratórios farmacêuticos alemães, e a convidar os seus dirigentes a virem observar no terreno todo o seu imenso trabalho de campo.

    De onde viria este cortejamento tão específico que os especialistas americanos começam a fazer à Alemanha, exactamente quando Hitler sobe ao poder? O entusiasmo popular e o interesse científico com que os alemães acompanhavam as actividades velozes da Califórnia teve de certeza um papel neste estranho noivado. Além disso, as tentativas repetidas que Davenport foi fazendo no sentido de criar Sociedades Eugénicas Internacionais não tinham surtido grande efeito entre os europeus à excepção dos escandinavos, pelo que uma aliança internacional com a aderência garantida da Alemanha caía muito bem nos seus propósitos propagandísticos.”

    A avaliar pela correspondência trocada entre os investidores e empresários da época, o Grande Capital, só por si, pode muito bem ter desempenhado nesta história o papel mais relevante de todos. Qualquer capitalista que quer crescer precisa de novos clientes. Numa Europa toda ela empobrecida na sequência da I Guerra, a Alemanha aparecia como uma nação bastante rica, povoada por pessoas eugenicamente correctas, tão perfeitamente superiores como o Siegfried de Wagner. E os seus maiores expoentes tecnológicos e científicos pareciam tão interessados nas várias metodologias eugénicas americanas que, depois de todas as técnicas devidamente patenteadas, estava ali uma mina de ouro de certeza.

    Não foi só a Califórnia que valorizou devidamente este interesse caloroso dos nacional-socialistas. Mostrando a boa-vontade e o interesse dos americanos em melhorar não só o seu país mas também o mundo das raças superiores, a Fundação Rockefeller estudou a fundo vários programas eugénicos alemães, apoiou o seu desenvolvimento, e, sobretudo, assegurou na totalidade o seu financiamento.

    Os eruditos americanos ainda andaram ali desenganados por uns anos consideráveis, cheios de orgulho na importância que tinham adquirido junto dos grandes cientistas alemães, tão dedicados à causa eugénica e tão disciplinados na sua experimentação. Não houve conferência das diversas Sociedades Internacionais de Eugenia em que não repetissem que estavam cheios de orgulho. Aliás, deixaram-se andar cheios de orgulho até já ser tarde demais.

    fox laying on snow

    Todos aqueles nacional-socialistas alemães que vieram estudar o fenómeno no terreno regressaram à base cheios de grandes ideias. Sem conhecimento do resto da Europa[28], construíram com essas ideias um edifício teórico e bélico cada vez mais grandioso. No epicentro desse edifício, Adolf Hitler deixou de falar aos alemães de paz e prosperidade para falar antes da coragem de renovados sacrifícios, suficientemente grandes para que a raça alemã se tornasse superior a todas as outras. Vamos cerrar fileiras contra todos os que tentarem deter-nos, e dentro de duas ou três gerações o Siegfried seremos todos nós.

    Foi este mesmo edifício que levou ao Holocausto.

    Francis Galton morreu em 1944, sem poder assistir ao último acto da tragédia terrível criada no século XX pela sobrevivência do mais apto.

    Quando foram julgados no Tribunal de Nuremberga, os obreiros da Solução Final garantiram que não tinham feito mais do que implementar os conhecimentos adquiridos na América junto dos maiores peritos da Ciência da Eugenia, que aliás financiaram os estudos dos nacional-socialistas, tanto quanto se percebia a fundo perdido.

    Na altura, com a Europa ainda em estado de choque depois de ter visto aqueles filmes insuportáveis sobre o estado em que se descobriram os judeus encarcerados nos campos de extermínio, e com a Guerra ganha depois de, no seu último ano, os americanos se associarem aos Aliados, ninguém quis ouvi-los.

    Mas, na realidade, aqueles réus detestáveis estavam positivamente cheios de razão.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

    Texto a partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION

    No contexto de uma nova edição, traduzida, revista, e comentada, de todas as obras de Charles Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação. O primeiro livro será exactamente o último, este A ASCENDÊNCIA DO HOMEM, onde Darwin conclui, reúne, e discute todo o seu formidável conhecimento de causa.


    Extra-história

    A ignorância causada pelo medo das espécies diferentes das outras que,

    ouvindo notícias preocupantes,

    foram esconder-se nos confins do bosque e nunca mais saíram de lá

    HISTÓRIA DOS DOIS ANIMAIS DESCONHECIDOS

    Dois animais que andavam há anos escondidos num bosque enorme com medo de uma razia aos animais estranhos de que toda a gente falava foram ao fim da tarde a um bebedouro num lugar onde a vegetação era tão densa que o tornava quase invisível. Ao contrário do que costumava acontecer, no entanto, chegaram ambos exactamente ao mesmo tempo. Ficaram estupefactos a olhar um para o outro, porque nunca tinham visto ninguém assim na variegada fauna do bosque.

     “És um animal muito estranho,” disse, por fim, o primeiro. “Vivo há anos aqui escondido, e nunca vi nenhum animal assim. Podes dizer-me quem és?”

    “Bem…”, principiou o segundo, com uma olhadela em volta para ter a certeza de que não estava mais ninguém a ouvir. “Eu sou um cão-lobo.”

    “Um cão-lobo?”, indagou o primeiro. “Mas eu nunca ouvi falar disso. O que é exactamente um cão-lobo?”

    “Então,” esclareceu o segundo, agora já com algum orgulho. “Eu sou um cão-lobo porque a minha mãe era uma cadelinha… muito bonita… que se perdeu neste bosque… onde encontrou o meu pai, que era um lobo… e foi assim que eu nasci. E tu, já agora, que também és muito estranho – que raio de animal é que tu és?”

    “Eu? Ah, eu sou apenas um urso-formigueiro.”

    “Eh pá, não gozes comigo.”


    [1] Pode não parecer, e pode até aparecer à primeira vista como um opúsculo extremamente irritante destinado às donas de casa que tenham como sonho criar e manter a toda a sua volta um lar perfeito para toda a família, mas um livro destes, nesta altura, é na realidade uma autêntica bomba-relógio, pronta a explodir assim que lhe carreguem no botão. E os segredos das formas de chegar ao botão estão cheios de armadilhas. Convém ir avisando. Neste caso concreto, convém mesmo.

    [2] O nome “Shirley” é andrógino no século XIX.

    [3] Não admira que este Sistema fosse influente. Ainda hoje gostaríamos dele, mesmo com muito ensino de ciência na escola. Os lugares-comuns são sempre reconfortantes, e a ausência do Estado, mesmo que leve rapidamente ao caos total ou ao abandono escolar exponencial, de início é sempre uma ideia excitante. Para o período vitoriano, o conceito de procurar a verdade na Natureza não podia estar mais na ordem do dia.

    [4] James também não é um psicólogo e filósofo qualquer. Na realidade, foi o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nas universidades dos Estados Unidos. James foi também um dos principais pensadores do final do século XIX, e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos, enquanto outros o rotularam mesmo como “pai da psicologia americana”.

    [5] Charles Lyell é mais um destes personagens enormes do período vitoriano que operaram a grande mudança de paradigma que separa o século XIX do século XX. O seu PRINCIPLES OF GEOLOGY, e todos os debates a que deu azo, contribuíram decisivamente para alterar de vez a História do Tempo, transformando o Dilúvio numa mera cheia do rio Jordão, eliminando de vez o episódio da Arca de Noé com todos os seus animais, e estabelecendo firmemente que o tempo da vida na Terra não era mensurável em termos humanos. A sua teoria do uniformitarianismo, não obstante alguns erros de raciocínio absolutamente notáveis, teve o enorme mérito de tornar o tempo infinito de uma vez por todas.

    [6] E se o são todos, escritos, como eram, num tempo em que havia tempo.

    [7]Struggle for existence”, no original.

    [8] Com o qual Darwin nunca concordou enquanto ainda em vida, professando antes um profundo desgosto pelo uso que estava a ser feito do seu trabalho.

    [9] Anónimo. Em COLECÇÃO DE CARTAS DO JARDIN LES DÉLICES

    [10] Idem.

    [11] “A natureza ou a criação.”

    [12] Durante este período, era frequente as “mentes brilhantes”, sobretudo se não tivessem preocupações económicas, investirem a sua sabedoria e a sua capacidade de estudo em tantas áreas quantas pudessem. Hoje em dia, uma dispersão por tantas disciplinas tão diferentes como a de Galton seria impossível – e, acima de tudo, extremamente mal vista.

    [13] O termo é tirado do grego para “bem-nascido”.

    [14] Galton já tinha ficado entusiasmadíssimo com a leitura de A ORIGEM DAS ESPÉCIES. O que o levou a avançar até ao conceito de eugenia, no entanto, foi a leitura de A ASCENDÊNCIA DO HOMEM.

    [15] Incluindo dinossauros, montes deles, correctamente entendidos e reconstruídos como tal. E algumas das aves gigantescas das ilhas onde anteriormente não existiam predadores, com uma datação dos seus ossos perfeitamente estabelecida. E tudo isto em estratos de rocha datáveis, também eles de épocas geológicas diferentes.

    [16] Sobre os métodos de recolha e isolamento de sémen considerado “superior”, ver a passagem sobre SNIPs em FEAR, WONDER, AND SCIENCE.

    [17] Há que ver que, mesmo para entender facilitismos como “a sobrevivência do mais apto”, é preciso saber ler e escrever, capacidade que estava vedada à esmagadora maioria das pessoas. Este “toda a gente” limita-se, portanto, apenas aos tais “bem-nascidos”. É naturalíssimo que entendessem: aquilo queria apenas dizer, agora com aprovação científica, que eles eram o topo natural da pirâmide. De TODAS as pirâmides, vendo bem as coisas.

    [18] Para mais informações sobre o programa da Eugenia, as catástrofes que causou no seu tempo, e as formas como tem vindo a ser re-criada no século XXI graças aos bancos de sémen equipados com SNIPs para determinadas características genéticas do embrião, tais como os olhos azuis e o cabelo loiro, ver Gilbert & Pinto-Correia, FEAR, WONDER, AND SCIENCE, 2018.

    [19] Ver Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM, 2004, para estudos alargados e bem fundamentados de todo o estrago causado pelas tentativas de implementar programas de esterilização e de encarceramento “em instituições a criar para o efeito.”

    [20] Mesma fonte. O conceito de Eugenia acabou por levar ao conceito “científico” dos testes de QI, e a vasta maioria dos testes de QI usados até à II Guerra foram sendo cada vez mais inflexíveis em “provar” que todos os pobres, todos os pretos, e todos os filhos desta gentalha são “débeis mentais.” E, como isto é “hereditário”, não há nada nem ninguém que possa mudar-lhes o destino.

    [21] Este “todos”, embora muito usado, é francamente relativo. A Eugenia foi acolhida de braços abertos pelos países do Norte da Europa, onde o povo era quase todo de pele clara, e pelo menos metade das pessoas era loura e de olhos azuis. Nos países do Sul, foi mais um motivo para as classes dominantes, tradicionalmente compostas por pessoas de pele clara casadas entre si, se considerarem no direito de usufruir de ainda mais privilégios, e acharem natural a proibição do voto popular.

    [22] “Fundação para o Melhoramento da Raça.” A coisa promete, não é.

    [23] “Departamento dos Registos Eugénicos,” que procurava reunir as árvores genealógicas de todos os americanos e detectar se algum deles, alguma vez, teria sido “contaminado” por sangue negro, o que podia levar à perda de alguns benefícios sociais, e sobretudo ditar uma esterilização imediata, para que aquele “vício” tão bem dissimulado não contaminasse mais ninguém.

    [24] Estamos a falar de um tempo filosófico já habituado às ideias de Lamarck, e ainda desconhecedor, ou muito desconfiado, das ideias da Darwin. A ideia de que as características dos pais se tornavam hereditárias e eram transmitidas aos filhos (a famosa “teoria de como cresceu o pescoço da girafa”, para simplificar razões) era, portanto, perfeitamente aceitável. E, sobretudo, uma vez mais – no que respeita à inteligência humana, era muitíssimo conveniente.

    [25] A este respeito, consultar uma vez mais Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM.

    [26] Por “melhor” entenda-se “mais bonito” e mesmo “mais loiro”, e não “mais inteligente”. A tradição estendeu-se também à América Latina, como política preventiva contra a miscigenação. Supostamente, estas famílias, ou estes bebés, receberiam apoios estaduais, ou mesmo federais, para melhor crescerem e se multiplicarem. Não sabemos se os receberam mesmo. Para mais informações, consultar THE HOUR OF EUGENICS, de Nancy Leys Stepan, 1991. Consultar Também Gilbert e Pinto-Correia, 2018.

    [27] Esta era a forma mais suave de esterilização. Utilizaram-se obviamente outras técnicas mais brutais, sobretudo em cadastrados, criminosos – e, claro, centenas e centenas daquela porcaria daqueles pretos.

    [28] Um exemplo claro deste desrespeito alemão pelos acordos de paz da época, saliente-se que a RAF, a temível frota de aviação de guerra alemã, foi totalmente montada em segredo absoluto, ainda antes do início da Guerra.


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  • O equívoco minimal-repetitivo do gorila que está sempre fora do seu devido lugar

    O equívoco minimal-repetitivo do gorila que está sempre fora do seu devido lugar

    A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
    que até parece agir de maneira caprichosa.

    Charles Darwin


    Fique estranhamente culto nesta Verão

    ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO

    A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION

    No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação


    Esta é uma história muito antiga, de traços marcadamente universalistas, onde a narrativa costuma ter mais do que três personagens: primeiro, a deusa, ou rainha, ou fada madrinha, protectoras de um principezinho que vai subir a escada da perfeição até ao cimo, mas não conseguirá fazê-lo sozinho; depois, o primeiro autor que é capaz de inventar estes cenários com escadas de perfeição que é necessário subir até ao cimo para que os nossos antepassados se transformem em nós; e, finalmente, o público culto que lê e debate estes livros, concorda ou não concorda com eles, e se diverte com frequência a resumir as suas ideias em cartoons hilariantes.

    Esses mesmos cartoons, no entanto, perdem completamente a graça quando são associados ao livro errado, e assim fazendo nos baralham as pistas. Este é, por excelência, o caso do cartoon em que Darwin é um gorila, que aparece com uma frequência espantosa na capa de variadíssimas edições modernas de A ORIGENS DAS ESPÉCIES, nas mais diversas línguas europeias – quando, se pensarmos nisso durante cinco minutos, aquele desenho nunca faria sentido na capa daquelelivro, masapenas no livro que se lhe segue. Eu própria tenho uma ORIGEM DAS ESPÉCIES francesa dos anos 80, publicada em dois volumes, e a capa do primeiro volume é logo o famoso gorila com cara de Darwin. Como se algum detalhe desta cronologia fizesse sentido.

    É indecente insistirem em baralhar os jovens que continuam a querer deixar a sua pequenina marca nas Ciências da Vida desta da maneira.


    Embora todos os cartoons onde Darwin (ou alguns dos seus apoiantes) apareçam hoje associados à ORIGEM DAS ESPÉCIES, a verdade é que essa associação nos induz seriamente em erro. É inegável que o livro causou um frisson enorme em toda a Europa e logo a seguir na América. Embora não diga nada a este respeito, foi por várias vezes utilizado como sendo, no humano, a explicação da formação, nascimento, dureza, e sobrevivência das mulheres. Houve missionários, sobretudo em África, que usaram a selecção natural para explicarem que, formando grandes grupos de amigas tal como as hienas formam alcateias com grandes números de fêmeas, as mulheres treinassem secretamente nesses grupos as artes da sobrevivência, da obtenção e da divisão justa de alimentos, da medicina caseira elevada ao seu mais alto nível, bem como da leitura e discussão dos Clássicos[1] e das suas armas[2]

    Mas não foi neste livro que Darwin falou da questão de o homem descender do macaco.

    No entanto, houve anteriormente “Livros do Macaco” de outros autores antes, que causaram o escândalo que seria de esperar por muito incorretos que ainda estivessem. Também se debateram acaloradamente inúmeras “Teorias do Macaco” enquanto iam saindo várias edições da obra de Darwin. De todos estes, o debate mais notável travou-se entre o melhor anatomista do seu tempo, Richard Owen, e o melhor porta-voz da ciência natural em Inglaterra[3], Thomas Henry Huxley, que veio a abraçar e defender a teoria evolutiva de Darwin com tal fervor que ficou conhecido por Darwin’s Bulldog. O público acompanhou estas trocas de argumentos – bons argumentos, de parte a parte, vindos de homem de ciência segura – com um entusiasmo colectivo que pode ser difícil de entender nos dias de hoje, mas se compreende bem na altura. E se os macacos tivessem fé?

    Owen defendia existir uma nítida discrepância entre os componentes cerebrais do macaco e sua distribuição e os do homem, provando que o homem se erguia acima de toda a Criação, sozinho numa classe superior à parte. Huxley defendia que esses componentes estavam presentes em todos os Grandes Primatas, exactamente no lugar onde estavam no homem, e o mesmo acontecia até em macacos menos desenvolvidos. Isto provava que o homem não se distinguia da restante Criação – com todos os problemas éticos, morais, espirituais e intelectuais que o conceito levantava à Europa do seu tempo. Huxley e os seus aliados acabaram por ganhar o debate, mas deixaram o campo de batalha cheio de cadáveres.

    Um campo de batalha cheio de cadáveres nunca é bom para o progresso de uma ideia.

    Sempre muito timorato, Charles Dickens, o escritor mais amado de todos os ingleses dos seus tempos, fez involuntariamente um grande favor a Darwin quando deitou água na fervura e acalmou os espíritos afirmando que a origem das espécies através da selecção natural era uma daquelas ideias brilhantes, que só os que não temem o trabalho e são audazes são capazes de conjurar, que de tempos a tempos vêm à superfície, norteiam o pensamento dos povos, têm o seu período de lugar ao sol – e depois somem-se no nevoeiro sem deixar vestígios, deixando tudo como era antes.

    Observando toda esta agitação, Darwin sabia, sem qualquer dúvida, que escreveria o seu próprio “Livro do Macaco” mais tarde. Mas a ORIGEM DAS ESPÉCIES não é nenhum “Livro do Macaco”.

    No entanto, se o autor quisesse poderia facilmente ter sido.

    Aquele olhar irresistivelmente assustador de Darwin na caricatura do gorila mostra-o tão poderosamente seguro de si que, se não pagou explicitamente a algum artista menor para associar os seus traços humanos com as características do impressionante Grande Primata que afinal existia mesmo[4], então é, pelo menos, exactamente o que parece[5]. É sem dúvida um olhar de triunfo. Pela primeira vez na sua vida, está a considerar a possibilidade de tomar os comandos do lugar da selecção natural, para fazer tudo andar muitíssimo mais depressa. Darwin começou a refletir devagarinho, quando voltou da viagem do Beagle já tinha a Selecção Natural esboçada na sua cabeça, mas, consciente da violência com que a Inglaterra Vitoriana ia receber todos estes novos desvios à norma, em vez de se precipitar para a publicação dos seus resultados ficou a ver o que é que acontecia aos seus pares que também propunham modelos de Selecção Natural, que novos espécimes eram descobertos nos mundos longínquos[6] e o que que é que os seus descobridores diziam sobre eles, e ainda, pois que isso conta sempre na altura de pedir financiamento às Academias e à aristocracia, o que é a quota-parte de maledicência  que vive e respira livremente em cada um de nós ia contanto, com cada vez mais audácia, sobre o dia-a-dia destas infames caças ao dinheiro.

    E, seja por caça ao dinheiro seja por assegurar o respeito de suficientes colegas, Darwin não ia entrar a matar e escrever, logo à partida, um livro que diz taxativamente “o homem descende do macaco”.  Em 1859, o seu professor mais estimado, Adam Sedgwick, a quem Darwin mandou uma das primeiras edições de A ORIGEM DAS ESPÉCIES com uma dedicatória cheia de estima, escreveu-lhe de volta uma longa carta, onde abundam passagens como esta:

    A coroa de glória da ciência orgânica é conseguir, através da causa final, ligar o material ao moral. Você ignorou esta ligação; e, se percebi bem a sua intenção, fez o melhor que pôde para quebrá-la. Se fosse possível quebrá-la (o que, graças a Deus, não é possível), a humanidade poderia brutalizar-se, e afundar-se num grau de degradação mais baixo do que qualquer um em que já tenha caído desde o início da sua história registada.”

             Perante esta e muitas outras reacções chocadas e iradas vindas de homens profundamente respeitados por toda a comunidade científica, depois de ter começado a publicar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, de ter assustado de morte meio mundo de arcebispos e outros fiéis devotos, Darwin absteve-se sempre de estabelecer qualquer parentesco entre o homem e o macaco nas edições sucessivas do seu livro. Por junto, deixou que todas as ondas de choque e de enorme escândalo andassem à solta à solta e ficassem à vontade para irem formando os novos padrões que permitiram o entendimento generalizado de como funciona a selecção natural no processo da formação das novas espécies, e, com ele, a compreensão cada vez melhor da utilidade dos novos caracteres que os seres vivos foram adquirindo – ou perdendo – ao longo do tempo. Mas nunca falou de como nada disto acontecia especificamente no homem. Não o fez nem na famosa 6ª edição, em que deixou todo o seu quadro evolutivo por ordem, e considerou, por fim, a sua obra acabada.

    É de calcular que Darwin já tivesse as suas ideias a esse respeito perfeitamente claras. Enquanto cientista, baseando-se no seu próprio raciocínio e na correspondência com dezenas de correspondentes de vários tipos localizados em todas as partes do mundo, estava certamente pronto para falar de como seria a evolução do homem a partir de um certo tipo de antepassado com vários descendentes. Mas era notório que a sociedade vitoriana que o rodeava não estava, de todo, pronta para ouvir dizer que “o homem descende do macaco”. Observando a tempestade à sua volta desde a primeira hora – desde a publicação de livros muito anteriores ao seu – no que dizia respeito à origem do homem, Darwin limitou-se a dizer que mais tarde, depois de mais estudos, “talvez venha a fazer-se alguma luz sobre o assunto”.

    E essa luz data apenas de 1871, quando, passados mais de dez anos de discussões que muitas vezes foram outros colegas que tiveram por ele, Darwin publicou finalmente “A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL”, a que o público laico, científico, e religioso prestou uma atenção muito menos raivosa de um lado e do outro das bancadas, mesmo confrontado com a implicação já muito mais aberta de que o homem era um Primata como outro qualquer, apenas sem cauda e com muito menos pelo, aqui provavelmente também por obra da selecção sexual – do arquétipo primitivo, as fêmeas da nossa espécie terão preferido, sistematicamente, os machos com menos pelo e sem cauda; e fenómenos destes podem acontecer porque “podemos admitir que o gosto é flutuante, mas  não é, de todo, arbitrário.

    E aqui sim, a caricatura do gorila passa a fazer sentido.

    Por isso, e de uma vez por todas, tirem-na da capa da ORIGEM DAS ESPÉCIES, quando ainda ninguém podia ter feito esta caricatura porque em 1859 ainda ninguém sabia se os gorilas existiam mesmo. Passem-na para a capa da ASCENDÊNCIA DO HOMEM, que é o seu verdadeiro lugar. Há já muito tempo que este equívoco deixou de ter graça.

    Ainda por cima, é um desrespeito à sabedoria do autor, que conseguiu aguentar-se calado durante várias décadas, à espera de que os seus conterrâneos e colegas se acalmassem, e que os leitores se habituassem de tal forma à noção de selecção natural que incluir o homem no processo já não torturasse os espíritos. Pelo que lhe dizia respeito, claro que ele já sabia de tudo isto há muito tempo. Digamos que desde a sua juventude distante. Num dos seus cadernos de apontamentos preenchidos febrilmente em Londres logo a seguir à chegada da viagem do Beagle, Darwin quase que grita de alegria ao anotar a descoberta da mudança de paradigma que finalmente dá um sentido realista ao mundo vivo:

    Platão diz no FÉDON que as nossas ideias imaginárias têm origem na preexistência da alma e não provêm da experiência. Ler macacos em vez de preexistência da alma.

    Muito bem visto, Sr. Darwin.

    E que sábia estratégia, essa de ficar à espera.

    Entretanto Charles Dickens morreu, e nunca chegou e medir a dimensão do seu erro.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    Exemplos de títulos ou citações baseados em Darwin

    “A ascendência do dinheiro tem sido fundamental para a ascendência do homem”?

    É preciso ter lata.

    “A força mais poderosa na ascendência do homem é o prazer que lhe dá o seu próprio talento. Gosta de fazer bem aquilo que faz, e, tendo feito uma coisa bem, gosta de fazê-la ainda melhor.”

    Imaginem, por exemplo, todas as escolas do País…

    Extra-história

    A falta de senso causada pela

    possibilidade de extinção devido ao aquecimento global e

    à caça furtiva para roubar o marfim

    HISTÓRIA VERDADEIRA DOS TRÊS ELEFANTES AFRICANOS

    Estavam três magníficos machos de elefantes africanos reunidos num bebedouro resguardado pela folhagem, trocando impressões em tom soturno sobre o futuro da sua espécie, que cada vez parecia menos promissor. O mais velho de todos recordava-lhes os tempos de Darwin, e das suas considerações sobre a reprodução dos elefantes registadas em A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL, em que o velhote considerava que a seleção sexual teria que incorporar truques ainda não conhecidos para limitar o número de animais enormes, tais como os rinocerontes e eles próprios, senão ao fim de mais algumas gerações deixariam de caber no seu habitat natural – e demonstrava tudo isto com tabelas cheias de números incompreensíveis e tudo. Agora o belíssimo rinoceronte branco estava reduzido a um macho, o que era o mesmo que dizer que estava extinto, já, que não poderia reproduzir-se antes de ele próprio morrer de velho. Os outros rinocerontes eram considerados espécies protegidas, tal era a loucura da caça furtiva para lhes levar o corno, que mais de metade das pessoas do mundo acreditava ter propriedades afrodisíacas formidáveis. E eles… da morte de Darwin em 1882 a este ano de 2024… onde o geólogo inglês pensara que as suas populações teriam que ser naturalmente limitadas ali estavam eles próprios ameaçados de extinção, incapazes de perceber a parvoíce das pessoas – que, essas sim, eram cada vez mais – com cada vez menos recursos e menos água…

             … e estavam nesta tristeza quando apareceu entre eles a Entidade Protectora dos Elefantes.

             – Elefantes, elefantes! – disse a Entidade – Não deixem que a tristeza destrua a vossa longevidade! Estou aqui para dar a cada um de vocês aquilo que mais quiser. Tu, elefante mais velho, o que é que mais queres?

             – Ah! – disse o elefante – Quero uma tromba muito grande, muito grande, muito grande, que possa atravessar toda a África Subsaariana.

             – Que bonito – respondeu a Entidade – Mas queres essa tromba para quê?

             – Ah! – disse o elefante – Eu quero essa tromba para ir buscar água onde houver água, e aspergir com água todas as partes de África onde falta água, e assim tentar recomeçar a estabelecer o equilíbrio em que vivíamos dantes.

             A Entidade, comovida, deu-lhe um pequeno toque na tromba, que imediatamente ficou enorme, larguíssima, capaz de regar todas as secas africanas. Depois virou-se para o segundo elefante e perguntou-lhe, da mesma forma, o que é que ele mais queria.

             – Ah! – disse o segundo elefante, sem a mínima hesitação – Eu quero umas orelhas tão grandes, tão grandes, tão grandes, que possam fazer sombra sobre savanas inteiras e ponham os ventos a correr sobre o equador por forma a moverem as nuvens e provocarem as chuvas na altura certa.

             E a Entidade, sempre muito comovida, tocou-lhe nas orelhas, que ficaram logo de tal forma enormes que quase permitiam ao animal levantar voo com elas. Finalmente, chegou a altura de perguntar ao terceiro elefante o que é que ele mais queria.

             Ah! – respondeu logo o terceiro elefante, também ele sem a mínima hesitação – Eu quero umas pestanas tão compridas, tão escuras, tão enroladinhas, tão bonitas, que todos os outros animais parem só para me verem passar.

             – Mas… – perguntou a Entidade depois de uns segundos de surpresa, enquanto os primeiros elefantes escutavam com toda a atenção – Tu queres essas pestanas para quê, terceiro elefante?

             Ah! – respondeu o terceiro elefante, fechando os olhos num sorriso apetitoso ao mesmo tempo que cruzava as patas da frente – Mariquices.


    [1] No caso de grupos de mulheres brancas, onde pelo menos uma ou duas fossem capazes de ler para as outras – e as outras fossem capazes de entender o enredo daquelas estranhas histórias. Os outros Grupos de Mulheres serviam para quaisquer selvagens, e eram uma boa demonstração da tendência universal das Mulheres para o secretismo.

    [2] Se estão interessadas em armas, é porque não estão interessadas em nada de bom. É evidente que estão cercadas por animais ferozes, mas nunca é essa a primeira ideia que ocorre aos missionários.

    [3] E também o homem que cunhou a palavra AGNOSTICISMO – o não é propriamente uma brincadeira de crianças para o período em causa.

    [4] A existência do gorila foi discutida até muito tarde. Embora o animal figurasse em muitas lendas, só mesmo a partir de 1864, quando o missionário americano Thomas Savage trouxe alguns crânios do Gabão, é que os cientistas obtiveram provas materiais da sua existência. Um dos primeiros grandes anatomistas a conseguir reconstituir um gorila por inteiro a partir de material recebido pelo Museu Britânico em 1861 foi exactamente o anatomista Richard Owen, que publicou a sua monografia sobre o gorila em 1865.  As descrições da famosa postura bípede do macho maior, quando enche o peito de ar e lhe bate com os punhos produzindo um som semelhante ao se um tambor, ao mesmo tempo que solta um urro possante destinado a afastar os intrusos, demoraram o seu tempo a ser levadas a sério, e impressionaram profundamente todos os leitores.

    [5] Toda esta passagem é pura especulação, mas não deixa por isso de ser provável.

    [6] Darwin fez a viagem enorme do Beagle através do mundo; depois disso, no entanto, nunca mais fez uma única viagem.


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  • ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.


    Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].


    A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.

    Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…

    rien n’est simple

    et tout se complique[7].

    É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.

    Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.

    Talvez pudéssemos ficar por aqui.

    Mas há mais.

    E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.

    A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…

    … é, as fêmeas põem ovos[8].

    E depois…

    Depois…

    “…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]

    Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.

    Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.

    Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.

    Senão, vejamos.

    Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.

    Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.

    Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.

    Ah-ah.

    Apanhei-vos.

    Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.

    Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.

    Nem quero que ninguém me entenda.

    E que diremos nós a Sua Majestade?

    O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.

    Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.

     Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.

    Anatinus vem do latim para Patos.

    Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.

    Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.

    O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.

    É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?

    “POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]

    Meninos.

    Conhecem a canção do Urso Polar?

    Não?

    Mas olhem, é muito fácil. É só assim,

    Se o Urso Polar

    Quisesse pular

    Caía na neve

    De patas para o ar[17].

    Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.

    Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.

    “COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]

    Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.

    Toda a gente sabe como é que esta história começa.

    Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.

    Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.

    Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.

    landscape photo of statue infront of brown building

    A viagem de regresso tinha começado.

    Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.

    A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.

    Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].

    Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?

    Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?

    É muito fácil, então.

    Uma fo-foca é

    um mamífero ma-marinho.

    Adoro meninos.

    Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?

    Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].

    O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.

    O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.

    closeup photo of green dragonfly

    A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta,  muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.

    Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?

    Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo  suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].

    E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.

    Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:

    É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em  processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.

    Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.

    Chama-se a isto uma extinção silenciosa.

    a close up of an animal skull on a black background

    E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.

    E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.

    A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.

    A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. Deos Sive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.

    *A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.

    [2] Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.

    [4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.

    [5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.

    [6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?

    [7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”

    [8] Característica geral dos Monotrématos.

    [9] José Eduardo Agualusa. in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS.

    [10] Não é erro, não.

    [11] É, é. Isto aqui vale tudo. Mesmo.

    [12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.

    Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.

    Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.

    [13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal  como a conhecemos agora.

    [14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.

    [15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.

    [16] Venerável Beda, PROSLOGION, Século VIII.

    [17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.

                    PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!

    [18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.

    [19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

    [20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.

    [21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?

    [22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.

    [23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.

    [24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.

    [25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.


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  • Omeprazol

    Omeprazol

    Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.

    Bon Marley


    Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.

    O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.

    Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.

    Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.

    Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.

    Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.


    Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]

    É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.

    Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.

    Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.

    Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.

    Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.

    Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.

    Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”

    Então e já decidiram em quem vão votar?

    Olharam para mim como se eu fosse de Marte.

    woman in black long sleeve shirt hugging white and black siberian husky

    Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”

    Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”

    Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.

    Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”

    Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,

    Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”

    Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


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  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • O final do alcoolismo

    O final do alcoolismo

    Continuava a sentir-me no país de outro homem, sentia a forma como era estrangeiro, a minha solidão.

    V.S. Naipaul

    THE ENIGMA OF ARRIVAL


    Os momentos em que os governos das democracias recentes tomam posse costumam ser aqueles em que o eleitorado insuspeito sente mais dificuldades em perceber como é que vão concretizar-se novas medidas que nos façam de facto mais felizes, e o momento presente, em que se testam as primeiras águas do novo governo, não foge à regra. Um quarto dos eleitores de Estremoz votou na AD. Mas essas pessoas, agora, terão todas a ganhar com os cortes nos impostos que se perspectivam? Serão todas elas mais felizes quando entrarem em vigor as novas margens de manobra para as rendas das casas? E o pior é ouvir a Assembleia da República em peso a discutir o novo Orçamento Geral do Estado. Pergunto-me qual dos meus vizinhos é que vai beneficiar com ele e não sei. Não sou tão burra como pareço, bolas. Apenas não vivo naquele país, pela simples razão de que nem toda a gente lá vive.


    Se a democracia portuguesa fosse tão disfuncional como qualquer outra nas suas redondezas, então os portugueses não abandonavam Melides para irem trabalhar em Andorra, nem trocavam Lisboa por Berna, nem largavam São Pedro de Moel para se fixarem em Cardiff, nem tomavam mais nenhuma das muitíssimas outras opções de vida deprimentes que podiam listar-se daqui em diante, o que aliás seria completamente desnecessário porque a moral da história está mais do que implícita: a democracia portuguesa só pode ser disfuncional, porque, por mais que o seu país seja bonito e agradável, e ainda por cima cheio de gente a quem os mesmos adjectivos se aplicam, os portugueses continuam a deixá-lo para trás, geração atrás de geração atrás de geração. Temos o clima que temos e gozamo-lo com a nossa proverbial simpatia, enquanto que em Londres chove o ano inteiro, o céu do fim da tarde fica negro de estorninhos que são uma praga infestante pior que os pombos, e as pessoas têm um carácter tão tendencialmente agreste que já ninguém que partilhe a sua vida volta para casa sem passar primeiro pelas happy hours da saída dos empregos. E, no entanto, é para lá que não param de partir os jovens portugueses – em bandos, como os estorninhos. E, no entanto, ali estão os nossos novos governantes a debater as suas novas medidas, que farão dos portugueses um povo feliz. A seguir os comentadores políticos falam interminavelmente sobre quem disse o que quê nessa nova lista das compras do que desta vez se pretende fazer, como se a  lista em si nos tivesse parecido diferente de várias outras, ou como se o tempo em que todos vivíamos bem em Portugal e pagávamos em Euros essas vidas já tivesse existido.

    man and woman sitting and facing near concrete fence during golden hour

    Uma democracia não perde a sua virtude democrática por ser disfuncional. Nem Portugal é a única democracia disfuncional de toda a Europa, para não irmos mais longe. Um país pode ter o seu eleitorado dividido quase ao meio entre a extrema-direita e o socialismo, como o Brasil ou os Estados Unidos, que isso não torna a sua democracia disfuncional, por muito que possamos dizer cobras e lagartos de metade dos seus habitantes. Mas não são falsidades como as de Trump, ou manipulações de contagens de votos como as de Bush Jr., que levam levam os americanos a abandonar o seu país. O que faz partir um grande número de portugueses é a escassez de políticas frontalmente empenhadas na maior felicidade de quem não tiver garantias de meios. Ou seja, o que torna uma democracia disfuncional é notar-se que está atravessada por uma linha horizontal, e tudo o que se passa na sua política e nas suas instituições, a beneficiar alguém, beneficia quem se encontra no espaço superior a essa linha. No espaço inferior a essa linha as pessoas ou dificilmente são beneficiadas, ou – com bastante frequência – são prejudicadas.

    Como a maioria dos portugueses, as pessoas aqui em Estremoz podem ter poucos meios mas fazem tudo o que podem para se sentirem felizes, e usam todos os pretextos a que têm acesso para se divertirem. Além de todas as datas mágicas que se prestam a feriados, pontes, bandas, e danças, procuram-se pretextos especiais para almoços e jantares sempre que estes são possíveis, e basta haver sol para se juntarem grupos nas esplanadas assim como basta que as noites aqueçam para que quem vive dentro das casas se sente cá fora, nos degraus da entrada, a conversar em voz branda para um lado e outro da rua ou mesmo só a ver quem passa. Mas ultimamente festeja-se menos, porque a metade do país que fica na linha inferior da disfuncionalidade não tem dinheiro para festejos. Muita gente não tem nesse extracto não tem dinheiro nem para convidar um amigo, um único, para almoçar ou para jantar. É possível ir para uma esplanada e só tomar um café, mas só um café compra menos tempo. Isto faz todas estas pessoas verem-se quase de repente obrigadas a viver muito mais sós. E, por isso mesmo, mais tristes.

    a woman sitting on a wooden swing in the middle of a field

    Os cálculos de poupança que levavam estas pessoas a ir abastecer e comprar gás a Badajoz podiam não estar feitos a regra e esquadro, mas a verdade é que os abastecimentos em Espanha já eram um hábito antigo, que se tinham generalizado ainda mais depois de começar a Guerra da Ucrânia – e, com ela, começarem as subidas de preço da gasolina, que em Portugal pareciam suceder-se dia sim dia não. Agora quem vive abaixo da linha divisória não abastece em Espanha coisa nenhuma. Nem compra gás. Se por qualquer razão a sua vida depender mesmo de ir a Badajoz, já nem apanha a autoestrada. Ir passear a Espanha, fazer umas compras, e de caminho meter gasolina, podia ser uma tradição que perdeu todo o sentido financeiro com o passar do tempo. Mas foi uma tradição de décadas, e os preços recentes da gasolina portuguesa rejuvenesceram-na. Até pode não ser ir abastecer a Badajoz que faz falta. Mas saber-se que se pode, mesmo que pouco ou nada se ganhe com a manobra – isso sim, isso claro que faz falta. E, para quem já tem pouco dinheiro, é uma recordação acrescida de que passou a haver ainda menos dinheiro, de tal forma que já praticamente nada depende do que queremos fazer mas antes do que somos obrigados a fazer. As grandes depressões não têm só por causa grandes desgostos de amor.

    Tenho ouvido várias vezes falar da falta de dinheiro para comprar medicação prescrita para tomar duas vezes ao dia pela mãe, pelo pai, por um dos filhos, ou pela própria pessoa que está a falar comigo. O ano passado, as farmácias armaram-se de umas maquinetas que não deixam sair um único medicamento que não seja pago primeiro – e não devem ter feito isso por acaso. Às vezes eu por acaso sei que os fármacos que as pessoas não conseguem comprar são fundamentais para o convívio com uma ou outra doença mais ou menos séria. “Então mas estás sem comprar isso há quanto tempo?” – “Há uns dois ou três meses, o que é que tu queres?

    A história mais impressionante daqui do fundo da linha, no entanto, para mim foi a dos bêbedos.

    Quando acaba a folia do Carnaval, tenho por hábito ir tomar café, tão cedo quanto possível, a um barzinho que fica aberto a noite inteira, e de onde, por vezes, ainda vão os últimos bêbedos a retirar-se aos risos, caminhando sem tombos por forma a homenagearem as suas máscaras de mulheres. Faço isto para ouvir as conversas dos velhotes, que entretanto chegam a passo vagaroso, de samarra vestida e boné na cabeça em qualquer altura do ano, para se encostarem ao balcão, pedirem o seu café com bagaço ou então só o seu bagaço, e começarem a questionar o jovem proprietário sobre os bêbedos do Carnaval.

    clear glass tumbler on brown wooden tray

    Ainda no ano passado, a conversa, quando eu entrei, ia nisto:

    Então oh pá. E tivestes cá muito bêbedo?

    O rapaz até apoiou a cabeça na mão antes de se pôr a acenar.

    Ai deixem-me cá.

    Os velhotes inclinaram-se por cima do balcão.

    Tudo maluco, era? Tudo aos berros? Dá-me aí outra pinguinha. Muita bêbedo, hã?

    O rapaz tinha um pano na mão, que pousou de repente para calar toda a assembleia num só gesto.

    Vocês não imaginam a quantidade de miúdas bêbedas que me entraram por aqui adentro, ouviram? Miúdas novinhas, miúdas da idade da minha filha, pois acreditem, aparecem-me aqui com catorze anos e nem se têm em pé, e lá fora umas gritam, outras vomitam, e eu só insisto que não as sirvo, mas é que não as sirvo, e que não as sirvo nem por nada, e elas a dizerem-me de todas as tendinhas onde as serviram e eu que dali que se ponham mas é a andar antes que eu chame a polícia, e elas num estado que já nem queriam saber, eu não servia nem rapazes de catorze anos mas olhem que elas são piores, até tentaram ir-me à cara, se não estivessem tão bêbedas ainda me matavam.

    Os velhotes ouviram aquilo tudo sem dizer uma palavra, e a seguir puseram-se a debater baixinho qual deles é que já se metia assim nos copos aos catorze anos. E, sobretudo, se no tempo deles alguma miúda faria o mesmo.

    Fazer, faziam,” concluiu lapidarmente um dos mais velhos. “Aí por esses montes, onde não havia mais nada, onde não vivia mais ninguém, onde os pais e as mães estavam sempre borrachos e toda a gente sabia onde é que ficavam as chaves para as adegas, vá que às vezes faziam. Mas não faziam era essas figuras, e muito menos vinham fazê-las às claras para o centro da cidade.

    O centro histórico, ainda por cima,” protestou outro velho, menos velho.

    Na esperança de testemunhar mais material que pode sempre vir a ser usado para qualquer coisa, este ano voltei ao barzinho logo a seguir ao Carnaval.

    a man laying in the grass with a bottle of beer

    Como cheguei bastante mais tarde, encontrei tudo muito limpo e arrumado e não estava lá dentro velho nenhum.

    O que vale é que, à custa de tanto trabalho de campo, por estes dias o rapaz já me conhece bem.

    Então conte lá,” perguntei eu, à falta de quem o fizesse por mim, “como é que foi esta noite, muitos bêbedos?

    Ele pôs-me o café e o copo de água do costume em cima do balcão, sem sequer fazer uma daquelas suas perguntas de gozo mútuo como por exemplo “ora então diga-me lá em que é que esta humilde casa pode servi-la.” Depois olhou para mim com um ar de desgosto tão sincero, tão sentido, que não podia ser nenhuma fita.

    E disse:

    Olhe, menina Clarinha. Não há mais esperança. Até já os bêbedos estão tesos.

    E foi acabar de fechar a loja sem mais uma palavra.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


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  • É certo porque é impossível

    É certo porque é impossível

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Proponho-vos aqui toda uma série[1] que será um exercício de raciocínio livre, já que, até aterrar sem aviso nesta rubrica do PÁGINA UM, ainda não constou antes de nenhum romance, de nenhum livro de texto, nem de nenhum artigo científico. Mas vamos lá, que a ideia vale por si. Ainda ninguém pensou que há diversas semelhanças entre um ornitorrinco e um urso polar?

    Entre um monotrémato oleoso com pés de pato e um caniforme desgrenhado de patas plantígradas?

    Hm.


    Toda a gente tem, pelo menos, a noção de que os ornitorrincos representam uma grande quantidade de bichos diferentes amalgamados num só. Mas como é no mínimo improvável que toda a gente saiba tudo no respeitante a esta amálgama, tenham santa paciência, mas vamos começar pela rememoração das principais características que eles partilham com vários outros grupos animais, todos muito distanciados entre si.

    Antes de mais nada, a cor e a cauda do ornitorrinco são iguaizinhas à do castor[2]. Pensaríamos de início que esta ligação seria de grande importância, porque a cauda do ornitorrinco é extremamente importante para ele: é a sua única reserva de gordura, e quem diz gordura diz protecção e energia.

    Mas não.

    Falso alarme.

    Por muito importante que seja a cauda de castor na vida de um ornitorrinco, e por absolutamente imprescindível que seja a ligação à água doce na vida de ambos os bichos, não há absolutamente mais nada que os aproxime. Mesmo a forma como o castor vive na água doce, formando grandes famílias e construindo diques que lhe dão imenso trabalho a montar e a manter, isto não se assemelha em nada à forma ensimesmada e preguiçosa característica da vida do ornitorrinco. Como toda a gente sabe, a América do Norte e a Austrália não correspondem a posturas filosóficas similares.

    Ornitorrinco (em imagem gerada por inteligência artificial).

    Seguidamente, e tal como o Urso Polar[3], estas criaturas estão de tal forma bem adaptadas à vida na água[4] que acabaram por ser classificadas como semi-aquáticas[5]. À semelhança de qualquer urso, quando se encontram em cativeiro mostram que podem perfeitamente ter um regime alimentar basicamente omnívoro. No entanto, as características particulares do seu habitat condicionaram-lhe desde há muito as preferências gastronómicas.

    E então aqui vai uma boa história de selecção convergente[6].

    Porque é que o Urso Polar, podendo ser omnívoro, se tornou carnívoro?

    Ora, não gozem com o povo normal.

    O Urso Polar é carnívoro porque, como é evidente, no Ártico há sempre focas, mas não existem plantas durante a enorme maioria do ano. Talvez o seu sistema digestivo se tivesse adaptado aos conteúdos dos caixotes de lixo das pessoas, como aconteceu com o de tantos outros ursos, especialmente nos que vivem perto dos parques naturais. Mas, para que tudo isto acontecesse, era preciso que vivessem mais pessoas nas condições extremas em que vive o Urso Polar. Estive duas vezes no Alasca, cruzei muitas estradas de terra completamente desertas, atravessaram-se-me três vezes uns ursos vagarosos à frente do carro, mas eram sempre ursos castanhos. Mesmo que um Urso Polar partilhe por breves instantes algum território com alguns Inouits, os povos do Ártico não têm  minimamente o hábito de considerar que seja o que for é lixo, pelo que procuram reciclar tudo e não deitar nada fora[7]. E o habitat do Urso Polar não desce tão baixo que atinja as regiões onde a tundra se enche de mirtilos no pino do Verão[8]. Se comesse alguns gostava de certeza – mas de certeza  que que nenhum Urso Polar fica alimentado só com umas boas razias nos mirtilos deliciosos da tundra.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Então e o Ornitorrinco?

    Se já tem milhões de anos de existência em o registo fóssil nos diz que cobriu quase toda a Terra habitável, se é o mais antigo de todos os mamíferos dos nossos dias, não poderia ter recorrido a essa primazia para tirar proveito de todos os tipos de dietas antes de existirem sequer novos rivais? E se, ainda por cima, quando observado em cativeiro demonstra que pode mesmo ser omnívoro, porque é que decidiu dar ideias ao Urso Polar e ser carnívoro?

    Ah, pois é.

    A adivinha que se segue agora é que já não é para qualquer um.

    Antes de mais nada, qual é a dieta deste carnívoro, e de onde é que ela vem?

    O ornitorrinco revolve o fundo das águas onde mora à procura de camarões, ameijoas, peixinhos, larvas, vermes, cobras, ou outras delícias fáceis de engolir, juntamente com pedrinhas, lama, ou ainda raízes e caules aquáticos[9]. Não tem dentes, mas tem placas trituradoras nos maxilares, e é com elas que faz a primeira mistura de tudo isto, para depois a guardar  de reserva nas bolsas das bochechas[10]. Quando essas bolsas estão cheias, vem até à superfície, tritura tudo até fazer uma papa, e só nessa altura é que a engole. Depois vai logo para o fundo buscar mais comida.

    Porquê?

    Porque os monotrématos não têm estômago.

    Segue-se o grande sobressalto que seria de esperar.

    Mas…mas…

    Mas como não têm estômago?

    E, se não têm,

    porque é que não têm?

    polar bear standing in front of three walrus on water

    Olha que gaita, porque sim. Porque a evolução existe, a selecção natural também, e este grupo deu-se bem com o seu regime[11].  Para satisfazerem as exigências resultantes do sistema lunático em que se especializaram, os ornitorrincos passam doze horas por dia dentro de água à procura de alimentos.[12]. São óptimos nadadores, e estão altamente especializados nesse sentido. Numa performance que volta a recordar-nos o Urso Polar, conseguem mergulhar durante dois minutos blindando os olhos, os ouvidos, e as narinas.

    Ai é?

    Ah pois é.

    Não desistam ainda, camaradas e amigos. A série continua. Dentro de mais um mês, talvez venhamos a saber como é que os ornitorrincos conseguem encontram o seu alimento debaixo de água  com todos os órgãos dos sentidos blindados. E talvez este conhecimento os aproxime ainda mais dos ursos polares.

    Algumas charadas progridem muito devagar.

    Mas progridem.

    E a sua lentidão permite-nos ir pensando.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    N.B. O título é retirado de Tertuliano, padre do século II, nas primeiras fases do Cristianismo.


    [1] Ficamo-nos por “série” porque o contéudo não estica para “telenovela”. Nem ninguém leria nada do que se segue depois de semelhante introdução. Espero eu, não sei. Vivemos tempos difíceis.

    [2] Sabiam que, no século XVIII, quando já se conhecia praticamente toda a fauna do mundo e a Europa do Iluminismo foi a votos para escolher o Rei dos Animais, várias vozes se levantaram em defesa do CASTOR? Ah pois foi. Mas essa é toda uma outra história, que, por este andar, terá que ficar para bastante mais tarde.

    [3] Ah-ah! Mais um regresso do URSO POLAR. Alguém quer apostar qual será o último? Façam concursos, façam. Quando derem pelo que aconteceu, acabaram de celebrar os vossos respeitáveis setenta anos e de contrair matrimónio com uma espécie qualquer de semideus que vos entrou à noite a voar pela janela. Será que este semideus é o Espírito Santo? Bem, isso ele nunca confirma nem desmente.

    [4] Embora, no caso do Ornitorrinco, não se encontre qualquer evidência de que começaram por ser mamíferos absolutamente terrestres, como por exemplo os ursos. Daí a necessidade de uma classificação à parte também só para eles: não são terrestres nem aquáticos, são semi-aquáticos.

    [5] Et voilà. Ou seja, “ora aí está”, mas a Autora não quer exta pequena exclamação traduzida do francês. Insiste em exibir-se culta até ao fim. NT.

    [6] Duas espécias muito diferentes adquiriram características semelhantes ao longo do tempo devido às suas adaptações progressivas ao ambiente onde vivem.

    [7] Refiro-me aos que continuam a viver naquele que é desde há milhares de anos o seu habitat natural, e onde, de facto, tudo serve para alguma coisa. Esqueçamos, por favor, todos aqueles que vieram instalare-se nas cidades, onde vivem maioritariamente de orçamentos governamentais. É uma tristeza ver uma esquimó obesa, de fato de treino cor-de-rosa e ténis pretos com luzres que acendem nas solas, o cabelo pintado de verde já com as raízes à mostra e com uma permanente que também já começou a perder o vigor, a deitar para o lixo a sua terceira lata de Coors enquanto acende um cigarro e fala ininterruptamente com um grupo de gente tão feio de ver como ela. Claro que é feio, mas enfim. A vida não é nenhum conto de fadas.

    [8] Ou antes, está agora a começar a descer por escassez de comido mais a Norte – e a consequência imediata destas explorações desesperadas é que há cada vez mais ursos polares sumariamente abatidos a tiro.

    [9] É aquilo a que se chama um bottom-dweller, ou seja, um explorador do fundo. As nossas tainhas, por exemplo, fazem exactamente a mesma coisa. E querem lá saber se estão a revolver o fundo mesmo ao lado de um esgoto. Fritam-se, temperam-se com algum sal e muito vinagre, e quando chegam à mesa estão absolutamente deliciosas.

    [10] Aqui podemos, também, considerar que o ornitorrinco tem qualquer coisa de hamster.

    [11] Tudo bem, claro – quando ainda não existiam outros grupos, era um regime tão bom como qualquer outro.

    [12] Parte deste tempo passado na água deve-se ao facto de, muito embora sejam omnívoros, precisarem de ingerir todos os dias metade do seu peso em carbohidratos para manterem a energia e a capa subcutânea de gordura que os mantêm vivos e activos. Outra parte é porque precisam de procurar todos os dias alimento que chegue para ingerir todo esse peso alimentar. E, finalmente, uma última parte destas doze horas é preguiça: a água doce não tem tão pouca gravidade como a água salgada, mas sempre tem bastante menos gravidade que a terra firme.


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