Autor: Clara Pinto Correia

  • E então as mulheres não servem para nada?

    E então as mulheres não servem para nada?


    É fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderá convertê-lo a outra fé

    OS SETE PILARES DA SABEDORIA

    T. E. Lawrence[1]


    Agora que já temos um novo Papa[2], sou de certeza a última pessoa a despedir-se de Francisco, com o mesmo carinho e a mesma saudade com que todos os outros se despediram, fossem eles católicos ou não – e isto, só de si, já tem forçosamente de ser um fenómeno espetacular, porque não me lembro de nenhum outro Papa, certamente não no meu tempo de vida,  que tenha deixado atrás de si tanta gente chorosa de genuína tristeza, incluindo um grande número de ateus que anteriormente nunca tinham prestado assim tanta importância como isso ao Cristianismo, a menos que fosse por causa das inúmeras guerras do presente. Muito provavelmente, os outros Papas também não tiveram um impacto e uma estima tão grandes na vida de todos os cristãos que se sucederam a Lutero[3], incluindo a casa dividida dos próprios anglicanos aquando da sua fundação[4]. Nenhum outro Papa mereceu nas suas exéquias a presença dos representantes das comunidades Muçulmanas[5] e Ortodoxas[6]. Francisco amou de tal forma o mundo inteiro, e foi capaz de trazer à superfície das pessoas tudo o que tinham de melhor, que não será de estranhar que um dia destes lhe atribuam alguns milagres e o elevem e santo. É indiscutível que teve imensa coragem, operou várias mudanças, e abriu muitas portas. Mas o passo em frente aguardado há mais tempo por milhares de fiéis continuou por dar. E, se nem Francisco o deu, sejamos honestos por uma vez na vida: no seio do catolicismo, agora só uma verdadeira revolução laica pode dá-lo. Meus senhores, cabeça erguida:  QUEM ESTÁ COMIGO?


    Nos últimos três anos que passei nos Estados Unidos foi-me dada a bênção de concretizar uma das duas grandes fantasias da minha vida, e não foi a de ser namorada do Mick Jagger. Foi antes a de cantar num coro de Gospel, de robe, pandeireta, e aquela sensação maravilhosa de flutuar alguns centímetros acima do chão quando actuávamos nos serviços de domingo[7]. Para concretizar este sonho juntei-me a uma igrejinha fundada em 1910 na Woodside Avenue de Amherst, onde ficava a minha Universidade, quase escondida por trás de plátanos enormes. De seu nome completo Goodwin Memorial African Methodist Episcopal Zion Church, era uma herdeira das Igrejas clandestinas onde os escravos negros iam buscar coragem para mais uma semana de desrespeito e trabalho árduo, e que agora se centrava sobretudo no perdão e na generosidade[8]. Embora o Methodist Episcopal indicasse claramente a junção de duas Igrejas protestantes, a African Church estava aberta a todos os credos que quisessem juntar-se aos seus serviços, e recebeu-me de braços abertos quando eu lá apareci a dizer que era católica mas preferia celebrar a minha fé com eles porque os católicos americanos eram muito chatos, extremamente reaccionários, e cometiam o pecado em tudo contrário aos ensinamentos de Jesus[9] de deduzirem dos seus impostos, a título de doação para efeitos de caridade, o dinheiro com que contribuíam no ofertório.

    Ao contrário de me escorraçarem por eu ser católica e ainda por cima branca,[10] aqueles protestantes que, logo à segunda semana, me convidaram para me juntar ao único tenor do coro, deram-me umas boas-vindas extremamente calorosas, interessaram-se imenso pela minha infância africana[11], e ainda abafaram uns risos com a minha descrição dos católicos americanos. À saída, um deles passou-me o braço pelos ombros[12] e contou-me a história da sua adolescência no Mississipi, quando era um alcoólico inveterado, incapaz de estudar ou de se aguentar mais do que dois ou três dias num emprego. Depois de tentar toda a espécie de tratamentos, e completamente em desespero de causa, a mãe levou-o à cabana de uma  velhinha. Entraram, e aquilo estava cheio de incensórios acesos, velas acesas, e ainda dezenas de variações a toda a volta da Senhora de Fátima com os Três Pastorinhos. Disse-me que não sabe o que foi que lhe aconteceu, mas que é evidente que foi um milagre. Uma luz muito branca rasgou-o de alto a baixo, e uma voz muito doce, vinda de muito longe mas perfeitamente audível, disse-lhe ao ouvido “escolhe o caminho certo e eu caminharei sempre contigo, meu filho.” Aquilo durou uma fracção de segundo, deixou-o todo a tremer e encharcado em suor, e a verdade é que desde essa altura, teria ele catorze anos, até agora que já estava reformado, nunca mais fora capaz de beber uma gota de álcool que fosse. Nem sequer um golo de BudLight[13] durante os jogos de basquete do Natal[14].

    Este homem chama-se Cyrus, e era o barítono do coro. Agora jogava golf e punha os seus automóveis clássicos a brilhar. Anteriormente, fora State Trooper. Só de olhar para ele, e de ouvir a sua voz, eu conseguia sentir claramente o meu pânico se ele alguma vez me mandasse parar numa autoestrada deserta, viesse lentamente até à minha janela com todos aqueles objectos bélicos que eles trazem pendurados à cintura, tirasse os óculos escuros, me pedisse a carta e os documentos do carro, e finalmente, passado imenso tempo, me dardejasse com aquele infalível “sabe por que a mandei parar?[15]

    black book on gray wooden table

    Enquanto episcopaliano, o Cyrus não podia nem acreditar em santos, quanto mais acreditar na Senhora de Fátima. Mas eu, que era católica e acreditava de certeza até porque era do país onde se dera o milagre, poderia por acaso agradecer-lhe por ele? Como o antigo polícia era o barítono do coro, eu puxei-o mais para trás e disse-lhe “esquece as palavras e harmoniza só comigo à segunda volta”. E ainda passámos ali uns bons dez minutos a harmonizar o MIRACULOSA, RAINHA DOS CÉUS. Até que, do carro que ia a passar na estrada, alguns dos outros gritaram, numa grande gargalhada, “Oh boy! ALELUIA! O Cyrus encontrou por fim a sua alma gémea!

    Não é verdade!”, gritei-lhes eu de volta. “Sou eu que estou a ver se saco um green card a este pobre inocente!

    Já me tinham dito que as mulheres africanas são frescas,” comentou o Cyrus com o ar que devia ter quando era Trooper.

    Ao fim de pouco tempo, alguns deles tinham-se tornado dos melhores amigos que fiz na América, e de quem hoje tenho imensas saudades.

    black cross under blue sky

    Este fragmento mínimo das minhas memórias não teria grande coisa a ver com os Papas, nem com a ciência das religiões, se não fosse pelo facto de a Igreja Africana, sendo protestante, ter uma celebração com muitos pontos de contacto com a Missa católica. Há duas leituras, selecionadas e lidas à escolha do núcleo duro da comunidade ou por voluntários sem grau que se oferecem – eu, por exemplo, pedi para ter a honra de ler a história da Grande Mãe Deborah, que salva o povo semítico no Livro dos Juízes. Segue-se um Evangelho, selecionado e lido pelo oficiante do serviço. Segue-se a preparação para a Comunhão, onde todos partilhamos pão e vinho. Quando finalmente nos levantamos, rezamos o Pai Nosso – altura em que ninguém se benzia a não ser eu, mas também nunca ninguém me chateava. Há mais umas partes de que não me lembro bem, mais uma das nossas canções levitantes – e a seguir, provavelmente o que toda a gente quer ouvir mais além do coro, vem o sermão. É enorme, grandioso, parece sempre que dirigido pessoalmente a cada um de nós, tão impressionante que da primeira vez desatei a chorar e me alguém me passou logo uma caixa de Kleenex com o sussurro “it’s OK to cry” pelo que fiquei a saber que não era só eu quem chorava durante os sermões. Finalmente, nós cantamos a canção de despedida, o pessoal vai saindo, e connosco vai uma nova energia, uma energia limpa e renovada, para nos ajudar a encarar a semana seguinte.

    A diferença esmagadora para mim foi que, quando me juntei à Igreja Africana, o oficiante de serviço era uma mulher. Feia como cornos, sem grande empatia, incapaz de brilhar nos sermões como se espera que um bom pastor brilhe (“women can’t preach,” disse-me o Cyrus com um simples encolher de ombros), mas com um comando das partes que é o pastor que  faz no altar absolutamente natural para a comunidade. Era ela quem lia o Evangelho, quem consagrava o pão e o vinho, quem o partilhava com todos nós, e quem orava mecanicamente as partes que é o oficiante que reza sozinho. Nunca ouvi ninguém dizer que isto fosse uma conquista recente das mulheres, embora estivéssemos em plenos dia dourados da Michelle Obama toda musculada e houvesse um grupinho de três fufas brancas que semelhantes a camionistas que marcava sempre presença – aliás, ao fim do meu primeiro ano de AME houve uma delas, que tinha sido freira durante muito tempo, que foi ordenada pastora, e também ninguém fez nenhum grande alarido a esse respeito.

    a group of people standing in front of a statue

    E depois, como ninguém gostava daquela pastora, no início do ano seguinte esbarrei noutra diferença esmagadora. O pastor que veio celebrar os serviços connosco era meio taumaturgo, meio charlatão, mas pelo menos era absolutamente arrebatador e fazia sermões inequivocamente sulistas, cheios de milagres e de vitórias dos espíritos bons contra a tentação dos maus caminhos, e a malta chorava, chorava, chorava, até que nós acabávamos de cantar e saímos dali literalmente com imensa Força connosco.

    Surpresa: ao terceiro domingo, apareceu na igrejinha a mulher do pastor, ela própria ordenada pastora. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo comprido todo entrançado, vestida de branco e descalça. Foi ela que assegurou vários momentos críticos do serviço, como a leitura do Evangelho e a partilha do pão e do vinho. Durante o sermão usou um batuque para marcar o ritmo e fez um longo, pungente, um arrepiante vocalizo africano, que acompanhava na perfeição a voz entusiástica do marido. Toda a gente gostou tanto que, no domingo seguinte, foi ela própria quem fez o sermão inteiro, com o marido cheio de orgulho sentado na primeira fila a observar. O tema escolhido era a compaixão, e ela entrou de mansinho. Mas foi por ali fora numa tamanha espiral ascendente que, às tantas, o mesmo Cyrus que me tinha dito “women can’t preach” estava a gritar “Preach! Preach!”, enquanto o Roger, com todo o poder da sua voz Mowtown, gritava “Teach us! Teach us!” Foi sublime.

    a church with a steeple and a steeple on top of it

    Ou seja, os metodistas e os episcopalianos, assim como vários outros protestantes, podem casar-se e ter uma vida normal. Mais bonito ainda, podem casar-se com colegas da mesma pastorícia e dar Força um ao outro, ou encher-nos de Força a nós celebrando o serviço juntos. Quando o nosso pastor celebrava sozinho, aquilo era sempre assombroso. Mas, quando celebrava com a mulher, ou lhe entregava por completo as rédeas da celebração, aquilo era de uma beleza que até fazia doer.

    É isto, esta importantíssima felicidade da fé, que a Igreja Católica nega, em nome da “tradição”, aos seus fiéis e aos seus oficiantes. Os homens e mulheres que desejam afastar-se do mundo para orarem e meditarem dentro de muros de conventos, tornando-se assim monges e freiras, estão no seu direito de escolher essa vida[16], e ao fazê-lo fazem uma escolha extremamente importante para todos nós. Que seria da civilização ocidental sem Juan de la Cruz e Madre Teresa de Avila, sem Hildegard von Bingen[17] nem Teresinha de Lisieux? Ou mesmo a Madre Lúcia, vá?

    Mas nada disto se aplica aos homens e mulheres que vivem entre o resto da sociedade, e procuram orientar os rebanhos das suas paróquias para o bem, mas parecem esquecer-se da felicidade – da sua e da dos seus fiéis.a É evidente que muitos problemas que infestam os tempos modernos desapareceriam se os padres pudessem casar-se e formar uma família como a de toda a gente, e que as missas predisporiam os fiéis a sentirem-se muito mais felizes.

    beaded brown rosary

    Note-se que os Padres da Igreja não tinham quaisquer dúvidas a respeito da importância da sensação de felicidade. Santo Ambrósio, bispo de Milão, o patrono e conselheiro espiritual de Santo Agostinho, chegava a ter na sua catedral coristas seminuas escolhidas a dedo, vestidas com roupas lindas e sensuais que dançavam magistralmente a som dos coros. Da mesma forma, por esta altura (século IV, ainda antes do concílio de Niceia) as igrejas mais importantes da Europa começaram a encher-se de crocodilos pendurados do tecto, cornos de narval encaixados em encastes fabulosos, reluzentes de jóias, e apresentados como sendo de unicórnio, ovos de avestruz usados para bases de castiçais, aves exóticas de grande porte empalhadas como que em pleno voo – tudo o que pudesse atrair os transeuntes às igrejas como num cabinet de curiosités[18] e depois levá-los a entrar, tudo o que testemunhasse, pela sua beleza e esplendor nunca antes vistos, a grandeza e o poder de Deus, era usado sem hesitações para aumentar a cristandade.

    Muito deste trabalho era feito pelas mulheres lado a lado com os homens, tal como fora no tempo de Jesus, e em todos os Actos dos Apóstolos, sobretudo nas últimas Cartas de São Paulo, quando o grande tradutor do Novo Testamento para as multidões ignorantes ordena responsáveis totais pela missa várias mulheres, às quais agradece explicitamente, com o nome bem em destaque, no final do seu livro.

    Por que é que a Igreja não perpetuou nenhuma destas tradições? Como é que é possível que os teólogos católicos não reparem no respeito que Jesus manifesta constantemente pelas mulheres? Quem é que encontrou o Sepulcro vazio, se calhar foi algum gajo? Por favor perdoem-me a linguagem mas estou farta destas disparidades e se não me engano a primeira pessoa a chegar ao Sepulcro primeiro e avisar toda a gente a seguir foi Maria Madalena. Se isto não é dar às mulheres um papel de enorme importância dentro da narrativa cristã, então olhem – não sei o que é.

    sun rays inside cave

    Não sei mesmo. Subjugada à sua liderança masculina, a posição das mulheres da Igreja Católica foi descendo de mal a pior. Tinha eu dezassete anos e, três anos volvidos sobre a Revolução, num país ainda completamente em festa, estava quase a sair de casa porque o famigerado Ano Propedêutico, lecionado pela televisão, não nos obrigava a estarmos em sítio nenhum em particular – e eu tinha resolvido ir trabalhar para uma residência de meninos da telescola perto de Montalegre. Lembro-me especialmente bem destes pormenores porque foi quando o Papa Paulo VI emitiu uma declaração oficial contra a ordenação de mulheres. A Sagrada Congregação para A Doutrina da Fé divulgou a Declaração sobre a Questão da Admissão das Mulheres ao Sacerdócio Ministerial [19]para publicação em 27 de janeiro de 1977. A Declaração afirmava que a Igreja, “na fidelidade para com o Senhor, não se considera autorizada a admitir mulheres a ordenação sacerdotal.”

    Na altura, com a cólera dos meus dezassete aninhos, eu fechei-me no quarto e berrei logo,

    Filho da Puta!”

    Maria Clara, o que é que tu estás a dizer?”, perguntou a minha mãe do outro lado da porta.

    Estou a chamar nomes ao Papa Paulo VI,” respondi eu.

    Nisso tens toda a razão,” respondeu ela, com um suspiro conhecedor de militante. “Mas modera-me essa linguagem se fazes favor.”

    E então eu suspirei baixinho,

    Cabrões.[20]

    Papa Paulo VI

    Aqueles gajos tinham a lata de referir a sua fidelidade para com o Senhor?

    Mas o Senhor não era um grande amigo das mulheres?

    A Sagrada Congregação, sempre a meter um bocado os pés pelas mãos[21], afirma que o que aconteceu e se escreveu nessa altura foram apenas considerações inspiradas pelo Espírito dos Tempos.

    É preciso ter uma grandecíssima cara de pau.

    Então os nossos tempos contam e os tempos de Jesus é que não contam????

    Desculpem, mas…[22]


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Vulgarmente conhecido por “Lawrence da Arábia”.

    [2] A Ordem Agostiniana é pouco conhecida em Portugal, e não tenciono escrever um livro de texto a seu respeito. Para os interessados, no entanto, recomendo A HISTORY OF GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Knopf, 1993.

    [3] Enfim, o Reizinho Eduardo VI de Inglaterra, filho de Jane Seymour, que subiu ao trono depois da decapitação de Ana Bolena, aparentemente ainda não satisfeito com os rios de sangue derramados pelo seu Pai Henrique XVIII (como veremos), antes de morrer aos catorze anos ainda teve tempo para escolher antes a Fé Evangélica e derramar mais bastante sangue (viveu muito pouco e esteve doente quase todo o tempo,  é preciso ver).

    [4]  Recusamos aqui ao tempo de vida de Henrique VIII, que, como o Papa não lhe anulava o casamento porque não podia dar-se ao luxo de se incompatibilizar com os Reis Católicos de quem a sua primeira esposa, Catarina de Aragão, era filha, criou a fé Anglicana para poder separar-se dela e casar com Ana Bolena, por quem estava então perdidamente apaixonado,  e de quem esperava vir a ter muitos filhos do sexo masculino (em vez deles teve a futura Isabel I, mas já não viveu para ver a glória do reinado da Segunda Rainha de Inglaterra. O processo de mudança foi extremamente sangrento e não menos doloroso, sobretudo porque obrigou Henrique a decapitar o seu grande amigo Thomas More, que se recusou a abandonar a fé católica, assim como se recusou a fugir.

    [5] Esta união aos ocorreu a partir de um sentimento legítimo de perda de um protector sublime das suas comunidades, independentemente da ferocidade como estas comunidades possam lutar entre si, desde a sua criação até’ aos nossos dias. Ainda por cima, o terceiro ramo do Filhos de Abraão, representado pelo judaísmo, foi tão indiferente quanto possível aos outos Papas, mas desenvolveu um ódio crescente a Francisco à medida que ele foi falando contra o “genocídio dos palestinianos” tal como visível na Faixa de Gaza. Para evitar uma nota em forma de calhamaço, recomenda-se THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong.

    [6] Idem. Mas, se quiserem a referência toda para saberem a história toda, trata-se de THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Khnopf, Nova Iorque, 2000. Basta olhar para as datas dos dois livros colossais da autora para percebermos logo que o nosso mundo tem vindo a tornar-se cada vez mais cruel e desumano. Acreditem, isto não é só uma dedução: eu li os dois de ponta a ponta, e torna-se evidente que estamos a perder a nossa Graça, seja ela qual for.

    [7] Isto quer obviamente dizer que ainda vou a tempo de ser namorada do Mick. Eu estou viva, ele está ainda mais vivo do que eu, e se uma das minhas duas fantasias já se cumpriu é evidente que a outra também vai cumprir-se. Eu sou extremamente paciente, e, como os próprios Stones escolheram intitular um seus discos ainda do tempo do vinil, TIME IS ON OUR SIDE.

    [8] No primeiro ano desta estadia, vi-me obrigada a sobreviver apenas com os mil dólares por mês da minha bolsa da Fulbright. Os negros americanos são sistematicamente muito mais pobres do que os brancos, mas até os meus amigos da Igreja ficavam de queixo caído quando eu lhes dizia isto, porque o limiar de pobreza naquela zona é de 2600 dólares por mês. Por isso mesmo, foram eles que pagaram as lentes e armações dos meus primeiros óculos graduados quando comecei a ter dificuldades de leitura e escrita. Num domingo de Maio, o Cyrus, que agora era o organizador das actividades mais delicadas da Igreja, passou-me um envelope para as mãos no fim do Serviço sem me dar quaisquer explicações. Quando cheguei a casa e o abri, tinha lá dentro duzentos dólares em notas: era um peditório especial que tinham feito para me ajudarem. Mais tarde, houve um fim do diaem que o meu grande amigo Roger, o baixo do  coro e a voz mais Mowtown que imaginar se possa, me bateu à porta com um cheque de sessenta euros em compras no supermercado finaço por trás de minha casa: “Fui lá agora comprar aquele teu azeite português e a montra dos peixes tinha daqueles crabcakes que tu adoras, enormes, muito frescos, e este foi o meu troco, e então lembrei-me de pedi-lo antes em vale de compras para poderes ir lá comprar uns quantos e mais o que te apetecer.” Isto são só uns exemplos. Ajudaram-me com muitíssimas mais coisas.

    [9] Jesus, sobre a caridade: “Não deixes que a tua mão esquerda saiba o que faz a tua mão direita.”

    [10] O “ser católica” ainda vá que não vá. O “ser branca” era questionável, porque os americanos nunca me comeram realmente por branca. Mas os meus colegas da Universidade estavam cheios de medo dos maus tratos que os pretos iriam infligir-me se eu ousasse entrar na igreja deles. Não se iludam: já corri o mundo inteiro, e nunca estive num país tão incrivelmente racista como a América.,

    [11] A esmagadora maioria dos autodesignados afro-americanos nunca na vida pôs os pés em África.

    [12] Vê-se logo que não era branco. Esses andam sempre cheios de medo do assédio sexual e nunca tocam em ninguém.

    [13] A Budweiser, já de si, é pouco mais do que água com gás. Da BudLight, quanto menos se falar melhor.

    [14] Faz parte da tradição. A família junta-se toda, mas, regra geral, as pessoas têm pouco que dizer umas às outras. Para acudir a este marasmo social e evitar a inevitabilidade de refrega desagradáveis, a televisão passa jogos de basquete cheios de superestrelas desse desporto, e com outras tantas de vários outros domínios nos intervalos, encarregues de publicidades que só passam nessa altura, como por exemplo o Bob Dylan a promover o novo Jeep Chevrolet.

    [15] Toda a gente sabe que se trata de uma pergunta retórica. Os State Troopers fazem-na quando passamos por eles em excesso de velocidade, e a seguir passam-nos uma multa de cento e tal dólares.. Por acaso foi uma coisa que me aconteceu a mim com relativa frequência. Com tanta frequência, aliás, que eu paguei as multas todas mas eles acabaram por mandar-me ir ao curso de fim de semana de recuperação psicológica, onde estava uma psicóloga gorda com ar de camionista, eu, e mais nove exemplares perfeitos do pior trailer park white trash que é possível encontrar nas montanhas ali da zona. Não se pode dizer que não tenha funcionado. Cheguei aqueles dois dias a casa a chorar como uma Madalena, e, só de pensar em ter de voltar a sofrer um outro fim de semana daqueles, a verdade é que reduzi substancialmente a minha velocidade de cruzeiro. A única outra vez em que um State Trooper me mandou parar foi graças ao livro arbítrio dos seis aninhos do meu filho Ricky, que achou por bem soltar-se do cinto, sair da cadeirinha, e deitar-se ao comprido no banco de trás, com a cabeça no colo do irmão, que ficou caladinho que nem um rato. Eu ia a guiar no banco da frente, e não dei por absolutamente nada até ter aquelas malditas luzes vermelhas e azuis coladas a mim. Eles ainda não falavam inglês, mas a fúria assustadora daquele Incredible Hulk Azul e cheio de armas entendia-se bem. Nunca mais me mandaram parar.

    [16] Desde que sejam mesmo eles quem a escolhe.

    [17] Reconheço que escolher Hildegard é esticar um bocado a corda, já que esta mulher admirável, pioneira da genética mendeliana logo no século XI, passou a sua vida de Madre Abadessa a correr o mundo onde conseguia chegar para proferir os seus sermões que todos queriam ouvi. Mas a verdade é que depois voltava para o seu convento e retomava o voto de silêncio, excepto com o jardineiro que lhe semeava as plantas segundo os padrões que ela pé-seleccionava.

    [18] Esta tradição, iniciada cedo na Idade Média e sobretudo em Paris, mandava os agentes  das casas ais da nobreza, ou mesmo dos homens mais marcantes do clero, correr o mundo inteiro à procura de artefactos naturais estranhos e apelativos, ou preparados por tribos distantes, que depois eram colocados pelos joalheiros da corte em suportes ousados, como por exemplo vários pés de raiz de mandrágora revestidos de pele de jiboia nas pontas mais finas e expostos nas zonas mais grossas, cheios de pedras semipreciosas à sua volta. Todos estes artefactos, que ainda ninguém sabia exatamente a que correspondiam, eram expostos em montras de vido nas paredes para chamar a atenção dos que passavam, e tinham lá dento conjuntos lendários de Monstros & Maravilhas. A partir de Paris, e até à Revolução Científica, estes Gabinetes de Curiosidades foram o primeiro grande despoletar a curiosidade ocidental para as Ciência da Natureza.

    [19] Estão a ver o caos burocrático que isto foi.

    [20] O nosso respeito pela nossa mãe era incontornável. Creio que um dos piores momentos da minha vida foi quando, aos dezasseis anos, me distraí completamente no meio do falazar dos meus amigos e disse um foooo-da-se bem marcado e bem sonoro a falar com ela ao telefone. Já estou corada só de me lembrar disso.

    [21] Veremos quanto na próxima crónica.

    [22] …QUE MERDA É ESTA????

  • ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos

    ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos


    É noite; o astro saudoso
    Rompe a custo um plúmbeo céu,
    Tolda-lhe o rosto formoso
    Alvacento, húmido véu:
    Traz perdida a cor de prata,
    Nas águas não se retrata,
    Não beija no campo a flor,
    Não traz cortejo de estrelas,
    Não fala d’amor às belas,
    Não fala aos homens d’amor.

    João de Lemos

    LUA DE LONDRES (1872)

    Para compreender melhor o título[1]


    A pessoa já quase não se lembra do tempo em que existiam em Portugal verdadeiros políticos dignos desse nome. Esta gente que nos governa agora é para lá de má. É pior que decepcionante. É mais desaconchegante do que este inverno que começou em catapultas de chuva em pleno Outono e se manteve assim, gélido e encharcado, até à Primavera. Dentro dos seus sobretudos azuis, com os seus sapatos pretos, repetindo em toda a parte os mesmos sorrisos sobranceiros e as mesmas palavras de quem não tem absolutamente nada para dizer, esta gente que nos governa debaixo de uma profusão cansativa de chapéus de chuva escuros transportados por vassalos silenciosos é profundamente triste. Ainda por cima, sai-nos cada vez mais cara com os seus dares e tomares que cada vez parecem menos ir dar seja onde for. Estará tudo completamente perdido?

    A verdade é que o povo português já foi espantosamente sensato e paciente antes.

    Mas este é um desafio sem precedentes.


    De repente, olha-se para toda aquela marabunta[2], ouve-se toda aquela gente mandar vir, e alguma coisa em nós faz clic a braços com um fenómeno muito estranho. É que, embora saibamos que representam ideias e ideais diferentes, começou a parecer-nos que são todos iguais. Ainda por cima, parece cada vez mais que estão todos a dizer a mesma coisa, falando exactamente da mesma maneira. O fenómeno é insuportável, mas depois de detectado é como o poço da Alice: estamos a cair lentamente lá dentro sem sabermos onde nos leva, desesperadamente incapazes de voltar à superfície, que era o sítio onde estava a realidade que estávamos habituados a conhecer. Tentamos racicionar, mas é inútil: nem sequer sabemos que latitude e que longitude é que já percorremos[3]. E então dá vontade de tapar os ouvidos com as mãos e chamar pela mãezinha[4], porque parece mesmo que está tudo maluco.

    Depois percebe-se que isto é o que parece porque esta é a versão mais simplista dos acontecimentos, e, ao fim do dia, a Comunicação Social gosta sempre de apontar os microfones ao bobo da corte, que a presenteia com as afirmações mais pobres de espírito, mais francamente tontas, mais descaradamente insultuosas, e portanto mais divertidas. Por isso somos obrigados a seguir a política portuguesa com comentários finais a cargo de André Ventura, a única pessoa vestida de político que é capaz de concluir um bloco informativo com a declaração “na minha opinião, um polícia branco que mata um gajo preto depois do anoitecer não é nenhum psicopata, é mas é um herói, a quem deviam fazer um busto de homenagem, e nunca na vida abrir um processo de investigação,[5]” e sair imune.

    E sair imune, caraças[6] – mas há que entender que saiu imune exactamente porque é o bobo.

    Enquanto bobo, a criatura tem um direito ao microfone nunca antes visto. E, enquanto homem-espectáculo, basta-lhe apanhar um microfone desses pela frente para desatar a espingardar qualquer uma dessas javardices sem fundamento nem conteúdo que um homem gosta de ouvir quando está profundamente revoltado ou se sente muito perdido. Isso, hoje em dia, são quase todos os homens portugueses, e os media sabem isto muito bem. Em resultado, todos os dias temos que gramar com o palhaço. E, de facto, quando nos servem o País visto pelos olhos dele, parece mesmo que está tudo completamente maluco. Quem gosta de circo, e gosta de palhaços, sabe que é a isso mesmo que os palhaços se destinam: estão ali para convencer os espectadores que foram antes eles, todos eles, que enlouqueceram colectivamente. E entretanto, no seu mundo à parte, os palhaços continuam cheios de razão, como sempre estiveram. Não é por acaso que há tanta gente com fobia a palhaços. Quando os meus filhos eram pequeninos trepavam de pânico por mim a cima de cada vez que entravam palhaços na arena. Depois lá se habituaram a ficar quietinhos no seu lugar, mas todos a tremer e de olhos fechados.

    Com estas memórias simpáticas do Circo Chen nos Natais de Lisboa recordamo-nos de que os olhos de André Ventura não veem o mundo como os olhos das pessoas normais, caímos em nós, e o caso torna-se mais sério. A triste figura que têm andado a fazer todos aqueles funcionários públicos sem um único lampejo de inspiração que são hoje em dia os nossos políticos não têm propriamente a ver com, por alguma razão que nos transcende, todos ficarem malucos, cada um para seu lado.

    Tem antes a ver com padecerem todos é de uma angustiante falta de qualidade.

    E comportam-se como se lhes fosse completamente indiferente o que o comportamento medíocre deles faz aos portugueses.

    Vamos lá ver. Um bom político governa. Uma boa oposição impõe-lhe mudanças de rumo. E, supostamente, os eleitores ficam a ganhar com tudo isto. Mas, neste caso, a governação trocou insultos, e pelo meio foi descendo cada vez mais baixo até bater mesmo no fundo da Fossa das Marianas – sem que os portugueses ganhassem absolutamente nada com isso. Nos últimos tempos, em vez de tratar de todo e qualquer assunto que seja verdadeiramente importante para a qualidade de vida das pessoas, aquelas aves[7] passaram dias, semanas, meses, a espiolhar o escândalo das empresas do primeiro-ministro e da sua família. O primeiro-ministro não explicou nada que tornasse a situação menos escandalosa, e a partir daí fez toda a gente perder ainda mais tempo repetindo ad nauseum que não tinha absolutamente mais nada a dizer uma vez que já tinha feito da sua vida um livro aberto. Seguem-se episódios dignos de uma telenovela brasileira, daquelas que se passam no século XIX numa cidade no meio do mato onde a única lei que vigora é a do mais forte ou a do mais pérfido, que se arrastam durante um ano com detalhes tortuosos que ainda não tínhamos sonhado possíveis, e no entanto esta democracia já leva atrás de si um lastro considerável de péssimos políticos.

    Mas é que estes são piores.

    Primeiro, numa fuga para a frente de estupidez nunca vista, o governo, apoiado por todo o partido no poder, passa uma moção de confiança a si próprio. Em resultado óbvio, a oposição em peso passa uma moção de censura ao governo. Em decorrência inevitável, o Presidente da República dissolve a Assembleia e convoca novas eleições para amanhã. Reiterando imediatamente o seu pé de chumbo, o partido que estava no poder volta a pôr à cabeça da sua lista o mesmo primeiro-ministro altamente suspeito de grandes trafulhices com as suas empresas familiares. À falta de alternativas excitantes, e como simples factor decorrente de um enorme cansaço, até é possível que o povo português decida manifestar-se numa espécie de triste vingança poética[8] e faça com que este ex-primeiro-ministro ainda volte a ser primeiro-ministro.

    Em tudo isto gasta-se imenso dinheiro, perde-se imenso tempo, e talvez nenhuma destas duas coisas muito más seja a pior.

    Eu digo que a coisa pior, mas pior mesmo, é que, assim, vamos ser obrigados a viver com quatro eleições ensanduichadas em pouco mais de um semestre. Ainda nem estamos recompostos da telenovela do século XIX no meio do mato e já vamos ser obrigados a votar para legislativas em Maio; e depois seguem-se votos para autárquicas em Outubro, e para presidenciais em Janeiro[9], imediatamente seguidas da segunda volta dessas mesmas presidenciais se ainda alguém estiver vivo. Ora, a precisar de digerir três campanhas de seguida com toda a interferência que as campanhas causam na vida quotidiana, com imensa a gente a dizer-lhes “vota em mim” de dezenas de diferentes formas por centenas de razões diferentes – têm a certeza de que o pessoal consegue manter-se concentrado? Às tantas ainda saberemos para que serviço público é que aquela ave[10] específica nos pede que votemos nela? Estão a imaginar bem quantas pessoas vão aparecer a apertar-vos a mão quando vocês estão cheios de pressa, a dar-vos papelinhos que ninguém vai ler e que são, todos eles, árvores deitadas abaixo para nada? E quantas vezes seguidas, desta vez, é que vão ter gente que não conhecem de lado nenhum tratar-vos carinhosamente por Amigos, Companheiros, Camaradas, e aquele Portuguesas e Portugueses muito melífluo em que as senhoras passam sempre primeiro, para depois começarem todos a gritar-vos aos ouvidos em mais um comício que a certa altura começa mesmo a ser impossível manter nota de quem é e para que é? E o pior é que tudo isto acontece enquanto aqueles carros com música e alguém a bradar qualquer coisa pelo megafone, que parecem sempre anunciar uma tourada, não param de correr pelas ruas como baratas do inferno. E nós também já não sabemos o que é que anunciam ou defendem – mesmo descontando a possibilidade de estarem a chamar o povo à tourada dessa tarde.

    Há mais.

    A total falta de visão dos políticos que desencadearam este canhão gigante de exercício eleitoral foi tão grande que ainda há mais.

    Preparem-se para oito meses que vão passar por nós como um sonho estranho[11].

    Durante todo este tempo, mas todo este tempo, todo este tempo mesmo[12], hão de ser arruadas, atrás de arruadas, atrás de arruadas. Hão de ser imensas, porque dão nas vistas, não requerem grande preparação, reciclam-se, e, desde que o Candidato consiga caminhar, não há nada mais simples de fazer do que uma arruada.

    O que, antes de mais nada, quer dizer que vamos esbarrar com imensos momentos imprevisíveis, e não necessariamente agradáveis, em que de repente não se pode passar na rua.

    Ainda piores são aquelas alturas em que passar na rua é perigoso, porque – uma vez mais – o cidadão incauto corre sempre o risco de ser encostado à parede por um Candidato a Qualquer Coisa seguido pelos seus seguidores, que ainda é capaz de lhe perguntar “Olá Amigo, sabe quem eu sou?” – e o cidadão, tão evasivo quanto possível, já sem saber se há de ser abrupto[13] ou se há de manter o que ainda lhe resta de compostura eleitoral: “Bem, eu conheço a sua cara da televisão, claro, mas agora de repente estou com uma branca, não me lembro do seu nome” – o Candidato sorri e aproxima-se ainda mais arregaçando melhor as mangas, várias mãos estendem brochuras e panfletos, até um cartaz, e ainda um cravo vermelho, como aliás todos eles têm na lapela, mas para o pobre cidadão assim acossado isso não quer dizer absolutamente nada porque com cravos andam todos, no outro dia até na comitiva do Ventura iam umas miúdas muito giras a oferecer cravos vermelhos, suspeita-se que eram manequins contratadas à hora mas de qualquer maneira a intenção é que conta – “Deixe-nos informá-lo sobre o meu projecto para Portugal, antes de mais nada eu sou”– o cidadão ouviu o singular seguido por “Portugal” e bastou-lhe, o nome de uma única pessoa associado ao nome do País por inteiro revela-lhe que estão em causa as Presidenciais, ele está saturado de campanhas em geral e de arruadas em particular[14] porque as ruas ali são todas muito estreitinhas, só quer é despachar o assunto e então agarra naquelas árvores mortas que lhe estendem, livra-se dos seguidores com o ombro e acena seriamente ao Candidato enquanto inicia a fuga: “Ah mas eu sei, eu sei, o senhor é o Almirante que salvou o País do COVID, é um Herói, e conte comigo, eu vou votar em si.” – e desaparece, tirando partido da sua vantagem sobre a comitiva de conhecer muito melhor aquele dédalo de ruelas.

    O Candidato, que na realidade era o Vitorino das Rãs, não desanima, como nunca desanimou. Diz aos seus seguidores que já se viu que a disponibilidade das pessoas que vão a passar nas rua estreitinhas daquele lugar não é grande coisa, melhor será entrar num tasco, pagar umas rodadas, confraternizar, deixar por ali os materiais de propaganda como quem não quer a coisa, contar ao pessoal histórias verdadeiras e muito sentidas das suas lutas regionais, e deixar as gentes dali daquelas ruelas ver bem as filhas de vários seguidores que vieram hoje na camioneta, estão excitadíssimas com a sua estreia na política[15], desfazem-se em risinhos, e são boas como o milho[16]. Daí a uma hora, visitarão outro tasco. Daí a três horas, até aproveitam o tasco para ver o jogo. Nesse dia a estratégia foi um sucesso. Mas há quem diga que foi só porque nesse dia nós ainda tínhamos aquele treinador pouco dotado mas mesmo assim ganhámos o jogo, que por acaso era contra a Inglaterra e passem bem que o País está ao rubro.

    Bem contados são oito meses disto, e muita gente a candidatar-se a muita coisa, sobretudo tendo em conta a quantidade de estranhos personagens[17] que já se candidataram ou ameaçam vir a candidatar-se à Presidência da República. Uma eleição a nível nacional é sempre um fenómeno extremamente interessante, e não é só pelos resultados. Os programas que os candidatos apresentam, os tópicos onde põem a sílaba tónica, a escolha de slogans e de frases-feitas, a forma como se vão desenrolando os acontecimentos à medida que os autocarros das campanhas cruzam o País, as cabeças de cartaz que fazem concertos para cada facção, os debates, tudo é um dedo no pulso do País que tanto pode ser deprimente como hilariante, mas uma coisa é sempre certa, está cheio de vida. Agora – Três grandes eleições a contra-relógio e a seguir ainda um desempate? Alguém acha que isto vai correr bem? Será realmente preciso um sujeito ser especialista em análise política, ou em sociologia, ou em comentário jornalístico, para explicar ao País e ao mundo por que é que a abstenção em Portugal não para de subir e as eleições se saldam por resultados bastante bizarros?

    Epá, não gozem comigo[18].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



    [1] Para todos aqueles que não chegaram a este mundo a tempo de identificar imediatamente a referência, aqui vão aos primeiros acordes da imorredoira canção dos THE DOORS, PEOPLE ARE STRANGE: people are strange/ when you’re a stranger/ faces look ugly / when you’re alone/ women seem wicked/ when you’re unwanted/ streets are uneven/ when you’re down… e vários outros desenvolvimentos igualmente deprimentes.

    [2] Figura de estilo. Em Angola aplicava-se a tudo o que metesse muitas criaturas sempre em movimento, das formigas brancas às crianças. No entanto, a aplicação do termo às crianças já era, em si mesma, uma figura de estilo. Culpa delas. Nunca paravam quietas. De onde a expressão, também angolana, e também metafórica, “criança ferra.” Como é evidente, as crianças não possuem ferrão, pelo que no sentido literal não podem ferrar. Mas o uso do termo dispensa explicações.

    [3]Que estranho,” pensa a Alice logo na segunda página da história, algum tempo depois de ter caído no buraco do coelho, não ter conseguido voltar para cima, e por muito que dê aos braços continuar perpetuamente a cair, muito devagar. “Sempre gostava de saber que latitude e que longitude é que já percorri.”

    [4] Não necessariamente uma figura de estilo. Eu, como vivo sozinha com o Sebastião, posso dar-me ao luxo de fazer isso mesmo com os meus horrores de estimação. Ele põe a cabeça de lado a olhar para mim e arrebita as orelhas com o seu arzinho de cachorrinho amoroso. O que me faz passar logo a irritação, porque um cachorrinho amoroso com 54 kg é uma imagem absolutamente hilariante.

    [5] Versão literariamente melhorada das declarações originais do actual candidato à Presidência da República, que acha mesmo que os polícias que resolvem as coisas matando as pessoas são os verdadeiros heróis do dia.

    [6] Talvez aqui viesse a calhar um ponto de exclamação se essa não fosse a pontuação que eu mais detesto. Desculpem. Já tenho um certo direito a ter as minhas manias.

    [7] Parafraseando Aristófanes, 445-386AC

    [8] É mesmo. Toda a situação é tão triste que até as vinganças poéticas, completamente destituídas de fulgor e de garra e de sangue na guelra, são apenas isso mesmo – tristes. Tristes assim mais ou menos como a LUA DE LONDRES do João de Lemos.

    [9] De nada. É sempre um prazer googlar factoides interessantes como este para vossa informação como quem não quer a coisa.

    [10] Não há como aprender com os Clássicos, que já sabiam tudo – no caso dos Gregos, até sobre o funcionamento das democracias. Chega a ser frustrante.

    [11] Em sinal de respeito pela democracia omite-se aqui a hipérbole “pesadelo”, por muito que apeteça usá-la.

    [12] Recorde-se: pelo menos oito meses.

    [13] Eufemismo.

    [14] Note-se que, se vamos nas Presidenciais, já estamos na terceira campanha em programas ininterruptos.

    [15] Estas meninas andam todas no secundário e já votam. Estudaram o programa do Amigo do Pai com a dedicação com que estudam para os exames. Passaram a noite em claro a fazer perguntas umas às outras para se certificarem de que sabiam responder a tudo. Foi muito proveitoso, porque durante o tour do Candidato foram abordadas por numerosos jovens interessados em conviver saudavelmente em termos socio-políticos, mostrando-lhes também a noite da sua terra.

    [16] Claro que o Candidato não diz “boas como o milho” diante dos pais das meninas, nem que mais não seja porque um Candidato tem que ter Tacto. Mas a ideia é essa, e elas sabem-no melhor do que ninguém. Mais aperaltada, só mesmo a Shakira antes de entrar em cena.

    [17] Havia, já há muitos anos, um programa de televisão em todos os visados tinham alcunhas, e a do Marques Mendes era “O Anãozinho Pérfido.” Só para dar um exemplo.

    [18] Por acaso é a conclusão de uma das minhas anedotas preferidas. É pena toda esta história não ser uma anedota, no entanto.

  • ‘Flooding the zone’: o regresso da censura

    ‘Flooding the zone’: o regresso da censura


    Antes de mais nada, é preciso entender que este meu grupo de amigos com quem eu percebi que a informação americana estava a ser cuidadosamente manipulada são todos professores universitários mais velhos do que eu, as pessoas inteligentes em quem eu confiava para discutir as minhas ideias e a minha forma de expor em público as questões mais controversas. São pessoas que ainda hoje seguem as notícias, que ainda hoje se indignam[1], e que ainda hoje me mandam clips dos newsgroups que subscrevem[2] sempre que lhes parece que é bom que eu saiba. À excepção do Jim, que é republicano e gosta de falar comigo não só para me picar, mas sobretudo porque se queixa de já não existirem republicanos inteligentes desde que apareceu o Trump[3], que ele abomina, os outros três são democratas. Um democrata americano é mais ou menos o equivalente de um social-democrata europeu, a palavra socialista nem se pronuncia, mas, sob a pressão da alarvidade desta presidência, estão os três a ficar cada vez mais liberais – sei lá, mais parecidos com o Mário Soares quando saiu do comboio depois do 25 de Abril.

    Na América nunca se diz de ninguém que é comunista. No tempo de Edgar J. Hoover, que fundou o FBI e o dirigiu durante 38 anos, houve muitas pessoas que foram perseguidas, sabotadas, assediadas, sabotadas, chantageadas, e presas, através de vigilância ilegal, ilegal, escutas telefónicas, e roubos, como parte da caça aos espiões e comunistas.  Morreram pessoas na cadeira eléctrica por causa de acusações destas, como o casal Rosenberg, vítima de um julgamento confuso entre os presidentes Truman e Eisenhower que culminou em 1953, quando Ethel Rosenberg tinha 37 anos e dois filhos pequenos, com o que é hoje considerado “uma história horrífica absolutamente bárbara[4]”. Também é extremamente perigoso seja quem for definir-se como radical. Foi este epíteto, sinónimo de anarquista no coração da democracia, que condenou à morte Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em 1921, depois de um julgamento tão questionável que as testemunhas de defesa nunca chegaram a ser ouvidas[5]. Ou seja, a Land of the Free já passou por períodos terríveis de censura. E, de cada vez que a Sparky[6] disparava, o povo americano gritava de alegria. Só que isto aconteceu nos Estados Unidos do tempo de Estaline, quando se temia genuinamente que “os russos” deitassem bombas atómicas sobre a América – o tempo em que se vivia no medo, e o medo traz sempre consigo em grande potencial de histeria. Mas a censura caótica inventada por Trump é muitíssimo mais perversa do que todas as que o antecederam: consegue iludir até os seus adversários mais inteligentes.

    A Tracy chamou a si a tarefa ingrata de ensinar aos seus alunos de primeiro ano, acabados de sair do secundário, a arte de distinguir as notícias verdadeiras das fake news. Sabe que Trump tem vindo a impedir cada vez mais os jornalistas sérios de fazerem correctamente o seu trabalho: por exemplo, nunca responde às perguntas da CNN. Baniu a Associated Press das suas conferências de imprensa. Evita dize alguma coisa que faça qualquer espécie de sentido se as perguntas forem de órgãos dos media como o Washington Post, a Time Magazine, a NPR ou a PBS. Mas fala com gosto para os media próximos da direita republicana, pelo que são essas ideias que circulam com mais impacto entre o público americano. “Se quiseres ver notícias na televisão e estiveres a faze zapping,” diz-me a Tracy, “notas que muitas coisas não batem certo. Vezes e vezes sem conta, tens de ouvir o Presidente, que devia ser imparcial, dizer à CNN, ou a qualquer outro repórter com quem ele embirre, que se recusa a responder porque não gosta deles. O ALJAZEERA AMERICA[7], um excelente canal de notícias que se apanha com a maior facilidade em todo o mundo dado a quantidade de antenas que os seus fundadores puderam instalar no deserto, agora está permanentemente cheio de interferências. E depois, finalmente, aparecem aqueles debates, ou mesmo notícias, que tu já sabes que são da Fox[8]. E sabes logo, mesmo antes de ouvires, porque nestes canais todas as mulheres, sejam jornalistas sejam convidadas para opinar, são loiras. E este espectáculo das mulheres loiras – loiras e boazonas, como tu dizes – passa uma mensagem absolutamente tóxica ao público americano: sobre quem detém o poder, e quem detém a verdade. Agora experimenta explicar isto aos teus alunos, que são quase todos brancos, e maioritariamente loiros.”

    No entanto, naquela sexta-feira que vai ficar marcada a negro para sempre em todos os livros de História, nem a Tracy percebeu logo porque é que eu estava a vituperar com tanta raiva que – onde é que já se viu. Desde quando é que, num encontro de alto nível entre dois chefes de Estado, destinado a assinar ou não um tratado de colaboração cheio de cláusulas discutíveis, entram trinta jornalistas para a Sala Oval para assistir à conversa em directo? Desde quando é que esses jornalistas, que para já nem lá deviam estar, têm carta branca para interromper a conversa tensa dos Presidentes com perguntas parvas como a do fato e gravata? A Tracy interrompe-me, um bocado aflita: “Espera lá. Mas esse do fato e gravata não foi o Vance?”

    Em dois ou três minutos refazemos o puzzle. Nós vimos o que se passou. Os americanos viram o mesmo, mas filmado de um plano esquinado, e tão apertado que não permitia ver os jornalistas na sala. E agora já não podem ir tentar verificar porque a imagem integral já não está no ar: estão só meia dúzia de clips dos dois homens, com Trump a repetir que fez de Zelensky um homem muito poderoso, e assim como fez pode desfazer, até porque o outro nunca lhe agradeceu. E depois vê-se Zelensky a ser “expulso” da Casa Branca porque não agradeceu mesmo. E acabou. Há muitas maneiras de censurar a informação, e Trump foi o criador das fake news.

    O Jim foi o nosso Director de Projecto na época da clonagem de mamíferos, uns bons anos antes de nascer a Dolly, e nessa altura tivemos muito tempo para nos rirmos um do outro a respeito das nossas respectivas convicções. De cada vez que eu fazia toda a gente no laboratório rir-se às gargalhadas com mais uma belíssima descrição de grande detalhe ilustrativa de como os americanos eram uns parolos, ele tirava os olhos do microscópio onde estava a tirar os núcleos aos ovos e dizia-me, com um risinho maldoso, “Pois… se calhar devíamos ter pensado duas vezes antes de implementarmos o Plano Marshall[9], não é?”

    “Ó seu parolo, Portugal não entrou na Guerra, por isso não precisou do Plano Marshall.”

    Mas nesses tempos eu já nem ligava, porque tinha perdido a conta à quantidade de americanos, democratas ou republicanos, que quando eu os encostava à parede numa brincadeira qualquer me atiravam à cara com essa do Plano Marshall, como se a Guerra tivesse acabado ontem e o tempo a seguir ficasse parado. Aliás, a maior parte das pessoas nem nunca tinha ido a lugar nenhum da Europa porque diziam todos que era perigoso. Porquê? Foi o que me disseram. Há muitas doenças. Não há vacinas. Não se pode beber a água da torneira. Parolos. Eu já nem dizia mais nada. Ainda havia de ter que ouvir falar outra vez do Plano Marshall.

    Não estava à espera era que o Jim, na sexta à noite, pouco depois de me ver aparecer no Messenger, começasse a rir e dissesse, vindo de parte nenhuma,

    “Olha olha… o Plano Marshall!”

    Então o que era?

    Eu tinha começado a mandar vir sobre o Trump achar que a situação com a Ucrânia se resolvia directamente com o Putin, sem estarem presentes nem representantes da Ucrânia nem da União Europeia. E a graça toda, para o Jim, era a União Europeia. Não era só que o Trump, perante os americanos, não nos ligasse absolutamente nenhuma nem nos considerasse qualquer espécie de parceiros em qualquer espécie de frente, falando sempre como se nem sequer estivéssemos na NATO. Era pior. Era que, quando falava do armamento da União Europeia para apoiar a Ucrânia, a única coisa que o Trump dizia era que, assim como assim, o armamento que conseguíamos juntar para apoiar a Ucrânia era absolutamente ineficaz perante o poder do armamento russo. Mas, para nós, já estava a tornar-se, e ia tornar-se cada vez mais com o tempo, um dívida de tamanho tal que… que… que… (estas eram as partes em que o Jim parava para rir)… que no final nós não teríamos outro remédio senão virar-nos para a América para pedir, desesperados, que nos concedesse outro… outro… outro… (e agora o Jim ria cada vez mais)… “outro Plano Marshall, Clara! E sempre que eu oiço isto lembro-me de ti, e desato a rir. Pelo que te estou muito grato, porque aqui no South Dakota a pessoa não tem assim muitas razões para rir!”

    Jim, estás a gozar. Só podes.”

    Não estou. O gajo está sempre a dizer que a União Europeia vai acabar por ter que pedir-nos outro plano Marshall!”

    Lá acabámos por nos entender. O Trump diz isto ao povo americano mais do que uma vez por semana, é verdade. Aliás, ao que parece, é a única coisa que lhe diz sobre a União Europeia. Mas diz em entrevistas para pequenos jornais locais, para pequenas rádios estaduais que mal se detectam, os únicos microfones com maior audiência que lhe repetem essas palavras são os dos radio-shock jocks[10] como Howard Stern, todos assumidamente de direita, que toda a gente sabe que tanto poderiam estar a inventar aquilo como a repetir uma afirmação autêntica do Presidente – ou então são os dos Evangélicos, que até já falaram da Europa a implorar outro plano Marshall à América por causa das suas despesas com a defesa da Ucrânia num recente comício em Timber Lake, perto da propriedade do Jim.

    Finalmente, já muito tarde para mim, mas para eles não, consigo falar com o Dick.

    “Sabes o que é que isto tudo me lembra?”, pergunta-me ele, quando consegue, por fim, parar de bradar impropérios sobre a pouca-vergonha do espectáculo dessa tarde. “Lembra-me aquele filme de extra-terrestres que os nossos filhos adoravam quando eram adolescentes e que da primeira vez nós caímos no erro de ir os dois ao cinema ver com eles, acho… acho que se chamava só mesmo CHAOS, não estás a ver? Os Extra-terrestres alimentavam-se do caos para sobreviver e para procriar, só vinham à Terra pôr um ovo e depois iam-se embora, mas para que isso fosse possível precisavam de criar o caos a toda a sua volta… e iam criando cada vez mais caos, e destruíam tudo e absorviam o  caos por uma espécie de exoesqueleto e atrás deles não ficava nada… até que punham o tal ovo e partiam… e via-se a Terra da perspectiva deles, ao longe, toda dizimada mas ainda com grandes zonas azuis e verdes… e depois via-se o ovo a rachar e uma pata igual às outras a sair lá de dentro… que ia de certeza criar mais caos… e assim por diante. As pessoas tentavam tudo para resistir, mas era inútil, o mundo vivo não resistia ao caos.”

    “Que horror. Eu fui com vocês ver uma coisa dessas?”

    “Foste pois. Numa de Mãe, não é? Aquelas coisas que tu fazes.”

    “Tudo bem, osso ter ido. Mas não vi o filme. Devo ter estado quase todo o tempo de olhos fechados, porque não suporto esse género de porcarias. Já sabes como é. Depois tenho medo à noite.”

    “Pois, mas é o que o Trump anda a fazer. Deliberadamente. Diz uma coisa num dia, e o seu oposto no outro, e mente com quantos dentes tem na boca sempre que for preciso. Se calhar foi ele quem fez do Zelensky um homem muito forte? Alguma vez? Um homem que tomou posse no fim de Janeiro? Pelo amor de Deus, se alguém fez o Zelensky tão forte quanto possível foi o Joe Biden! Mas o Trump fala, sistematicamente, como se o Biden nunca tivesse existido. E é assim mesmo que os americanos começam a sentir-se. O homem faz batota em tudo, baralha tudo, já estamos a passar pela vergonha de ser a China a dizer que está a lutar pela sua grande prioridade de manter a ordem e a estabilidade no mundo, e as pessoas já nem percebem que estão a ser enganadas. Já pensaste bem nos minerais raros? O Trump fala deles como se fossem a coisa de que o americano médio mais precisa para melhorar a sua vida, e ainda por cima fala deles como se estivessem já para amanhã! A sério, Clarinha, eu sei, tu sabes: uma mina daquelas, em tempo de guerra, demora no mínimo dez anos a construir. Põe a América nas mãos da China, porque só os Chineses é que têm a tecnologia para exploração destas minas. E uma grande parte da mina vai acabar em território russo, e achas que os russos vão fazer o quê, colaborar… ou pilhar? E tudo isto é o sonho de um homem de 78 anos que adora exibir-se, pavonear-se, gritar, saltar, ou seja, parece que vai ter um enfarte a qualquer momento. E esta táctica do caos, da forma como ele a usa, vai enganá-las cada vez mais, porque já ninguém tem paciência para pensar.”

    “Olha lá, ao menos, logo a seguir à saída do Zelensky, houve um congressista republicano que escreveu no seu Facebook “I am ashamed of being na American today.” E recebeu logo dezenas de likes, todas de outros congressistas republicanos. Não foi?”

    “Foi?”

    A notícia não tinha passado em nenhum noticiário americano.

    “Mas pronto,” continuei eu. “Apesar de tudo, aquela indecência teve outras consequências positivas. Em vez de se limitar a ser neutro e a receber cimeiras, o Erdogan já anunciou que as Forças Armadas turcas estão prontas para patrulhar toda a extensão da fronteira Ucrânia/Rússia que ficar definida nestes acordos, no sentido de manter a paz, evitar abusos, e impedir mais transgressões invasivas. Certo? Era um papel muito chato que ainda ninguém se tinha oferecido para fazer, e olha: não me parece nada que o Putin queira meter-se com os turcos. Certo?”

    Esta notícia também não tinha passado nos noticiários americanos.

    “Também nós temos a nossa longa e feias história de censura,” suspira o Dick. “Basta pensar no Edgar J. Hoover e no Kennedy. Ah, pois, e na Marilyn. Estás a ver? Nós nunca saberemos quem matou estes dois, mas sabemos que a CIA sabe. Agora, com o Trump, a táctica principal é outra. Basicamente, chama-se FLOODING THE FIELD.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A maior parte dos americanos não se indigna com nada desde a Guerra do Golfo. Os apoiantes de Trump acham tudo muito bem e não querem saber porquê, e os seus detractores já nem seguem as notícias para não se irritarem mais.

    [2] Isto, na América, é uma actividade absolutamente louvável. A maioria dos americanos engole pacificamente todas as fake news que possam aparecer nas redes sociais, enquanto outros tantos se informam do estado da nação seguindo o trabalho instável dos comediantes.

    [3] Eu e o Jim tínhamos alguns pontos de total acordo em comum. Éramos os dois únicos católicos do laboratório, o que fazia de nós as duas únicas aves raras que se manifestavam constantemente contra a pena de morte. Na segunda candidatura Clinton/Gore eu teria votado neles se fosse americana, obviamente – mas tanto o Jim como eu tínhamos um fascínio que só partilhávamos um com o outro pelo candidato republicano, um sujeito vindo do Kansas, como o Jim, exactamente com o mesmo sotaque que o Jim tinha, e ainda por cima com o mesmo sentido de humor. Depois de perder graciosamente para os democratas dedicou-se a ganhar imenso dinheiro em torno do lema “nunca consigo ganhar!”. Por exemplo, ia a guiar pelo meio do coração deserto do Kansas, parava para pôr gasolina, mas eles não aceitavam VISA, só aceitavam MASTERCARD. Dole virava-se para a câmara, encolhia os ombros, fazia o seu sorriso irónico, e repetia o estribilho “I just can’t win” – com o sotaque igualzinho ao do Jim. O Jim e eu desatávamos a rir, e os outros diziam-nos que não batíamos bem. Uns anos mais tarde, Bob Dole foi a figura de lançamento do VIAGRA na América – com a frase “So you thought I’d never win, huh?!” Eu já estava em Harvard, mas liguei logo ao Jim. Bastou-lhe ouvir a minha voz para nos desatarmos os dois a rir…

    [4] Anne Saba: “ETHEL ROSENBERG: A COLD WAR TRAGEDY”:

    [5] Os dos emigrantes italianos, chegados aos Estados Unidos em 1908, foram apanhados numa rusga subsequente a um assalto a uma fábrica e sapatos a 15 de Abril de 1920 no Massachusetts. Sempre protestaram a sua inocência. O filme SACCO AND VANZETI, com música de Enio Morricone e uma canção final imortalizada pela voz de Joan Baez, repõe a verdade sobre a manipulação do julgamento

    [6] Nome colloquial para a cadeira eléctrica.

    [7] Situado no Catar e com correspondents em todo o mundo, o canal tem dois escritórios principais, um em Doha e outro em Londres.

    [8] Todos os noticiários da Fox são de direita, e, portanto, amigos de Trump.

    [9] Baptizado com o nome do Secretário de Estado dos EUA George Marshall, o Plano Marshall foi o principal plano de apoio dos Estados Unidos para reconstrução dos países aliados da Europa depois da II Guerra Mundial. Em valores de 2020, teria correspondido a 132 bilhões de dólares.

    [10] Esta arte de chocar toda a gente pela radio tornou-se d tal forma popular que até já tem uma entrada própria no Cambridge Dictionary: “Um radio shock jock é uma pessoa que apresenta um programa de rádio em que frequentemente diz coisas que não são consideradas aceitáveis pela maioria das pessoas.” Howard Stern ganhou a sua coroa de gajo mais nojento da rádio depois e uma longa linhagem de percursores, como Rusty Humphries ou Mancow Muller. Ao pé deste género de gente, artistas de choque como Rush Linbaugh, vindos da extrema-direita para colonizarem a rádio, a televisão, e até a literatura, são apenas isso mesmo: verdadeiros artistas.

  • Maria Teresa Horta

    Maria Teresa Horta


    Eu tinha vinte anos e os gajos lá do JORNAL riam-se com uma maldade muito fininha quando falavam nela, e sussurravam “e depois ela disse, pois então eu escrevo com o útero!”. Muito tempo mais tarde, fiquei a saber que aquilo era mentira – o que a Maria Teresa Horta escrevera[1] era que escrevia com o corpo. E o fenómeno de escrever com o corpo é que fenómeno quase sagrado que marca o trabalho de todos os escritores. Não sabemos de onde vêm as ideias, não sabemos de onde vêm todas aquelas frases com todas aquelas palavras, não sabemos como é que o nosso corpo faz andar os nossos braços sobre o teclado e carregar com os dedos nas teclas até que, de repente, acabámos por formar um parágrafo em que nunca tínhamos pensado. Esse milagre fantástico da escrita, um milagre empolgante e incompreensível que nos acontece a todos, é o milagre que sai diretamente do nosso corpo para o monitor, como dantes saía de dentro de nós diretamente para o papel, usando-nos apenas como intermediários. Nenhum de nós fala muito disso, porque nenhum de nós gosta de parecer meio aluado perante os seus leitores. Mas a Maria Teresa Horta, que era uma mulher corajosa, disse-o com todas as letras: escrevo com o meu corpo. O machismo dominante dos anos 80 podia sentir logo um grande frémito de gozo só de ouvir uma mulher pronunciar a palavra corpo, mas essa mesma mulher não estava a pronunciar a palavra útero. Nessa altura os homens do JORNAL divertiam-se a fazer dela o pior que podiam, mas ela recusou-se a descer ao seu nível e comentar as suas parvoíces, sempre de queixo erguido. Demoraram todos muito tempo a perceber que estavam perante uma grande senhora – e uma grande, grande escritora.


    Maria Teresa Horta não deve ter sentido qualquer razão para gostar de mim quando eu comecei a aparecer na Comunicação Social. Vinda de uma geração já completamente diferente da dela, eu não sentia qualquer necessidade de um movimento organizado de mulheres que me protegesse dos machistas. Se algum deles tentasse chegar a vias de facto comigo, espetava-lhe um bom par de murros, ou um boa joelhada nos tomates, e não pensava mais nisso. A contragosto com as sobreviventes do salazarismo, eu ria muito, com uma alegria que não era minimamente fingida. Além disso usava muitos palavrões na minha linguagem, e todas as histórias assustadoras e verdadeiras que contava[2] não pareciam ter-me deixado qualquer espécie de trauma. Insistia sempre que nunca me sentira prejudicada no meu trabalho por ser mulher, porque se dissesse o contrário estaria a mentir. Da maneira como me vestia, nunca teria sido preciso queimar sutiãs. E, no Verão, quando entrava na redacção de top e shortinhos e umbigo de fora, completamente torrada da praia, devia parecer-lhe ponto por ponto a imagem acabada daquilo a que então se chamava, no tom mais derrogatório possível, uma “mulher-objecto[3]”.

    Maria Teresa Horta quando jovem.

                O pecado mais grave que eu cometi aos seus olhos por essa altura foi um artigo chamado ORFÃOS DE FILHOS: OS PAIS DE DOMINGO, com entrevistas a vários homens que fiz por ocasião do Dia do Pai. Nenhum deles quis que eu revelasse o seu nome com medo de retaliações das ex-mulheres, ou com vergonha da situação em que se tinham encontrado a viver depois do divórcio. Mas todos falavam dos mesmos dramas – só verem os filhos de quinze em quinze dias, não terem um espaço condigno para estar com eles, terem vivido muito mal até começarem a namorar uma nova mulher bastante mais rica, as gritarias ao telefone porque os meninos chegavam a casa sujos ou molhados, e sempre, sempre, sempre, o pesadelo das pensões alimentares. A Maria Teresa Horta, indignada, escreveu para a revista MULHERES uma crítica impiedosa ao meu trabalho, intitulada A JORNALISTA MAIS MACHISTA.

                Mas a Maria Teresa Horta era uma senhora. Três anos mais tarde, quando saiu o meu primeiro romance, AGRIÃO!, a mesma revista MULHERES atribuiu-lhe o seu prémio de literatura. O texto que apresentava o livro também vinha assinado por ela, saudando a descrição da dureza da vida das mulheres que viviam numa terreola chamada Pintado, e mencionando o meu nome como se eu nunca tivesse sido a jornalista mais machista.

                Alguns anos mais tarde fui para Buffalo, e estes dares e tomares da vida lisboeta esbateram-se no fundo das minhas memórias. Publiquei muitos livros, uns mais queridos e outros mais difíceis. De entre os mais difíceis, lá para os meus trinta e muitos anos, publiquei um romance fragmentado em que todas as pessoas se desencontravam, com todas as possibilidades sempre em aberto, chamado MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS. Quando cheguei a Lisboa, o meu editor telefonou-me a dizer que a Maria Teresa Horta queria entrevistar-me para o Diário de Notícias.

                Mais ninguém me tinha pedido uma entrevista, nem ninguém tinha escrito nada sobre aquele romance.

    Maria Teresa Horta

                Eu nem sabia o que é que havia de pensar.

                Cheguei à sala onde tínhamos marcado encontro, falámo-nos de beijinho, sentámo-nos uma diante da outra, ela fez-me um sorriso enigmático, e começou por dizer:

                – Sabe… Fiquei mesmo surpreendida. Não fazia a menor ideia de que você era assim tão cruel.

                – Pois – disse eu, retribuindo o sorriso – A maior parte das pessoas não sabe. Aliás, a maior parte das vezes nem eu sei.

                Aquela mulher não me conhecia de lado nenhum. Apaixonou-se por um dos meus livros mais difíceis de ler. Descobriu imediatamente em mim um traço de personalidade que eu própria tendo a esquecer-me de que transporto comigo. Depois fez-me uma entrevista interessantíssima, passou-a para o papel com imenso encanto, e escreveu duas ou três coisas sobre a forma como eu mexia as mãos ou fixava os meus olhos nos seus enquanto falava de quem esteve a prestar uma atenção de ave de rapina a toda a conversa.

                A Maria Teresa Horta fez-nos bem, e agora vai fazer-nos falta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] e não propriamente que dissera, sendo que são duas actividades muito diferentes.

    [2] Contratempos com camionistas quando fazia sozinha longas viagens à boleia, por exemplo.

    [3] Mas seria preciso uma grande dose de má vontade. Uma mulher-objecto penteia-se, maquilha-se, e arranja as unhas. Pelo menos. Nada disto se aplicava a mim.

  • Desrespeito

    Desrespeito

    Segundo as mais recentes notícias… parece que a cidade se encontra num singular estado de efervescência filosófica.

    Edgar Allan Poe

    UM HOMEM NA LUA


    Se alguém conhece bem as estações de metro de Lisboa, eu conheço. Durante os últimos anos em que lá vivi, nem sequer tinha carro. Agora que vivo em Estremoz e viajo muito pelo País, desculpem, mas – se alguém conhece bem o terminal rodoviário de Sete Rios, eu conheço. Ambos os conhecimentos, quando aplicados a mim, podem ter a certeza de que querem dizer uma coisa muito importante: conheço muito, muito bem as lojas da Mbooks. Tenho a biblioteca cheia de grande, preciosa literatura, novinha em folha, comprada por cinco euros, às vezes mesmo por três. E, sem esses preços de fundo de colecção, nunca teria possuído condições materiais para ir enchendo desta forma as minhas prateleiras. A pessoa pode dizer coisas horríveis sobre a Mbooks, nomeadamente que em muitos pontos de venda oferece péssimas condições de trabalho aos seus funcionários, ou que lhes paga muitíssimo mal sem lhes dar quaisquer condições de segurança. Mas aqui não é isso que está em causa. Está em causa as pessoas poderem aceder presencialmente[1] e financeiramente a livros formidáveis dentro do perímetro dos seus trajectos quotidianos, fora do espartilho pouco convidativo e pouco compreensível dos circuitos destinados à elite. E podem demorar o tempo que quiserem a fazer as suas escolhas. Os trabalhadores de serviço podem não perceber absolutamente nada de literatura[2], mas são sempre extremamente prestáveis e simpáticos. Isto vale ouro. Da maneira como espiralou hoje a ignorância[3], isto é dos melhores serviços que alguém pode prestar aos livros. Enquanto forma de arte, a literatura merece-nos o maior dos respeitos. Não há pior desrespeito do que começar a empurrá-la para fora de cena. Às armas. Alerta.


    Há que ver que os meus longos encontros com o Terminal Rodoviário de Sete Rios começaram muito antes da minha mudança para Estremoz. O meu País atribuiu-me o estatuto de pária logo aos cinquenta anos, e a partir daí, desde que os meus filhos deixaram de precisar da minha presença e orientação constante[4], sempre que não estive em Amherst dei muitas voltas ao texto para evitar a agressividade guerreira das pessoas com que costumava cruzar-me em Lisboa. Olha que gaita, não gosto de sofrer. Andei numa grande ciganagem por refúgios longínquos, bonitos e tranquilos, esconderijos benevolentes e terapêuticos onde fosse fácil viver dentro do círculo daquelas amizades simples, descomprometidas e autênticas que ali existem, e esquecer tudo o resto. Era só chegar a Sete-Rios, pedir um lugar à janela como ainda hoje peço, e ficar a ver o País deslizar do outro lado do vidro: várias horas mais tarde, tudo era muito mais leve, e todos os episódios confrangedores se tornavam hilariantes.

    Lembro-me de uma vez voltar com a Nídia da praia e de nos sentarmos as duas no muro a contar moedas pretas, para vermos se, entre um e dois cêntimos, conseguíamos ou não totalizar o euro inteiro de que eu precisava para voltar para casa. Conseguimos, mesmo à justa. Ainda me lembro perfeitamente dos olhos furiosos do motorista quando eu lhe despejei na mão aquele cascalho todo, a dizer “está certo, eu e a minha amiga estivemos a contar todas as moedas, dá mesmo um euro”; e a Nídia, do outro lado da porta, parada no passeio: “é verdade, contámos as duas, está absolutamente certo.” Ainda se fosse algum surfista, algum monhé, algum preto de cabelo pintado. Mas não. Francamente. Duas senhoras como nós, já a puxar para o idoso, compostas e bem vestidas e tudo. A pagar em moedinhas de um cêntimo. Está tudo maluco.

    A Nídia diz que foi só o autocarro arrancar e desaparecer por trás da curva. Deixou-se cair em cima do muro e riu, riu, riu, riu, em perfeito contraciclo com o dia de Inverno de nuvens escuras encasteladas a toda a sua volta.

    Chama-se a isto rir na face da desgraça. É a nossa única forma de sobrevivermos felizes, e de sairmos das nossas provações ainda boas pessoas, talvez pessoas melhores. Continuo a sentir imensas saudades do meu grupinho de amigas e dos homens interessantes com tempo para conversar que fui construindo sem ninguém ver. Tenho saudades do meu ermitério no Penedo, tenho saudades da grande família que me acolheu em Colares quando o mundo veio abaixo. Foi uma troca por troca que me fez muito bem: fiquei na miséria, mas cheia de paz. Consegui escrever livros que andavam há muitos anos para serem escritos.[5] Consegui, finalmente, preparar com pés e cabeça, e com toda a concentração deste mundo, a candidatura à bolsa da Fulbright que acabou por permitir a minha partida para os Estados Unidos para recomeçar a estudar e tornar-me co-autora de mais um livro de investigação. Recomecei, por fim, a gozar-me da liberdade de ficar na cama à noite a ouvir rádio baixinho[6] e a ler madrugada dentro se muito bem me apetecesse. Era só estar um lindo dia de sol em Abril que eu agarrava imediatamente no José de Oliveira Cosme[7] e bazava dali para a praia, para todos os seus efeitos terapêuticos, e para os ocasionais bons amigos e boas conversas que se têm na praia a título extemporâneo[8].

    E fartei-me de rir. O tempo todo. O cenário pode ser duro, o caminho ainda mais, mas assiste-nos o direito de nos divertirmos com as nossas próprias desgraças.

    Quando cheguei ao Sudoeste, dada a abundância de turistas por ali naquele tempo, e à minha abundância de roupa acumulada noutros tempos, ainda me ri bastante com a Ana nas nossas deslocações às feiras locais sempre que não estava a chover, para regatear furiosamente com as estrangeiras os preços das minhas roupas mais finas. E contava-lhes histórias intermináveis, no fio da navalha entre a verdade e a ficção, sobre a origem e a história de todas aquelas maravilhas exóticas, apelativas, intactas, e subitamente vendidas ao desbarato numa feira de ferro-velho qualquer. A Ana ouvia, ouvia, e pasmava com a minha capacidade de contar as mesmas histórias sempre de forma diferente de cada vez que mudávamos de poiso e vinham de lá outras estrangeiras interessadas. “É que nem sequer são as mesmas gajas” – comentava ela. “Mas eu assim divirto-me muito mais” – explicava eu. E era verdade. Era bastante melhor do que todas as alturas em que fiz psicologia pop para tentar animar as leitoras deprimidas que se aproximavam devagarinho, com os olhos muito abertos, estancavam, abriam e fechavam a boca em silêncio, e finalmente diziam, muito baixinho, de queixo caído, “mas você é a Clara Pinto Correia”, ao que eu respondia com um sorriso, “pois sou, e este filme podia ser muito pior, aqui ao menos tenho amigas[9], e tenho roupa para vender.” Seguiam-se vários lamentos explicativos das grandes depressões delas, por vezes até com prantos demonstrativos. E eu, já que ali estava e aquelas mulheres não tinham vindo até à minha banca para comprar roupa, dava todo o meu melhor para conseguir fazê-las rir[10]. Houve só uma vez em que a Ana sibilou, enquanto estávamos a fazer marcha atrás para virmos embora: “fds que eu não sei como é que tu aguentas isto.[11]” Mas é preciso ver que, nessa feira específica, num dia inverno cheio de humidade, nem eu nem ela tínhamos conseguido vender uma única peça.

    Nesta aldeia, como ao fundo de outros destinos da camioneta, a Ana e a Nídia apreciavam particularmente os livros sempre diferentes que eu trazia de Lisboa, e que procurava trazer sempre em português. Era sempre da melhor literatura que há no mundo, adquirida sempre por preços absolutamente compatíveis com o meu estado de desgraça, porque a trazia comigo sempre da mesma maneira: chegava uma hora adiantada ao terminal, e, depois de comprar o bilhete e tomar café, passava-a quase toda dentro do espaço exíguo mas sobrelotado da sua loja da Mbooks. Por acaso é uma daquelas que oferecem péssimas condições, tanto aos funcionários como aos utentes, o que é absolutamente lamentável para um ponto de venta que cobre o País inteiro. Mas tem escondidas lá dentro arcas do tesouro impressionantes. Da primeira vez que lá entrei rumo ao meu esconderijo no Sudoeste encontrei um caixote com restos da famigerada colecção Europa-América a dois euros. Com tanta sorte, entre eles estavam alguns exemplares de um dos meus eternos livros de cabeceira, o GREEN HILLS OF AFRICA do Hemingway. O título estava traduzido para português como AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA, já se sabe que o que é bom naquela colecção não são as traduções mas antes o grau de abrangência, e a verdade é que consegui comprar um para cada uma delas, e ainda um romance da Pearl S. Buck[12] para mim – qualquer coisa que, sabe-se lá como, tinha conseguido escapar ao meu momento de devorar compulsivamente tudo o que existisse da laureada americana na Europa-América, durante um mês de férias passado em Sesimbra quando eu tinha doze anos. E ainda fui tomar outro café para saborear as primeiras páginas até chamarem para o embarque no meu expresso.

    Nem me lembro de quando é que começou a tradição do terminal de Sete-Rios; mas, nessa altura, já a tinha totalmente incorporada: quando se viaja compra-se um livro. Uso pouco os comboios e os barcos que servem Lisboa; mas, se usasse, também me dava ao mesmo luxo: há uma loja da Mbooks naquele terminal enorme do Cais do Sodré. E, diga-se de passagem, está localizada e organizada de forma substancialmente mais digna do que a loja de Sete-Rios. É um desperdício as pessoas tenderem a passar todas por ali cheias de pressa. Eu, que não vivo em Lisboa, já lá parei algumas vezes nestes últimos anos, e confirma-se: tem uma grande quantidade de grandes obras a preços inacreditáveis. Claro que há sempre diferenças de uma loja para outra: no Cais do Sodré, já quase que tive de mandar um par de berros à jovem demasiado simpática que estava de serviço para que, antes de mais nada, parasse de falar comigo em inglês; e, a seguir, para que parasse de andar atrás de mim, que eu tinha tempo e preferia procurar o que me interessava sozinha. Também se nota que estão para venda muito mais obras em francês e inglês, algumas em espanhol, outras tantas em alemão.

    Por mim tudo bem, gosto de ler noutras línguas e não tenho vontade nenhuma de morrer estúpida; mas estes livros tendem a ser mais caros do que as edições portuguesas, e, nesse pormenor, de certeza que afastam os leitores de salário mínimo como eu. E o primeiro-ministro pode dizer o que muito bem lhe apetecer sobre a abundância e a estabilidade portuguesas, que isso não impede que toda a gente saiba que Portugal está cheio de pessoas pagas a salário mínimo. E que se falou nisso o menos possível, mas ficou muita gente desempregada no final de 2024. Portanto é bom que os livros não fiquem mais caros. Pelo menos, para quem tiver essa prioridade e arranjar esse tempo, os livros que se descobrem no meio de todas as tretas que também se vendem na Mbooks são alimento para alma. Às vezes é um alimento tão precioso que ficamos a devorá-lo durante a noite inteira.

    Enquanto estive em Lisboa, a melhor loja da Mbooks era, sem dúvida, a do metro da Alameda. Talvez agora alguém me escreva a dizer que ela já não existe e, assim, a dar-me um grande desgosto; mas na altura existia e era a mais digna e limpa de todas. Havia mesmo um balcão grande a separar a funcionária dos potenciais compradores, e do outro lado do balcão havia uma cadeira de escritório. Os conhecimentos literários da funcionária podiam não ser grande coisa, mas ao menos não nos incomodava depois de lhe dizermos que não precisávamos de ajuda: calava-se, ouvia a sua música, e sorria-nos quando vínhamos pôr as nossas escolhas em cima do balcão. Até álbuns de capa dura, daqueles que são muito bonitos para pôr na sala, mas estes com o valor acrescido de serem também extremamente interessantes e rigorosos[13], eu trouxe dessa loja. Enquanto vivi no Bairro dos Actores, usar aquela saída do metro era a bem dizer obrigatório sempre que acabava de ler um livro: tinha de passar por lá logo a seguir para trazer outro para casa. Estava de tal forma viciada que nem conseguia dormir se não estivesse antes pelo menos uma hora a ler, idealmente de janela aberta para a felicidade do Verão em Lisboa, ou então de vidros encostados contra a toada suave da chuva a cair lá fora. Foi o período em que a minha biblioteca pessoal cresceu mais[14], sem ser preciso fazer nela nenhum investimento que doesse na carteira, por pobre como tudo que eu fosse. Empilhar cada vez mais livros dentro do meu quarto dava-me uma sensação de empoderamento que não era brincadeira nenhuma. Cada maluco tem a sua.

    A loja de Sete-Rios não é nem digna nem limpa, mas ao menos é costume lá estar um senhor que gosta mesmo de livros. Foi lá que comprei os meus Faulkners e os meus Fitzgeralds, além de um Chandler que eu nem sabia que existia, porque se chama (mal traduzido) O PARQUE DOS VEADOS, e é ainda mais sufocante do que OS DUROS NÃO DANÇAM. Conheço-a bem. E esta pérola de desrespeito, perigosíssima quando entramos numa segunda era Trump que todos sabemos que vai ser ainda mais inculta e mais cheia de armas em casa do que a primeira, acaba de acontecer há cerca de um mês atrás.

    Vinha eu estafada, depois de dois dias extremamente cansativos de revisão de provas, a entrar no terminal exactamente uma hora antes do expresso das dezanove, o último que sai para Estremoz todos os dias. Compro o bilhete, não trago bagagem, vou mas é a correr para a loja da Mbooks. E estranho logo a situação, porque as luzes estão baixas, parece mesmo que já fecharam, mas ainda faltam uns bons três quartos de hora para o fecho oficial. Vejo o tal senhor a andar de um lado para o outro feito barata tonta, e pergunto-lhe se a loja já está fechada.

    Não. Estamos só a poupar energia, no caso de não vir ninguém. Mas entre à vontade. Eu subo a luz.

    Mas o senhor…

    Ah, não ligue. Eu estou só a carregar mobílias. A loja tem que perder bastante tamanho para a Rodoviária poder instalar os seus bancos novos.

    Bancos? Quais bancos?

    Então a senhora passou mesmo por eles e não os viu? Olhe ali.

    Eu até fiquei arrepiada. Era mesmo verdade que passei ao lado do banco para onde ele apontou. Era uma daquelas estruturas em círculo, com cerca de oito lugares a toda a volta, que depois são forradas com espuma para maior conforto, e cobertas com napa ou com qualquer outra imitação de tecido resistente para melhor efeito visual. Se iam instalar ali, num lugar já contaminado pelo grande carrinho das pipocas, vários bancos destes ao mesmo tempo, então a Mbooks tinha de encolher, e encolher bem.

    Sempre gostava de saber quem é que lucra com estas jogatanas, porque os passageiros não são de certeza. Em todos estes longos anos de uso do terminal de Sete-Rios, nunca vi todos os bancos cheios. Nem os de dentro nem os de fora do terminal. Nem sequer os da esplanada coberta ao lado da descida para o metro e para os táxis, sem dúvida os mais agradáveis de todos, que podem parecer apinhados num determinado minuto, mas há um código secreto nunca escrito que nos permite sentarmo-nos nas mesas uns dos outros desde que existam lá cadeiras vazias, e além disso estão sempre a vagar mesas de pessoas que se levantam para irem apanhar o seu expresso. Não é o povo português quem vai ganhar mais lugares sentados no terminal de Sete-Rios.

    O povo português vai é perder ainda mais a sua simplicidade no acesso aos bons livros, o que é um tremendo insulto à literatura e um desrespeito total pelas pessoas.

    Verguenza, como diria o Papa Francisco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] NÃO É A MESMA COISA DO QUE COMPRAR LIVROS NA INTERNET, OU NÃO CONSIGO FAZER-ME ENTENDER? Comprar livros segurando neles, folheando, aspirando o cheiro do papel, estudando a capa – é outro tipo de experiência, e basta.

    [2] “Onde é que tem as obras de ficção?” – A menina sorri, hesita, vasculha a loja com os olhos – e finalmente aponta com o dedinho rematado numa unha de gelinho perfeito para uma estante de livros com aneis de Saturno, pessoas em Marte, robôs, e assim. Como é evidente, “ficção” é a forma mais rápida de dizer “ficção científica”.

    [3] “Para ler? Então, gosto de fantasia.” Por “fantasia” entenda-se aqueles livros enormes com sagas em três volumes à maneira do SENHOR DOS ANEIS, todas iguais e todas igualmente deploráveis. Os putos enchem as mochilas daquilo até mesmo ao cimo.

    [4] Bem. Honestamente, é mais que atingiram os dois a maioridade e eu deixei de ter essa obrigação de mãe solteira. Claro que o Dick achava a esse respeito imensas coisas que eu não achava. Mas ele nunca tinha sido pai solteiro.

    [5] Deste período, o melhor exemplo é um dos meus romances preferidos, NÃO PODEMOS VER O VENTO.

    [6]Nessa altura a rádio pública passava óptimos programas nocturnos. Daquelas plantas raras e delicadas que, depois de cortadas uma vez, já não voltam a crescer. E ninguém parece preocupado com o vazio gelado que deixam atrás de si.

    [7] Era o meu cachorrinho da altura, trazido com muito amor e carinho do Canil Municipal de Sintra. Parecia um cão d’água preto e branco em miniatura, e – felicidade! – quem o abandonou já o tinha ensinado a só fazer necessidades na casa de banho.

    [8] Levo a Marta à Praia da Aguda, de todas a minha preferida com a sua imensidão de degraus, num fim de semana de sol esplêndido adiantadíssimo no calendário. A Marta anda triste como a noite, e aquele prazer em fins de Março, na perfeita Lua Cheia, faz-lhe bem de certeza. No grande areal do equinócio, em plena Maré Vazia, só estamos nós e um casalinho esquisito – ela é muito jovem, mas aquela boca tão torta só pode ser a marca de um AVC bastante sério, e ele anda com os pés para fora, em movimentos sincopados como os dos patos, orientado por uns olhos completamente tortos. Depois de eu lhes mostrar como é que os camarões aparecem nas poças de água que o mar deixa atrás de si nas rochas, percebemos que a lesão dela é tão grave que mal consegue falar, mas ele conta-nos tudo pelos dois. São ambos antigos heroinómanos que se amavam de paixão, e que, numa noite de Verão, foram para o terraço da casa dos avós dela no Magoito e administraram a si próprios uma overdose de mãos dadas, porque no beco onde se tinham encurralado já não existia qualquer saída. Ambos sobreviveram. Mas ambos estiveram tanto tempo em coma, e ambos perderam tantas faculdades e sentidos, que já nem conseguiam namorar: limitavam-se a dar apoio um ao outro naquela caminhada difícil pela normalidade. Sobreviviam das aguarelas psicadélicas dos acampados em todas as tribos e capelinhas das festas trance, que estavam à época no seu pico de popularidade; e das carteirinhas de filtros já prontos para enrolar e pôr nos charros que a empresa dele produzia em Vila do Conde e fazia circular nas festas por cinco euros. Mostrou-nos uma, eu disse “epá, mas que grande ideia, o filtro é sempre o pior,” e comprei-lhe logo três. A Marta estava a olhar para nós com os pezinhos estendidos para a rebentação e os olhos cheios de lágrimas. “Não é convosco,” acabei por esclarecer eu. “A Marta anda mesmo, mesmo muito triste.” O vesgo deu-lhe um abanão. “O que é isso?”, perguntou-lhe ele com um vago sotaque nortenho. “Gostas de perder o teu tempo? Mas ouve lá, tu não sabes que a vida é muito curta? Vai mas é a umas festas, mulher!” A Marta corou até à raiz dos cabelos, como uma virgenzinha que até aí foi sempre protegida mas de repente está sozinha e tem que entrar em diálogo com o taberneiro mais tinhoso ali do sítio. “Festas?” hesitou ela, com toda a franqueza. “Mas isso é o quê?”. Eu não foi por maldade, foi mesmo por carinho: desatei a rir. “Ó querida Martinha! Com toda a tua experiência da vida não sabes mesmo o que são as festas? Olha, prometo: este Verão, assim que for a primeira festa aqui nas florestas de Sintra, eu agarro no José de Oliveira Cosme, arranjo uma tenda emprestada, vou a Lisboa buscar-te e levo-te lá.” – “Uma tenda?” – “Pois, uma tenda.”

    E foi assim que tudo começou.

    [9] Gesto dramático de passar o braço pelo ombro da Ana, que odiava essas mariquices.

    [10] Apanham-se grandes sustos com estes instintos de escuteirinho. Por exemplo: “Ai, meu Deus. Já não me ria há tantos anos. Clara, desculpe, mas agora tenho imenso medo de voltar a sair de ao pé de si.” E se nesse dia não estivesse lá a Ana, para acabar expeditivamente com o dilema a título de dona do carro? “A menos que queiras ir com a gaja, nós vamos mas é bazar, boa?” – “Pois, muito obrigada, e por mim é já.”

    [11] A Ana passou grande parte da vida na Áustria, onde se licenciou em Economia. É casada com um Surfista escandinavo, tem quatro filhos, dá aulas de Português a estrangeiros, e de Maio a Outubro tem uma banca de ornamentos na calçada que contorna a praia. Não fazia a menor ideia de tudo o que eu tinha aguentado antes. E depois. Aguentar “aquilo” era, obviamente, uma pera doce.

    [12] Não é uma questão de snobeira. Não me lembro mesmo da tradução portuguesa do título.

    [13] Tenho na minha sala, aqui em Estremoz, um desses álbuns A4/capa dura da Mbooks. O título diz, apenas, THOMAS MORE. É uma belíssima biografia, cheia de informação sobre a Renascença e sobre a corte demente de Henrique VIII.

    [14] A minha enorme biblioteca pessoal anterior foi cruelmente saqueada e destruída no armazém dos amigos a quem eu tinha pedido que a guardassem até eu conseguir assentar arraiais, e a minha colecção de CDs, tão difícil de construir, levou o mesmo caminho. Salvaram-se todos os meus livros académicos, que felizmente estavam depositados no Instituto Bento da Rocha Cabral; e também toda a minha ficção de cabeceira, que eu guardei sempre comigo para me dar força. Quando me instalei em Estremoz, achei por oferecer as cerca de cem obras da minha colecção de ficção científica à Biblioteca Municipal, uma vez que eu já não preciso dela, mas talvez outras pessoas precisem. Grande parte de tudo o resto veio da Mbooks.

  • Ignorância não

    Ignorância não

    “Não avançamos

    Por nenhum caminho

    Já aberto –

    Avançamos

    Levando mais além o âmago

    Raptor,

    De fonte latejante

    Drenando um deus

    Pequeno

    Mas vivo.

    Filipe Jarro

    CARTOGRAFIAS


    A mudança de ano condena-nos à vivência de mais um reinado Donald Trump, com a certeza de que teremos de ouvir mais chorrilhos de tolices e de que o mundo não ficará mais bonito. Falei-vos da sua declaração de campanha de que em dois minutos de briefing percebeu tudo o que havia a perceber, o que levava à promessa de que os americanos podiam ficar descansados porque ele é o pai da fertilização in vitro. E mais: vai torná-la grátis para todos os interessados. Se a primeira declaração era de uma estupidez que faz doer, a segunda é de uma demagogia que não se aguenta – termos de ouvir o homem que mais esperneia contra os cuidados de saúde acessíveis para todos os residentes prometer que vai oferecer-lhes de graça um tratamento muito caro que é procurado há décadas por milhões de casais, em clínicas que operam para proveito próprio. Tudo isto para parecer mais moderno do que os fundamentalistas do seu partido que estavam a levantar a voz porque os embriões já eram pessoas e, portanto, congelá-los era um crime. Tudo isto volta a levantar a velha pedra de toque do grande caos que vai na cabeça das pessoas sobre a diferença entre um embrião e um feto. E isso, infelizmente, não acontece só na Améria – os americanos apenas fazem mais barulho. Vale a pena aproveitar a oportunidade para tentar, outra vez, por as coisas no sítio.


    Na vida real, a aventura embrionária é uma montanha-russa de um mês, regulada por três tipos de hormonas diferentes: as gonadotrofinas, que vêm do cérebro, e fazem o ovário amadurecer um dos seus ovos; os estrogénios, que vêm do ovário, e regulam a ligação desse ovo com o espermatozoide mais capacitado para a tarefa; e, finalmente, a progesterona, que participa activamente na ligação do embrião às paredes do útero. Estas tarefas devem estar todas prontas ao fim de um mês, ou, mais apropriadamente, ao fim do equivalente a um ciclo lunar[1]. Se não estiverem é porque não houve embrião, pelo que não houve fertilização. Assim sendo, ao fim de alguns dias depois deste ciclo, o cérebro envia mais gonadotrofinas para o ovário para que o ciclo comece outra vez.

    Quando o ovo por fertilizar[2] cai do ovário para a Trompa do Falópio, inicia uma jornada até ao útero em que pode, ou não, encontrar-se com espermatozoides pelo caminho. Se não encontrar nada, o revestimento nutritivo que, entretanto, o útero preparou para receber o ovo fertilizado[3] torna-se inútil, e ocorre a menstruação. Mas, se o ovo se encontrar com espermatozoides na sua jornada, e se um deles o fertilizar com sucesso, cerca de cinco dias depois do acto sexual o embrião começa a formar-se, ainda dentro da trompa. Em ciclos que demoram de oito a doze horas, primeiro o ovo divide-se num embrião de duas células, e depois num embrião de quatro células. No total, entre a entrada na trompa e a implantação total no útero um embrião demora cerca de dez dias a completar o seu percurso.

    É importante parar aqui, porque geralmente, nas fertilizações in vitro[4], os embriões que os médicos transferem para o útero da mulher, e todos os embriões excedentários que congelam, têm exactamente quatro células.

    E, portanto, a resposta é não: estes embriões não são pessoas.

    Ainda vão ter que andar muito para lá chegarem.

    No fim da jornada pela trompa, o embrião que cai no útero é um círculo microscópico de células todas iguais, que inicia de imediato os seus primeiros contactos com as paredes externas da zona de implantação[5]. À medida que progridem nessa implantação, as tais células todas iguais acabam por formar dois grupos diferentes, numa estrutura que agora já mostra uma diferenciação mais marcada: por fora está uma parede de células todas iguais; e, por dentro, está um botãozinho de células arredondadas agarradas a essa parede. A parede externa vai formar a placenta, e todas as outras estruturas de suporte à gravidez; e só o botãozinho minúsculo é que dará origem ao feto propriamente dito.

    Mesmo assim, não, claro que não: estes embriões ainda estão muito longe de ser pessoas.

    À medida que o seu processo de implantação no útero progride, o embrião vai-se diferenciando cada vez mais, formando os precursores dos primeiros tecidos, as células precursoras do tubo neural, e, finalmente, as estruturas percursoras dos primeiros órgãos.

    Esta gestação embrionária demora cerca de oito semanas. Só depois de concluída é que o embrião passa a ser considerado um feto. E, mesmo assim, é preciso suster a respiração até ao terceiro mês de gravidez, absolutamente crucial para a ligação do feto à placenta, e tipicamente o momento em que ocorrem mais abortos espontâneos. Agora reparem na diferença enorme entre um feto bem-sucedido no final do seu terceiro mês e um embrião de quatro células no seu segundo dia de existência. Se não conseguirem memorizar de outra maneira, usem esta: ninguém precisa de um microscópio para ver um feto. Um embrião, por outro lado, não pode ser visto de outra maneira.

    E, evidentemente, o “pai da FIV” não é Donald Trump.

    Quem primeiro conseguiu juntar o ovo da mãe com os espermatozoides do pai numa caixa de Petri, obter um embrião de quatro células, transferi-lo para o útero da senhora, e obter uma gravidez bem-sucedida a termo foi o investigador britânico Robert Edwards, trabalhando em conjunto com o ginecologista Patrick Steptoe. Depois de muitas falsas partidas, muitos enganos, muitas pistas erradas, os dois conseguiram sincronizar o ciclo hormonal de Lesley Brown, inseminá-la com um ovo fertilizado fora do corpo com sémen do marido, e fazer nascer Louise Brown, o primeiro “Bebé-Proveta[6]” do mundo, a 25 de Junho de 1978. Posteriormente, o seu trabalho conjunto no Center for Human Reproduction, em Olddham, na Inglaterra, permitiu o nascimento de mais de mil bebés, incluindo a irmã mais nova de Louise. Edwards recebeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2010, e faleceu em 2013.

    À época, as FIVs permitiam evitar problemas de infertilidade devidos, por exemplo, a bloqueios nas trompas do Falópio: recolhendo o ovo directamente no ovário, fertilizando-o no laboratório, deixando-o desenvolver-se até à fase de quatro células, e injetando-o de novo no útero em sincronia com o ciclo hormonal, saltava-se por cima desse bloqueio, que é responsável por uma quantidade substancial dos casos de infertilidade feminina. Como é evidente, a técnica expandiu-se logo pelo mundo, e foi logo melhorando. Uma das primeiras melhoras foi esta transformação do “embrião” em “embriões” que tanto preocupa os fundamentalistas e ainda hoje baralha todas as pessoas que não têm qualquer obrigação de ter especializações na matéria.

    Chamou-se-lhe a superovulação.

    Os médicos passaram a estimular artificialmente os ovários da mulher para que, em cada ciclo, em vez de um ovo pudessem obter – facilmente – um valor entre doze e vinte. Isto permitia ter bastante mais embriões bem desenvolvidos, transferir para o útero uns três em vez de só um, para aumentar a possibilidade de pelo menos um se agarrar bem à placenta. Como todos os tratamentos para obter e recolher os ovos são bastante violentos para o organismo feminino e para a psique da mulher que quer engravidar, os embriões excedentários guardavam-se numa câmara de Azoto líquido, prontos para serem descongelados intactos, prontos a repetir a operação sem mais tratamentos se a primeira tentativa falhasse – ou se os pais felizes quisessem ter outro bebé.

    Isto já se fazia nos anos 80 do século passado.

    Já nessa altura gerava a maior das confusões, criava toda a espécie de controvérsias, e levantava dilemas legais nunca antes vistos.

    É espantoso como ainda falta explicar tanta coisa.

    E como Trump tem a lata de dizer, e repetir, e jurar aos quatro ventos, que percebeu tudo em dois minutos.

    O pó que se levanta com estas grandes questões, legitimamente complexas para a inquietação humana, só assenta se nos dispusermos a um mínimo de esforço no seu estudo, por forma a compreendermos o que está mesmo em causa. Distinguir embriões de fetos, por exemplo, já é um grande passo em frente. Já agora, distinguir os fetos insipientes dos três meses das crianças potencialmente viáveis dos cinco meses também é uma grande urgência. Explica-nos porque é que fazemos algumas coisas e outras não.

    O que aí vem é do pior. Por favor, que ninguém escolha manter-se ignorante.

    Feliz Ano Novo.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Ou seja, 28 dias.

    [2] O oócito, ou ovócito.

    [3] O zigoto.

    [4] FIVs.

    [5] O endométrio.

    [6] Não se sabe quem inventou o termo, que foi caindo em desuso com o tempo, à medida que se expandiu e trivializou. De qualquer maneira não era especialmente bem-sucedido, uma vez que a FIV tem lugar em caixas de Petri, e não em provetas.


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  • O rei das fertilizações in vitro

    O rei das fertilizações in vitro

    “e sentei-me, feliz, na irresponsabilidade da vitória”

    Ernest Hemingway

    GREEN HILLS OF AFRICA


    Como é que se ganha uma campanha eleitoral num país democrático, com todas as condições para estar bem informado, quando se é um acabado imbecil e não se tem uma única ideia que beneficie as populações, dentro e fora das fronteiras? Alguns factores são bem conhecidos. Por exemplo, existir uma democracia significa, cada vez menos, que exista também qualquer espécie de meritocracia. E ter-se acesso à informação também não implica, cada vez menos, que se faça uso desse acesso – por exemplo, quando cheguei aos Estados Unidos em 2014, em pleno período Obama, já todos os Professores andavam muito preocupados porque os seus alunos iam buscar a sua informação aos late night shows, aos monólogos dos comedians, e aos posts apócrifos sempre perigosos da internet. Agora juntem à mistura um candidato que não tenha qualquer espécie de vergonha na cara e diga em público tudo o que lhe passe pela cabeça e soe bem, como faz Donald Trump. É assim que a mistura se torna explosiva, porque Trump está a servir a este povo maioritariamente ignorante fatias de bolo que podem não querer dizer nada mas sabem muito bem e são boas de cantar ao espelho enquanto se faz a barba.

    Foi por via desta estratégia que, num fórum perto do fim da campanha e destinado especificamente às mulheres, para sacudir as acusações de ter apoiado o Supreme Court[1] a roubar às mulheres os seus direitos reprodutivos, Trump se saiu com a declaração bombástica,

    “QUEM? EU? MAS EU QUERO QUE NASÇAM IMENSAS CRIANÇAS AMERICANAS, SEJA POR QUE VIA FOR! EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!

    Os seus opositores, finos e educados, só conseguiram dizer que aquela declaração era “muito bizarra”. And the band played on[2].


    Com as suas nomeações sucessivas de cristãos fundamentalistas para o Supreme Court, Trump já tinha feito estragos extremamente sérios nos direitos das mulheres sobre os seus corpos, com o regresso da proibição do aborto logo à cabeça. Esta nova proibição foi feita de forma extremamente pérfida, como se viu do Texas – foi absoluta e sem apelo nos condados interiores, aberta a casos devidamente fundamentadas aprovados em tribunal nos condados periféricos (mas era preciso a família ter fundos para pagar a um bom advogado, e isso é caro), e sem legislação nos condados em que a fronteira intersecta estados vizinhos em que o aborto é legal, sendo que, mesmo assim, é preciso guiar até à clínica mais próxima, que tem que estar a uma distância de mais de cem milhas da fonteira com o estado que tem como tabuleta distintiva DON’T MESS WITH TEXAS[3].

    Ou seja.

    ovum, sperm, fertilization

    No Texas, os pobres não têm qualquer possibilidade de fazer um aborto, embora o mesmíssimo procedimento seja muito fácil de fazer para o ricos. Lembram-se de séries como DALLAS, ou DINASTY? Em termos sociológicos, não havia ali qualquer exagero. Os ricos do Texas são incrivelmente ricos. Como tal, nada no seu quotidiano os distingue dos ricos de Bollywood. ou de Manila, ou de qualquer outro apeadeiro do Terceiro Mundo, porque todos os ricos precisam do mesmo. Precisam de um nevoeiro sempre activo de milhares pobres para que eles possam viver como ricos e ganhar como ricos. Toda a gente sabe disto. Donald Trump pode não saber muita coisa[4], mas isto sabe muito bem porque é a sua prática de uma vida inteira. A situação no Texas, que alastra perigosamente para outros estados, foi obra das suas nomeações para o Supreme Court, que agora só se revertem se morrer um dos juízes ou se algum for expulso devido a qualquer terrível escandaleira[5].

    Ora acontece que, em mais um passo contra a liberdade de escolha das mulheres, mais recentemente o Supeme Court decidiu declarar que os embriões já são crianças[6]. Sendo assim, o seu processo de congelamento, destinado a permitir às mulheres que querem engravidar por Fertilização in vitro (FIV) e não têm sorte na primeira tentativa[7] possam repetir o ciclo sem voltar a passar pela colheita e sem gastarem mais dinheiro, é uma infâmia aos olhos de Deus, uma vergonha aos olhos dos homens, e portanto, sem dúvida, uma técnica que deve ser imediatamente proibida em todo o país.

    Os ginecologistas com clínicas de FIV, já assustados pelo resultado potencial deste tipo de pregações, começam logo a não congelar mais embriões excedentários[8], o que faz com que as FIVs, já de si muito caras, se tornem ainda mais caras. É que, agora, se a primeira tentativa não funcionar, é preciso repetir todo o processo que vai até à formação dos embriões — estimulação dos ovários  com quinze dias de duas injeções por dia, paragem do ciclo com uma injecção muito dolorosa que pode calhar às horas mais imprevisíveis da noite ou do dia, recolha dos ovos ainda não fertilizados com uma pequena cirurgia, fertilização destes ovos com os espermatozoides do parceiro, incubação conjunta de ambos por dois dias, e esperar que se formem embriões de aspecto saudável. Congelar os embriões supranumerários resultantes da primeira FIV de qualquer casal cobriria tudo até aqui, e há que ver que esta primeira fase é, de longe, a mais complexa e delicada de todas[9], sobretudo para as mulheres. Com embriões congelados só seria preciso fazer uma nova pequena cirurgia para a sua introdução no colo do útero e, durante mais quinze dias, rezar para que tudo corra bem.

    pregnant, maternity, mother

    Ter embriões congelados é tanto mais importante para quem faz FIVs quanto se sabe que as possibilidades de insucesso podem ser várias, até que, por fim, haja (ou não) sucesso.

    De maneira que, mesmo entre os círculos cristãos mais empedernidos, a notícia de que o Supreme Court se preparava para cometer a iliteracia científica de comparar embriões a crianças para proibir o congelamento da bolinha indiferenciada de células dos primeiros, e com ele prejudicar toda a Reprodução Medicamente Assistida, estoirou como uma bomba e pôs toda a gente de braço no ar num protesto conjunto. Sobretudo as mulheres. E foi isto que levou os figurões que gerem as Relações Públicas da FOX a organizar o Forum das Mulheres, em que Donald Trump teria a oportunidade de se fazer ouvir sobre todo isto.

    Mas francamente, o que é que Trump sabe sobre a FIV?

    Boa pergunta.

    À qual o homem tratou de responder imediatamente ele próprio, no seu próprio e colorido vocabulário.

    man in black suit standing beside woman in black dress

    Antes de vir para aqui, falei com a nossa Conselheira dos Assuntos Científicos, uma mulher linda, linda, devo dizer-vos, realmente uma mulher linda. Pedi-lhe que me explicasse o que era a fertilização in vitro. Ela começou a falar, e eu não precisei de mais de dois minutos. Percebi tudo. Tudo! Claro que sou a favor da fertilização in vitro. EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!

    Voaram bonés, bandeiras, t-shirts da campanha. A sala veio abaixo com aplausos. Mudava-se de canal a correr e todos estavam já a citar aquela maldita frase. Nos dias que se seguiram, Trump teve dezenas de oportunidades de repeti-la, sem que ninguém lhe perguntasse o que é que é que ele estava realmente a dizer. E, como os democratas ficaram tão desconcertados que em vez de exporem a falácia a varreram para debaixo de tapete, a águia americana voou a pique, como um grifo dourado, rumo ao País das Maravilhas onde – de facto – cada um pode dizer o que quiser.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Tribunal Supremo, que vigia as leis de todo o País.

    [2] Literalmente “e a banda continuou a tocar”. Utiliza-se quando, apesar de vários protestos, as coisas ficam como estavam. O docudrama em que toda a comunidade inteligente, médica, científica, autárquica, e de grandes pesos-pesados do pensamento tenta alertar o presidente Reagan para as formas de transmissão da SIDA que seria para mim fáceis de evitar, e não recebe qualquer resposta da Casa Branca, chama-se, exatamente, AND THE BAND PLAYED ON.

    [3]Não se metam com o Texas”. As tabuletas de entrada nos outros 49 estados dizem, SEMPRE, “Bem-vindos ao South Carolina”, “Bem-vindos a New York”, e assim.

    [4] Por exemplo, CLARO QUE NÃO SABE COMO É QUE VAI ACABAR COM A GUERRA NA UCRÂNIA, e deve ser o único homem em todo o Ocidente que ainda não percebeu que Putin pode estar interessado em comer-lhe muitas papas na cabeça – mas NÃO ESTÁ MINIMAMENTE INTERESSADO em ser seu amigo.

    [5] Bem, mas num país onde um homem com 36 processos-crime em cima ganha as eleições…

    [6] Não são, não. São uma bolinha oca de células ainda não diferenciadas. Mas lá iremos.

    [7] Acontece muito mais vezes do que correr logo tudo bem.

    [8] Os que sobraram da primeira inseminação. Podem ser muitos, e dar para várias tentativas. Vejam o meu caso. Tive 26 ovos, que deram 18 lindos embriões. Mas os ginecologistas só transferiam três, portanto sobraram 15. Se pudéssemos congelar embriões nessa altura, eu ficava ali com material para mais cinco FIVs…

    [9] Sou boa menina. Não gosto de incomodar ninguém. Estou a poupar-vos educadamente ao termo “dolorosa”, mas claro que ele também conta. Muito. Com grande probabilidade, bastante mais do que o dinheiro.


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  • Trinta e sete anos mais tarde

    Trinta e sete anos mais tarde

    Já vi como são os gajos que andam por aí sozinhos a trabalhar nos ranchos,” disse George. “Não é bom. Não se divertem. Depois de algum tempo tornam-se muito maus. Tornam-se aquele género de gajo que está sempre a querer lutar.

                    “Pois, tornam-se gajos maus,” concordou Slim. “Tornam-se incapazes de falar seja com quem for.

                    John Seinbeck

                    ON MICE AND MEN (1938)


    Quando eu lhes sugeri que, se toda a gente – sobretudo o patrão – estivesse de acordo, podíamos usar o piano ali do bar para fazermos, com mais instrumentos e até talvez com mais vozes, os mesmos espectáculos de fado falado que eu tinha feito em tempos em Lisboa e no Algarve, os olhos do David iluminaram-se de entusiasmo e de antecipação. Quando eu lhe respondi que não via nenhuma razão para ele não contribuir para esse espectáculo com o som do ukelele que ele já andava há mais de um ano a aprender a domesticar – muito pelo contrário, e uma vez mais desde que o patrão concordasse, era uma contribuição porreira, de um som que raramente ouvimos em espectáculos portugueses, e certamente em espectáculos de fado – o David quase que começou a levitar. Repetiu vezes e vezes sem conta que era agora, finalmente, era agora, aos trinta e sete anos: era agora que ia fazer alguma coisa radicalmente diferente das rotinas de Estremoz. Estremoz, onde tinha nascido. Estremoz, onde sempre tinha vivido. Estremoz, onde nunca acontecera nunca nada realmente mau, mas também nunca acontecera nada francamente bom.

    Ah, mas isso agora ia mudar.

    Aos trinta e sete anos, ele ia chegar ali com o seu ukelele e participar num espectáculo radicalmente diferente.

    Diferente, diferente, diferente.

    Aqui mesmo, em Estremoz.


    Foi um café-bar que abriu na última Primavera numa das esquinas do Centro Histórico, um sítio grande, misterioso, cheio de pilares e de esquinas, com mesas e cadeiras todas diferentes e todas muito confortáveis, um lugar onde podiam entrar os cães, onde os empregados eram jovens e sorriam, onde tudo o que serviam era feito na hora na cozinha lá de trás e imensas receitas tinham segredos especiais – era um sítio para a pessoa se sentir mesmo bem e não ter grande vontade de sair a correr. O piano fazia parte de todo este bem-estar. Era antigo, muito bem envernizado, pousado em cima de um estrado espaçoso frente a uma banqueta de veludo a condizer. Foi só dizerem-me que sim, que estava afinado, e que tencionavam usá-lo para dar espetáculos nocturnos no Verão. Lembrei-me logo dos espectáculos de fado falado, que ficariam tão bonitos com um piano. Ainda por cima, funcionavam como uma homenagem a uma Lisboa já quase inexistente, devorada como andara a ser nos últimos anos por legiões cada vez mais cerradas de turistas. Estremoz também estava a ficar submerso em turistas. Talvez um toque nas letras tornasse a homenagem mais explícita.

    Em torno do piano, com o bar ainda vazio, o entusiasmo ia subindo de tom. Eu precisava de uma voz de homem para falar os fados comigo. Era necessário ver quem seria a pessoa mais indicada, falar com ela, convencê-la a juntar-se a nós. Havendo gente, havendo espaço, um coro a entoar a música de alguns dos fados junto do piano era capaz de funcionar muito bem. E esse coro cantava como, a uma voz? Duas vozes? Estava tudo em aberto, a partir do momento em que até entrava um ukelele.

             “Uma coisa que era capaz de ter graça,” continuei eu, “era se de vez em quando, mas nunca se sabia mesmo quando, houvesse na assistência um grupo disperso de pessoas que se levantasse de repente, entoasse uma passagem, e voltasse a sentar-se.”

             “Ah!”, gritou o David com os olhos a brilhar. “Uma flash mob? Isso era brutal!”

             Eu não sabia se seria possível organizar qualquer flash mob naquele espaço. Nem se poderíamos ter minimamente a certeza de que os seus elementos viriam disciplinadamente aos ensaios e estariam organizadamente presentes sempre que houvesse espetáculo. Aliás, não fazia ideia de como é que se coreografa e se ensaia uma flash mob. Mas, como não queria desapontar ninguém, sorri e disse “qualquer coisa assim, depois logo se vê.

             Acabámos por combinar que eu escreveria o roteiro completo do espectáculo, com indicação de intervenientes, instrumentos, letras, e por aí fora. Depois mandava por mail para eles. Depois falava com o patrão, que chegava para a semana. Depois, se toda a gente estivesse de acordo e gostasse do projeto, avançávamos.

             Havia muito que fazer até ao Verão.

             O David saiu comigo, e subimos juntos as escadas que levam ao Castelo. Há muito tempo que não via um homem tão feliz.

             “Ah, finalmente!”, repetia ele. “Finalmente, ao fim de 37 anos, vou fazer uma coisa mesmo diferente em Estremoz! Vou fazer uma coisa que vale a pena fazer! Esperei tanto, tanto, tanto, que já tinha desistido. Agora não. Agora vou recomeçar os ensaios do ukelele já esta noite. Ah, finalmente!

             Depois eu lá consegui encontrar o ficheiro dos fados falados. Dei-lhe vários toques, emprestei-lhe mais conotações estremocenses, substituí o nome de uma casa de fados em Alfama pelo nome daquele café-bar que acabara de abrir com tão bons auspícios. Falei com o patrão, que se mostrou muito interessado e me pediu que lhe mandasse o ficheiro para ele ver.

             Mandei o ficheiro para toda a gente.

             Ninguém me respondeu.

             E fez-se o longo silêncio que se segue às batalhas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • As mulheres e crianças primeiro!, ou nós toleramos a demagogia política (mas não se estiquem)

    As mulheres e crianças primeiro!, ou nós toleramos a demagogia política (mas não se estiquem)

    São irritações dos que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?

    Yasunari Kawabata

    O arco-íris


    Tinha eu vinte e poucos aninhos, e, entre outras coisas, a certa altura dei comigo sentada à volta de uma mesa com outros camaradas trotskistas ou simpatizantes do modelo que estavam a formar o PSR[1] sob a jurisprudência do jovem Francisco Louçã. Depois desse dia, sempre que era preciso votar em partidos, eu votava no PSR. No mínimo, seria sempre um pouco bom voto de protesto. Depois do PSR nasceu o Bloco de Esquerda e com ele subiu muito a febre: agora o voto já não seria só de protesto, porque podíamos eleger mesmo deputados que nos representassem. A partir daí, toda a gente conhece a trajectória do Bloco – em que eu continuei sempre a votar, salvo raríssimas excepções. E votei em autarcas do Bloco, em presidentes da República do Bloco (salvo quando votei na Ana Gomes, mas aí a razão era bastante mais forte do que a paixão), em presidentes de Juntas de freguesia do Bloco. Conto-vos esta história para garantir que ninguém podia ter maior dedicação à causa da verdadeira esquerda[2] do que eu. Mas quando ouvi a forma bacoca e demagógica que Mariana Mortágua escolheu para falar do navio de bandeira portuguesa cheio de armas para Israel que estava no Porto de Lisboa até me arrepiei de irritação[3]. Apeteceu-me atirar-lhe à cara o preceito socrático fortificado nosce te ipsum capra[4] e espetar com ela na psicanálise. Então a senhora não vê que há coisas que um político de esquerda, que ainda por cima é uma mulher, que para mais afirma gostar de mulheres, não pode dizer do alto do púlpito?


    Então vamos lá recuar umas semanas no tempo. Através do Bloco de Esquerda, ninguém nos diz como mas também ninguém parece muito interessado em saber, descobre-se que está ancorado no Porto de Lisboa, com a bandeira portuguesa hasteada, um navio com o porão carregado de armas tenebrosas com destino a Israel. Descobre-se porque, nessa manhã, o Ministério da Defesa confirma a presença escandalosa deste barco no nosso porto, a Judiciária apoia a confirmação, o Presidente da República declara-se apanhado de surpresa mas interessado em, antes de mais nada, tirar do barco a bandeira portuguesa, as autoridades portuárias ainda estão a investigar as condições da sua entrada mas consideram que se deve conduzir desde já o barco para águas menos abertas ao público… e ninguém manifesta grande sobressalto com a horrenda descoberta. Por incrível que pareça, tudo isto se passa numa grande tranquilidade de segunda-feira de manhã ensolarada, como se estivessem agentes da MOSSAD, de granada na mão, a guardar todas as saídas do estúdio – e, porque não, todas as saídas da RTP.

    cargo ship on sea under cloudy sky during daytime

    Felizmente, a pulsação política e jornalística sobe geometricamente de pulso assim que a acção passa para o Parlamento. Mariana Mortágua, dirigente do partido político que descobriu a presença entre nós daquele barco sinistro, está no uso da palavra. E ela, ela sim, finalmente – ela está francamente indignada. No seu melhor estilo Morticia Addams, toda vestida de preto, o cabelo asa de corvo escorrido pelos ombros, a pele glacial, a voz de além-túmulo, mas que se lixe: se Portugal estava a albergar sem nós sabermos um barco cheio de armas para Israel, é melhor que alguém com assento parlamentar se indigne, e se indigne a valer. E portanto até eu, que embirro francamente com esta escolha desastrosa de cabeça de cartaz, sinto um alívio enorme quando a oiço.

    Mas isso dura um minuto ou dois.

    Depois até a representante da esquerda para lá da cassette puxa ao choradinho desnecessário.

    “… e todas aquelas armas se destinam a matar as mulheres e as crianças da Palestina…

    A pessoa até dá um salto no sofá e entorna sobre si própria o café ainda a ferver.

    Ai filha, pela tua rica saúde.

    As mulheres e as crianças“?

    Então e como é, os adolescentes, os homens, os velhos da Palestina – esses não têm direito a nada? Não é tão horrível serem massacrados como as mulheres e as crianças? Onde é que tu julgas que estás, quem é que tu julgas que és – talvez um cavalheiro vitoriano a abrir a porta e a dizer, com uma vénia para as visadas e um sorriso paternalista para os amigalhaços presentes, “primeiro as senhoras“? Mas não foi exactamente contra isso, contra a antiquíssima praga do gineceu[5] que escravizou as mulheres de todo o mundo durante milhares de anos, que lutaram as nossas avós, que lutaram as nossas mães, que lutámos nós a vida inteira e que as nossas filhas ainda têm de lutar? Isto, ainda por cima, é declamado pela mesma mulher de esquerda que teve a péssima ideia de tornar público que gostava de mulheres[6]. E depois, de repente, a puxar à lágrima sem qualquer vergonha, sai-se com esta enormidade como se as mulheres fossem menos capazes de resistir às intempéries do que os homens? Tudo bem, espera-se dos políticos que sejam demagógicos. Mas isto é muito para lá de demagógico: isto é absolutamente insultuoso.

    Até para as crianças.

    city with high rise buildings under orange sky

    Tal como as mulheres, as crianças têm uma antiquíssima história de serem insultadas. O homem é o único animal com filhos que precisam de cuidados parentais durante tantos anos, e de uma aprendizagem tão complexa para poderem exercer profissões de qualquer espécie, e este crescimento lento e dependente sempre baralhou os estudiosos. Em consequência e antes de mais nada, embora se meta pelos olhos dentro que as crianças são espertíssimas, como a esperteza delas é diferente da nossa passaram milénios relegadas para o mesmo gineceu que as mulheres, e depois mais vários séculos a serem tratadas como atrasadas mentais. No século XVIII, o filósofo inglês John Locke, hoje considerado o fundador da psicologia, esclareceu finalmente o mistério do crescimento lento das crianças: era uma parte fundamental do plano divino para que as famílias não pudessem deixar de manter-se unidas.

    Mariana, tu não te esqueças que foi preciso esperar até 20 de Novembro de 1959 para que a Assembleia Geral das Nações Unidas se lembrasse, por fim, de aprovar a Declaração dos Direitos da Criança[7], “considerando que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar“. Se continuares a ler, ficas cada vez mais arrepiada. “A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.” – “A criança tem direito à educação, que deve ser considerada gratuita e obrigatória” – bolas, e, sobretudo, pelo menos para mim, “A criança deve ter plena oportunidade para brincar.” É evidente que estamos a privar todas as crianças do mundo de todos os seus direitos[8]. Por isso mesmo, um bocadinho mais de respeito quando falas das crianças da Palestina não te ficava mal. Santo Deus, já lhes basta o que basta.

    Aliás, implicar que as crianças são incapazes de combater ou de sobreviver sozinhas numa guerra, sobretudo se estivermos a falar das crianças da Palestina, volta a ser de um desdém de bradar aos Céus. Fui eu que enlouqueci ou foram precisamente as crianças da Palestina, quando Israel começou a ocupar os primeiros territórios a que não tinha direito por lei, que iniciaram as hostilidades com as famosas chuvas de pedras? Apanhados de surpresa, sem mais coisa nenhuma que servisse de resposta, não foram precisamente “as crianças” que ripostaram contra os tanques à pedrada, tal como ainda hoje ripostam? É muito triste, Mariana, pois é. Mas, da próxima vez que a demagogia te parecer indispensável, lembra-te das mulheres e das crianças e da forma como nos insultaste a todas. E escolhe melhor os teus recursos de oratória.

    “MAS NÓS TEMOS FILHOS”

    Há cerca de vinte anos, do lado de cá do Mar Morto, frente a Jericó, acabei por ter uma longa conversa com dois pastores palestinianos que se faziam passar por beduínos. Perguntaram-me se eu queria ir ver, e eu disse que sim. Depois de um valente esticão a pé com os borregos, metemo-nos num camião velho e demos uma data de voltas até chegarmos a uma colina junto ao vale do Jordão. A barulheira dos borregos sedentos encobriu a nossa escalada. E, lá de cima, era verdade: via-se perfeitamente. Os israelitas estavam a construir os primeiros blocos sólidos, resistentes, muito feios, de um novo kibutz em plena Palestina. Como se todo aquele chão fosse deles por direito.

    Até eu senti raiva.

    Depois olhei em volta e não pude deixar de questionar-me.

    Mas é por isto que vocês lutam tanto?”, perguntei-lhes. “Por meia dúzia de laranjeiras numas colinas quase desérticas à beira de um rio quase sem água?

    Isto“, respondeu firmemente um dos pastores, sem sequer olhar para mim, “é a nossa terra. Se viessem uns estrangeiros invadir a tua terra – tu não lutavas por ela?

    Pergunta retórica.

    Limitei-me a sorrir, e a dizer que sim com a cabeça.

    Depois insisti.

    Mas estes gajos estão cheios de dinheiro. E estão cheios de armas. Como é que vocês alguma vez conseguirão impedi-los de fazer coisas destas?” – e apontei para a construção grosseira e arrogante com o queixo, enquanto os bulldozers judeus iam e vinham sem parar.

    Eles sorriram com orgulho.

    Sabes uma coisa? Estes gajos não têm filhos. São como vocês. Um casal com dois filhos já é uma grande coisa, por muito que o governo lhes pague para terem três ou quatro. Mas nós” – já não me lembro qual deles é que falou, mas até levantou a voz de emoção – “nós temos filhos. Todos temos muitos filhos. E todos os nossos filhos aprendem muito cedo a odiar os judeus, e a atirar pedras aos tanques dos judeus. Havemos de ter tantos filhos que um dia os filhos deles nada poderão contra os nossos. E é assim que começa o colapso da Judeia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Partido Socialista Revolucionário.

    [2] É um disparate chamar ao Bloco “Esquerda radical” ou “Extrema esquerda”.

    [3] Também é preciso ver que Mariana Mortágua me irrita com uma frequência espantosa. Se eu fosse a sua coach política virava-a completamente do avesso. Em termos de proporcionar um mínimo de conforto aos portugueses, da forma que tanto Louçã como Catarina sabiam fazer tão bem, a Mortágua parece uma figura saída da Família Adams que dorme debaixo da cama deles e assusta as criancinhas durante a noite.

    [4] Conhece-te a ti mesma, cabra.

    [5] A medicina grega considerava as mulheres meros homens incompletos, com os órgãos sexuais retidos no interior do corpo devido ao frio do útero materno, que impossibitara o seu desenvolvimento a termo. Estes “homens mutilados” existiam em grande número porque eram necessários para a reprodução, onde, aliás, morriam com frequência. Como tal, eram mantidos no seu enclave isolado, sem qualquer relação com a filosofia, a guerra, o debate, e tudo o que dissesse respeito à democracia. Os desenhos do homem mutilado demoraram muito tempo a desaparecer da literatura científica. Ainda faziam as suas aparições esporádicas nos livrinhos de cordel do século XIX.

    [6] Antes de mais nada, o dito anúncio não era novidade para ninguém. Mas o pior foi que abriu um precedente gravíssimo. Deu carta branca a quem quisesse andar a vasculhar a vida privada dos políticos, com a Comunicação Social à cabeça, para avançar e fazer isso mesmo com vista a tornar públicas as suas descobertas mais palpitantes. Afinal de contas, era uma dirigente política que acabava de abrir as hostilidades.

    [7] Eu nasci a 30 de Janeiro de 1960. Gozei-me desses direitos por um triz.

    [8] Tanto estamos que não paramos de re-escrever o que já está escrito, com cada vez mais cláusulas e mais notas. A última CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA COM PROTOCOLOS FACULTATIVOS (!) foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21 de Setembro de 1990. Entretanto, há cada vez mais tráfego de crianças, mais criação de crianças-soldado, mais corpos pequeninos de crianças removidos dos escombros de mais algum edifício bombardeado em qualquer parte do mundo.


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  • A nossa última homenagem a tudo o que ninguém sabia que Darwin disse

    A nossa última homenagem a tudo o que ninguém sabia que Darwin disse


    Quando admiro os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali estabeleceste, pergunto: Que é o homem para que com ele te importes? E o filho de Adão para que venhas visitá-lo? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste de glória e de honra.

    Salmos 8: 3-5 (Salmo Messiânico de David)


    Ficou culto neste Verão?

    (isso é o que vamos ver)

    ________________________________________________________________________

    Este ensaio final, a despedir-se dos leitores numa noite de chuva que desaba sobre nós já em pleno Outono, foi despoletado por um filme lindíssimo, de uma complexidade espantosa, que nos recorda uma vez mais quantos homens diferentes coexistem ainda hoje no planeta. É impossível não olhar logo para trás e recordar a quantidade riquíssima de homens diferentes que conviveram connosco no planeta há já muito tempo. É impossível não sorrir perante a evidência de quanto gosta o pessoal de trocar genes. Mas vamos com calma, que o território evolutivo é sempre um terreno minado. O Comandante Fitzroy, com quem Darwin jantou todas as noites durante os cinco anos da viagem do BEAGLE, acabou por perder completamente a cabeça. Foi visto no primeiro grande debate evolutivo de Inglaterra[1] a brandir uma Bíblia, gritando “O Livro! O Livro!”. Cinco anos mais tarde, suicidou-se com um tiro na cabeça. O próprio Darwin, por muito que tenha mantido sempre a compostura, acabou por morrer consumido por uma depressão tão penetrante que o levou a desistir de fazer a barba.

    Depois não digam que não vos avisei.


    Com esta idade provecta, os acasos totais das afinidades electivas ainda me comovem. Há pouco mais de um ano, ainda nem sequer conhecia o Nuno Gomes, o homem que é agora o meu editor, que é biólogo como eu, e que tem entre as suas várias teimosias grandiosas, próprias dos gajos do Porto, editar em português perfeito a obra completa de Charles Darwin. Conhecemo-nos exactamente por causa destas crónicas, que levaram o Nuno a pedir-me um prefácio para um livro francês interessantíssimo sobre as mulheres pré-históricas. Agora, graças a ele, acabo de descobrir que vivemos, realmente, numa era milagrosa[2]: depois de décadas inteiras de autêntica saudade, acabo do descobrir que basta ir ao YouTube e está feito: já posso voltar a ouvir a música do filme russo URGA, realizado por Nikita Mikhalkov e levantado do chão por uma banda sonora inacreditável do compositor Eduard Artemyev, de quem as bestas como nós[3] podem nunca ter ouvido falar mas que há de ter sido, sem sombra de dúvida, uma pessoa tocada pela graça. Este homem raro morreu há dois anos e ninguém disse nada porque ninguém consegue lidar devidamente com as coisas que são demasiado belas. A música de abertura, que é de cortar o fôlego, tem várias variações ao longo do filme. Passei hoje a tarde a ouvi-las a todas, e fenómenos destes raramente nos acontecem: não sei – mesmo – dizer qual das variações é a mais bonita.

    São destes pequenos mistérios pessoais que toda a gente tem para celebrar.

    Mas quer dizer…

    O Nuno?

    Um gajo do Porto?

    Substancialmente mais novo do que eu?

    Também conhece o filme e também delira com a banda sonora[4]?

    Ah, carago, como eles dizem. Vamos celebrar.

    Graças às explorações do universo darwiniano investidas na composição destes ensaios, sempre gostava de saber quem é que sabe que ainda não sabemos, e provavelmente nunca saberemos, por que é que o Homo sapiens foi a única variação de hominídeo que sobreviveu até aos nossos dias. Os apontamentos de Darwin logo na viagem do Beagle não podiam estar mais correctos. Uma multitude de Homos, todos eles vindos de África, precederam a nossa existência. Alguns chegaram a viver no planeta juntamente connosco. Desses, os neandertais juntaram-se tão estreitamente a nós que de 2 a 4 do nosso ADN é feito do ADN deles. O que quer dizer que nunca morreram. Ficaram a viver para sempre dentro de nós, e nisso foram-nos muito úteis.

    Tudo isto começou a acontecer desde o aparecimento em África dos primeiros Australopitecos, dos segundos, dos terceiros – e depois das duas ondas consecutivas de expansão para outros continentes de espécies separadas que já pertenciam ao género Homo. Danados e curiosos desde os seus primeiros dias, os Homo andaram a migrar para cá e para lá entre a África e o mundo numa amostragem cheia de nomes esquecidos pelos manuais escolares[5]: o Homo habilis, o Homo afarensis, o misteroso Homo denisovan, e o Homo heidelbergensis (que ainda conviveu connosco mas acabou assimilado pelos neandertais). Mais tarde, algures entre apenas quarenta ou trinta mil anos atrás, ainda coexistiam no planeta três espécies humanas: o Homo neanderthalensis[6] na Europa, o Homo erectus na Ásia[7], e o Homo sapiens em expansão constante.

    Ou seja, até há muito pouco tempo nós não éramos, de maneira nenhuma, os únicos homens do mundo. E, depois de toda a poeirada levantada pela turbulência criada em torno do conceito evolutivo começar a assentar[8], ainda estoira a euforia que correu a ciência em 2010, quando a literatura especializada foi sacudida pelas publicações dos primeiros resultados do projecto genoma neandertal.

    Tinha de ser.

    Decifrado todo o genoma humano no ano 2000, e na altura já bem conhecida a partilha de territórios e tempos históricos entre as duas espécies[9], ninguém descansava enquanto não decifrasse também o genoma neandertal e verificasse cientificamente, com todo o rigor, quem é que tinha trocado genes com quem.

    Os neandertais viveram de 230000 até há 30000 anos atrás. Eram homens com uma força brutal, muito superior à nossa. O primeiro espécime foi encontrado na Alemanha, no vale do rio Neander, em 1856, por operários que trabalhavam numa fábrica perto de Dusseldorf. Daí o nome atribuído à espécie, que de entrada parece sempre bizarro.

    O genoma neandertal ficou sequenciado na totalidade em 2010.

    A descoberta foi publicada separadamente por diferentes grupos, em diferentes datas[10], e expôs em toda a linha os primeiros vestígios, há muito pressentidos, mas ainda nunca demonstrados, de que a nossa troca de genes com os neandertais foi constante e animada[11]. É graças à herança neandertal que ficou connosco que herdámos luxúrias como o cabelo ruivo, sempre acompanhado por uma pele muito branca. Ou então o gene que possibilita e controla a linguagem articulada. Para não falar dos conjuntos de genes destinados a proteger-nos das depressões[12]. Os neandertais ainda existiam na Península Ibérica há 27 mil anos e este deve ter sido o seu último ponto de vida. Mais especificamente, Portugal deve ter sido o seu último enclave. Não é bem que dá-se um pontapé numa pedra e salta de lá um neandertal, mas é quase: os vestígios aparecem em gruta atrás de gruta, e chegamos a albegar sítios raros, como por exemplo um local ritualizado para enterro de dezenas de homens, exclusivamente os que morreram durante a juventude.

    E esta, apreciem bem esta e vejam bem o ponto a que coisa já tinha chegado:

    Uma criança encontrada em Leiria tem traços conjuntos de sapiens e neanderthal.

    A próxima vou pôr em grande destaque:

    Um crânio humano fossilizado vem à superfície ainda com dois dentes. Os dentes têm marcas de bactérias neandertais. Isto costuma acontecer quando se troca um beijo demorado.

    Desculpem, mas não resisti. É grandioso, isto – quando a Ciência confirma o Amor.

    Hoje é obviamente apenas um caso singular, sem leitura geral possível, existirmos enquanto espécie única.

    E, se temos em nós toda esta variedade de criação cultural tão diferente, e ao mesmo tempo tão idêntica, devemo-la sem dúvida a um passado conjunto que vivemos com outras espécies do nosso género. URGA, um filme tão bizarro e ao mesmo tempo tão comovente desde o início, é um testemunho sublime dessas outras memórias, tão alheias e tão idênticas.

    Vi o filme há pouco mais de trinta anos, quando estava estacionada no Massachussets a trabalhar no projecto de clonagem da University of Massachusets. É realmente em tudo diferente dos nossos, incluindo na lentidão do ritmo, nas línguas que as pessoas falam, no que é que se entende por “uma universitária” (se calhar aquela mulher fez mesmo um curso de Economia, ou então de Matemática; mas o que nós a vemos fazer é saltar para cima do cavalo com a sua urga e, completamente sozinha, reunir sem esforço, com grande velocidade e numa pose feroz, uma manada enorme de vacas tresmalhadas), ou na visão constante, profundamente sufocante, das máscaras enormes com uma rede à frente que todas as pessoas precisam de usar sempre que estão ao ar livre, para se protegerem das moscas, dos mosquitos, das varejeiras, dos abelhões, e mais de todos os outros milhares de insectos que pululam na estepe, que dariam certamente com a pessoa em doida – e da sensação que essas máscaras nos dão, sempre que estamos a ver uma cena ao ar livre durante o dia, de assistirmos a cenas estranhas de ficção científica muito antiga.

    Doida, e talvez morta. Podia perfeitamente ser alérgica à ferroada de qualquer um daqueles bichos, e onde vivem os mongóis, para lá do deserto de Gobi que é o maior deserto do mundo, não vivem muito mais pessoas. O apoio médico que existe demoraria demasiado tempo a chegar na eventualidade de um choque anafilático. Como os atacantes são milhares deles, será sempre muito difícil para os camponeses e cavaleiros identificar o inimigo específico que só não o matou porque Deus não quis. Este tipo de projecto seria interessantíssimo para doutoramentos de médicos, ou de biólogos e farmacêuticos, mas a ideia de viver na estepe durante dois anos, ou mesmo um ano – até um semestre que seja parece uma violência a todos os títulos desnecessária, em condições precárias como estas.

    E não temos o direito de dizer mal destes investigadores renitentes, porque, naquela altura, sujeitos àquelas tais condições, na maior parte dos casos incapazes de falar a língua dos mongóis, nós próprios também não iríamos.

             A Mongólia esteve sob domínio chinês há já muito tempo. Depois de se ter autonomizado e autoproclamado enquanto país independente, acabou por ser anexada pela URSS. A rebelião antissoviética teve início em 1989; e, em 1992, a Mongólia era finalmente um país livre, com as mesmas vicissitudes e estranhezas que tem vindo a ter até agora mas sem invasão de terceiros. Esta inserção de Wikipédia vem aqui a propósito por uma boa razão.

    Dá ideia de que nessa altura a Mongólia pertencia à China, ou então de que ficou por bastante tempo sob uma marcada influência chinesa, porque é assim que começa a história: o marido e a mulher defrontam-se longamente na estepe, ambos com os cavalos imobilizados e o que parece ser uma lança extremamente longa e flexível na mão[13], até que, num momento que não saberíamos distinguir, ambos arrancam a galope na direção um do outro. E, no momento preciso em que se cruzam, como num desporto perfeitamente coreografado, a mulher dá ao marido uma estocada que o faz cair ao chão.

    Na cena seguinte caiu a noite, estão ambos dentro da tenda com a mãe dele a observar, e algumas crianças brincam à luz da fogueira sem fazer barulho. Ela está a tratar-lhe da mão com todo o cuidado, ao mesmo tempo que ralha, visivelmente exasperada:

    “Qual é o teu problema? Não sabes contar? UM! O Governo só nos deixa ter UM filho!”

    E pronto, aqui está a crise que crucifica o pobre casal: supostamente, só deveriam ter um filho. No entanto, já vão em três – feitos ao ar livre, na estepe, com aquela tal espécie de lança comprida e flexível do marido espetada no chão. Esse estranho objecto é que é a urga, e não serve objectivos guerreiros: serve para dirigir, de cima dos cavalos, as manadas de gado para dentro dos seus redis ou para a transição rumo a novas pastagens. Naquela posição, no entanto, está ali para um outro fim, bastante mais específico e tornado inequívoco pela posição: destina-se a avisar todos os outros mongóis do que se passa ali, para que mantenham as devidas distâncias enquanto o casal é feliz[14].

    Embora seja perdidamente improvável que algum burocrata atravesse o deserto de Gobi (o maior do mundo, não se esqueçam) para ir espreitar dentro das tendas cheias de mongóis reportadamente ferozes e com umas armas brancas que mais ninguém sabe manejar, a verdade é que a mulher invoca a Lei do Filho Único como pretexto para se acabar ali mesmo com o sexo, e é nessa altura que a mãe do marido lhe diz, sem procurar disfarçar nem baixar a voz: “Eu bem te avisei dos perigos de te casares com uma mulher universitária.” Mas, entretanto, o marido fez uma grande amizade com um camionista russo – e este oferece-se imediatamente para o ajudar na solução óbvia do problema. Amigo, junta algum dinheiro, nem sequer é preciso muito, vens comigo à cidade, eu levo-te às lojas onde costumo ir, compramos preservativos em barda para os tempos mais próximos, e está o problema resolvido. O meu país também é comunista, não te esqueças. Um bom comunista tem sempre um saco cheio de preservativos muito bem escondido em qualquer lugar estratégico da casa. Nunca se sabe o que é que vai acontecer a seguir, mas um gajo quer pinar à mesma. E, como o camionista está ali mesmo ao lado, pronto para dar conselhos sensatos ao marido, que aliás a mulher aprova de imediato com imenso entusiasmo (“universitária“, é o que é), apenas porque tem o seu camião avariado e estão vários mongóis, marido incluído como é obrigatório, a reparar-lhe o motor, vão os dois até à cidade procurar o progresso… os dois montados no mesmo cavalo, já que o camionista não sabe montar.

    A sequência de acontecimentos a partir do momento em que chegam à cidade torna-se finalmente banal, só nessa altura é que reparamos que estas pessoas têm os mesmos sonhos, os mesmos medos, e as mesmas capacidades de decisão sob pressão que todas as outras têm – veja-se a sequência em que o marido, que está numa cidade pela primeira vez e, comprados os preservativos, já sugeriu várias vezes ao camionista que se fossem logo embora, quando percebe que o amigo está metido em sarilhos encontra prontamente o bar, onde o vê podre de bêbedo, caído no chão, a ser pontapeado e insultado pelos citadinos circundantes. Nessa altura, entra calmamente no bar, tira partido da surpresa dos citadinos ao verem entrar, depois de um russo, um camponês mongol vestido de camponês mongol dos pés à cabeça, de facalhão colossal bem preso no cinto, de urga[15] na mão e tudo. E, enquanto os clientes habituais o contemplam de boca aberta, agarra no amigo, passa-o por cima do ombro, sai, prende-o bem ao cavalo, depois do que ele próprio monta, segura as rédeas, e, agora que o russo está inconsciente e portanto ele pode fazer o que quer, esporeia o animal, solta-lhe as rédeas, cola-se-lhe ao pescoço, e arranca dali naquela velocidade assombrosa dos cavalos mongóis, que se diz desde Aristóteles serem “tão rápidos como o pensamento“.

    Nesta passagem, podiam perfeitamente ser Arnold Schwarzenegger e Mel Gibson, há trinta anos atrás.

    À sua espera na tenda da estepe, ambas numa pilha de nervos mas ambas arrumando tudo à sua volta para não darem parte fraca, estariam Catherine Deneuve no papel de Mãe e a Julia Roberts, aqui sem nunca sorrir mas ao menos completamente ruiva, no papel de esposa “universitária“.

    O papel de filha mais velha, que conversa muito com o russo sobre o comunismo, também consegue conversar com os cavalos, e por vezes tem visões pouco claras mas com protagonistas muito nítidos, seria entregue a Christina Ricci, no tempo em que tinha as longas tranças da filha mais velha da ADAMS FAMILY[16]. É evidente que já estou a meter no filme detalhes impostos completamente a martelo, mas é que entretanto o URGA deixou de ser o original mongol e passou a ser uma megaprodução de Hollywood. Vale a pena divagar um bocadinho porque aqui ressurge um tema que perturbou os nossos egrégios avós quando tentavam compreender a origem do Homem: como é que era possível que os sentimentos das pessoas, fossem elas de que “raça” fossem[17], vivessem elas onde quer que vivessem à superfície do planeta, nunca sofressem a menor alteração em relação ao que é realmente fundamental – o gosto pelo belo, a necessidade da ordem, a resposta ao apelo da arte, a criação de leis, a existência de uma linguagem articulada que tende a poder ser posta por escrito, e sim, sim, como negá-lo? – o amor, o desejo, a ternura, o perdão, e em toda esta lista é evidente que a ordem dos factores não altera o produto. Desse ponto de vista, o filme URGA é quase um soco no estômago. Quando vemos caminhar lado a lado o camionista russo, muito louro e de olhos muito azuis, e o pastor mongol, completamente mongol dos pés à cabeça, agora sabemos que eles não saíram mesmo de uma cepa igual. O russo nem se discute: é um Homo sapiens típico. Mas, e o mongol? Não parece saído de outro planeta? Pois, porque cresceu nas estepes da Ásia. Esse era o domínio do Homo erectus. Estamos mesmo a ver a descendência de duas espécies de hominídeos completamente diferentes, que pouco partilharam de território e coincidência no tempo, e muito menos de troca de genes.

    E, no entanto, não é só a questão dos preservativos. Ao longo do filme, estes dois vão ficando cada vez mais amigos. E é evidente que a filha mais velha do mongol, que toca na concertina o hino à liberdade que o russo tem tatuado nas costas[18], está cada vez mais apaixonada pelo camionista, que gosta de exibir-se só de jeans e em tronco nu, enquanto os outros Homos quase desaparecem por trás da floresta daqueles trajes tradicionais todos.

    Tira lá essa roupa!”, diz o russo à miúda. “Nem sei como é que consegues mexer os braços para tocar. De cada vez que pisas para aí uma nota toda mal pisada eu penso nessa estupidez dessa roupa. Ainda por cima o teu corpinho deve estar mesmo radioso. Aposto É da idade. E tu andas a escondê-lo, agora que devias gozar-te bem dele?”

    Olha o Pai!”, ralha a miúda numa voz líquida de ribeira da floresta.

    E ri, ri, ri, toda feliz da vida.

    Mais trocas de genes entre espécies em perspetiva.

    Tendemos a andar para aí feitos parvos, cada vez mais esquecidos da importância do amor como bloco básico da construção humana, e desculpem: quem nunca pecou que atire a primeira pedra à mulher adúltera. A gente peca por desleixo amoroso. Mas o genoma humano ganhou os contornos que tem hoje graças ao amor.

    E o Darwin, no meio disto tudo? O Darwin, ainda um jovenzinho na viagem do Beagle, escreveu nos seus apontamentos secretos qualquer coisa como isto:

    Deve ter existido o arquétipo do primeiro homem, de todos o que estava ainda mais próximo dos chimpanzés e gorilas[19]. Esse primeiro homem há de ter emergido onde a vida fosse fácil, com um clima quente, próximo do mar que chama sempre pelos homens, com bons terrenos para cultivar, abundância alimentar, chusmas autênticas de mulheres lindas, com rabos muito grandes, ao agrado do eterno masculino. Ou seja, é indiscutível que o primeiro homem emergiu em África. Com o tempo, a evolução e a selecção natural foram congeminando mais espécies de homens, sabe-se lá quantas. Tudo isto só seria possível em África, vendo bem as coisas. É a única parte do mundo onde um gajo deita uma beata acesa ao chão e daí a uma semana já cresceu ali uma árvore de SG FILTRO.[20]

    Dois séculos antes de vermos o nosso próprio genoma, e o genoma dos outros homens com quem trocámos mais genes, Darwin viu tudo por nós antes mesmo de conhecer a linguagem sem surpresas que agora usamos para descrever o que vimos. E é graças à visão genial de Darwin que eu, pelo menos, neste preciso momento consigo voltar atrás no tempo e perceber, por fim, o que é que realmente me fascinava tanto no cozinheiro do Miramar que dirigia a célula local do MPLA. Os almoços de luxo para onde nos arrastavam duravam horas, eles bebiam bastante e deixavam de ligar às crianças, que em princípio estariam todas a brincar lá fora. Eu tirava os sapatos para não fazer barulho e fugia lá para dentro para me esconder num cantinho e ficar num deslumbre a vê-los de roda dos fogões, mas era sempre aquele homem maior do que os outros, implicitamente chefe dos outros, que me fascinava perdidamente sem eu saber porquê. Às vezes esperamos mesmo sessenta anos para ter uma visão.

    E depois, quando tem, toda a sua vida valeu a pena.

    Memória de infância

    A VINGANÇA DAS ESPÉCIES EXTINTAS

    Uma vez, nessas minhas fugas secretas para a cozinha do Hotel Miramar, descobri a técnica dum borracho todo musculado que era o Job, e que toda a gente dizia que fazia os melhores croquetes de Angola. Era hora de almoço, estava uma caloraça indescritível, o Job já se tinha posto em tronco nu para trabalhar com mais gosto e mais depressa[21], escoriam bagas e bagas grossas de suor por aquela peitaça hercúlea abaixo, os seus braços enormes pareciam girar em torno do fogão como seis ou oito, toda a gente ria e mandava bocas, e enfim – o cheiro a catinga naquela cozinha pairava do chão até ao tecto como um equinócio que se perdeu no caminho. Ainda hoje adoro o cheiro a catinga. Para mim, cheira a chegar finalmente a casa.

    Nisto alguém vem carregado com pratos sujos da sala de jantar toda elegante, com imensa pressa, vira-se para o Job e pede-lhe duas doses dos seus croquetes incomparáveis. O Job diz que sim com a cabeça, o colega que fez o pedido acrescenta que as clientes são mulatas lindas de olho verde e pestana enrolada que não param de rir e de beber, ele depois do almoço vai apresentá-lo e quem sabe, há horas de sorte. O Job encolhe os ombros e diz que prefere os rapazinhos, coisa de que, aliás, tem fama na cidade inteira.

    Mas nunca ninguém viu nada.

    Devido à sua posição crítica no MPLA, o Job é o único do gang que tem um apartamentozinho junto à Baía. Mas, como em tudo o resto que faz, incluindo a sua receita para aqueles croquetes divinais, usa-o com gosto e alegria – só que de forma extremamente discreta.

    Entretanto, na cozinha do Miramar, Job já dispôs graciosamente a salada no prato, já tem a batata frita a escorrer dentro de um papel especial chamado CHUPÓLEO[22], e vai começar a enrolar os croquetes para fritar. É só o que lhe falta, porque a carne, muito bem temperada, marinada em aguardente de cana, e devidamente picante, está sempre ali ao lado na bancada dentro de um alguidarinho azul, com uma capulana muito bem lavada por cima, pronta a entrar em acção,

    Nesse dia descobri que o Job tinha aquilo a que se chama, literalmente, um dirty secret.

    Depois de servir as mulatas de olhos verdes, que mais tarde apareceram na cozinha aos gritinhos, disseram que realmente valia a pena vir de Nova Lisboa até Luanda para provar aqueles croquetes mágicos, encomendaram mais duas doses  com mais uma garrafa de vinho tinto, e disseram em altas vozes que, enquanto esperavam, iam levar para a mesa duas girafas com um prato de camarões picantes, dos maiores, porque, Santo Deus, aqueles croquetes eram tão bons que davam vontade de comer, comer, comer sem parar –enfim. Quando as fotos da PLAYBOY desampararam finalmente a loja ele fez uma rodada especial para nós e realmente era tudo verdade, eram os melhores croquetes do mundo, diferentes de todos os outros.

    Da casa de jantar começaram a chegar subitamente mais e mais pedidos de croquete com batata-frita e vinho tinto do melhor, sem dúvida estimulados pela excitação das misteriosas bonitonas de olhos verdes e corpos de estátua, que mais tarde fiquei a saber terem chegado e partido num descapotável prateado enorme, lindo, rápido e nervoso nas manobras como um terrível leopardo das neves[23].

    O que seria que aquelas estátuas nascidas sem pai nem mãe de dentro de uma buganvília quereriam realmente caçar? O cinema Miramar, com o seu anfiteatro de relva ao ar livre, ficava ali mesmo à frente. Se tivéssemos ido parar inadvertidamente a um filme de 007[24], duas miúdas com aquele corpão, aquelas mamas de aço à solta debaixo do decote, o umbigo de fora e as pernas de dois metros prolongadas pelos saltos altos dos botins, e ainda por cima aqueles shorts que lhes deixavam metade das nádegas de fora – e que nádegas, Nossa Senhora! – seriam certamente mercenárias ao serviço da Coreia do Norte. Agora ali em Luanda, sem James Bond à vista a menos que o Job tivesse uma dupla vida em que ninguém estava disposto a acreditar[25]… Tudo bem que estávamos num hotel de super-luxo, mas elas vinham numa de se atirarem ao Job e o Job vivia num secretismo feroz no andar de cima de um dos prédios do Bairro Social da Baía, deixando todos os outros à guarda da avó do Zé que era o boy lá de minha casa, no musseque da Cuca, que era animado mas que não haja equívocos, era à mesma um filho da puta dum mus-se-que. Nem eu valia grande coisa. Para já, era só uma menina branca a quem toda a gente me chamava Pretinha, e eles faziam de conta que não me viam mas todo o mundo sabia que estava ali sem licença. E depois, em termos de bens materiais, aquilo era mesmo uma cena a meia haste. A minha mãe trabalhava e tudo. Se calhar era por falta de dinheiro. Está bem que a casa dos meus pais estava na cara que era casa de branco, branco com bom gosto, branco interessado em arte de preto, branco com criada branca para as meninas que eram muitas e andavam todas no Colégio, mas nada disto era assim uma de ooooh meu mano, foda-se, morde-me só aquele branco tão rico.

    Estava a cozinha toda a discutir o que quereriam as boazonas de olho verde, e ao mesmo tempo o Job, sempre em tronco nu, sempre encharcado em suor e a cheirar a catinga, ia enrolando os croquetes. Só eu olhei. Fazia perfeito sentido, perfeito sentido. Claro que assim ficavam muito mais gostosos.  Mas aquilo era um nojo, foda-se. E ainda por cima o gajo estava sempre a suar.

    Calma aí, sua estúpida. Quanto mais ele suar mais gostoso fica o croquete.

    O Job piscou-me o olho e rimos os dois.

    O grandessíssimo vira-lata enrolava os croquetes com a agilidade assombrosa daqueles seus braços enormes contra os pelos do peito, pelo meio das ondas contínuas de suor e do cheiro invencível da catinga,

    Está bem que temperava muito bem a carne e a punha muito macia.

    Ah, gente, mas aquele toque final é mesmo tão diferente dos conhecimentos dos nossos palatos que surte em nós um efeito quase hipnótico.

    Criatividade,

    Em certas pequeninas e subtis notas de rodapé, o homem é mesmo o único animal que.

    E de repente, agora, vejo outra vez o Job. Vejo-lhe a testa abaulada quase inexistente, a maçã-de-Adão enorme, os braços muito mais compridos que os nossos, aqueles pelos todos no peito colossal, aquela força bruta – sim, vejo o Homo habilis intocado pelas mutações externas de todas as espécies que vieram depois, volto a piscar-lhe o olho, e presto-lhe homenagem.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

    P.S. Agora vamos ver quem é que ficou mesmo culto neste verão, pelo menos no que respeita a todas as histórias mal contadas que rodeavam o grande Charles Darwin, alterador radical do nosso pensamento.

    Então é assim: faço-vos sobre esta matéria um teste de 20 perguntas com quatro opções de escolha múltipla, como contributo para o vosso entretenimento na noite da passagem do ano. Cada pergunta vale 1 ponto, portanto, quem fizer sempre a escolha certa tem 20 valores e qualifica-se para curtir o jogo de pista bestial criado por mim aqui em Estremoz. Para responderem ao exame, podem reler os ensaios “Fique Culto Neste Verão”. Não posso impedir-vos de irem pedir socorro à Internet, mas aviso já que vai ser uma péssima ideia. O que aqui vos contei ainda não estava contado em lado nenhum. E têm até 31 de Dezembro para o Darwin, então.

    Para a semana, regressa A Deriva dos Continentes, com uma grande cacetada na Mariana Mortágua, dada por mim, que sou apoiante e eleitora do Bloco de Esquerda – e, antes de haver o Bloco, votava sempre no PSR, um grupelho abertamente trotskista que ajudei o Louçã a formar.

    Depois, há uma história nova para a História Natural, mas se vos contasse isto, perdia toda a graça.

    E instala-se a rotina, antiquíssima praga do trabalho científico, um trabalho tão criativo como qualquer outra arte.


    [1] O famoso Encontro da British Association de 1860, em que Thomas Huxley, também conhecido por “Darwin’s Bulldog”, arasou o bispo “Soapy Sam” Wilberforce.

    [2] Cheia de defeitos, eu sei. Mas todas as eras anteriores também estavam cheias de defeitos. A Idade do Ouro nunca existiu, como todos sabemos. Mas desta vez, ao menos, existe o lado solar da internet. E isso, essa velocidade com que encontramos tesouros desde que saibamos o que é que andamos a procurar – isso é absolutamente inédito.

    [3] Grupo em que eu tenho andado incluída, evidentemente.

    [4] É biólogo, lá está.

    [5] Que tenhamos identificado até hoje, claro. Provavelmente, existiram ainda mais espécies humanas que estão por descobrir.

    [6] Nome científico do famoso Homem do Neandertal, que supostamente teremos sido nós a exterminar, quando invadimos a Europa durante a Idade do Gelo e do qual teremos possivelmente herdado a sequência de genes para o cabelo ruivo. Note-se que, a avaliar pelo que a genética molecular nos ajudou a compreender melhor hoje em dia, a herança do cabelo ruivo é um cenário mais provável do que o cenário do rápido extermínio causado pelo aparecimento do Homo sapiens na Europa durante a Idade do Gelo.

    [7] Convivemos menos com estes: ainda não tínhamos chegado à Ásia por essa altura.

    [8] Nos anos 90, o consenso geral ainda era que o Homo sapiens tinha aparecido há setenta ou sessenta mil anos, e neste ponto exterminara, muito rapidamente, as amostras ainda sobreviventes do Homem do Neandertal.

    [9] Melhor conhecida ainda, escusado será dizer, é a tesão instintiva do pessoal por tudo o que é novidade.

    [10] O que prova a veracidade dos dados.

    [11] Só não foi com o Homo erectus porque não chegámos à Ásia a tempo de uma mistura em massa.

    [12] Ou seja, nós temos a defesa natural contra o problema. Já imaginaram a brutalidade com que andamos a esticar a corda?

    [13] A tal urga, que tanto serve como instrumento de trabalho como pode servir, se necessário, enquanto arma de defesa ou agressão.

    [14] No filme, na sequência em que finalmente em que se percebia este detalhe fundamental, não consegui deixar de pensar como é que alguém consegue entregar-se às delícias da copula num sítio onde a abundância de insectos voadores (e pressupõe-se que outros tantos rastejantes) obriga as pessoas a usarem máscaras de rede na cara e luvas de cabedal nas mãos.

    [15] Note-se, as urgas são imponentes. E o mais provável é que os citadinos nunca tivessem visto nenhuma.

    [16]But what will you do if a man really loves you?” – “I’ll pity him.” Sempre adorei esta deixa.

    [17] A sequenciação do genoma humana demonstrou que, em termos de genética molecular, não existe a mínima diferente entre as chamadas “raças” humanas – aquelas a que Darwin teria preferido chamar “subespécies” porque sempre era mais digno (uma subespécie é apenas uma variação geográfica, causada pelo ambiente, dentro da mesma espécie), mas acrescentou logo já saber ser esta empresa impossível, tão habituados estavam já os povos a usar o termo “raça”, à época de forma francamente derrogatória: os brancos são uma raça perfeita, mas os negros são uma raça de crianças rebeldes e voluptuosas que nunca crescem e só pensam em sexo, os mongóis são atrasados mentais (daí o termo “mongoloide” para os portadores da trissomia 21, também eles brutalmente excluídos da sociedade), os chineses cheiram mal e só sabem fazer contas mas nunca escreveriam um poema (!), os habitantes da Oceania habitam-na exclusivamente para o prazer dos olhos dos Europeus, que levam rapidamente a outros prazeres – e não servem para radicalmente mais nada. As raparigas tendem a morrer muito jovens durante os partos porque é o primeiro esforço que fazem na vida.

    [18] Memória de uma guerra qualquer em que a China queria invadir a Mongólia e os russos ajudaram os mongóis a expulsar os chineses. Estas partes, confesso, não percebo mesmo: quem é que quer invadir o maior deserto do mundo, onde vivem cavalos que só se reproduzem entre si, e vacas pastoreadas por uns fantásticos Homo erectus em estado puro? Aquilo tem é que ser declarado reserva mundial inviolável, gaita.

    [19] Os orangotangos, que vivem pendurados nas árvores da cintura de floresta equatorial que dantes rodeava toda a Terra, com quatro mãos e nenhuns pés para se pendurarem melhor, saltarem melhor de árvore em árvore, e fazerem viagens mais espetaculares de liana em liana, para não falar daqueles filhotes de olhos enormes que as fêmeas pareciam fazer questão de trazer sempre às costas, foram afastados sem necessidade e explicações; pura e simplesmente, eram um Grande Primata demasiado louco para qualificar enquanto parente próximo do homem. Por outro lado, no tempo de Darwin ainda ninguém conhecia os bonobos, o mais pequeno dos Grandes Primatas e o único que forma sociedades justas e pacíficas, o que talvez tenha a ver com o facto dos seus dirigentes máximos serem sempre grupos de fêmeas. São Grandes Primatas que dão um grande crédito ao amor como rotina fundamental das suas sociedades, e, para grande surpresa de todos os Primatologistas que chegaram primeiro… isto, de facto, não costuma ser visto nem nos animais nem nos descendentes do Homo erectus… estes sacanas entregam-se aos prazeres do sexo… deitados num tereno macio e virados um para o outro, aos beijos e mais beijos e mais beijos!

    [20] Era daquelas gracinhas que os colonos diziam aos berros enquanto bebiam girafas e se enchiam de camarão picante no relvado do Miramar. Eu não lhes achava graça nenhuma porque falavam dos “pretos” como quem fala de bichos, comportavam-se como se a escravatura ainda existisse, e deixavam-se estar para ali a fazer negócios, contar lucros, e encomendar bebidas e comidas cada vez mais caras e ornamentadas, que eu sabia que davam imenso trabalho porque adorava esgueirar-me para dentro da despensa, passar para um cantinho da cozinha já sem sapatos para não fazer mesmo barulho nenhum, e ficar ali fascinada a aprender com eles todas aquelas alquimias., até muito depois da hora de fecho, quando aqueles pretos obrigados a andar de roda deles como rodas de colibris já deviam ter ganho o direito de ir para casa.

    Estes brancos eram aquele género de gente que desobedecia com gosto e exibicionismo a qualquer polícia sinaleiro preto que os mandasse parar, ou tomar o sentido obrigatório à esquerda. UM PRETO que lhes dava ordens? Faziam chiar os pneus e estoirar o motor e desobedeciam de propósito, e de caminho ainda mandavam um grande caralhete ao sinaleiro quando passavam por ele.

    [21] Enfim, nessa idade eu era ingénua. Com aquele físico impressionante, o Job punha-se em tronco nu sempre que podia. Senão, qual era a graça?

    [22] Alguém sabe o que é feito do CHUPÓLEO? Os que vieram de África trouxeram-no aos montões para a Metrópole. Ainda me lembro de o comprar nos supermercados portugueses. Mas, quando voltei da América, tinha desaparecido por completo. É uma dor d’alma. Nunca vi papel de secar óleo tão espantosamente eficaz. E só aquele nome tão másculo, CHUPÓLEO… Lembra qualquer coisa que se faz na cama, é ou não é, confessem?

    [23] Como é evidente, em Luanda nunca ninguém, nem negro nem branco, tinha visto um leopardo das neves. Isso dava ao animal uma dimensão de perigo redobrado, uma criatura enorme, de garras retrácteis todas pausadas a que ninguém escapava, olhos cruéis, patas como molas de aço – camuflado pelos montes de neve, pronto a saltar ao caminho do primeiro ingénuo que usasse o trilho onde esse monte de neve estava. Quando saltava ao caminho da pessoa com as fauces furiosas escancaradas e um rugido infindo que retumbava no eco, já nem valia a pena tentar resistir-lhe.

    [24] Quem é que não quer? Negro pode ser guerrilheiro, mas não deixa de sonhar por causa disso. “Mas sem ser o protector da meu Boss… eu vou fazer o quê para o MPLA?”, pergunta o bebé.


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