Autor: Carlos J. F. Jorge

  • Em torno do herói intemporal da narrativa popular

    Em torno do herói intemporal da narrativa popular


    (…) O deus cabeludo disse ao vencedor menino:

    “Em brios medra Iulo; assim se vai aos astros,

    procriador e rebento divino […]”

    Virgílio, Eneida (IX, 638-641) Trad. de A. Feliciano Castilho


    Singular, sem dúvida, foi o destino de Héracles, herói quase imortal e invencível, que teve de decidir, na solidão do seu desastre, a morte que o iria arrancar ao convívio dos mortais, seus semelhantes e seus irmãos.

    Nenhum herói, como ele, na Antiguidade Grega (e nos ecos que dos seus feitos nos deram os Romanos, quando passou pela península Itálica com o gado de Gérion) foi tão solitário entre os homens e, ao mesmo tempo, tão solidário com o destino destes. Não houve, para a sua epopeia, todo a percurso terrestre, um aedo capaz de um só canto. Nem sequer um implacável Rabelais para cantar o seu gigantismo.

    naked man statue

    Mas talvez tivesse sido essa, também, a sua sorte: não ser, assim, assimilado, na unidade de um discurso, a uma “raça”, a uma “casta”, a uma classe social. Nem Pantagruel escapou a isso, inserido na “linhagem” dos reis dos gigantes. Héracles, porque viveu na boca da lenda, no sussurro fraterno dos convívios populares, nunca se fixou num painel, como os seus pares da “raça” dos Aqueus.

    Eurípides e Sófocles aproveitaram o efeito da sua loucura e da sua morte, mas o conjunto fantástico dos seus feitos, em que chegou a enfrentar os poderosos deuses e senhores do macrocosmo, apenas ficou registado em notas esparsas de eruditos e comentadores… e na evocação sonhadora que, pedaço a pedaço, o manteve vivo, às vezes respigado por intelectuais de passagem.

     “O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan” afirma-nos Eco (1979, p. 246).

    brown statue of man near green trees during daytime

    Quase tão atemporais como o arquétipo enteado de Hera, sempre perseguido pela ira da madrasta alguns heróis de FC e da BD (ficção científica e banda desenhada) parecem reassumir, de forma variada, de acordo com os padrões  e condicionalismos históricos, uma estrutura mítico-narrativa elementar que equaciona com a mesma persistência infantil, imatura (revelando as aspirações que têm muito mais a ver com inflexibilidade fantástica do inconsciente do que com o dimensionamento razoável com o real), as pulsões elementares, os impulsos radicais do limitado e condicionado para a imensidão do tempo infinito e para as metas mais longínquas do espaço.

    De acordo com os saberes científicos e as observações empíricas que a tecnologia permitiu nas mais variadas épocas, os heróis populares gozaram sempre de uma omnipotência delirante, plasmada nas fantasias mais arrojadas, relativamente ao espaço e ao tempo. Quer para Héracles, quer para Superman, quer ainda para Odin, que “pela infinita importância do valor se tornou deus” (Carlyle, 1956: 61), os limites cronotópicos não existiam. Intermédios, por aparente “realismo” (verosimilhança, diria o Estagirita), introduzido pela ciência pós-positivista nas suas potencialidades, os heróis de FC assemelham-se, nas viagens que fazem aos astros remotos, às galáxias mal entrevistas a essa estirpe gerada na imaginação popular desde tempos lendários e que encontra em Héracles, o dos doze trabalhos, o ilustre antepassado modelar.

    Contrariamente aos heróis micénicos. que as palavras de Lukács tão bem enquadram, Héracles não e só um herói dos “bem-aventurados tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir […] tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas (1962:27). Ou melhor, ao contrário dos que bateram às portas de Ílion, nas planícies de Troia, o vencedor de Leão de Nemeia, o que frechou o sol num arrebatamento de fúria, o que substituiu Atlas, o Titã, enquanto este lhe colhia os pomos, não é um herói só desse tempo.

    Os tempos em que ele se moveu, para dizer melhor, os da U-cronia, persistiram nos sucessores que lhe herdaram os genes e o génio do imaginário. Para Superman, para o herói de O Construtor de Universos (The Maker of Universes), de P. José Farmer, para os “Jedi” de A Guerra das Estrelas, filme realizado por George Lucas, e mesmo para o “cavaleiro” da África fantástica que Burroughs criou em Tarzan dos Macacos, não existe o fim desses tempos – de nenhum tempo.

     “Para eles”, citando ainda Lukács, na mesma obra, “tudo é novo e, todavia, familiar; tudo significa aventura e, todavia, tudo lhes pertence. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único acto de alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade […]” (p. 27) e por isso o tempo não existe, ou melhor é um absoluto, criado no espaço pelas suas acções.

    Este universo de que o autor húngaro nos fala magistralmente só na literatura dita “culta”, a dos canonizados deixou de existir. Apenas persiste nos leitores e espectadores de “culto”[1]. Para os heróis de FC ou mesmo para o seu irmão, Tarzan do “planeta África”, o fim da orbe conhecida não significa o alheamento ou a perdição. Para eles é apenas o espaço da aventura e o tempo ali não tem significado. São incomensuráveis porque U-tópicos e como tal são U-crónicos.

    Nenhum deles, evidentemente, resiste à prova da historização à clepsidra da biologia. Héracles é o dos doze trabalhos, não o conquistador que se vincula à história da Grécia e nela procria. São as suas histórias de iniciáticas passagens, sobreponíveis e permutáveis, que fazem dele um corpus heroico, um ser infinito que só se decide a morrer quando a perfídia do Centauro o arranca à pele que era sua, limite do próprio, invólucro que o limitava, como cosmo, no cosmo maior, em intercâmbio, mas sem dissolução.

    gray concrete statue under cloudy sky during daytime

    O próprio retorno cíclico à aventura marca essa eclosão do tempo. Se o passado legendário encerra as indeterminações de  Héracles  no  tempo  da civilização  que o “lê” e nele se podem inserir os feitos sem que a cronologia implique o desgaste da personagem, o mundo moderno, onde vivem os heróis herdeiros da tradição dos trabalhos, põe, por vezes,  o tempo entre parêntesis de forma mais adaptada ao comum consumo  dos romances de aventuras  em  que o  herói  evolui, é marcado pelo tempo, como se vê na sucessão de Dumas e continuadores: Os Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro, talvez pela incitação do romance realista.

    Dessa reintrodução do tempo cíclico no pós-folhetinesco, fala-nos Eco de forma exemplar:

    O Superman não pode consumir-se porque um mito é inconsumível […] deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos de existência quotidianos. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceite porque a sua acção se desenvolve no mundo quotidiano da temporalidade, paradoxo que os argumentistas de Superman têm, de algum modo, que resolver (com) uma solução paradoxal! […] Os argumentistas exco­gitaram uma solução muito sensata e original. Estas histórias desenvolvem-se numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois,  e quem narra retoma continuamente o fio da história como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns por­ menores ao que já dissera.» (1979,  pp.  253, 257-258).

      Não é verdade que também para os feitos de Héracles é indiferente que ele tenha lavado primeiro os currais de Augeias e só depois tenha matado a Hidra?… e não é verdade que, de forma surpreendente, ele nos surge na Gigantomaquia[2] ajudando os olímpicos contra os titãs, paradoxo do tempo como sucessão das clausulas aristotélicas? É essa imagem que nos dá Lacassin do herói da selva fantástica:

    Passando da situação inconfortável das vítimas à altitude do reparador de defeitos, ele conhecerá, neste novo empenho, um campo de acção ilimitado, intrigas renováveis até ao infinito (sublinhado do autor). Sacrificando a afectividade à metafísica, passa a encarnar e a simbolizar a luta contra a injustiça […] Deixando os lugares fechados do melodrama e da vingança ele vai percorrer um universo fantástico povoado de cidades mortas ou luminosas, divindades obscuras e ferozes; fantasmas barrocos e cruéis. […] Antes de percorrer este continente mítico numa busca iniciática, Tarzan, como um cavaleiro sujeito a provas similares, deverá arrancar-se ao contexto familiar e afectivo (sublinhado do autor), despojar-se da existência anterior. É-lhe necessário perder a recordação de tudo o que pudesse evocá-la: título, nome, fortuna, parentes, amigos e inimigos” (1971: 99-100).

    green mountain near cloudy sky

    Que mais será necessário para forjar o herói salvífico à dimensão do cosmo?  Não era essa, também, a obrigação de “jedi” Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas para se opor à arrogância do Império, num confronto que envolve o Universo inteiro, com os seus milhões de galáxias? Nesta orbe alargada até aos limites do vislumbre astrofísico o que é o tempo para ele como para qualquer outro “astronauta” da FC senão uma coisa que se atravessa onde a morte não existe, dimensão ínfima de um segundo? Para o homem que viaja à velocidade da luz, acima dela, que vai do “big-bang” à “luz-fóssil”, o sentido da temporalidade existencial não existe. É nesse senti do, creio, que Marie Françoise Dispa, afirma: 

    Na FC os astros representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido  já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objecto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qual­ quer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. (107-108)”

    Farmer, que foi em toda a literatura de FC que conhecemos o autor que mais se aproximou conscientemente dos ecos que nela emergem dos velhos mitos, especialmente os de Héracles e os de Zeus, não hesita em fazer do seu herói de O Construtor de Universos, o inominável “senhor da fortaleza situada acima das nuvens, suspensa no espaço”.

    Para a ela regressar, depois de um percurso terrestre em que perdeu a memória da origem e atingiu a velhice, o senhor da morada dos imortais tem de atravessar mil aventuras, vencer centauros, titãs e a própria Górgona para recuperar a memória e poder. Escutando ainda M. F. Dispa, que expressamente compara os heróis da FC aos cavaleiros da epopeia medieval na perspectiva de Bédier[3], podemos concluir com ela, acerca do problema da morte nestas fantasias: “O amor, amizade, a ternura, enfraquecidos pela proximidade constante da morte, não podem desenvolver-se num tal estado de coisas… a imortalidade, que cada indivíduo procura com tanto ardor, provoca necessariamente, a mais ou menos longo prazo, a estagnação da espécie humana” (Dispa 114).

    Se o herói (e mais uma vez o revemos como Héracles) opta pela sua humanidade, se esquece a ânsia de absoluto que o levará a desafiar os deuses, os monstros e as distâncias entre os astros, acaba por se entregar, por cansaço, à morre. Não esqueçamos que para Troyes, Percival e Galaaz eram cavaleiros celestes! A FC e todo o sistema que em seu torno se move é, nas ambições astrais, metafísicas e epistemológicas, o processo de um mito, às vezes subterrâneo e subalternizado, mas sempre presente. Como diz Muniz Sodré “pretendemos aqui afirmá-la como um mito vivo e contínuo (ou seja, uma grande “narrativa” constituída e não fragmentada em discursos), um saber que se quer totalizante em relação ao passado e ao futuro” (Sodré, 1973: 107).

    No fundo, na audácia da fantasia, a FC e os heróis que na sua esfera se movem, pelo poder de nomeação, pela capacidade de integração de novos lugares no universo conhecido, o cosmo ilimitado do viajante, conseguem o acro de cosmização de que fala Eliade: “Importa compreender bem que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando o espaço reitera-se a obra exemplar dos deuses” (s/d. [1960?]: 35).   

    Exemplaridade que o herói assume normalmente seguro da sua origem divina, semidivina, maravilhosamente extraterrestre, extraordinário pelo poder da tecnologia ou, ainda, consagrada pela grande Mãe: a Terra/Gea. Como nas escrituras ou no como maravilhoso, o herói quanto mais perto está do super-homem, do semideus, mais certo é ser a sua origem fabulosa, mesmo divina. Novo paradigma em que Héracles ocupa o centro.

    Mas também a ele pertencem Superman, vindo de um planeta de seres que só lá não são excepcionais, e o terrestre Tarzan, originário de uma “raça” de senhores, que, perdido, em criança na selva, se tornou hegemónico entre todos os seres selváticos, incluindo os indígenas humanos. Para não nos alargarmos mais, citamos de Marthe Robert este passo lapidar:

    selective focus photography of boy wearing black Batman cape

    “Estabelecendo uma correlação tão visível entre as calamidades do nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses, o conto não faz mais do que seguir a linha de pensamento própria do mito e da lenda, no que esta tem, precisamente, de mais singular. […] O ser privilegiado ao eleito, em virtude de tarefas sobre-humanas, não pode deixar de ser um mal vindo, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmos que estavam encarregados de a proteger. Não que o herói seja exaltado unicamente por causa da força de que dá provas nas desgraças dos seus começos. Mas porque, sobretudo, expulso de casa é obrigado, dessa forma, a romper os laços de sangue, liberta-se assim das coacções carnais e espirituais que constituem para o homem do comum o essencial da fatalidade” (1979: 55).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Carlyle, Tomás, 1956, Os Heróis, Guimarães Editores

    Dispa MarieFrançoise, 1976, Héros de la sciencefiction, DE BOECKA, Bruxelles

    Eco, Umberto, 1973 Diário Mínimo, Península, Barcelona

    Eco, Umberto, 1979, Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, São Paulo

    Eliade, Mircea (s/d [1960?]) O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Lisboa

    Grimal, Pierre,1986, A Mitologia Grega, Europa-América, Lisboa

    Lacassin, F., 1971 Tarzan, UGE, col.  10/18, Paris

    Lukács, Georg, 1962, Teoria do Romance, Presença, Lisboa

    Robert, Marthe, 1979, Romance das Origens e Origensdo Romance, Lisboa, Via edit.

    Sodré, Muniz, 1973 A Ficção do Tempo, Vozes, Petrópolis (Brasil)


    [1]Cult Films have limited but very special appeal. Cult films are usually strange, quirky, offbeat, eccentric, oddball, or surreal, with outrageous, weird, unique and cartoony characters or plots, and garish sets. They are often considered controversial because they step outside standard narrative and technical conventions. They can be very stylized, and they are often flawed or unusual in some striking way.” (26/9/2018). É evidente que esta noção é extensível à produção literária e à BD/Graphic Novels

    [2] Súmula unitária coligida a partir de diversos autores, constitui parte da Teodiceia de Hesíodo. “El asalto al Olimpo: La Gigantomaquia“.

    EL MITO Y SUS FUENTES. De acuerdo con Homero1, los Gigantes fueron una raza de hombres salvajes, gobernados por Eurimedonte que habita-ban en la isla de Thrinacia, en el lejano oes-te y que fueron exterminados por su insolencia hacia los dioses. Pertenecen, por tanto, a una tribu ancestral que fue destruida por su soberbia, y no por un combate, que no se cita en los poemas homéricos. La ver-sión más difundida sobre su origen la da Hesíodo, quien les considera seres divinos, nacidos de la sangre vertida en el seno de la tierra, Gea, cuando Urano fue mutilado por Crono. De ellos se dice que son seres enormes, de armaduras lustrosas e ingentes lanzas. Según Píndaro, los gigantes nacieron en los campos Flegreos, en Sicilia, Campa-nia o en Arcadia, y según otras fuentes (Apolodoro, Pausanias, Píndaro o   Estrabón), en Palene (Tracia). Homero y varios escritores tardíos los sitúan en zonas volcánicas, por lo que parece probable que el origen de la historia de los gigantes esté relacionado con una explicación sobrenatural de determinados fenómenos físicos de la naturaleza, asociados con fenómenos volcánicos.

    [3] De origem bretã, passou a infância em Reunião, depois tornou-se professor de literatura francesa da Idade Média. Publicou muitos textos medievais em francês moderno, como Tristan e Iseut (1900), La Chanson de Roland (1921), os Fabliaux (1893). Foi eleito membro da Academia Francesa em 1920.

  • O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’

    O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’


    Qualquer tentativa de breve definição daquilo que se entende por film noir corre o risco de ser redutora. Mesmo uma exposição mais alongada, que possa ser inscrita numa revista da especialidade, poderá ser muito insuficiente, ou, se tentar dar uma imagem aberta do conjunto de obras a que se tem chamado film noir, poderá incorrer na superficialidade vertiginosa das referências e alusões, porque esta não podem ser explanadas na continuidade do texto que procura circunscrever o fenómeno.

    Assim, tentando fazer uma breve apresentação do corpus dificilmente discernível e quase impossível de encerrar, buscando, simultaneamente, elucidar um pouco a origem da designação genológica, mostrando como ela se conceptualizou, tombamos na ladeira escorregadia do acto redutor para nos precipitarmos, em seguida, no negrume sombrio e letal de uma referencialidade que pouco mais é do que alusiva.

    Contudo, pelo (pouco) que se exporá em seguida, verificará o leitor destas linhas, eventual espectador empenhado, ou mesmo fanático, que não pode ser de outra maneira.

    De algum modo, embora se constitua como género, enunciando assim a finitude, pelo menos teórica, do corpus a que se refere, o  film noir categoriza muito mais do que aquilo que pode ser entendido como o conjunto, já de si gigantesco, dos filmes que nele se integram. A expressão, que podemos entender como um termo conceptual, liga-se, de modo forte, a um agrupamento de filmes descritíveis como histórias de acção, intriga e mistério, em torno de um ou mais crimes, sendo o (ou os) protagonista potencial vítima de uma urdidura, às quais, mais recentemente, se tem aplicado, também, com frequência a designação de thrillers.

    A conduta criminosa, a acção para a travar e a mente dos antagonistas surgem como centrais para definir os traços fundamentais do conjunto de obras que são a referência fundamental do termo. Mas não é tudo. A síntese que Abílio Hernandez Cardoso faz dos eventos e contextos que originam a designação ajuda-nos, pela sua  justeza e brevidade: 

    Quando, em 1946, Nino Frank utilizou, pela primeira vez a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser adoptado pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do cinema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e estilístico”.[1]

    Se o nascimento do termo fica assim esclarecido, bem como fica aludido o contexto em que é criado, ou seja, o da chegada às salas europeias, particularmente as francesas, do cinema produzido no interior do sistema clássico de Hollywood, em moldes que se apresentam como novidade, seria bom explicitar, desde já, quais os traços que terão impressionado Nino Frank, marcando o género que ele designa por “aventure criminelle”, no título do artigo que publica na revista L’écran français.

    Esse “nouveau genre policier” que, na época, ainda não se designava, nem na totalidade nem em parte, por “thriller”, além de um nome, que lhe foi dado, precisava de ser definido. O que  Frank faz, ao dizer que os filmes surgidos nesse verão, em França, eram policiais com um estilo mais negro, repletos de aspectos visuais apelativos, uma narração complexa e uma forte incidência na psicologia (cf. in Ballinger e Graydon, 2007: 4).

    Posteriormente, a partir desses reparos, os estudiosos foram precisando o alcance e a minuciosidade das características identificadores do género. É a ainda a Hernandez Cardoso que recorremos para sintetizar os traços que os críticos, estudiosos e teóricos foram determinando na produção artística em causa:

    Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a presença de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino” (2001: 108).

    Para um leitor que não esteja completamente desprevenido, que se mova apenas alguns patamares acima da literacia básica, este conjunto de traços não pode deixar de ser sugestivo. Talvez não todos, imediatamente e em todas as suas extensões, mas, pelo menos, alguns de modo mais ou menos gritante. Segundo o que nos é dado reconhecer, fazendo decorrer alguns conhecimentos que nos foram fornecidos por produções artísticas com as quais convivemos, bem como pelas observações de estudiosos que se têm interessado pelas diversas facetas culturais das quais o cinema emerge e com as quais mantém, ainda hoje, fortes laços de intercâmbios e influências, podemos afirmar que a lista das actividades artísticas e de representação em geral que estão na origem dos traços dominantes que caracterizam o noir é enorme. Tentaremos apresentar algumas delas, muito sumariamente, procurando manter sempre a referência aos elementos apresentados na síntese que acima citámos.

    O efeito central, que dá nome ao fenómeno artístico, o negro, emergente na sua contraposição ao luminoso, decorrente, muitas vezes do modo como os focos de claridade lançam as sombras dos objectos com que esbarram, é central na produção do expressionismo alemão que, como se sabe, foi um dos movimentos ou escolas que, no tempo do mudo, lançou as bases da formação do cinema narrativo cuja dominância fez triunfar a forma de expressão tal como a conhecemos hoje.

    É claro que, se juntarmos a este traço, só aparentemente formal, a presença do tal traço temático do espaço urbano, nocturno, ameaçador e até mesmo aterrorizante, temos a marca influenciadora do próprio naturalismo literário e de certas variantes do gosto popular do gótico. E, se a isso adicionarmos a importância da perspectiva, mais ou menos perturbada pelo medo ou angústia, através da qual esse universo é visto, em imagens que têm, por vezes, a marca imprecisa e alógica do sonho, percebemos como o próprio conhecimento psicanalítico é convocado nestas obras, ainda que nem sempre de modo rigoroso ou, pelo menos, parcimonioso.

    É bom que se note que as variantes francesas da narrativa gótica literária eram incluídas num género designado por roman noir, para o qual muito contribuiu Sade, um autor fundamental para compreender a dialéctica do bem e do mal em que a mulher (ou o homem) fatal e o/a protagonista, vítima ganha todo o sentido, em extensão, aprofundamento e variedade. Será bom lembrar ainda que, mais perto de nós, numa posição de grande proximidade temático formal das obras nucleares daquilo a que se chamou film noir, estão os romances policiais publicados em França numa colecção a que se chamou La Série Noire, fazendo eco do nome da revista americana Black Mask, que tinha publicado histórias do autores que eram nome de referência da colecção francesa.

    Os autores dessas colecções, como não podia deixar de ser, constituíam, quase todos, o cânone de onde saíam os argumentos do filmes mais ampla e unanimemente reconhecidos como noir. No interior do sistema relativamente coeso que era a literatura de massas de então, surgiam em modelos editoriais (colecções, publicações especializadas), como volumes que na Europa se chamavam romances policiais ou detective novels e nos Estados Unidos pulp fiction[2].

    O cânone de que falamos distingue-se, no entanto, da literatura policial tradicional, por secundarizar (ou mesmo anular) o modelo da investigação do crime problema ou do evento mistério (o whodunit), dando toda a ênfase à acção física, e, muitas vezes, à intervenção musculada, à resolução violenta do “mistério”; e fazendo o meio, a psicologia das personagens e os ambientes emocionais sobreporem-se aos espaços quase “experimentais” ou altamente estilizados que o “romance problema” tradicional enfatizava (repare-se, por exemplo, em plantas ou planos de pormenor que S.S. Van Dine fazia das mansões e locais arquitectonicamente nobres, que Philo Vance visitava, os quais quase se assemelhavam a maquetes).

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime, p. 34 in https://www.fadedpage.com/showbook.php?pid=2013112 (cons. 21 de Maio de 2018)

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime.

    Como diz Chandler, um dos maiores autores, entre os que incrementaram a junção do policial com o noir:

     “O realista do crime escreve sobre um mundo em que gangsters podem dirigir nações e quase governam cidades, em que hotéis, prédios de apartamentos e restaurantes famosos pertencem a homens que fizeram dinheiro com bordéis, em que uma estrela de cinema pode denunciar [o gang], e o homem de aspecto decente do fundo do corredor é o patrão do jogo clandestino; um mundo onde um juiz com a cave cheia de bebidas alcoólicas de contrabando pode mandar um homem para a cadeia por ter uns decilitros no bolso; onde o Presidente da Câmara duma cidade pequena pode, por dinheiro, ser cúmplice dum assassínio; onde ninguém pode passar em segurança numa rua escura, porque a lei e a ordem são coisas de que falamos mas evitamos praticar; um mundo onde é possível assistir-se a um assalto à luz do dia e ver quem foi, mas desaparecer rapidamente no meio da multidão sem contar a ninguém, pois os assaltantes podem ter amigos com armas de cano comprido ou a polícia não gostar do testemunho e, em qualquer dos casos, o advogado venal da defesa pode sentir-se autorizado a abusar e a enxovalhar uma pessoa em pleno tribunal, perante um júri de mentecaptos seleccionados, sem outra oposição da parte do juiz que não seja uma admoestação de circunstância, porque o cargo de juiz é um cargo político”(2012: 73).

    Quanto ao aspecto eminente e criativo da sintaxe narrativa que a nova “escola” de cinema apresenta, podemos dizer que ela assenta em dois aspectos fundamentais da construção do relato ficcional: na simultaneidade de dois registos de enunciação, o da focalidade da câmara e o da voz off, sendo que o registo oral é, quase sempre, homodiegético ou mesmo, mais “poeticamente”, autodiegético (ficando o registo marcadamente extradiegético – de feição heterodiegética ou “autoral”, ou de marca autodiegética, rememorando eventos acentuadamente revolvidos e já distanciados – para o efeito documentário, que muitas vezes emerge, por exemplo, em Anthony Mann); e a manipulação da continuidade cronológica, sobretudo pelo efeito de flashback ou analepse, introduzindo a importância do ponto de vista narrativo, dos processos de rememoração (a memória, a recordação, o inconsciente…) e a multiplicidade dos pontos de vista, quer pela intervenção de vários relatores de acordo com um inquérito (Citizen Kane é um modelo) quer pelo modo como uma rememoração ou confissão altera os factos ou a ordem destes (À Beira do Abismo, por exemplo).

    Já se vê que, uma tal organização poética do discurso narrativo associa esta nova produção, mesmo nalguns casos de obras mais populares, às tentativas das vanguardas literárias modernistas para renovaram os processos narrativos.

    Citizen Kane, de Orson Welles (1941)

    E, por outro lado, é de reconhecer, dentro da mesma ordem de ideias, que a entidade masculina (mas a feminina também, por vezes, como acontece em Whirlpool –1949 – de Otto Preminger) nestes filmes toma o lugar fundamental para o funcionamento do mecanismo melodramático da ficção gótica ou do roman noir francês: ser objecto de uma conspiração, vítima de uma conjura ou de um equívoco legal, situação da qual só pode sair (e esse é, por vezes, o tema da fábula contada) batendo-se pela verdade, ou seja tornando-se herói. Contudo, no mais típico noir, essa atitude de luta nem sempre é assumida.

    The Killers (1946) de Robert Siodmak é, talvez, um dos exemplos mais acabados do puro noir, no sentido de ser uma das obras que assume integralmente quase todos os traços considerados nucleares do género. O protagonista acossado pelo infortúnio e os próprios fantasmas, a vamp implacável, o tom nocturno e asfixiante do espaço urbano, a violência e a criminalidade, o recurso ao flashback para apresentar a crónica da queda de um boxeur e também o próprio funcionamento do psiquismo do jornalista, oscilando entre a reconstituição equilibrada e racional e a evocação quase fantasmática do universo que reconstitui, são os aspectos mais marcantes do filme.

    Burt Lancaster e Ava Gardner em The Killers de Siodmak (1946)

    Trata-se de um nos mais célebres e carismáticos film noir, inspirado numa breve história de Ernest Hemingway, o qual tem como figura central uma  personagem recorrente nos seus contos, e com certos aspectos de alter ego autoral,  Nick Adams,  que, em jovem, num bar, teria ouvido uma conversa entre dois assassinos profissionais, os quais pretendiam abater um indivíduo que, segundo é sugerido no diálogo,  teria ganho “indevidamente” um combate de boxe. Embora elíptica, a história parece ter origem nas próprias vivências de Hemingway, como repórter, em Chicago.

    Reign of Terror (ou The Black Book 1949), de Anthony Mann, foge, aparentemente, à configuração central que permite identificar o espécime como membro da família noir.

    Contudo, a visão “actual” que lança sobre o conturbado período do terror da revolução francesa, o modo como convoca os mecanismos da intriga e da suspeita num universo asfixiante da metrópole moderna em nascimento, restaurando um universo ficcional muito caro ao gótico e ao roman noir francês, tornam este filme uma peça especial que os amantes e especialistas têm incluído no corpus, com tanta mais razão quanto o seu autor, Anthony Mann, é uma das figuras centrais do panteão canónico que lançou os fundamentos do “género”.

    The Killing (1956), de Stanley Kubrick, é um dos mais tardios espécimes que os especialistas incluem no cânon nuclear do film noir. Essa sua chegada em fase já avançada da produção americana do “género” em questão cria, em relação aos seus antecedentes, uma certa distância (que envolve ironia e distanciação), que é perceptível logo a partir do jogo de sentidos que se gera entre o título e os desenlaces dos destinos fatais de cada um dos intervenientes no golpe. De facto, se killing designa, além do sentido primeiro, matança, talvez numa fixação catacrética, a palhaçada, o espectáculo e, até, o sucesso financeiro, o certo é que os membros deste ataque, cujo chefe, para aparecer como assaltante “visível”, faz uso de uma máscara quase surreal de palhaço, acabam mortos ou vencidos[1].

    Contudo, esta é uma das obras mais persistentemente mantidas no grupo nuclear do cânone pelos especialistas, devido à estrutura narrativa em flashback, em virtude da violência patenteada, pelo desnorte existencial das personagens que, não sendo profissionais do crime, escorregam para o abismo da fatalidade, arrastadas pelo sedutor plano de um experiente fora-da-lei, e também, mais particularmente, pela relação de fatalidade amorosa que uma das personagens mantém face à sua amada infiel, pela utilização da câmara subjectiva sobretudo no acompanhamento deste duplo perdedor (na acção criminosa e no amor) e pelo uso altamente estilizado do contraste de sombras e luz, de branco e de preto sobretudo na expressão dos clímaxes emocionais e afectivos.

        

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Ballinger, Alexander e Danny Graydon, 2007, The Rough Guide to Film Noir, Rough Guides, London

    Cardoso, Abílio Hernandez, 2001, “Subjectividade, desejo e morte no film noir americano” in Villas-Boas, Gonçalo e Maria de  Lurdes Sampaio, Crime, Detecção e Castigo, Granito, Porto

    Chandler, Raymond, 1969, “The Simple Art of Murder” in Pearls Are a Nuisance, Penguin, London

    Chandler, Raymond, 2012, “A Arte Simples do Assassínio”, tradução de Carlos Leite, in Sampaio, Maria de Lurdes e Gonçalo Villas-Boas, Ficção Policial – Antologia de Textos Teóricos, Afrontamento, Porto


    [1] Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon de John Huston (1941), Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger e, The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.    

    [2] The Black Lizard Big Book of Black Mask Stories, era como se chamava a primeira colecção, editada a partir de 1920 saída da Pulp fiction magazine, Black Mask, na qual aparecerem dois romances completos. O de Hammet ainda hoje é célebre.

    [3] killing (ˈkɪlɪŋ) adj 1. informal very tiring; exhausting: a killing pace .2. informal, extremely funny; hilarious. 3. causing death; fatal. n 4. the act of causing death; slaying5. informal a sudden stroke of success, usually financial, as in speculations on the stock market (esp in the phrasemake a killing)ˈkillingly adv  Collins English Dictionary – Complete and Unabridged, 12th Edition 2014 © HarperCollins Publishers 1991, 1994, 1998, 2000, 2003, 2006, 2007, 2009, 2011, 2014

  • O realismo e o crime

    O realismo e o crime


    Sem dúvida, as dificuldades de uma aproximação relativamente ao REALISMO enquanto conceito, e sobretudo no campo da expressão artística, são problemáticas. Como categoria epistemológica ele teria as suas exigências de rigor relativamente à arte e seria uma forma de normatização do trabalho das “práticas significantes”.

    Entre parêntesis, anotamos quanto é discutível, debatível nos seus pressupostos essenciais, a própria teorização desse real: Lukacs, por exemplo, um dos últimos grandes teorizadores das poéticas realistas herdadas das perspectivas teóricas e práticas do século XIX (Balzac, Dickens, Zola)  procurava cingir a expressão aos elementos de referência, a um real exterior ao texto,[1] muitas vezes pela “preocupação do «documento», de uma história real, ou mesmo de um romance de chave interpretativa”, apresentação do mundo em “quadros” de “paisagens bem como de pessoas” ou “anotações, registos de fenómenos tal como surgem” e também pelo “gigantesco esforço de classificação que organiza” a ficção “em função dos lugares, das classes, das profissões, dos sexos” (cf. Tadié, 1970: 76-79).

    silhouette of person on window

    Mas, por outro lado, uma perspectiva linguística, ou uma semiótica, em muito devedora à tradição saussuriana, reclamaria, com pertinência, a consideração em que teríamos de tomar a própria materialidade dos elementos expressivos, enquanto constituintes desse mesmo real.

    Estes, dada a sua própria existência objectiva, produzindo o sentido pelo significado lhes atribui o uso da linguagem no constante de relação referencial e contextual, possibilitariam uma formação de mensagens relevando de códigos bem definidos; uma vez que, esses sim, condicionariam uma noção de real resultante do próprio acto de comunicação; a ignorância deste último aspecto viciou, em muitas ocasiões, os próprios termos de importantes debates em torno da arte, por ter minimizado a importância da dimensão semântica, que relaciona uma representação com o representado, através dos signos que emprega. 

     O realismo, como escola, instituindo um programa poético, seria uma das muitas determinantes e condicionantes dos códigos nos quais se inscrevem e aos quais se subordinam as mensagens artísticas.  De facto, para os escritores europeus de finais do século XVIII e, sobretudo, os romancistas do século XIX, como para os seus leitores, o realismo na literatura obedece a um ideal e tem as suas normas: a convicção que os elementos construídos pela nossa percepção, a partir dos dados da sensação, tal como foi teorizada pelo sensualismo[2] do século XVIII são fiáveis, pelo que permitem a representação fiel do real, e um discurso verídico que tem as suas regras próprias de verosimilhança.

    man in white long sleeve shirt driving car

    Resulta desse facto que, para os teóricos da literatura, bem como os de outras expressões artísticas, a partir dessa época, mas, sobretudo,  de meados do século XIX em diante, até aos nossos dias, o realismo é um estilo literário, ou de produção semiótica,  entre outros, com características próprias, que devem produzir uma espécie de efeito de transparência, de tal modo que, na leitura das obras realistas, o leitor deve ter a impressão de que  está perante um discurso que nos coloca em contacto imediato com o mundo como ele é, camuflando ou ocultando a evidência da sua própria presença enquanto texto.

    Posto isto, para retomarmos a narrativa policial como objecto central em relação ao qual a problemática do realismo se põe, queremos comentar, resumida e muito esquematicamente, uma pequena frase em epígrafe a um livro de contos policiais de um autor português, Lima Rodrigues que assim diz: “Dada a falta de ambiente nacional para certos contos aqui apresentados, recorri, por vezes, a locais e nomes estrangeiros.

    Situá-los em território nacional, com nomes e ambientes portugueses, seria tirar-lhes aquele cunho de realidade que só o ‘clima’ que não o nosso lhes poderia dar”. O livro referido é:  Histórias que eu não contei (edit. Europa-América/Livros de Bolso, 1965, com prefácio de A. Varatojo).

    Repare-se como a noção de realismo, para que a expressão “cunho de realidade” remete, sem ambiguidade nem equívoco, depende de um “clima” cuja escolha é primordial para   a recriação de uma ficção. Não é de estranhar que este pequeno texto epigráfico, liminar (em relação paratextual, como diria Genette) em posição sobredeterminante dos conteúdos do livro, como enunciado explicativo prévio, estivesse de acordo com um outro de inspiração platónica que citamos em segunda mão: “A verdade não faz as coisas senão como elas são, e a verosimilhança fá-las como elas devem ser.

    person hands with black liquids

    A verdade é, quase sempre, defeituosa, pela mistura de condições singulares que a compõem. Não há nada que, ao nascer no mundo, não se afaste da perfeição da sua ideia. É preciso procurar os originais e os modelos na verosimilhança e nos princípios universais das coisas onde não entre nada de material e de singular que os corrompa”. O realismo, antigo e moderno, cai muitas vezes nesta tentação de universalização de que o texto que acabamos de referir, de René Rapin, extraído do seu livro, Reflexions  sur la Poétique, datado de 1674 (cit. in Genette, 1968: 6), é a  sincera teorização.

    O verosímil, como conceito que exprime a regulamentação do real de acordo com a ideia e a ideologia em sentido lato (concepção do mundo) e, eventualmente, com a ideologia em sentido estrito (convicção ou crença), é muito importante para a compreensão dos mecanismos a que presidem à factura dos romances policiais.

    Assim, tornou-se frequente o entendimento fascinado da ficção policial, pelo que é comum o comentário espontâneo do leitor de romances, ou do espectador de filmes, policiais, após  o final dos mesmos:  “Ora…, não  era lógico que o assassino (ou a vítima, ou o polícia)  procedessem  desta maneira… no lugar dele eu faria…”, como se os factos reportados fizessem parte de um estado de coisas  compatibilizado com a opinião ou convicção de quem lê, dependendo das crenças do leitor a aceitabilidade do exposto. 

    Como género ou variante temática, o romance (ou o filme)[3] policial tem os seus modelos. Mas, modelos, não quer dizer imposição para mera reprodução das obras exemplares. Ao contrário de outros modelos de narrativa realista, sobretudo daquela que é reconhecida como verosímil por se cingir a uma realidade consensual, que constituirá a base de uma convicção generalizada, misto de concepção do mundo e de corresponder ao credível, o policial precisa de instaurar o mistério como tema central e a sua descoberta o corolário.

    man in black and white crew neck t-shirt wearing black cap

    Assim, o autor, “até ao último momento, não deverá revelar o nome do culpado” (Todorov, 1968: 145); no entanto, como nota ainda Todorov, para respeitar essa regra, relativa ao mistério, que é o modelo dominante, como particularidade da categoria sequencial do processo narrativo, complicação, o autor tem amplas possibilidades de variação.

    De facto, a identidade do criminoso pode manter-se misteriosa de diversas maneiras: era a mais insuspeita das pessoas, ou era um dos suspeitos que apresentou um falso álibi, aparentemente verídico, ou era alguém que não tinha sido considerado a candidato a suspeito. Mas a categoria mistério pode ser desenvolvida noutra dimensão, como o faz, por exemplo, Ruth Rendell, ao tornar misterioso o processo que levou ao acto de matar dando logo na primeira frase a causa do crime: “Eunice Parchman killed the Coverdale family because she could not read or write”; toda esta narrativa romanesca de Rendell se centra no processo da formação do carácter da criminosa a partir da sua obsessão em ocultar o facto de não saber “ler nem escrever”.

    A mediocridade que podemos sentir em algumas narrativas policiais ou de mistério não tem a ver, essencialmente, com a qualidade de escrita ou com os processos estilísticos conotados com o valor da literariedade, uma vez que estes, como acontece com a narrativa literária em geral, mas sobretudo a romanesca, não se revelam, aí, com a mesma pertinência com que são arvorados no texto de feição lírica.

    A fragilidade poética do texto policial é sentida, sobretudo, quando a organização da intriga, elemento constitutivo da narrativa que, no caso do policial, assume posição hegemónica, não elabora com rigor os seus contornos de mistério, que devem ser surpreendentes, mas não excessivamente rebuscados, sendo o equilíbrio dessa polaridade, entre o monótono e o aparatoso, a pedra de toque da elaboração do verosímil policial. Introduzir a analepse, de modo formalmente elaborado, pode ser a dimensão em que o golpe de mestria se revela. Todos o usaram, mas cada um dos mais aclamados mestres do género o fez de modo diferente.

    grayscale photo of woman sitting on chair near window

    Por exemplo, Holmes, usa muitas vezes, um resumo epigonal, quase em modelo de post-scriptum, pós epílogo, no qual lança todas as luzes sobre o mistério que acaba de explicar e resolver, ao seu parceiro, Watson; Poirot é mestre nas confissões obtidas, em narrativas quase finais, da boca dos suspeitos, às quais acrescenta as suas correcções; Marlow usa os desabafos afectivos em que faz o seu libelo acusatório.

    A chateza muitas vezes sentida em relação a alguns exemplares deste modelo romanesco resulta, de facto, a de o autor não conseguir superar, pelo menos em parte, os dados anteriores, ou seja, já realizados, do género, mas sempre, a partir deles, ter em conta os elementos formais do conteúdo e da organização da narrativa, já executados por outros criadores do género, reconhecidos como mestres. É claro que esse trabalho de inovação na continuidade se processa como um jogo, entre o autor e o leitor, que procura alcançá-lo, na sua mestria de inovação.

    Mas, para que o jogo se processe, para que o leitor o aceite, é necessário que o verosímil seja dado, desde o início, como base de credibilidade, dentro da qual o crime surja como improvável no quadro geral das convicções generalizadas na comunidade de partilha dos conhecimentos.

    Segundo Todorov, no mesmo texto, “O detective deverá apoiar-se, no seu discurso[4] final, sobre uma lógica que porá em relação os elementos até então dispersos; mas esta lógica releva de uma possibilidade científica e não do verosímil. A revelação final deverá obedecera dois imperativos: ser possível e ser inverosímil” (T. Todorov, 1968: 146).

    Para darmos um caso, diversificadamente repetido, que se tornou um dos topos mais célebres da literatura policial, o enigma do quarto fechado, podemos dizer que a evidente impossibilidade de alguém aparecer morto por um golpe humano, dentro de um quarto fechado, de onde desaparece, também, o instrumento letal, é inverosímil, mas não impossível, de um ponto de vista epistemológico que tenha em consideração as mais elaboradas conjecturas. Como, aliás, o demonstra o imenso número de célebres variantes, que vão desde os mais carismáticos fundadores do género, como Poe ou Gaston Leroux, até aos mistérios de John Dickson Carr/Carter Dickson.

    black and red rod in tilt shift lens

    E, para que este inverosímil surja, necessário se torna que o contexto narrativo apareça como verosímil. E como surge esse contexto narrativo verosímil no romance policial?

    A resposta a esta pergunta para ser correcta, e não surgir grosseiramente, com uma carta que se tira da manga, deveria ser morosa e pormenorizada. Deveria surgir, por exemplo, através uma análise das condições que produziram o universo de uma grande burguesia abastada que regulava um universo de estabilidade doméstica, dentro do qual a lenta e ordeira investigação do romance problema era verosímil e que, a partir dos anos trinta e da agitação financeira que acabou por conduzir à Segunda Guerra Mundial, deu lugar a uma nova ordem do mundo capitalista, em que os romances da série negra adquiriram os seus próprio contornos de verosimilhança. É claro que tudo isto não se fez sem um apoio das maquinarias gigantescas da informação.

    Como nos lembra Michel de Certeau, o real institui-se, a partir de meados do século passado, como a ordem natural das coisas: “O grande silêncio das coisas transformou-se no seu contrário através do media. Outrora constituído em segredo, passou a ser tagarela. Abundam, por toda a parte, notícias, informações, estatísticas e sondagens. […] A narrativa de tudo o que se passa constitui a nossa ortodoxia” (1990: 270).

    Cingimo-nos, por isso, a uma ou duas sugestões, relativas ao verosímil que rege a narrativa policial. Em primeiro lugar, recorremos, ainda, ao mesmo texto de Todorov: “Apoiando-se no anti-verosímil, o romance policial caiu sob a lei de um outro verosímil,   o  do seu próprio género” (1968: 146).

    white book near mug

    A partir deste ponto, compreendemos o campo de limitações que originam a carência desta literatura em Portugal:

    1º – A inexistência de um público leitor alargado, até ao terceiro quartel do século passado, incentivando o desenvolvimento de uma imprensa dita popular ­­;

    ­2º – A falta de uma  tradição romântica em que o romance de mistério  tenha ostentado a existência de modelos de  suspense como os que foram desenvolvidos nos espaços culturais anglo-saxónicos e, até certo ponto, franceses, criando a base que o romance de investigação vai retomar como apelo ao interesse de um público leitora alargado;

    3º – A não existência, entre nós, até quase aos nossos dias, de uma informação noticiasse o crime dando-o como um acontecimento possível, nas suas diversas fases, sob forma escrita de apresentação factos ocorridos.

    O texto de Viollette Morin, que em seguida apresentamos, nunca se poderia aplicar ao   jornalismo português, tal como foi praticado até à queda do regime salazarista: “A narrativa do assalto à mão armada é o relato de um roubo invertido. Ela desenvolve um espectáculo que se torna inverosímil desde que puxemos até aos limites da sua maior verosimilhança: a realidade da vida.

    Nenhuma reconstituição romanesca de piratas ou de gangster lhe é comparável. Mal ou bem armado, infame ladrão ou gentleman-gatuno, o romanesco coloca em evidência o seu eixo de oposição maléfica. De qualquer dos lados, ladrão ou roubado, que esteja o Bom contra o Mau, a verosimilhança mantém-se defensiva.

    man in blue denim jeans and blue shirt walking on pedestrian lane during daytime

    Um tem razão, outro não tem. Este é o seu código romanesco a sua legibilidade. Ao contrário, com a restituição da realidade, agarrada na vivacidade do seu movimento, esse código não tem mais lugar” (1968: 97-98).

    Como se vê, se o romance romântico de mistério inspirou a ficção policial de investigação, ou melhor, lhe forneceu alguns dos seus parâmetros de credibilidade, entre provável e o possível, não foi essa a única fonte escrita dos modelos romanescos, a única matéria fabulatória verosímil com a qual o romance policial se confrontou.  E a América. com a sua Série Negra tem ido buscar à técnica jornalística a inspiração para muitos dos seus mais brilhantes clássicos da literatura policial (veja-se um Hammett, por exemplo).     

    E claro que o cinema, de cariz policial ou noir tem gozado do benefício oriundo da mesma fonte. É esta tradição escrita, cuja carência em Portugal é notável (de Camilo a Reinaldo Ferreira, passando por Eça/Ramalho, são pouco mais de uma dezena de títulos a inserir-se na tradição da narrativa de dominante mistério/crime/investigação), o grande manancial onde o jogo poético, ou mecanismo ficcional, do género policial se enforma. A partir de dados de uma escrita que são outros tantos mais de um código que é o de um género narrativo (romanesco e cinematográfico).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Arvon, Henri, 1970, Lukacs, Estúdios Cor, Lisboa

    Genette, Gérard, 1968, “Vraisemblable et motivation”, in Communications, nº 11, pp. 5-     21, Seuil, Paris

    Lukacs, Georg, 1974, Écrits de Moscou, Éditions sociales, Paris

    Lukacs, Georg, 1975, Problèmes du réalisme, L’Arche Éditeur, Paris

    Morin, Violette,1968, “Du larcin au Hold-up”, in Communications, nº 11, pp. 91-98, Seuil, Paris

    Tadié, Jean-Yves, 1970, Introduction à la vie littéraire do XIXe siècle,Dunod, Paris

    Todorov, Tzevetan, 1968, “Du vraisemblable que l’on ne saurait éviter”, in  Communications, nº 11, pp. 145-147, Seuil, Paris


    [1] O realismo, segundo Lukacs, resulta, sobretudo do modo de o escritor colocar as suas personagens, sobretudo os protagonistas, numa relação com o real, referencial e contextual, empiricamente aceitável de concretismo positivo, face ao emergir fenomenal, mas, além disso em confronto dialéctico com esse mesmo real:“A «vitória do realismo» é sempre a vitória do real; uma vitória sobre as restrições erróneas, os preconceitos, as representações incompletas [e] quando, no processo de reflexo literário da realidade, o pensamento e o ser entram em contradição, [o escritor autêntico] tem a suficiente capacidade, coragem e sinceridade para se colocar, sem reservas, do lado da realidade — na sua actividade de figuração — e para deixar ao factos da vida refutar as suas própria ideias”(Lukács, 1974: 144); “A generalidade em Balzac é, pois, sempre concreta, real, conforme ao ser. Assenta principalmente na profunda concepção daquilo que é típico nas personagens individuais. Assenta na profundidade que, por um lado, longe de apagar ou suprimir o individual, pelo contrário, o sublinha e o torna mais concreto, e que, por outro lado, faz surgir as relações do indivíduo com o seu meio social, de que é o produto, no qual e contra o qual age, de uma maneira muito complicada, mas, contudo, inteligível” ( Lukacs, in Arvon, 1970: 202); “A relação do homem com mundo exterior e a energia humana em luta com o mundo exterior, só podem exprimir-se pela figuração real de uma luta” (Lukacs, 1975: 173). Com este horizonte teórico, Lukacs propõe-se corrigir as limitações que designa por esteticistas, dos realistas de procedimentos de representação mais formais, como por exemplo o naturalismo de Zola e o modo de este encarar a representação do mundo real: “O interesse já não está no interesse d(est)a história; ao contrário, quanto mais banal e geral ela for, mais ela se tornará típica. Fazer mover personagens reais num mundo real, dar ao leitor um farrapo da vida humana, todo o naturalismo está aí. […] O sentido do real só se torna absolutamente necessário quando está em causa o pintar da vida” (Zola, 1971: 215-216). Será interessante notar, dentro do quadro destas concepções, com alguns pontos de antagonismo motivadas por posicionamentos ideológicos, como o POLICIAL parece harmonizar os dois pontos de vista: ele faz apelo à importância da luta (Lukacs) pela prática do investigador na descoberta da verdade, e à dimensão da pintura (Zola) pelo que actividade da descoberta da verdade reside na qualidade do olhar que divisa os índices no interior das paisagens. O último excerto de Lukacs que apresentámos é tirado de um texto intitulado “Narrar ou Descrever”, que será sempre de grande utilidade ter presente, como instrumento teórico, do romance policial e da narrativa noir, em geral, quer literária, quer cinematográfica quer ainda de BD (temos em mente, sobretudo, uma narrativa do género daquela que foi criada pelo génio de Alex Raymond e Ward Green em Rip Kirby).[

    [2] Designação que se dá a uma doutrina (Locke, Condillac) segundo a qual todos os conhecimentos e todas as faculdades do espírito decorrem da sensação, sendo todo o conteúdo do espírito humano produto da experiência, ou seja uma forma de empirismo.

    [3] Reportando-nos à mais consensual distinção, que reconhece ao romance maior adensamento do universo diegético ou ficcional e, à novela, um maior desenvolvimento de peripécias e acções sucessivas e/ou paralelas, podemos dizer que as narrativas de Agatha Christie ou Raymond Chandler são romances ainda que de diferentes pontos de vista éticos e ideológicos, enquanto Edgar Wallace e Sapper se aproximam se aproximam mais do ritmo da novela. A nossa designação básica para uma narrativa mais ou menos alongada no tempo e no espaço é romance, como a anglo-americana é novel (que tem a abrangência conceptual do nosso romance), em espanhol é novela e em francês é roman. No cinema, a narrativa policial é, por norma, de ritmo mais marcadamente novelesco, o que se percebe comparando, por exemplo, a austeridade de cenários (ou décors) e ambientes sociais em The Big Sleep (1939) de Chandler com o filme, aliás excelente, de Hawkes, que adapta o romance, em 1946, conservando, dele, sobretudo, as grandes linhas da intriga. A mais impressionante narrativa cinematográfica dentro das grandes linhas do género, ainda que de tónica mais criminal do que detectivesca (o que se chamou, entre nós, filme de gangsters) de construção diegética romanesca, quase em tom de romance de  formação, ou de aprendizagem é, sem dúvida,o Once Upon a Time in America (1984) de Sergio Leone. Mas é preciso atenção a avaliar os textos policiais genologicamente porque, nas traduções, são muitas vezes as adaptações simplificadoras que prevalecem. Em O romance policial em português na década de 50 – da tradução: fugas, atalhos e desvios, parágrafo 1.3, do capítulo “Questões de Ordem Teórica”, acessível em ACDEMIA.EDU,  Maria de Lurdes Sampaio dá-nos um breve quadro das manipulações feitas pelos tradutores portugueses dos romances policiais, sobretudo anglo-americanos e, muito em especial, os de Chandler, em que nos parece que os textos usados pelos “transpositores” lusos  foram mais os do script do argumento para adaptação, do que os dos originais literários. 

    [4] A reunião final de Poirot, que herda o modelo das considerações finais de Sherlock Holmes, por vezes, em confidência, ao seu amigo Watson Agatha Christie criou, também uma imitação de Watson, em Hastings, que, contudo, não se manteve constante em todas as aventuras de Poirot.

  • A importância da perspectiva ocular na narrativa policial

    A importância da perspectiva ocular na narrativa policial


    A importância da análise tipológica do INFRACTOR, o estudo exegético da sua evolução ao longo dos séculos, na literatura romanesca ou mesmo na saga popular, só pode apresentar um dos aspectos (sem dúvida de grande importância) das origens da literatura policial[1].

    O campo abarcado não pode ultrapassar uma certa caracterização de tipo social por vezes ambígua, em que, embora possamos reconhecer uma anotação considerável para a análise, não deixamos de notar uma ambivalência irredutível, inlaw/outlaw, aplicável a qualquer época e ideologia indiferenciadamente.

    A crítica marxista tem sido, habitualmente, atenta, sobretudo ao fundo social que envolve o romance policial, quer enquanto elemento temático incorporado na diegese, quer enquanto contexto dentro do qual as narrativas são produzidas e recebidas.

    René Ballet, por exemplo, num texto em procura apresentar o aparato formal do romance policial reconhece que “a estrutura do romance-folhetim policia1 reproduz, sob uma forma caricatural a estrutura social tal como a concebe um certo público popular.

    Um herói (ou uma heroína) é injustamente privado do lugar que lhe compete na sociedade (a sua alta nascença é desconhecida a sua herança é usurpada). O seu principal inimigo não é o verdadeiro representante do poder, mas um usurpador; a regra do jogo não sendo respeitada, todos os golpes se tornam permitidos; o usurpador tendo roubado o seu poder, o ladrão torna-se justiceiro”.

    Ora, o tipo de relações definido na história-folhetim faz ressaltar, mais ou menos profundamente, o carácter do fora-da-lei que, até fim do século XIX, era apresentado como um desgarrado do grupo, mas que podia ser recuperado após denunciada a sua falta, depois do detective o ter integrado no contexto e lhe ler extorquido a confissão de culpado.  Quer tivesse sido usurpado nos seus direitos espirituais (psicológicos, morais), quer nos materiais (os bens a herança) na óptica que encara o criminoso, a concepção mantém-se quase permanente: alguém está fora do grupo e é urgente recuperá-lo.

    wooden armchair

    E mesmo o romance policial moderno, incluindo o de máscara negra (que tem como referência de origem os romances de Chandler e de Hammett) que, dentro do género, é uma variante muito atenta às contradições sociais (o que é mais raro no romance policial de enigma) atendendo a que sugere sempre a séria acusação a um erro social generalizado,  para lá da capacidade de decisão do  outlaw, mantém-nos numa óptica do mal  e  do  bem  mesmo que o bem esteja numa ordem a que Phillip Marlow aspira e que Sam Spade já deixou de procurar.

    E, de facto, o grande mérito destes dois heróis é terem deixado de encarar o bem detidos ou representados por este ou aquele grupo social, incluindo os representantes da lei ou mesmo por um herói lutando pela ordem contra a usurpação.

    Neles, e em torno deles, tudo aparece corrompido pelo sistema e o valor deve estar algures para lá dele, numa outra sociedade diferente. Daqui para diante será, talvez, supérfluo, sublinhar o que a observação do herói nos pode fornecer.

    Em última análise sabemos o que é Bond, o assassino da instituição, ou Hammer[2], o desesperado defensor romântico dos pontos estratégicos dos Estados Unidos: assassinos que o sistema cria na defesa contra uma entra lei de um outro sistema. Mas os detectives privados, mais próximos do paradigma crítico e existencial do século XX, são seres, por vezes, tão perplexos e claudicantes face ao real que os ameaça quanto a vítima que neles busca a protecção ou o leitor que os toma como expertos na decifração de enigmas. 

    silhouette photo of a man with hat standing near concrete building at daytime

    O que o romance de investigação de um enigma (o modelo do “quem matou?”, o who dunit clássico) veio trazer em relação ao romance de aventuras clássico, foi a denúncia, ainda que inconsciente, da situação privilegiada em que o leitor outrora se encontrava, como espectador de uma cena em que estivesse permanentemente na posição de juiz e de incontestável detentor da verdade.

    Na sua necessidade interna de criar a atmosfera do medo e do terror (reverenciando a atmosfera gótica), ou, pelo menos, de preocupante enigma, o romance policial de investigação (o romance policial por excelência) deixa transparecer a forma pela qual o senso comum precisa dos seus guardiões e como a  observação pura e simples do real não passa, de facto, de uma observação das aparências de um certo efeito do real onde os indícios estão postos de forma equívoca, iludindo um senso comum não privilegiado, sendo o detective o único detentor do privilégio de os perspectivar correctamente. Holmes ou Poirot não descobrem nada nos factos do mundo que constituem enigma, apenas têm de os ordenar devidamente.      

    Ao ser a salvaguarda, na sua época, do ponto de vista da ordem segundo as instituições que não contesta, o romance de investigação é, simultaneamente, o repositório dos indícios pelos quais o grande terror se anuncia, deixando perceber nas entrelinhas de que forma a composição romanesca é resultante, e também veículo, das coordenadas ideológicas de uma determinada sociedade e também da forma pela qual essa sociedade apreende e expressa o real, emergindo este numa organização estruturada e inconsciente que é o espectador fictício do crime e o leitor da ficção.

    Gombrowicz denuncia, e muito bem, em Cosmos, de que forma o romance policial pode ser um roteiro de indícios, a descrição de um cosmos em que o leitor, na ilusória encarnação do espectador (que pode surgir sob o aspecto de um herói, detective ou não, movendo-se no universo diegético da narrativa em causa), coordena os elementos para neles se projectar ou projéctar toda a culpabilidade de que, inconscientemente, é agente. Não “há leitura inocente” como não há visão inocente do mundo.

    É em torno deste ponto que queríamos encarar o romance policial, procurando ver nele uma imagem do real que é ordenada pela perspectiva e  a óptica e, mais  ainda, pelo jogo da perspectiva e da óptica segundo o qual o romance policial subverte todo o sistema narrativo em que assentava o romance tradicionalmente consagrado como realista, padronizado enquanto modelo clássico da narrativa moderna.

    Surge-nos Poe como um ilustre predecessor imediato da técnica narrativa do romance de investigação, e, de forma particularmente significativa, por ele ter sido um escritor a que não podemos chamar prioritariamente policial. 

    Poe cultivou um tipo de narrativa de imaginação que, como divergência do sistema narrativo realista tradicional, nos parece fundamental. Num dos seus contos mais curiosos, quanto a essa dimensão, por explorar a falibilidade das nossas percepções, e a possibilidade do nosso sistema sensorial nos enganar e nos fornecer imagens inverosímeis do mundo, The sphinx (A esfinge da caveira, como habitualmente tem sido traduzido para português) coligido em Tales of mystery and imagination[3], podemos ver a forma assaz minuciosa através da qual Poe jogou com a imagem do real, fazendo dela ponto de partida para a constituição de um universo imaginário que ganha raízes num quotidiano enformado e perspectivado pela ideologia  dominante.

    do not cross police barricade tape close-up photography

    O romance policial de investigação só  vem tomar, de forma mais grosseira  e num outro ponto que podíamos considerar de perda da consciência crítica, com outras intenções e perspectivas ideológicas, este trabalho que o poeta americano elevara à categoria de técnica  narrativa, apoiando-se nas suas terríveis suspeitas que o fantástico tinha algo a ver com o real.

    Que  nos  conta  A esfinge  da caveira?. O narrador foge de Nova Iorque, atacada por uma forte epidemia, e refugia-se em casa de um parente: “During the dread reign of the Cholera in New York, I had accepted the invitation of a relative to spend a fortnight with him in the retirement of his cottage ornee on the banks of the Hudson”.

    Assim começa um retiro que ele descreve, sumariamente:

    We had here around us all the ordinary means of summer amusement; and what with rambling in the woods, sketching, boating, fishing, bathing, music, and books, we should have passed the time pleasantly enough, but for the fearful intelligence which reached us every morning from the populous city. Not a day elapsed which did not bring us news of the decease of some acquaintance[4].

    Estamos logo, portanto, desde as primeiras linhas, sob o perigo de uma ameaça mortal, respirando uma atmosfera em que a morte é o elemento preponderante. Não é necessário recordar como esta ameaça da morte está sempre presente em qualquer novela policial, mas talvez seja recordar como ela serve de    pórtico a muitas obras em que o fantástico e o imaginário, o campo do terrífico e do erótico dominam por excelência.

    Citemos só as duas obras em que um morticínio, ou a sua probabilidade, preludia a narrativa de dotes cativantes, ou forte suspense da intriga: Decameron e As mil e uma Noites. Ora, no romance policial, desde o título que temos anunciada a visita do exterminador.

    Algo de novo temos anunciado então em relação à narrativa de aventuras do passado, que vem entroncar directamente na narrativa fantástica, habitada por entes maléficos e de obscuros desígnios: a ameaça de perigo ou do terror enunciado como ponto de partida, atmosfera   de “suspense” criada por algo ou alguém que, das trevas, ameaça o sossego, a tranquilidade e a vida. E, em Poe, parece-nos ter sido criado todo o sistema de referências tópicas que viriam a servir de significantes supremos nos romances de   investigação, elementos esses que, de certo modo, lhe são inerentes como índices, motivos, constelações temáticas. Mesmo do romance da série negra não deixa de ressaltar uma ameaça nocturna, uma entidade enigmática, das trevas, que faltou nos ambientes e cenários das façanhas reparadores das gestas e dos romances de aventuras, enaltecedores do bandoleiro que busca o resgate pela justiça social ou, pelo menos, focando em primeiro plano o fora-da-lei

    É importante que se constate, então, o seguinte: Todo o horror da visão do narrador, neste conto, surge nessa atmosfera que ele continua descrevendo ainda nas primeiras linhas:

     “Then as the fatality increased, we learned to expect daily the loss of some friend. At length we trembled at the approach of every messenger. The very air from the South seemed to us redolent with death. That palsying thought, indeed, took entire possession of my soul. I could neither speak, think, nor dream of anything else. My host was of a less excitable temperament, and, although greatly depressed in spirits, exerted himself to sustain my own. His richly philosophical intellect was not at any time affected by unrealities. To the substances of terror he was sufficiently alive, but of its shadows he had no apprehension[5]

    white ceramic bowl on black table

    Ora o estado de espírito agrava-se com a leitura de alguns livros que se referiam a determinadas coisas subterrâneas. Com brevidade,  o narrador encontra-se a descrever uma   troca  de impressões com o seu anfitrião, em  que  a  sua  própria  tese era a do valor da  crendice: “I contending that a popular sentiment arising with absolute spontaneity – that is to say, without apparent traces of suggestion – had in itself the unmistakable elements of truth, and was entitled to as much respect as that intuition which is the idiosyncrasy of the individual man of genius[6]. Ora, a crença pessoal do narrador é a de que algo de indescritível e mal definido ou indefinido, existe e pode manifestar-se de forma mal controlada pela razão.

    O fulcro da história situa-se no confronto entre o acontecimento que foi a visão aterrorizante de um monstro descendo uma colina, que teria aparecido diante da janela perto da qual o narrador se encontrava a ler e a desmontagem desse facto, que é desmentido numa segunda visão do narrador estando presente o seu familiar anfitrião.

    É perante a descrição que faz da aparição, ao seu parente, que se começa a desvendar o mal-entendido, o trompe-l’oeil, a ilusão que “criara” o monstro gigantesco e disforme, com a caveira desenhada no peito.  Ao ouvi-la, o familiar, pessoa culta e arguta, capaz de um raciocínio calmo reflexivo procura um manual escolar de História Natural e destaca, nele, algumas linhas que resume, em voz alta par o seu ouvinte.

    Tratava-se da descrição de um insecto sem qualquer anomalia, de dimensão média, uma variedade de borboleta, cuja descrição física, descontando o exagero da dimensão que a visão alucinada criara, corresponde à do monstro. Imediatamente se verifica ser a visão anormal proveniente do erro de ajuste da perpsectiva ocular tendo o narrador visto, simplesmente o animalzinho, um insecto, a percorrer uma teia de aranha para cá da janela, portanto, para cá do enquadramento da cena onde se desenrolava todo o espectáculo da paisagem com monstro.

    O próprio “anfitrião-erudito” (voz de um saber enciclopédico fundamental) faz notar, com insistência, a “monstruosa” margem de erro que pode surgir, por uma má avaliação das distâncias e, portanto, de uma má localização do objecto, no enquadramento ocular.

    Blow-Up – História de um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, onde, com a ampliação de perde o corpo do crime observado

    Resumamos, agora uma história de Conan Doyle, breve e exemplar “A aventura do vampiro de Sussex”[8]. O ambiente de escritório de Holmes é o local onde chegam as mais estranhas notícias, que o superdedutor recebe com um misto de suspeita e dúvida, mas, antes de ser dominado pela surpresa, põe em funcionamento um domínio da razão quase imediato. Esse é o ambiente, sempre surpreendente e misterioso, que Watson, médico, provavelmente um positivista, que representa, permanentemente, a perspectiva verosímil dos factos, contempla quotidianamente, sem que, por essa razão, se lhe desvende um só milímetro da atmosfera de inteligibilidade de que é testemunha, ao longo dos anos, irradiando do semblante e da atitude do seu extravagante parceiro.

    Sempre se queda no limiar das trevas com os seus monstros, nos recantos mais obscuros, sinais das grandes disjunções do entendimento e da razão, que Holmes controla com automática certeza e perfeição dedutiva.  Quem são os criminosos? Quem é Hol­mes? Eis um mistério que Watson e os leitores, pelos seus olhos ou pelos seus ouvidos, nunca saberão ao certo. 

    Holmes detém os monstros. Melhor, Holmes sabe ver o anormal pela força da sua formidáve1 razão, de forma a torná-lo razoável para Watson e também para nós. O detective de Doyle é, simultaneamente, o operador epistémico das virtualidades da ciência enquanto saber e domínio das regras do universo, e o detentor de uma aletheia, capaz de circunscrever as causas primeiras e últimas, detendo o alfa e ómega do saber supremo.  

    Nesta história, por exemplo, chega um pedido de auxílio para a tentativa de solução de um caso de vampirismo. Watson espanta-se, mas Holmes revela, de imediato, um plano de eliminação de hipóteses traçado no momento, logo após a leitura da carta em que o pedido de ajuda tinha sido feito. Diz a Watson para consultar o livro sobre os vampiros. 

    Lembremos o livro que elucida o narrador de Poe. O funcionamento não é o mesmo, nos dois contos que comparamos, mas, em ambos, o aspecto fundamental do livro é trazer-nos ao terreno da enciclopédia, para aliarmos o valor de verdade dos casos em causa: no fundo estabelecer as bases do status causæ em que vão assentar as crenças, as convicções ou as formulações opinativas. Em Poe, a enciclopédia, com a sua força positiva, fundamenta a espisteme. Contudo, para Holmes, a episteme é apenas uma forma de conformismo, uma doxa acomodatícia, que não conduz ao verdadeiro acto de intelecção, capaz de nos levar ao verdadeiro, a saber, a aletheia.

    Três ilustrações das construções geométricas elaboradas, se acordo com a teoria renascentista monocular (também chamada ciclópica) da pintura: de Abrecht Dürer, em cima. Em baixo, à esquerda, plano do filme de Peter Greenway, The Draughtsman’s Contract (1982 pt: O contrato) ele próprio desenvolvimento de uma história policial em que a perspertiva do pintor revela o crime. À direita, ilustração do tratado sobre a perspectiva de Du Breuil (1642-1649)[7]

    “Lixo”[9], diz Holmes, embora concorde que existem casos de real vampirismo e não só os 1endários mortos-vivos sugadores de sangue. “Esta agência tem os pés assentes no   chão e assim tem de se manter”  Não se tente levar Holmes para fora  da  razão  ou arrancá-lo da terra. “Os fantasmas não são para aqui chamados”[10]. Os monstros são criaturas das lendas. Quem olhar com a força e penetração de Holmes também ficará entre os que não declinam perante a invasão vinda das trevas, nem as perigosas ameaças do antro obscuro.

    Continuemos. Uma razão de amizade leva Holmes ao caso. Trata-se de uma senhora, em segundas núpcias, que foi vista por duas vezes a agredir o adolescente enteado e a sugar o pescoço do seu filho, recém-nascido. Foi vista a praticar estas acções. Mas Holmes, quase desde o princípio, sabe que assim não é. E a dedução é simples, a partir das premissas fundamentais. Primeiro: não existem vampiros. Que nos diz a razão? Um filho ciumento pode odiar a madrasta e o meio-irmão.  Holmes descobre veneno e o processo abdutivo desencadeia-se: Se for verdade que um adolescente sente ciúmes dos que lhe retiram espaço nos afectos familiares, é possível deduzir toda a história sem erros.   

    O jovem enteado da senhora tentou matar o bebé e a mãe deste, sua madrasta, bateu-lhe, tendo, em seguida, sugado o sangue do filho, procurando extrair o veneno. Para não chocar o marido ocultou sempre a verdade, preferindo passar por sádica e perversa. Do mal o menos.

    Holmes, contudo, não pode admitir tais anomalias. Tudo se explica pelo mal menor. Pelo senso comum, entre a mulher adulta, vampiresca, sádica-perversa e o filho vagamente incestuoso, mas órfão, o meio termo e o equilíbrio indicam-nos um só caminho: O segundo. A cena, tal como é relatada inicialmente, era enganosa. A verdade não estava patente, embora fosse evidente para quem, como Holmes, sabe pesar os prós e os contras do sensato e do possível, rejeitando o insensato e o impossível.

    knife set box

    O senso comum foi para a burguesia mercantilista muito mais forte defensor da ideologia dominante do que a religião foi para a monarquia ou para o feudalismo. A sensatez, generalizada como conservadora dos seus valores ideológicos, apresentou-se com uma maior coerência, enquanto organizadora da visão do mundo, do que a religião fora para as classes anteriormente hegemónicas (clero, nobreza), pois ensinou a ver, sobretudo, na terra os indícios das forças celestes.

    A sensatez apoia-se na perspectiva da óptica. Esta é-lhe necessária para a organização de um espaço em que todo o espectador é convidado a ver, através de uma representação controlada, a imagem do real.

    Poe, no conto acima citado, dá-nos o mecanismo correcto pelo qual a perspectiva do real e o seu efeito, na obra, pode ser viciado “por um erro na avaliação das distâncias”. A tomada em consideração desse facto enquadra-se no critério ideológico do familiar anfitrião, que tem perante a clivagem política e as lutas e critérios partidários uma opinião muito “filosófica”.

    Para ele não há dúvidas de que a posição frontal e egocêntrica é a que permite uma visão correcta dos fenómenos. Não interessa muito, porém, desse ponto de vista subjectivista, saber as razões pelas quais se escolhe esta ou aquela, perspectiva, mas sim saber e notar que esta poderá mudar o que virá pôr em causa a validade da posição tradicional romanesca, clássica ou realista, que transparece no romance, no teatro ou na pintura como dominante ou hegemónica. Para a defender, já não se poderá dizer que ela é a única.  Forçosamente recorremos a um critério de valor, discutível, que pode ser confrontável, explicado e experimentado.

    Quando o relato policial de investigação se enformou, no interior da produção realista hegemónica, a técnica narrativa e, com ela, os meios credíveis de se apresentar e representar o real estavam em vias de ser postos em causa. Um conto, como este, de Poe, não deixa de ser significativo por ser a apresentação de um caso ocorrido em plena vigília de um narrador com muitas marcas de autoralidade. O que não acontecia, por exemplo, noutras histórias do autor, como Ligeia, onde a possibilidade do regresso dos mortos parece prevalecer, alternando, como hipótese, com a percepção delirante do narrador autodiegético que se sente dominado pela hipótese do retorno fantasmagórico ou, ainda nas narrativas de Nerval, por exemplo, com o seu clima onírico dominante.

    white and blue ford f 150

    A resposta, de superação formal, quase em termos dialécticos, é dada pelos três contos de Poe dominados pela figura do Chevalier Dupin, que são expressos por um narrador intradiegético, companheiro do dotado “investigador”, com especial destaque para The murders in de Rue Morgue.

    Não só o dispositivo narrativo introduz os termos do permanente balancear dialéctico entre as margens da realidade verosímil e a hipótese fantástica, representado pelo detective acompanhado pelo seu “narrador privado”, anexado, por isso, à história contada – processo que voltarão usar os grandes criadores e sustentáculos da narrativa policial, de Conan Doyle a Rex Stout, passando por Agatha Christie – como as histórias revelam hipóteses reais, que parecem desafiar a verosimilhança, convidando à abertura para as regiões do excepcional, do extraordinário e até, por vezes, do fantástico.

    Voltando aos dois contos aqui considerados mais atentamente, devemos registar que é ainda a explicação dos Mestres que é invocada em ambos os casos. É com circunspecta razão que a perspectiva ocular é corrigida, e é categoricamente que Holmes recusa a alusão a fantasmas .no caso de Holmes (“No ghosts need apply”). Está escrito no Livro (com todas as aparências de registo enciclopédico) que os vampiros são lendas e, portanto, o sensato e cerebral detective tem, atrás dele, como seu apoio “todos os juristas que foram encarregues, pela sociedade, de traçar o limite aceitável entre a razão e a desrazão” (Maude Mannoni, 1971: 199).

    Se o erro surge no espaço do real que está apontado para ser aquele que a razão admite, é verdade que a óptica do espectador deve obedecer a certas regras para que a imagem não surja falseada. Só Holmes nos surge como depositário daquela sabedoria da sensatez que prescreve: “Não importa tanto conhecer o débil [neste caso, tanto o leitor ingénuo como a testemunha do facto criminoso ocorrido, que carece de discernimento para o explicar] como assinalar-lhe uma situação jurídica, numa sociedade cuidadosa, antes de tudo, na salvaguarda dos bens da família” (M. Mannoni, 1971: 199). 

    Não só os débeis como os indivíduos amorais (que, por uma anomalia qualquer, ignoram os padrões de valores) nos surgem como criminosos ou cúmplices, mais ou menos passivos, mais ou menos voluntários. Mas essa anomalia é posta logo em pratos limpos e explicada, quase clinicamente a solução.

    Neste conto de Doyle, o jovem edipiano, assassino em potência, é denunciado pelo detective e ele mesmo lhe receita sem hesitações uma cura de férias. De facto, os monstros anunciados pela óptica incorrecta nunca correspondem à realidade que o “guardião” demonstra. O erro apontado pelo detective não é só o da falta ou do crime do fora-da-lei efectivo ou potencial criminoso, mas é também o do espectador, testemunha da ocorrência, que deixou o seu senso comum ser abalado ou confundido pelos sinais que não soube interpretar, pelas distâncias que não soube avaliar, para perceber o que os seus olhos viam.

    Por não garantir a correcção que a distância introduz permitido o divisar, tendo em conta a profundidade de campo, e não ser iludido pela excessiva proximidade ou empenho criado pela emoção ou o espanto.

    “A negação, a rejeição e depois a objectivação do louco, como matéria de estudo científico, são o resultado de um desconhecimento no homem dito normal, não só do seu próprio medo como também dos seus sonhos sádicos, e ainda dos mitos e superstições que lhe povoaram a infância e se prolongam nele sem saber” (M. Mannoni, 1971: ). A sensatez do detective, face à anomalia, é a “do adulto quando se encontra face a um semelhante que não é a imagem do que ele crê poder esperar, e oscila, numa atitude de rejeição e de caridade” (M. Monnoni, 1971: 201).

    silhouette of hand with red background

    A mulher não era vampiro, hipótese que seria, se tivesse sido confirmada, justificadora dessa crendice popular, dessas superstições que se instituiu serem imaginárias e não reais e a história não seria policial, inspirada pela razão, mas sim fantástica, ou mesmo pertencente à esfera do maravilhoso.

    Porém, a narrativa policial de investigação apresenta-se, quase sempre, manifestamente a correcção do erro ou mesmo da crendice e, talvez por isso, essa modalidade narrativa tenha sido escolhida, pelo seu sistema de equívoco-correcção, como estrutura modelar para o argumento cinematográfico, onde a óptica surge como tal, num sistema em que o relato se firma na figuração pura, melhor ainda, no permanente confronto da fala e da escrita figurativa e ideogramática.

    As aparências e a realidade o logro e a verdade estão num permanente jogo, no qual o que surge padronizado é o lugar em que as leis da razão reprimem as trevas e os seus príncipes empreendedores, como nos revelam, por exemplo, as narrativas cinematográficas de Hitchcock ou de Brian De Palma.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Doyle, Conan, 1930, The Complete Sherlock Holmes, Dobleday & Company, inc., New York

    Mannoni, Maude, 1971, A Criança, a Sua “Doença” e os Outros, Zahar Editores, São Paulo                              

    Poe, Edgar, Allan, 1994, The Complete Illustrated Stories and Poems, Chancellor Press, London

    Poe, Edgar, Allan, 1971, Histórias de Mistério e Imaginação, Verbo/RTP, Lisboa


    [1] Publicado em 2 de Julho de 1971 no Notícia da Beira (Moçambique). Foram introduzidas correcções e ligeiras alterações.

    [2] Os quarto “heróis”/protagonistas que acabamos de citar são personagens, respectivamente dos romances ou mesmo das longas séries romanesco/novelescas respectivamente  de Chandler, Hammett,  Fleming,  Spillane.

    [3] A edição de referência é: The Complete Illustrated Stories and Poems, Edgar Allan Poe, Chancelor Press/Reed Consumer Books, London, 1994

    [4] Cf. op. cit. p.720. Apresentamos, em seguida uma tradução potuguesa “Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável, teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, a tomar banho ou entregues à música ou à leitura não fossem as terríveis notícias   que   nos   chegavam   todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida” (Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [5] Cf op. Cit. P. 720. Resumimos, a partir da mesma tradução “Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O próprio ar do sul parecia-nos impregnado do odor da morte” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [6] “…eu afirmava que um sentimento popular que brotava com absoluta espontaneidade, quer dizer, sem traços aparentes de sugestão, continha em si a própria substância da verdade e era digno de bastante respeito” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [7] A especulação narrativa de Poe sobre a deformação visual que terá alucinado o protagonista-narrador do conto em questão, assenta no facto de que, resumidamente, se pode considerar que uma visão muito aproximada corresponderá à visão monocular que, a não ser corrigida, justapõe imagens. Pelo que alcança numa profundidade de campo tendencialmente infinita (numa planificação que não tem em conta a tridimensionalidade que se obtêm pela conjugação dos dois focos de percepção que são os dois olhos), funciona de tal modo que elementos no “fundo” da imagem maiores que elementos “mais próximos” são vistos com tamanhos projectados menores e vice-versa, os “mais perto” menores são vistos com tamanhos projectados maiores. Resumindo, o narrador protagonista, perturbado pelo medo ter-se-á deixado enganar pela sensação do muito próximo, não fazendo a correcção perceptiva pela a utilização dos dois olhos. É possível, mas é pouco verosímil. O resultado obtido é semelhante ao que, também obtêm, em jogos de perspectiva, Peter Greenway, no seu Contrato e Michelangelo Antonioni em Blow-Up, que evocamos por duas imagens acima apresentadas.   

    [8] Cap IV do livro The Case-Book of Sherlock Holmes (nem todas as edições ordenam as histórias da mesma forma – umas respeitam a primeira edição em livro, outras, como a que aqui citamos de uma localização online, seguem a ordem da primeira publicação dos contos, em periódicos). Cf. se pode verificar aqui.

    [9]“ ‘Rubbish, Watson, rubbish! What have we to do with walking corpses who can only be held in their grave by stakes driven through their hearts? It’s pure lunacy’.

    But surely,’ said I, ‘the vampire was not necessarily a dead man? A living person might have the habit. I have read, for example, of the old sucking the blood of the young in order to retain their youth’ ” (1930: 1034).

    [10]“ ‘You are right, Watson. It mentions the legend in one of these references. But are we to give serious attention to such things? This agency stands flat-footed upon the ground, and there it must remain. The world is big enough for us. No ghosts need apply. I fear that we cannot take Mr. Robert Ferguson very seriously. Possibly this note may be from him and may throw some light upon what is worrying him’ ” (1930: 1034).

  • O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário

    O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário


    A questão é incómoda e só com algum atrevimento nos é possível abordar a escandalosa coincidência, no plano do consumo, de, por exemplo, um romance de Morris West, Jacqueline Susan ou Leon Uris com o Ulysses de Joyce; contudo, a abordagem do best-seller, a menos que se entrincheire no diminuto reduto das certezas da arte literária para atingir com a suspeita a qualidade duvidosa dos não eleitos, tem de passar antes de mais pela constatação de um fenómeno: há livros que, por obra de uma publicidade mais ou menos deliberada, do activar engenhoso dos interesses informativos do público, atingem uma dimensão de venda que os tornam notáveis, mais do que outros que fazem parte da cultura mas que ficam esquecidos como objectos imediatos de leitura ou, pelo menos, de compra.

    Em consequência disso, e de se indicar o seu alto índice de compra, tornam-se ainda mais vendidos, transformando-se numa referência que, num determinado momento, se tornam uma espécie de moda. Tais fenómenos de mercado são chamados, numa designação que ultrapassa as barreiras da teoria literária, da genologia e da análise morfológica, best-sellers.

    Ulisses, de James Joyce, um clássico publicado originalmente em 1922 em Paris. Um exemplar da primeira edição pode valer cerca de 20 mil eiuros no mercado.

    Tanto quanto a memória nos diz, esse termo data de meados do século XX, proveniente do mercado livreiro americano, e aparece como uma informação de claros propósitos persuasivos, tendente a criar uma frase exortativa do tipo “toda a gente já leu – porque é que você não faz o mesmo?”

    Não pretendendo ser esse o nosso objectivo, aqui, não podemos deixar de pensar que seria bem interessante determinar o facto com verdadeiro rigor ou seja, o momento em que a expressão deixa de ter funções adjectivas, para se torna uma designação substantiva, um conceito com valor quase genológico.

    Resignando-nos com a falta de uma investigação satisfatória sobre o esclarecimento de tal matéria, o que nos resta fazer, de momento, é lançar algumas conjecturas e apreciações sobre mecanismo de selecção accionado, partindo dos elementos do mecanismo com os quais temos contacto mais directo.

    O primeiro elemento desse mecanismo de activação de interesse, venda e leitura, cuja existência postulamos, assemelha-se à formulação entimémica: o que é massivamente procurado pode ser índice da qualidade presumível do que se anuncia, arrastando, como causa ou antecedente “lógico”, a hipótese de que o que já agradou a muita gente por certo será do agrado de toda a gente.

    As reservas são, normalmente, de uma estirpe de maçadores armados em elite que, por vezes, teimam em não alinhar com as maiorias. É evidente que esses seres bisonhos existem, olham para tudo o que não está rotulado com as legendas canónicas de literário ou até de clássico, com ar de suspeita e lançam a dúvida, muitas vezes injustamente, sobre a qualidade do que é popular no sentido que o termo tem nas sociedades modernas: lido por “toda a gente” sem qualquer critério sólido de selecção.

    Não nos é possível desfazer e tornar claro todo este novelo de questões que tocam, como o leitor mais experto notará, em alguns dos problemas de fundo da literatura e da arte em geral: selecção, literatura, qualidade, capacidade de critério estético, popularidade, elitismo, etc., numa infinitude de vias e argumentos que nos deixam tontos. Porém, alguma coisa se pode fazer.

    Antes de mais, constatar que, por exemplo,  facto registado como motivo de grande surpresa,  a edição portuguesa de Ulisses de James Joyce – obra que ainda se pode considerar muito difícil, de leitura muito complexa não só pela sua elaboração textual, pela complexidade da sua gramática narrativa, mas até pelo sistema referencial de toda a cultura ocidental e irlandesa (pela sua hipertextualidade disseminada e inquieta, enfim) que nela é posto a funcionar, a cintilar – tenha atingido o sucesso livreiro que atingiu, tendo sido considerado um best-seller.

    Pressentimos que o mecanismo posto a funcionar, na operação de marketing efectuada por editor e livreiros, é o do kitsch, com as implicações que ele impõe: retirar ao objecto a sua funcionalidade primeira, reduzi-lo a objecto de mostruário, colocando como primordial a sua perceptibilidade mais imediata, tornando-o ícone ostentável da sua função primordial de origem que deve ser indicada mas não activada.

    Uma obra cimeira da literatura e da legibilidade literária, conotada com a problemática poética da própria legibilidade/ilegibilidade/escritibilidade, fica, assim, notabilizada pelos seus aspectos culturalmente mais frágeis: a intensificação da reprodutibilidade do produto editorial, a iconografia do seu nome, e a valorização visual do volume-livro.    

    No entanto, e apesar da realidade recente que funda a etimologia, não é ao fenómeno de mercado, na sua pureza sócio-económica, que nos referimos, quando falamos de livros pertencentes a um género, intuitivamente reconhecido por todos (notar-se-á, também neste caso, como em toda a genologia, o esforço é para abordarmos noções arquitextuais – difusas, como não pode deixar de ser – em tom de elaboração teórica, como se nos aproximássemos de conceitos estabilizados, a partir de noções intuitivamente reconhecidas) como best-seller.

    Na sua conotação depreciativa, que é também a genológica, best-seller designa um conjunto de obras que enfileiram em certas colecções, ou que constituem a produção de um autor, que são bastante conhecidas e às vezes estão na origem de filmes (no caso mais frequente é o que acontece  ao romance best-seller) ou de programas televisivos, mas que todos reconhecem pelos seus traços fundamentais implícitos – mesmo quando difíceis de enumerar na totalidade, ainda que possam ser resumidos em três ou quatro tópicos: a pobreza ideológica pela banalização dos valores, a recorrência dos motivos temáticos, a popularidade dos seus elementos e situações bem como o conformismo estético-cultural.

    A cultura como informação

    O trilho habitualmente seguido pelo sistema do best-seller, seja qual for o género “canónico” em que se inscreva por semelhanças estruturais do discurso, aponta, antes de mais, para uma problemática de informação. Há uma espécie de desejo compulsivo de cultura, de saber sobre o “mundo postulado como real” que caracteriza o público consumidor desse material bibliográfico.

    O best-seller é, na maioria esmagadora dos casos, uma obra que fala sobre um tema candente, uma problemática apaixonante, um acontecimento capaz de comover amplas camadas sociais. Como muita da outra produção literária normalmente assumida como marginal, de amplas edições e alto consumo em certas épocas e em certos momentos de moda (há ou houve a do policial, a da FC, a do fantástico, a do romance cor-de-rosa) o best-seller emerge como resposta a um ambiente informacional favorável, seguindo de perto, de maneira mais ou menos evidente, o tema que na comunicação social se encontra mais agitado.

    black and white typewriter on white table

    Não é possível determinar todos os meandros desta influência nem detectar exactamente como se engrenam os assuntos do dia. Pode a activação de um imaginário ser desencadeada por um programa particularmente feliz de TV, ou pelo eco que determinado acontecimento atingiu no noticiário. Os chamados dramas humanos, aqueles que apresentam uma vítima da desgraça, a tragédia de alguém dividido entre um dever transcendente e o sentimento mais banal (amor filial, paixão não correspondida ou contrariada pelo dever), a catástrofe colectiva que tenha por motor um dado irracional (a etnia perseguida pelas convicções religiosas – os judeus, por exemplo) tudo o que assente, enfim, em axiologias implicadas por inquestionáveis tradições já enraizadas em determinados universos culturais e civilizacionais, serve de tema privilegiado para o livro best-seller.

    De certo modo, atrás do apelo mórbido de uma temática da fatalidade (duas doxas que se opõem, cindindo tragicamente um ou vários protagonistas ou colocando-os diante de um problema de consciência), há um apelo informativo directamente entendido pelo leitor do género: ele quer e procura saber mais, informar-se, conhecer mais profundamente o caso através do romance inspirado por ou lendo o relato, a série de entrevistas, a biografia ou a autobiografia ou mesmo a monografia ensaística que aborda o tema em questão.

    A actriz bela assassinada, a prostituta que ganha muito dinheiro e é feliz, o padre que se divide entre os deveres da ordem e os apelos do amor, ou da família, ou do grupo racial ou da nação, são esquemas que, por assim dizer, entroncam no apelo romântico do caso como tema – ou, mais correctamente, no apelo romanesco-sentimental do caso como singularidade e como excepção. É claro que o aspecto informativa busca menos na casuística “romântica” o apelo ao leitor, fazendo incidir antes o interesse no desfilar de coisas extraordinárias ainda que “verosímeis” que são apresentadas.

    books on ground

    O caso da obra “crua”, reveladora de uma “realidade” social sórdida e inevitável, a demonstração cabal de que as classes altas vivem nos mais “abomináveis costumes”, a confirmação de que na vida só se triunfa pela baixeza e pela infâmia, parece-nos ser revelador dessa apetência de uma massa leitora pelo “realismo”, que fornece a dose doentiamente esperada de desagrado (perante uma formulação ética normalmente hipócrita que vacila como um fascínio denegativo numa expressão do tipo: “como eu gostava de ter participado daquele horror! – mas sem ser tocado pelas suas consequências…até porque não devo!”) que confirma como os princípios da crença são a única protecção contra as tentações do mal – mas como a experiência fantasiosa dele é necessária para a catarse.

    Desejo de informação e apelo do conhecimento que está na moda, vontade de estar em dia com o que se diz por esse mundo fora, parecem ser motivações para um terceiro aspecto característico dos best-sellers, talvez o mais fascinante de entre ele: a busca de resposta para as grandes temáticas antropológicas. Daí, entre esta casta genológica que procuramos embaraçadamente delinear, resulta que aparecem livros sobre astrofísica, ciências naturais e humanas que atingem altas procuras no mercado e que são parcialmente (até um ponto de insuportável rotura) devorados pelos leitores desprevenidos.

    Formulações sensacionalistas que apregoam, sobre um livro, que ele dá respostas a questões tão importantes como o problema da morte, do destino da humanidade, das origens da vida, fazem de imediato incidir sobre tal texto as atenções doentias. Ao lado das obras como Um Pouco mais de Azul, de Hubert Reeves, que parece responder ao desejo fundamental de conhecer os limites do universo, vêm, depois, enfileirar-se tratados práticos sobre a forma de obter o prazer sexual utilizando o yoga, ou respostas aos desejos de felicidade pelo domínio da ciência do karma… o aparato retórico e científico fornecido pelo modelo reverte em favor de todas as especulações oportunistas e, por vezes, assumindo o modelo argumentativo do senso comum, evocam os benefícios da mais crassa candura – que lembra a estupidez.

    A retórica do realismo

    Apesar de todos os casos acima se poderem incluir no “género best-seller, ainda que pertencentes a variados tipos de discurso, o que aqui nos importa, como zona específica (até porque típica) do conjunto é o do género literária tradicional, clássico, privilegiado como modelo, num horizonte que participa da aspiração cultural e da interiorização das regras da boa leitura: o romance “clássico”, ou seja, que cumpre certas regras que uma determinada tradição “culta e escolarizada” considera “boas”.

    Mesmo quando não se pode perceber, pelo apelo do saber na moda, como Joyce atingiu o lugar, nos escaparates, do best-seller, dado que a moda nada tem a ver com as suas características específicas, podemos pontualmente aceitar que ele se tornou muito falado e vendável porque e escreveu um “romance” – e é um “clássico”, pelo que o saber trivial divulga.   

    Narrativa bem “regulada”, forma de discurso capaz de veicular informação segundo modelos antropologicamente fortes pelos traços de representação, vigorosamente actuantes desde o mito até ao romance moderno pelos valores amplamente difundidos de que são emblemáticos, a ficção típica do best-seller assenta, de facto, a sua legibilidade, sobretudo, nos traços mais notórios de um género tornado clássico, no Ocidente: o romance realista.

    opened book

    Por abstracção desse modelo, que poderia ir do romance de costumes ao de aprendizagem, o que vigora, em grandes linhas é o conto alongado de um (ou vários) protagonista que se defronta com o mundo, busca nela resposta, uma ciência da vida. Normalmente, uma sabedoria do trivial que transporta um provérbio de monótono bom senso para uma atribulada deambulação pelo mundo dos enganos constitui o tema esquemático privilegiado.

    A grande ciência, a última, a suma teleológica do género assenta na máxima do saber viver com mais ou menos custo, com mais ou menos atribulações. A visão antropológica pícaro-realista é a grande fonte de inspiração, depois de expurgada e desproblematizada. A banalização de desvendamento do naturalismo é a pedra de toque para a produção controlada de todo o dizível e, portanto, de todo o visível.

    O uso da elipse sensata nas perigosas revelações da sexualidade, o uso do provérbio na reflexão sobre a existência, os modelos reconfortantes da narração centrada num saber omnisciente, uma confiança na lógica da temporalidade e uma hábil gestão das técnicas de focalização, apresentando os mecanismos narrativos mais usuais, são condições para uma boa recepção, ou seja, garantia de que a peça fabricada atinge o alvo com segurança.

    Mas, sobretudo, o verosímil, a conformidade com um real altamente codificado enquanto percepção tem de estar claramente formulado. Daí, talvez, o best-seller de matriz realista ter dificuldade em sobreviver muitas gerações. A alteração dos costumes, das crenças banais, tem de ser calculada em cada momento.

    Uma apaixonada suicida em nome da honra não seria motivo de aceitação nesta visão do mundo adaptada aos dias de hoje. Um herói que pusesse os princípios acima do desejo de sucesso social seria encarado como um idiota inverosímil. O que constitui o arrojo nas regras do jogo no romance de Balzac, torna-se a banalização triunfalista do oportunista do herói aceitável dos nossos dias.

    woman holding book covering half face

    É por isso que a revelação desmesurada na visão do mundo do texto balzaquiano se reduz a uma receita do “dar a ver” realista que encanta no romance de sucesso popular dos nossos dias. O mecanismo artificioso é como que esquecido; para o leitor apressado, mais em busca do esquecimento do que da interrogação, do saber do que da pergunta, interessa sobretudo a redundância do conformismo enquanto tal, a todos os níveis.

    O mecanismo em causa é de tal forma poderoso que, mesmo em circunstâncias em que o sucesso (presume-se) não é procurado pela via da facilidade, ele funciona na mesma. No seu Poetics of postmodernism (Routledge, New York) Linda Hutcheon afirma sobre a duplicidade paródica da ficção pós-moderna:

    “De certo modo, como já argumentei, o novo romance (nouveau roman) é, consequentemente, muito mais radical em forma do que qualquer romance pós-moderno. Aquele assume que o seu leitor conhece as convenções da narrativa realista e por isso procura subvertê-las – mas sem fazer como o pós-moderno, que as inscreve. Ambos procuram mostrar a natureza convencional dos processos vulgares de construção dos mundos romanescos, mas a metaficção historiográfica confirma e depois sabota esses mundos e a sua construção. Talvez isso explique porque razão muitos romances pós-modernos têm sido best-sellers” (1988: 202)

    A transtextualidade: as regras da imitação e as condições da crença.

    O que o best-seller nos vem mostrar, se o que sobre ele dissemos tem algum fundamento, é que ao lado de uma literatura de evasão (às vezes buscando no fait-divers apenas uma pequena parcela de caução de verosimilhança, como acontece com o policial em relação à imprensa “criminal”) que aponta claramente para os mecanismos do fantástico como apelo primordial, onde o acto de contar se compromete com a aspiração irrecalcável do universo do devaneio, do “seria tão bom que…”, existe uma outra via de integração nos gostos generalizados que parece paradoxalmente a sua antítese, apelando para o desnudamento realista.

    Só aparentemente existe tal contradição, pois o que a técnica do best-seller nos dá é uma movimentação da crença, só que assumida a um outro nível. Se a crença infantil e popular é irreverente, desmesurada e inconformista, os seus monstros estão perto em aspecto dos grandes fantasmas do fascínio e do medo, a crença do leitor moderno é acomodada no interior de uma vulgata positivista e cientista que faz do real, do exorbitantemente real, um centro de apelo irreprimível.

    brass quilt pen

    Claro que, se para o folclore e para a criança os ogres e os lobos emergem como figuras da inquietação e da desinquietação, para o moderno leitor adulto essas figuras do medo têm de emergir investidas de factores de aquietação, tranquilizantes. O seu mundo é um real verosímil onde as grandes ameaças estão domesticadas ou então têm nomes que asseguram o controlo das forças hostis, mas manobráveis: são marginais, ou loucos, ou comunistas, ou bandos subversivos de direita ou esquerda ou fundamentalistas islâmicos desaçaimados.

    Se o monstro tiver o perfil de Hitler, ou os tiques de um nazi actuando para a KGB, a fábula assume as proporções de uma informação realista, o possível torna-se apaziguante e o sonho mau passa como um relato carregado de informações sobra a última grande guerra ou a guerra-fria. Mesmo que a guerra seja santa e o alvo sob mira se revele muito mais como moderna gesta de cavalaria em direcção a uma Jerusalém a “libertar”, do que como relato objectivo do retorno sionista à Palestina.

    O sentimento da verdade histórica fica assegurado se meia dúzia de nomes controversos se erguer como um punhado de heróis da reconquista, tendo por detrás a documentação dos periódicos reconhecidos como equilibrados, desde os anos 40 e 50 até hoje.

    Cabendo claramente dentro da relação transtextual do hipertexto com o hipotexto de valor genérico, ou seja com o arquitexto, de que nos fala Genette em Palimpsestes (Seuil, Paris, 1982, p. 60-61), o best-seller canónico, de tipo romanesco de imitação, tem objectivos sérios e veste roupagens de adaptação aos mais severos rigores de um grau zero da escrita da actualidade – ao contrário dos casos mais conseguidos da paródia moderna (ou pós-moderna, como querem alguns). 

    A rejeição frequente, mesmo por leitores apaixonados de best-sellers, dos que foram consumidos pela geração anterior, com uma velocidade que ronda a da mudança na moda do traje, talvez encontre justificação na seriedade dos valores que nele se imprimem. De certo modo, a busca cuidada do autor de sucessos, contrariamente à busca do escritor que se empenha na revolução que cada obra procura ser, nos processos de desautomatização ou de estranhamento de que nos fala o  formalismo russo, é uma busca de automatismos de escrita, de identificações e de identidades, de utilizações e de lugares-comuns que, sob a estrutura novelesca do realismo, faz o efeito do segundo guia para leitor que, sendo supostamente desprevenido, é, além disso, tomado como próximo da estupidez e da ignorância.

    Se muitos textos de grande público piscam o olho ao leitor de cultura cosmopolita, a maior parte deles não se arrisca e, mesmo que tenha como assunto um tema de sucesso na comunicação social, na maior parte dos casos parafraseia e explica redundantemente para que a mensagem não escape.

    Restaria talvez acrescentar um reparo a estas notas sobre terreno que, cremos, nunca foi razoavelmente explorado. A tendência do best-seller é para a redundância dos mecanismos de reconhecimento. Não desenvolve apenas o recurso ao género, que poderia ser um saudável trabalho sobre o arquitexto, como sugere Hutcheon.

    Nem sequer aos modelos canónicos autorais, o que poderia activar uma saudável relação hipertextual. São os próprios universos ficcionais recriados que se evocam a traços largos, para os leitores não se perderem na escolha. 

    Para citarmos um caso nacional, Manuel Arouca produziu a hipertextualidade à segunda potência quando, com Os Filhos da Costa do Sol,parafraseava o título do best-seller de James Michener Filhos de Torremolinos.

    Isso vem provar que não é preciso sugerir que se inventa ou se busca um universo estranho ou populoso onde o excepcional pode acontecer, para ser sucesso editorial fácil. Basta dar com a receita local e com o verosímil que se aceita numa certa fase histórica – mesmo que os horizontes sejam estreitos.

    A receita, entre nós, tem dado frutos que mostram claramente os limites do género – buscando o geral na mediania, e o reconhecível no fenómeno estritamente local, temos o sucesso editorial no cavaqueio de todos os dias. Se o grande acontecimento é a notícia e o notável é “colunável”, o best-seller inclina-se para o encanto onde o grande acontecimento é ser notícia e o fenómeno digno de registo é surgir na fotografia ou na imagem do noticiário ou do programa com máximo de audiência. Teríamos aqui o modelo de um certo sucesso de escrita – não do eterno retorno, mas da porca giratória, ou da batedeira

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Genette, Gérard, 1982, Palimpsestes, Seuil, Paris

    Hutcheon, Linda, Poetics of postmodernism, 1988, Routledge, New York


    Texto originalmente publicado na revista Vértice, n.º 23, 1990

    .

  • Almeida Faria

    Almeida Faria


    Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

    A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

    Almeida Faria nasceu em 1943.

    A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

    O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

    De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

    Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

    A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

    Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

    Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

    Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

    Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

    Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

    De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

    É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

    A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

    A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

    O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

    Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

    É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

    Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

    Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

    Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

    Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

    De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

    Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

    Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

    Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

    A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

    Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

    Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

    Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

    Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa

  • Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve

    Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve


    [notas “quase arquivadas”, que publicamos em sentida homenagem ao povo da Beira pela catástrofe que o atingiu, quinze anos depois de estas terem sido redigidas]

    Este texto não resulta de uma investigação. Quando muito, decorre de algumas reflexões praticadas em função de uma vontade de efectuar uma pesquisa. O seu objecto central é o cinema. Não os filmes, não os textos singulares, ou qualquer corpus singular que os inclua.

    Pretende, sobretudo traçar as linhas muitos gerais relativas à possibilidade de reflectir sobre o cinema enquanto fenómeno cultural. Não apenas sobre a existência do cinema enquanto conjunto de películas, textos e de discursos recebidos pelos espectadores, mas também sobre o cinema como sistema de produção e circuito de distribuição.

    woman in white shirt and orange skirt walking on gray concrete pathway during daytime

    Sentimos a necessidade de determinar, desde já, dois elementos constituintes do objecto cultural que temos em vista: o objecto discursivo que entendemos por cinema, encarando o fenómeno na sua máxima generalidade; e o tempo/espaço como unidade delimitante  em que decorre ou se manifesta esse fenómeno. Parece-nos que o segundo elemento é o que deve ser esclarecido em primeiro, no discorrer das nossas perplexidade, dado que este se nos afigura como termo motivador principal destas notas que têm em vista estruturar uma base para futuras pesquisas.

     Assim, tal como fica indicado, logo à partida, pelo título desta nossa exposição, o local onde centramos a nossa atenção é uma pequena parcela do território Moçambicano, a cidade da Beira.

    Curiosamente, do ponto de vista cultural que aqui nos importa, esta é uma das poucas localidades importantes do país que não mudou de nome depois da independência. No entanto, é importante precisar, para tornar mais clara a nossa exposição, que o período histórico a ter em conta como momento cultural, é da fase final do domínio colonial português. Um momento de crise ideológico-político-militar que é importante ter em conta como unidade específica dentro da formação discursiva que a ocupação colonial gerou.

    turned on projector

    Quanto ao cinema, sem nunca perdermos de vista o espaço africano a que fazemos referência, tem tantas acepções, hoje em dia, que se torna necessário esclarecer, desde o início da nossa reflexão, qual é a acepção em que o tomamos quando falamos dele (cf. Fárid Boughedir, 1974: 123, in Présence Africaine, nº 90).

    De facto, o cinema tem sido qualificado como arte, indústria, comércio, meio de expressão, meio de informação, meio de educação. De um modo geral, ele é tudo isso, mas, para um cineasta, crítico e comentador com foros de teorizador como Boughedir, de origem tunisina, o cinema deve ser encarado, sobretudo, pelo seu “aspecto educativo, quer dizer, tendo em conta o seu efeito sobre o público” o que o leva a considerar que há dois géneros de cinema: “o que faz evoluir o espectador no sentido do progresso e o que o faz estagnar cobrindo-o de mentiras” (p.123).

    Do nosso ponto de vista, o que importa sublinhar, tendo em conta as nossas próprias indagações, é a sua dimensão de arte. Não colocamos a óptica, evidentemente, no lado selectivo e até elitista que tal conceito arrasta, mas enfatizamos, antes, o lado de linguagem elaborada, de linguagem de modelização secundária (segundo o conceito de Lotman) que o cinema tem primordialmente.

    grayscale photo of 2 people on boat

    É num momento posterior, decorrente do reconhecimento que cinema funciona, sobretudo, como construção representativa altamente elaborada, que nos parece importante colocar a tónica da sua relação com os públicos que atinge. É claro que, colocando ênfase nessa dialéctica entre a representação ficcional (mais ou menos fantasmática, ideologicamente alienante) e a  função educativa, abrimos o debate fundamental que se trava entre o discurso persuasivo das classes e dos grupos dominantes e réplica mais ou menos activa e consciente dos destinatários.

    Nem sempre, contudo, o encontro ou desencontro de opiniões ou de imaginários é fácil de delinear. Como sustentam Ella Shoat e Robert Stam “o cinema” sobretudo o de Hollywood, combinava a narrativa e o espectáculo para contar a história do colonialismo da perspectiva do colonizador” (2002).

    Por outro lado, um dos horizontes mais antigos e constantes que se manifesta no discurso de resistência ao colonialismo, o que se pretende reforçar, do ponto de vista do colonizado, é a representação da sua autenticidade, dos seus valores, dos princípios que o fortalecem na sua humanidade e que o tornam um sujeito integral no interior da sua cultura. Admitindo que estes são os pólos da questão, interessa sublinhar, desde já, que o seu delineamento não fácil. E talvez não seja possível. De qualquer modo, a nossa intenção quanto a essa matéria, aqui, é ter a noção desses traços discretos da contradição ou do confronto. Apesar disso, não tentaremos colocá-los, pelo menos no seguimento desse confronto, na nossa argumentação.

    O fio da nossa reflexão desenvolve-se num terreno mais indefinido. Não porque preconizemos contemporizações, mas porque nos importa interrogar alguns dos matizes segundo os quais o confronto se dá ou o debate emerge na formação discursiva colonial, no momento histórico discreto, perceptível, em que a dominação política colonial enfraquece. É um momento curioso. Não damos por ele no momento.

    Golden Gate Bridge

    Ninguém podia assegurar, na véspera do 25 de Abril, que este ia acontecer. Por outro lado, as dinâmicas político militares e os discursos ideológicos e culturais que os acompanhavam, não se encaminhavam para esse momento. As frentes de batalha estavam desenhadas quando o 25 de Abril, no interior das hostes ocupantes, revelou quão profunda era a fractura nele inserida.

    No caso específico de Moçambique, e, muito em especial, no espaço cultural da cidade da Beira, registam-se vários fenómenos que nos permitem interrogar a variação cultural que o cinema introduziu na dinâmica ideológica. À superfície, a cidade da Beira é constituída por uma classe dominante liberal. Mesmo nos momentos mais árduos da defesa dos bastiões coloniais, os grupos sociais que constituíam a classe média alta da cidade revelavam-se bastante liberais.

    Não se defendia abertamente o regime, o discurso anti-salazarista era bem tolerado e as instituições culturais permitiam a emergência pouco dramática dos discursos da oposição. É claro que, por coerência interna do apoio à defesa das “províncias ultramarinas”, não eram permitidas simpatias de qualquer espécie pelos grupos “terroristas”, ou pelos “agentes da desordem”. Não era pensável defender abertamente a Frelimo, por exemplo. Mas por virtude da sua própria hipocrisia, o discurso oficial dominante não podia impedir, por exemplo, que fosse defendido o anti-racismo e que o apartheid da África do Sul fosse condenado.

    group of people staring at monitor inside room

    Numa situação oficial, na presença de uma autoridade em funções, a África do Sul não poderia ser condenada. Contudo, em situações menos oficiais e mesmo em intervenções oficiosas, em crónicas jornalísticas, por exemplo, esse ataque, desde que não fosse hiperbólico ou disparatado, era possível.

    Por outro lado, a África do Sul, com os seus princípios anglo-saxónicos, com muito prestígio da dimensão liberal “anglo”, sobre o puritanismo mais estreito dos Boers, era apologista de uma fruição cultural sem barreiras. Assim, por exemplo, para regressarmos ao objecto da nossa abordagem, o cinema que passava pelas salas das grandes capitais da África do Sul, os filmes que circulavam nos seus cine-clubes, eram obras que, no entender da vigilância censória, não podiam entrar em Portugal. Só não podiam, na nação austral, era ser francamente anti-apartheid.

    Ora, um fenómeno curioso que se dava em Moçambique era a circunstância de os filmes serem importados directamente da África do Sul, aproveitando o circuito de distribuição que a alimentava, sem passarem pelo mecanismo censório que imperava em Portugal. É verdade que existia uma censura em Moçambique, mas ela funcionava de modo local.

    Os filmes eram censurados por habitantes de Lourenço Marques e da Beira, sobretudo, que eram cidadãos do mesmo nível e estrato social a que pertenciam os espectadores. Se tivermos em consideração que o público dominante dos cinemas é, na altura, uma classe que se pode considerar de elite, constituída, sobretudo, por cidadãos “brancos” ou por alguns raros elementos de origem africana, ou negra, ou mesmo miscigenada, pertencentes a uma burguesia de quadros qualificados, percebemos que os valores em causa, quando se tratava de cinema, eram bem diferentes dos que vigoravam em Portugal.

    man seating beside body of water

    Esquecemos, neste olhar em que apresentamos quase  um idílico falanstério tropical − constituído pelas classes médias cosmopolitas, dependentes do colonialismo, mas sem o apoiarem directamente, ou, pelo menos, abertamente −, as classes populares, as de pé descalço, as dos maltrapilhos, operários, tarefeiros, serviçais e desempregados que, por não corresponderem aos princípios do “direito de admissão”, nem sequer se aproximavam dos cinemas.

    Não falamos do cinema suburbano e itinerante que os servia, porque mal o conhecemos: apenas a referência de alguns amigos que o frequentaram, brancos como o poeta Rui Nogar, ou “pessoas de cor” como José Craveirinha, nos permite fazer ideia dele. Por caricatura, a partir da factualidade, e para servir de exemplo, podemos dizer que entre os filmes (da verdadeira e genuína série B, então) mais projectados entre os “autóctones” constavam, como clássicos,  os que tinham como herói Tarzan.

    Estamos a falar de um mundo ou de um país onde a representação da vida real da maioria da população não se praticava. Nem mesmo em documentários, como posteriormente foram feitos ainda que de modo insuficiente, pelo governo que liderou a independência.

    Sambizanga, realizado em 1972 pela francesa Sarah Maldoror.

    Um filme, como o de Sarah Maldoror, Sambizanga (1972), sobre a luta de libertação, era impensável então nos cinemas africanos na Área de influência em que Moçambique colonial se inseria. Mesmo mais tarde, essa obra importantíssima, que tão carinhosamente foi promovida pela Frelimo, não teve a importância cultural generalizada que merecia.

    Mesmo para os cidadãos das classes menos desfavorecidas, nas quais nos podemos incluir, como cidadão residente na Beira, na época, jornalista a tempo inteiro e crítico de cinema, dentro das atribuições profissionais, Moçambique, no cinema ou na imagem “cinematográfica” não existia quase. Algumas reportagens de acolhimentos a “autoridades da Metrópole”, eram as que mais fielmente apresentavam a população. Sempre festiva e de aspecto “despreocupado”, nunca faminta ou carente.

    A ficção cinematográfica, é verdade, glorificou Moçambique. Sem um único exterior local, a película Chaimite, de Brum do Canto (1952), constrói aquele que podemos considerar o maior filme épico português. Moçambique está lá. Talvez também lá esteja uma parte da alma Moçambicana. Gungunhana é maltratado, mas, pelo seu peso histórico especifico, ainda hoje pode justificar uma recuperação crítica do filme. Mas esta não se pratica. É uma presença fantasmada. Como o Moçambique representado é apenas uma alusão de localização.

    Dos moçambicanos contra os quais se bateu Mouzinho de Albuquerque apenas temos as sombras. Sombras de guerreiros caricaturadas… de algum modo, curiosamente, ensombrando as glórias portuguesas. Podemos, ainda hoje, lamentar que esse filão épico não tenha sido explorado.

    Parece que  faltou aos defensores da pátria portuguesa, nos seus melhores momentos artísticos, todo o ambiente cultural, a profunda vivência de uma má consciência com a que se desenvolveu num John Ford, por exemplo. Manoel de Oliveira vem, em visões africanas obtidas em exteriores do Senegal, reevocar, por vezes de modo muito produtivo, essa dimensão da épica. Mas o que ele nos apresenta é uma “África” colonial portuguesa, não este território ou aquele. Ele fala mais da essência da guerra do que do fenómeno conflitual e dos labirintos da sua continuidade. E filma África no Senegal…

    Neste ponto, tocamos no centro nevrálgico da questão que se coloca a um cinema moçambicano, o das suas faltas estruturais. Do colonialismo herda-se pouco. Herdam-se perdas, sobretudo. As heranças são mais as dívidas do que as estruturas. E quanto mais pobre a Metrópole, menos são as possibilidades do futuro… Talvez seja isso que nos explica a razão pela qual um cineasta como Rui Guerra, que constou desde o princípio entre os maiores do Cinema Novo Brasileiro, se “afastou” de Moçambique.

    two reels

    Não pretendemos analisar o fenómeno mas apenas registá-lo. Não foi, de certo, pela falta de simpatia do cineasta pela revolução moçambicana, nem pelo desinteresse dos dirigentes moçambicanos, que a aproximação não se deu. Nem pela falta de interesse de um público de língua portuguesa interessado no cinema… Mal ou bem, a um Sembéne Ousmane foi possível migrar da literatura para o cinema, no Senegal… porque herdou uma estrutura diferente: a não menos colonial, mas mais poderosa máquina de produção francesa.

    Notemos, no entanto, que a actividade cultural em torno do cinema não era nada conformista, no tempo da ocupação colonial, mesmo no auge da guerra ou ainda quando esta já era desfavorável ao regime português. Quatro cinemas, em várias sessões diárias, chegam a alimentar os lazeres ou os interesses culturais das classes sociais menos desfavorecidas, vivendo das benesses do seu estatuto social.

    Nós próprios praticámos uma crítica de cinema constante no jornal Notícias da Beira. O director do jornal (F. Gomes) era sócio maioritário da empresa proprietária dos cinemas, e seu administrador…

    Tivemos confrontos e desentendimentos, tentou ameaças, mas nunca me demitiu da função. Rui Nogueira escrevia crónicas de Cinema que publicava na página cultural que era dirigida por mim… e não defendia os filmes que mais interessavam comercialmente. A sua actividade nunca cessou, até ao momento em que foi possível manter colaboradores (não o era depois da Independência).

    Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade moçambicana de Beira, entretanto desactivado.

    A crítica de cinema já era uma tradição no jornal, iniciada, com total independência e isenção por Rui Coelho de Campos, que deixou de a fazer por ter regressado definitivamente a Portugal, quando comecei a fazê-la. Manteve-se, até depois da independência, quando a sobrevivência do Jornal já não era possível nos mesmos moldes. Era quase uma instituição cultural.

    Também o cine-clube, do qual fiz parte, com sede no Auditório à Beira do Chiveve, promoveu as sessões de cinema mais ousadas que era pensável ousar em território português: Ciclos de Eisenstein, por exemplo!…

    Promoveu festivais de cinema em que o inconformismo político, cultural e ideológico era um dos grandes valores. Vasco Branco, por exemplo, concorreu mais do que um ano a esse festival. José Cardoso, durante muitos anos dirigente do INC de Moçambique, depois da independência, cineasta amador anteriormente, à data em que elaborámos estas notas preparava-se para publicar as suas memórias cinéfilas. Aguardamos a possibilidade de as conhecer. São três volumes com profusas informações sobre o cinema que existiu… não existiu… devia ter existido… em Moçambique.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

  • A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito

    A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito


    Se quisermos, hoje em dia, definir a poesia, teremos de optar por colocar, no centro da sua caracterização, a questão do sujeito, de tal modo que, numa espécie de paradoxo de enunciação, este se torna tema central e fonte de um discurso que, a determinar destinatário e objecto, apenas o faz para reforçar a subjectividade do enunciador.

    Temos em conta, nessa redução à questão central, que, desde há pouco mais de um século apenas é que o termo é usado para designar um conjunto de textos sincreticamente agrupados como um género. Nesse período de tempo, o termo concorre com a designação, também ela problemática, de lírica.

    black and silver fountain pen

    Toda esta questão apresenta-se sempre de modo complexo: instaura-se-me como um desafio central para toda e qualquer reflexão sobre o literário, mas logo me dá, como que a pedir iniludível deslindamento, a problemática central do seu paradoxo.

    Pessoalmente, vejo nesse paradoxo duas frentes incontornáveis: uma, a que chamarei histórica e que nos coloca toda a problemática da entidade poesia na dimensão diacrónica; outra, a que chamarei da enunciação, e que nos coloca o problema de a poeticidade se apresentar tragicamente entre a inevitabilidade do dialogismo (ser discurso) e a tentação do solipsismo (ser silêncio, ou simples gemebundo ruído).

    Tentarei colocar a questão da enunciação como central, aqui. Assim, a questão histórica será arrumada com uma espécie de leviandade que apenas tem uma desculpa: não a podendo deslindar satisfatoriamente, procurarei apresentar as grandes linhas segundo as quais ela poderia ser abordada, num trabalho de mais ampla dimensão, apenas para tentar colocar os delineamentos de base segundo os quais a questão da enunciação se me apresenta.

    Ora, do meu ponto de vista, o termo poesia designa, hoje em dia, uma prática que se manifesta de acordo com os seguintes modelos textuais (tomando como pertinente quer a substância quer a expressão da forma, quer as modalidades enunciativas): a dominância da versificação e/ou do ritmo em todas as suas dimensões; a ligação da voz à sonoridade; o estatuto monológico do sujeito de enunciação; e a confusão deliberada do sistema expressivo com o do conteúdo.

    black audio book

    Assim sendo, a poesia, historicamente, tem, da tradição, a marca do verso (o poeta era um versificador), da lírica, a marca do eu como origem do canto, da tragédia a demarcação do protagonista relativamente aos outros – o Outro, a voz colectiva – e da épica a definição do enunciador como sujeito-central, o herói do enunciado fundido com o da enunciação como assunto dominante, em última análise, da instância do canto.

    Porque se torna a lírica a forma central do poético, na nossa tradição, mesmo que repisemos Aristóteles e lembremos que o seu modelo central era a tragédia? De facto, há nas nossas asserções contemporâneas, a partir de uma data que se poderia colocar algures, de modo já perceptível, no dealbar do Romantismo ou, com mais precisão e sustentação teórica, na da publicação de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, uma ideia de poesia que se liga à solidão do poeta e à devastação de vozes em torno do seu canto.

    É importante, aqui, relembrar um dos enunciados inaugurais dessa postura. De facto, no segundo poema do livro já citado, “Bénédiction”, lemos:

                             «Lorsque par un décret des puissances suprêmes

                              Le Poëte apparaît en ce monde ennuyé,

                              Sa mère épouvantée et plaine de blasphèmes

                              Crispe  ses poings vers Dieu, qui la prend em pitié :

                              -«Ah ! que n’ai-je mis bas tout un nœud de vipères

                              Plutôt que de nourrir cette dérision !

                              Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères

                              Où mon ventre a conçu mon expiation ! » …

    Notemos, como primeiro registo, que o poema, fechando expressamente, pela maldição materna, o acesso do poeta à fraternidade, elabora, por sobre os séculos, uma confraternização. De algum modo, esta mãe blasfema vitupera o filho, em franco diálogo com a que Villon evoca ainda em plena Idade Média no poema “Ballade que Villon feist a la requeste de as mére pour prier Nostre Dame” de Le Testament.

    De igual modo, ao encerrar o diálogo com o seu hipócrita leitor o poeta coloca na cumplicidade do mal a única via de comunhão, dialogando, aí também, com “Le bal des pendus” do mesmo Villon.

    Mais ainda, o que se tornou central, na separação definitiva que Croce regista em forte e ampla argumentação, entre poesia e literatura, é à maldição irreparável do poeta que se deve, podendo ser atribuída essa diferença ao silêncio que se abre quando a sua voz se eleva. Se Hugo ainda pedia, nas suas reflexões poéticas, ao povo que escutasse o poeta, Baudelaire anuncia, para o seu leitor, fraternidade e cumplicidade numa espécie de crime. Assim, não podemos deixar de evocar, aqui, a versão optimista da separação entre o poeta e o seu público, através de algumas linhas do poema de Hugo, “Fonction du Poète”, do livro Les rayons et les ombres:

                      Pourquoi t’exiler, ô poète,

                      Dans la foule où nous te voyons ?

                      Que sont pour ton âme inquiète

                      Les partis, chaos sans rayons ?

                      Dans leur atmosphère souillée

                      Meurt ta poésie effeuillée…

                       …

                       O rêveur, cherche les retraites,

                       Les abris, les grottes discrètes,

                       Et l’oubli pour trouver l’amour…

                       …

                       Peuples ! écoutez le poète

                       Écoutez le rêveur sacré !

                        …

    Mas tudo isto não surge deste modo, de um momento para o outro, nem mesmo num evoluir de algumas décadas que medeiam entre Hölderlin, Byron, e Hugo, num momento – e Baudelaire, noutro. A partir de um certo período histórico, que hoje quase vemos como unidade temporal, mas que se alongou por cerca de quatro séculos, do desenvolver da relação do sujeito cultural com as entidades transcendentes em novos discursos,  o processo do canto tornou-se central para a definição de um género, vivendo em paridade com a representação pura (a mimesis, segundo Platão e Aristóteles), a representação narrada (a diegesis, segundo os mesmos autores) e apresentando-se como a pura ou simples enunciação em que o dizer se confunde com o fazer (a aplê digesis, ainda de acordo com as autoridades já citadas).

    É claro que este último modo é entendido, mais correctamente, como a narração pura, ou seja, o canto de louvor aos feitos de um deus ou de um herói. No entanto, como casa vazia de uma grelha, desde que narrativa “traduz” o conceito de diegese (ou, dizendo melhora, ambos os conceitos quase coincidem), seja ela com mistura de vozes ou sem mistura, a tónica passa a colocar-se no conceito de enunciação. Resumindo: pela violentação, para a nova proposta teorética dos géneros a narração pura é mais importante pela voz do que pela acção que narra.

    Tudo se passa como se esse canto se alimentasse da sua própria substância formal, exigindo o reconhecimento da sua diferença não na forma de enunciação pelo canto, o que nos remeteria para a propriedade formal da lírica (o que se acompanha com a lira, com o instrumento musical e que se completa com a música), mas porque o canto aspira a ser a marca do outro como sujeito-objecto absoluto, reconhecido pela ausência, a começar pela da voz que apela sobretudo pela apóstrofe dirigida ao Outro, pela qual o hipostasia. Michel Collot sugere-o a partir da análise de um excerto de um texto poético de Aragon: “o Outro nunca esta presente senão através de uma certa ausência” (1989: 98).

    Segundo ele, a “solidão” pode ser o outro nome do amor, porque “o ser amado não nos poderia ser dado de maneira plena e completa” sem apagar o próprio impulso do desejo. Ora, segundo ele, deixando de ser objecto, o outro tornar-se-ia consciência fundida com a do eu, não dando, assim, “origem nem à palavra nem à poesia” (cf. Collot, 1989: 98-99).

    Devo confessar que esta ideia, colocada de modo forte no horizonte fenomenológico do fazer poético, vem ao encontro de uma conjectura que me seduz há muito: a de que o canto existe como um diálogo com as instâncias inacessíveis ou despóticas. Assim, presumo sempre que a tarefa de Orfeu, o cantor por excelência, o define como o que fala com a essência do Outro, seja esse outro o ser amado, seja ele o ser perdido para o nosso mundo, por ser, de algum modo, a transcendência: um morto, um ente extraordinário, um deus.

    Ora, nessa relação pelo canto, porque ao outro não cabe ser representado pelo mesmo, pelo sujeito poético do canto, tudo se passa como se a revelação plena do seu enleio existisse no próprio acto de enunciação e no esplendor que nele geram as palavras.

    Por extensão, é verdade, o universo inerte, os entes não humanos, aqueles que não respondem, nem mesmo pela escuta, acabam por constituir-se parte desse nível de transcendência, porque devolvem o poeta a um silêncio circundante, ou à maldição da solidão. O “eu posso estar aqui perfeitamente pedra”, verso que abre o livro Os sítios sitiados”, de Luísa Neto Jorge, aponta para uma das consequências desse posicionamento: a importância dos universos minerais, cristalinos – enigmáticos no seu estar em pedra, por exemplo, devolvendo ao sujeito da enunciação poética a sua própria imagem por reflexo.

                              “Posso estar aqui

                                eu posso estar aqui perfeitamente pobre

                                um círio me acendi, espora aguda

                                o vento ritmo negro assassinou-o

                                posso estar aqui

    o musgo é lento como a sombra –

    e sei de cor a voz cega das canções

    (viola de silêncio acorda-me)

    que eu posso estar aqui perfeitamente pedra insone

    e um longo segredo pessoal

    bordando a minha solidão

    Também a Micropaisagem, de Carlos de Oliveira,  nos dá inexcedíveis abordagens desse processo em que, aparentemente, a cristalografia da paisagem parece fornecer a estabilidade material ao lugar em que o poeta se enuncia como eu.

                  O céu calcário

                  duma colina oca,

                  donde morosas gotas

                  de água ou pedra

                  hão-de cair

                  daqui a alguns milénios

                  e acordar

                  as ténues flores

                  nas corolas de cal

                  tão próximas de mim

                  que julgo ouvir        

                  filtrado pelo túnel

                  do tempo, da colina,

                  o orvalho num jardim

    É aí que o eu dizer-se se desdobra na voz do poeta e na de O que de algum lado tem de ser dito. Parece-nos ser esse o mecanismo que Michèle Aquian evoca, a partir da psicanálise para falar de poesia: “O adulto – o Outro [aquele que a voz poética transforma em poeta ou poëte, no dizer de Baudelaire] – vai receber esse grito, e dar-lhe-á uma tradução, uma interpretação, inscrita na lógica do seu próprio discurso, e que será a sua resposta” (Aquien,1997: 159).

    O enunciado do que ordena o discurso apenas consegue dar o registo do que foi desde a memória da infância ou do momento fundador inominável. Como diz Saint-John Perse, em Vents: « Je me souviens du haut pays sans nom, illuminé d’horreur et vide de tout sens ». No entanto, ainda poderíamos acrescentar um reparo sobre um outro fenómeno simultâneo e complementar: o respeito pelo que em eco ou resposta sonora se sugere de veneração, por parte daquele que enuncia, pela origem material pré-significante (quase sempre o som, a onomatopeia, o ser coisa que lá está antes de ser sentido, signo ou símbolo) do que vai ser dito, tornado discurso.

    Também sobre esta matéria Carlos de Oliveira seria, ainda, o poeta exemplar, quando lemos, em Turismo, num dos grupos estróficos de “Infância”: “Chamo/ a cada ramo / de árvore / uma asa// E as árvores voam.//Mas tornam-se mais fundas/as raízes da casa,/mais densa/a terra sobre a infância./É o outro lado/da magia”

    Estamos, em tal percurso de argumentação, no cerne do que em Dante me parece fundamental: o conceito de concetto, para traduzir a sententia latina, em “eloquência vulgar”, é definido como “argumento  das composições líricas […], nas quais não se encontra o desenvolvimento das acções, sendo antes o jogo e torção do pensamento o equivalente imitativo da acção” (García Berrio, 1988: 420).

    Deste modo, na tradição do humanismo renascentista estabelece-se, a partir de Dante, o valor de dianoia, para o termo concetto, quando se “faz dele o equivalente, nas obras líricas, breves e sem imatação de acções, da dianoia da tragédia e da epopeia”  (García Bérrio, 1988: 420). Pode admitir-se, então, com Genette, que essa posição, formulada pelo preceptista espanhol, Cascales, no século XVII, se traduz pela breve fórmula: “o lírico (é o soneto que está em causa, em tal argumentação) tem por «fábula» não uma acção, como o épico ou o dramático, mas um pensamento” (1986: 46).

    Antes de regressarmos a Dante, para considerarmos esse momento que entendemos como fundador da lírica no sentido moderno do termo, é preciso observar quanto a anterior afirmação se desenvolve. Dá voltas, percorre espaços em espiral, e regressa a um ponto, sempre, em que a matéria observável é o sujeito e o seu canto. Tudo se passa – para relembrarmos o espantoso mito que parece venerar os poetas como entes supremos, capazes do impossível – como se Orfeu, tendo atravessado o céu e a terra para chegar aos infernos, depois de se manifestar capaz de um feito único, de arrancar o ente amado à morte por feição dos seus hinos, se tivesse distraído com o objecto contemplado, ou tivesse ficado encantado com os próprios enleios.

    Então, se o canto restitui o objecto pelo efeito dos encantos, não será de ficar preso a esse poder que distrai porque ilude a morte e o tempo, parecendo assegurar a eternidade? Não será mais importante o enunciado que dá a vida do que o ente vivo que, uma vez encontrado, deixará de solicitar o canto, se mostrará ser no tempo, perecível, longe de ser eterno – insignificante, mesmo?

    De facto, essa parece ser uma vertente da questão. Genette desenvolve, em torno de Cascales e de Batteux (preceptista que retoma as ideias de Cacales um século mais tarde), a hipótese formalmente mais sedutora: “os sentimentos expressos pelos poetas são, portanto, pelo menos em parte, sentimentos fingidos por arte, e essa parte sobreleva o todo, pois mostra que é possível exprimir sentimentos fictícios, como aliás podia desde sempre a prática do drama ou da epopeia” (Genette, 1986:48)       

    No entanto, a questão que pretendemos colocar, embora parta dessa abertura do problema, passando do sentido ao fingido, propõe-se um outro objectivo, mais violento e mais cândido: o sentimento, deixando de ser acto público da argumentação do autêntico, remete-se para uma interioridade onde busca o eu como entidade, ou seja, como alteridade.

    books on bookshelf

    Julgo que é esse passo gigantesco, de uma lírica que é canto, acto público de um festejo ou de extroversão de um júbilo, palaciano ou da praça pública (qual o mais frequente? – alguma vez o saberemos?), para uma lírica que é só interior, de recantos íntimos e espaços privados, exaltação do ponto de vista pessoal em horizonte despovoados, perante a indiferença ou distância dos outros, que Dante dá na Vita Nuova.

    Penso-o desde o primeiro momento em que li, apressadamente, e não consigo deixar de o imaginar, quando o releio, sempre com dificuldade e perplexidade. Sobretudo surpreende-me que o poeta, reconhecendo-se a si próprio como tal, se inscreva numa fixação textual, inscrevendo o plano do seu poema e a sententia, que o terá de dizer como poema, feito acção da palavra, diante de um auditório que convoca permanentemente, de modo mais ou menos verosímil – ainda que, por vezes, em surpreendentes poses.

    Estará o senhor do enunciado inscrevendo, como cronista, a situação de canto e os ouvidos que o solicitam? Estará, de facto, procurando comover a assistência, amigos e conhecidos, amigos da amada perdida, conhecimentos próprios forjados pela circunstância do laço de amor que o uniu a Beatriz?

    Mas então, qual é o espectáculo desse sentenciar: a imagem do ser perdido, ou a beleza do sentimento que se qualifica pelo canto? De uma coisa estou certo. Sem o aprofundamento dessa representação da representação, é-nos muito difícil perceber como a lírica invadiu o espaço do poético. Como ela se tornou central por não ser uma representação em que a virtuosidade do dizer fazer (poiesis) se esconde, mas, ao contrário, se exibe como dizer.

    E como ela se tornou o objecto central do confronto problemático que a literatura mantém entre o que nela é a essência distintiva (a literariedade seria a poeticidade, assim) e o que nela é discursividade, a própria essência do debate. Ou, então, dito de outro modo, o confronto entre o ponto supremo em que ela se sublima como texto, estrutura fechada, e o lado pulsional que a fundamente, tornando-a – porque passa a utilizar um novo espaço institucional, o do texto – a inevitabilidade da palavra convocar o outro: o fundamento da própria palavra.

    E, de facto, é sempre de uma sublimação que se trata, muito embora, por vezes, a matéria dessa sublimidade seja a precipitação, mesmo a escatológica. A poesia, o canto poético é, de algum modo, a permanente verificação das catástrofes, a perda do silêncio e da imobilidade, o pânico de verificar que somos arrastados, que o abismo nos espera. Atesta-se isso no modelo enunciativo, nos conteúdos em que a paixão, dos sentidos e/ou dos sentimentos impera, no ritmo, seja ele versificatório, frásico ou semântico.

    Assim, se vão acumulando as figuras a vários níveis do texto, em determináveis planos do discurso: rupturas, oximoros, demarcações entre o sujeito da enunciação e aquilo ou aquele que lhe é o outro – que por ele é interpelado, vociferado, abençoado ou maldito. 

     Assim, o que me parece ter-se processado, ao longo dos séculos que medeiam entre Dante e Luísa Neto Jorge (para citar apenas, através da mais jovem, um nome dos nosso dias – ainda que ela tenha morrido muito prematuramente), não é tanto um aprofundar da diferença entre o sistema discursivo da lírica do fim da Idade Média e do princípio da Renascença na Europa e o que hoje nos é evidente.

    O que parece ter acontecido, de facto, é a valorização dos termos da individualidade pessoal e subjectiva, projectando os qualificativos da entidade civil do cidadão sobre o discurso poético produzido pelo sujeito problemático.

    O efeito é perverso, do nosso ponto de vista. Porque, se o poeta foi o cultor, desde sempre, desse reduto do pessoal e íntimo identificável no ritmo assumido como próprio e nos recessos do mistério que cada imaginário cultiva como seus (os sonhos, as suas sementes e os seus frutos – o modo como cada um é cantor da canção que é comum ao colectivo), ele foi-o sempre de modo dialógico: aberto para a comunidade dos seus antepassados, aberto para o público ao qual dirigia o seu canto. E inscreveu sempre, na tribo, a origem do canto, a origem primeira. Porque, com Villon, no seu testamento e com Dante, no seu relato de renascimento, de acesso à nova vida, os destinatários são obsessivos presentes, outros imprescindíveis como terceira pessoa, a que assegura a vida do discurso.

    person typing using typewriter

    O que a sociedade civil burguesa criou, com os seus códigos triunfantes, foi a propriedade equívoca do eu, o canto como próprio, de tal modo apropriado que pode obter uma forma intransmissível: a do monólogo absoluto. Se isso é simples, para a definição do copyright, já não é tão simples para a função do poeta e para o sentido do exercício da sua mestria.

    Se ele gera o eu como mistério ao defrontar-se com o mistério do Outro, postulando-o como entidade necessariamente ausente para ser assunto do canto, a proposta do seu mistério, como paixão, sofrimento ou maldição só tem sentido na relação explícita do autor, o senhor da voz poética, com os terceiros os Outros, os que o julgam. Assim, não me parece que a voz narrativa de Vita Nuova seja muito diferente das vozes críticas de Pessoa e dos seus heterónimos, quando se pronunciam uns em relação aos outros.

    O que eles criam, no fundo, é a textualização de uma sociedade que convive, enquanto discurso, com o discurso do poeta. Dante fá-lo porque perdeu, e tem a consciência disso, a praça pública, espaço natural dos poetas anteriores, seus parentes próximos. Pessoa fá-lo porque procura, na senda de Baudelaire, de Mallarmé, de Withman, o hipócrita leitor, seu semelhante, seu irmão, ou então os traços da tribo perdida, ou mesmo as sendas por onde passaram os povos da nação. E é nessa textualização, julgo, que ma parece fundar-se a poesia como essência do literário, interior no qual a voz se dá como origem do sujeito. A relativa ilegibilidade que a poesia pratica, pelo menos desde o simbolismo, parece ter pelos menos duas vertentes: uma que retoma da magia e das comunidades secretas, codificando, com a língua de todos, uma segunda língua para ser apreendida como língua mas dificilmente interpretável pelos não-iniciados; a outra em que o sujeito se funda exactamente na descoberta do lado obscuro, cifrado para uma dimensão de si próprio.

    Resta dizer que, quanto a esta dualidade do sujeito, o dizer-se passa pelo colocar-se como mistério. Já não se trata apenas de instituir o outro como necessária ausência, mas também, por inevitável lógica da vivência interior, restaurar no sujeito a duplicidade. A imagem fundamental dessa construção é a anamnese, evidentemente. Ela vai, desde a evocação da amada perdida até ao canto da consciência da própria perda.

    A figura que poderia representar a anamnese e o que ela representa, na tradição poética, é, sem dúvida, a do ubi sunt, que se canta, desde Villon, nas línguas neo-latinas. Contudo, sempre se percebeu, na construção do lírico-poético, que essa é apenas uma figura da evidência, por detrás da qual se perfila a sombra do mistério. Ela poderia formulada de vários modos: quem fala, quem sonha, qual é a origem do canto e das imagens que nos assaltam e não sabemos de onde vêm?

    brown dragon on brown wooden cross

    Freud propôs um termo latino para designar algo parecido, na psicanálise: Id. Julgo que seria abusivo adoptá-lo plenamente para o questionamento do literário. Seria propor um conceito definitivo para um problema que existe, com sede própria no poético, antes da psicanálise inventar o seu campo específico. É certo que esta reconhece, pela expressão do seu fundador, as dívidas para com os poetas.

    Mas não estou certo de que, ainda assim, o conceito nos sirva, que seja nosso por invenção poética, como o é o “onde estão”, para convocar a memória, os seres e os objectos perdidos, o traço que evoca, para lá do esquecimento. Paradoxo que se poderia entender, talvez na terrível imagem de Herberto Helder, num dos momentos da sua Vocação Animal, “As festas do crime”, construída muito à maneira lautreamontiana, mas devorada e digerida pela voracidade poética do poeta português:

           “Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.

            Gosto do deserto.

            Levei tábuas e pregos.

            Ferramentas, as belas ferramentas dos homens.

            Levei água, víveres, sementes.

             …

            Não era trigo, nem cravos, nem sementes de cores, das cores que amamos como uma dor no corpo.

            Eram sementes de cabeças de crianças”

             … 

    Herberto Helder

    E o certo que nos parece emergir, de leituras e confrontos, não é tanto a de que essa questão da origem tenha de possuir um “quem” como nas narrativas de mistério, ou uma causa, como nos mitos que nos respondem aos “porquês”. Poderia, talvez, ser a figura do esquecimento, a amnésia. E não será essa a fundação da vida nova, a que se ergue sobre as ruínas de uma relação perdida no espaço da cidade onde ficaram as marcas da ausência – o mistério órfico de suster o desaparecimento por palavras que apenas aludem, representam ou evocam.

    E seria ainda Carlos de Oliveira, o mais dantesco dos poetas modernos a dizê-lo, no poema final da Micropaisagem: “Assim/se cumpre/ o eclipse/ gradual/sobre o centímetro/quadrado que/ os líquenes/ cobrem/na memória, /assim/a luz e a neve/se ocultam/pouco a pouco, assim/se esquece”

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Aquien, Michèle, 1997, L´autre versant du langage, Corti, Paris

    Collot, Michel, 1989, La poésie moderne et la structure d´horizon, PUF, Paris

    García Berrio, Antonio, 1988, Introducción a la poética clasicista, Taurus, Madrid

    Genette, Gérard, 1986, Introdução ao arquitexto,  Vega, Lisboa

  • Herberto Helder

    Herberto Helder


    Sem pretendermos fazer qualquer aproximação específica, que seria abusiva para lá de toda a semelhança que existe entre todas as manifestações singulares, na difusa categorização genológica de arte, ocorre-nos, na leitura deste longo poema de Herberto Helder, a lapidar conclusão que Blanchot apresenta de uma leitura de um fragmento de Kafka:

    Não se pode escrever senão quando estamos senhores de nós próprios diante da morte e apenas quando estabelecermos com ela relações de soberania. Se, diante dela, perdemos a continência, não a podemos conter, então ela tira-nos as palavras da caneta, corta-nos a palavra; o escritor não escreve mais, grita, um grito confuso que ninguém percebe e que não emociona ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Porquê a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela dispõe de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é o domínio do momento supremo, supremo domínio” (L’éspace Littéraire. Idées. Gallimar, p. 107).

    Não nos parece nada descabido aproximar o conceito de ciência última do  de supremo domínio, propondo uma visão global, de um poeta dificilmente cernível no conjunto da sua obra. E isto  a propósito do livro que aponta, exactamente, para um entendimento encerrado, Última  ciência, embora, ironicamente, negando qualquer desfecho.  Não cremos sequer que seja necessário determinar a autoridade nietzschiana para encontrar, na busca do saber, o poder, o qual seria o campo de valências onde a indeterminação, eventualmente, nasceria, já que sobre a aproximação de última e extremo ou supremo parece não haver dúvidas.

    É o próprio texto, porém, que liminarmente e lapidarmente no-lo diz, se os símbolos e a topografia do corpo não mentem, ou não são vazios incipit.  “Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte”. Não nos parece que estejamos aqui muito longe de  uma sabedoria de ocultas dimensões, antecâmara de um encontro nupcial com a sageza dos ocultos domínios. Duas personagens enchem permanentemente a cena da visão do saber que o livro patenteia: o eu da enunciação e a criança de múltiplos poderes que parece constituir a figura actancial privilegiada de relação com o cosmo e muito primordialmente com a origem matricial: a mãe, a placenta, a madeira, os minerais e os próprios astros e as suas propriedades.

    Não é possível aludir a esta poesia carregada de simbologias altamente codificadas e de
    metáforas profundamente inaugurais, ordenadas em sistemas de uma sumptuosidade que já
    foi notada, por exemplo, por Gastão Cruz, numa pequena nota publicada em Phala n.” 11, sem fazer referência ao discurso alquímico, subjacente que parece ser o manancial imaginário forte, a carne e o plasma do texto de Helder.

    Última ciência foi publicado em 1988.

    Contudo, embora a profusão de rosas, e outras corolas matriciais, de pedras rutilantes, de metais preciosos, de leões de pedra, leopardos, formações cristalográficas e estátuas, de calcinações em dinâmicas figuras, e de outros elementos significativos, seja bastante grande para poder ser ignorada, ou minimizada, como lista ocasional ou frágeis ressonâncias semânticas e se apresente, antes, como paradigma amplamente declinado em ressonâncias poderosa no corpo do poema, é preciso fazer um reparo fundamental no caso presente: nunca o corpus simbólico pré-existente condiciona o processo do poema, nunca a produção verbal de Herberto Helder fica condicionada pelos elementos de sacralidade com que se confronta.         

    Diríamos quase (e, para isso, relendo algumas das versões de As magias,arte poética última insistentemente republicada com acrescentos) que a ciência da máquina-lírica,  oráculo que, electrónico ou flogístico, parece ter sempre iluminado, com a sua sombra, a poéticado autor, se apurou no horizonte com a alquimia onde o verbo encontrou a negação de um discurso dialógico. O Iniji emerge (ciência primeira) com um romper de “um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundíssemos com os torrões e calhaus.

    Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança” (As Magias, p. 11). No horizonte do sujeito poético emerge essa imensidão de uma sabedoria imemorial, uma língua que “não era de sedução para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras (…) Existiam ao mesmo tempo que a vida não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, um movimento” (As Magias, pp 11-12). Sem afirmar aqui a metafísica implícita do autor, mas procurando antes vislumbrar o sistema de trabalho do seu “forno”, da sua “retorta”, dos seus “fluidos”, parece-nos de considerar que para Herberto Helder a gramática do saber original se postula como horizonte, como matriz no cosmo, origem do discurso poético, ainda que o forjar deste, preso embora à sacralidade e ao deslumbramento, nunca seja seu servo ou submisso repetidor.

    Atrever-nos-íamos mesmo a afirmar que (perdoe-se-nos o sacrilégio), tal como os grandes poetas místicos de outrora, cátaros ou cristãos de outras doxas mais ou menos tuteladas, Herberto Helder se serve, notoriamente em Última ciência, do discurso sagrado dos símbolos de acesso à obra de transfiguração para com eles dar inicio à sua obra própria.

    Toda a ordem litúrgica, toda a simbologia verbal de frase feita de fórmula lapidar é aqui submetida a uma segunda ordem de transformação perturbadora, reformuladora dos elementos essenciais de forma a atingir-se um novo plano de reelaboração do cosmo. E pensamos mesmo que, se em relação a ele tem todo o sentido falar do orfismo, isso deve-se, em grande parte a essa sua capacidade de transformar todo o canto, em canto próprio: verbo ritmo, ressonância cósmica.

    Se Iniji é o saber antigo, original, matricial de onde emanam os sentidos da palavra assumida no puro evanescimento do seu valor próprio, a arte poética, dimensão rutilante da poesia, é esse diálogo com as sombras e com a luz a partir dos dados interiores da sua fundação, do seu mistério, aí, onde ela é magia. E magia não é um antes da palavra, um vazio, um branco, uma ausência, um nada. Ela só é possível quando se sabe e se assume que a transfiguração é a das palavras e que no ofício divino, na mestria do universo, quer o diálogo seja com as sombras quer com a luz ou com os deuses “cada imagem é a cicatriz de outra imagem” e que “a mão experimental se transforma ao serviço escrito das vozes”.

    pen on white lined paper selective focus photography

    Numa obra que nunca se recusou a qualquer das experiências dos limites (e sempre, da abjecção à alquimia, o grande limite é o de “uma vida selada”), este texto de Herberto Helder aparece-nos como mais um curioso culminar. Para um poeta que já se silenciou tantas vezes, não sabemos nunca como olhar através dos seus escritos que se querem últimos. É ainda em Ultima ciência que lemos o oráculo do discurso da morte que, aí, cicatriz de uma imagem de fim, nos afirma “inocente … Arte de redacção: ver isto, ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro” (p. 43). Voltará depois da morte conhecida e dominada?

    Segundo Eco, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários magnifica-se, ao que parece, na poética de Herberto Helder, onde todo o sistema poético assenta na assunção de que a continuidade está sujeita a rupturas que, se não forem tratadas como transformações – ou transfigurações, ou devorações, ou desapossamentos – redundam no desaparecimento, no esquecimento ou na morte.

    yellow and brown leaves on white ceramic tiles

    A constante reaparição da sua obra depois dos finais anunciados da escrita, apontam, de algum modo, para uma estética do estertor, em que a obra é uma efémera evanescência e a vida um continuo entrecortado de cortes, de amputações e de outras formas incisivas das variantes da ruptura na busca de uma metamorfose final.

    Vemos, na preocupação constante que o poeta ostenta de encerrar a obra e de a eternizar como Livro, sempre seguida da exaltação do livro reeditado sob transformação (Ofício Cantante….Poesia Toda) – numa espécie de frenesim onomástico ou veneração do batismo como ritual propiciador do renascimento transfigurador, arrastando esse movimento, os actos mutação, reformulação, jogo de variantes, tendentes a assegurar a continuidade sob a forma mutações – uma atitude de regulação vital da poesia, ou da poesia como vitalidade.

    Toda essa actividade de escrever para ser ou de existir como escrita força certos posicionamentos fundamentais ao poeta. Julgo que podemos destacar dois: a apropriação dos acervos e modelos poéticos como matrizes a serem transformadas (com a variante forte da publicação da “antologia”, ou das “traduções”, dos mananciais da poesia exótica ou enigmática, normalmente de origem popular e anónima); e a preparação da obra própria enquanto espólio labiríntico, eivado de “artes poéticas” de tons órficos e elaboradas conceptualizações heraclitianas.

     É claro que, para a percepção de um leitor ou poeta, ou qualquer entidade colocada na convergência dessas duas funções, o assumir desses dispositivos de produção poética se encaminha para um jogo de dimensões demonológicas. O tocar numa obra por qualquer entidade introduzindo-lhe transformações por constituir uma adaptação, uma outra obra inspirada na primeira, dá origem àquilo a que Herberto Helder chama “obra maléfica” (Photomaton e Vox, p. 21) – qualquer coisa como uma “opus nigrum”[1]. O que nos deixa perante uma revelação que nem sempre se patenteia a quem se deixa envolver pelo poderoso discurso poético de Herberto Helder.

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Esta percepção é transmitida pela seguinte afirmação de Frias Martins: “a poesia é levada pela assunção do amor pelo caminho de tudo aquilo que diante dos olhos (da luz) se encontra e cuja mensagem se destina derradeiramente ao coração” (1983: 33). Não obstante a correcção desta observação, temos de reconhecer que ela se manterá sempre incompleta, quando atendemos ao conjunto da obra de H.H. em todas as suas dimensões. E isto porque uma boa parte da sua obra parece obedecer mais aos apelos do demoníaco, e de um erotismo ordenado por Thanatos. Não será essa uma das figurações de Orfeu? O que resta de amor, depois da ida às regiões da morte.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Martins, Manuel Frias, 1983, Herberto Helder, Um Silêncio de Bronze, Horizonte, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa


    [1] “Opus Nigrum”, é uma velha fórmula alquímica que significava a fase de separação e dissolução da matéria, mas para pior.

  • José Rodrigues Miguéis

    José Rodrigues Miguéis


    Como alguns outros grandes nomes da nossa literatura, nascidos entre finais do século XIX e os primeiros anos do século passado, José Rodrigues Miguéis (1901-1980) é, muitas vezes, esquecido, nos panoramas histórico-culturais que trabalham, quase sempre, numa busca de método e compreensão, por agrupamentos periodológicos, ou mal entendido (ou mesmo mal-lido, no sentido bloomiano do termo), na sua postura ideológica e crítica, segundo inserções e valorizações apologéticas que o lêem numa singularidade mitificante de excepcionalidade exemplar.

    Quanto a esses aspectos, podemos dizer que emparelha, quase completamente, com dois dos vultos mais importantes da nossa literatura, seus contemporâneos: Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro. O que os poderá unir, no sentido positivo, é um encontro nem sempre harmonioso, em torno da Seara Nova e, em sentido negativo, a tendência para se manterem esquivos a grupos e movimentos.

    José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

    Com eles emparceiram também, por esta última razão, outros nomes contemporâneos, como José Gomes Ferreira e Irene Lisboa, que gravitam, desenquadradamente, em torno de enquadramentos que marcaram a época – sobretudo o segundo modernismo, o da Presença, e o neo-realismo, mas também o naturalismo, o primeiro modernismo e mesmo o surrealismo.

    Na sexta edição da História da Literatura Portuguesa de que é co-autor, juntamente com António José Saraiva, Óscar Lopes considera Miguéis o “ficcionista mais importante daquilo que designamos por realismo ético” (s/d [196-], 1058).

    Caracterizando e historiando esse tipo de realismo, diz o autor, no mesmo texto, que os autores que inclui nesse grupo deveriam, por nascimento, “aproximar-se da geração presencista […]; mas devido a condições óbvias que os isolaram ou inibiram no decénio de 30, a sua obra mais significativa coincide com o advento do neo-realismo e está condicionada, se não directamente por ele, quando menos pelos factores históricos que lhe(s) são comuns” (s/d: 1057).

    Primeira obra de Miguéis, publicada em 1932.

    Esta oscilação de pendores, entre um esteticismo modernista e uma moral de intervenção social, tê-los-á levado a uma busca de unidade “entre certos valores estéticos e certos valores éticos”, atreves de uma prática literária que Óscar Lopes designa por “realismo ético”, o qual se demarca de um “certo introspectivismo, certo metafisicismo grandiloquente alternativos em Presença”, por um lado “e, por outro lado,” do “neo-realismo, que encara as relações humanas como obedecendo a leis objectivas, consistindo a superação humana em delas se aperceber e tirar partido”, para se constituir como “um realismo social, em que o indivíduo figura, não como inatamente singular, nem como um modo transitório do Adão universal, mas como uma singularidade circunstancial e evolutiva” manifestando-se pela “afirmação de uma lei moral subjectiva e oposta à lei objectivamente histórico-sociológica” (pp. 1057-1058).

    Repare-se que este é um texto escrito numa época em que era difícil falar de “certas coisas” em Portugal. Não era muito viável um professor de liceu de então, que Óscar Lopes era, elaborar explicações muito extensas e completas sobre o que era o neo-realismo, como é que se poderia colocar no quadro da cultura e do conhecimento, do ponto de vista ideológico, aquilo a que ele chamava o “realismo ético”, pois teria de se evocar um paradigma marxista, para lhe poder contrapor um kantismo ou um neokantismo, assim como explicar mais miudamente de que modo é que modernismo era psicologista e metafísico em oposição a perspectivas sobre o homem mais atentas às constantes materiais, e, em suma, os paradigmas lukacsianos do “modernismo” e do “realismo crítico” se opunham ou se articulavam com o de “realismo socialista”.

    Assim, o ensombramento de alguma dúvida quanto à dimensão axiológica recai sobre as suas primeiras novelas, Páscoa Feliz de 1932, e Saudades para Dona Genciana de 1957 (depois recolhido em Léah – 1958), produção que, no entender de Óscar Lopes, “pode lisonjear o culto, então literariamente em moda, do acto gratuito dostoievskiano, numa apetência de crime-e-remorso que por fim aliena o protagonista de uma verdadeira responsabilidade” (p.1059).

    De facto, tal apreciação parece aplicar-se perfeitamente a uma personagem como o narrador de Saudades…, quando reflecte:

    “[…] a vida nada me oferecia além do Protesto. À falta de melhor enveredei resolutamente pelos meandros da Acracia. (O termo soava-me melhor do que Anarquismo.) Destituído de qualquer esperança de destino pessoal, sonhava pulverizar o nada em que vivia. […] Li com fervor Hamon, Jean Grave,  Kropotkine e Bakunine […]. Mas aborrecia os utopistas, os socialistas, os comunistas, todos os que pretendiam reorganizar a sociedade em bases novas […]. Sonhava sobretudo com o amor livre: uma revolução que desse a cada homem o direito de possuir a fêmea que lhe apetecesse e quando lhe apetecesse” (1968: 215-216).

    É nesse quadro que Uma aventura Inquietante, por exemplo, é considerado, muitas vezes, um romance que aproveita algumas das regras da narrativa policial para, quase a jeito de paródia, propor um novo horizonte ético, instaurando uma viragem no sistema de valores convocado segundo o qual toda a acção humana é julgada e responsabilizada face à realidade histórica, mesmo quando a referência subjacente é disfarçada ou surge sob evocações quase alegóricas.

    Cena do filme Saudades para Dona Genciana, adaptação do romance de Miguéis, realizado por Eduardo Geada e protagonizado por Virgilio Castelo e Rita Ribeiro.

    É desse modo, por exemplo, que muitas realidades belgas, no romance acima citado, lembram as portuguesas, ou o milagre da aparição virgem mãe de Cristo aos pastorinhos se realiza numa povoação chamada Meca, de um país que tem como capital Lisboa, mas onde os indivíduos que se movimentam para o “28 de Maio” e “fundam” o Estado Novo levam nomes enigmáticos ou são designados por iniciais, sobre as quais os exegetas se pronunciam interminavelmente, em O Milagre segundo Salomé.

    Numa edição posterior da obra já acima referida, Óscar Lopes reformula de modo curioso o horizonte crítico da recepção literária de Miguéis. Em boa parte, a reformulação deve-se ao desaparecimento da vigilância impendente sobre a dimensão ideológica e a referência política de todos os discursos, incluindo os culturais.

    Tendo acabado a censura, é possível apresentar o quadro da emergência e evolução do autor de Léah tendo em conta as coordenadas político sociais com as quais o seu discurso se articula, a partir do sindicalismo amplo de um órgão de comunicação social como A Batalha, em que pontificam vultos como Vitorino Nemésio e José Régio, e uma publicação eivada da mais ousada vontade de vanguardismo ideológico como a Seara Nova.

    Uma aventura inquietante, romance publicado em 1958.

    Não só é registada, agora, a sua crítica aos seareiros, pela “falta de conexão com qualquer movimento organizado de massas” que eles revelam, como é assinalado positivamente o seu afastamento, em 1931, “dos presencistas, com que também polemizou numa linha precursora do neo-realismo” e louvado o seu empenho social na “organização democrática de trabalhadores emigrados” nos EUA (cf. Saraiva e O.Lopes, 1996: 1027).

    Ao reavaliar, oportunamente, a sua obra, tendo em conta as publicações mais tardias, Óscar Lopes, nesta última edição da História de que foi co-autor (exclusivo responsável pela época em que se insere Miguéis, como nos informa a nota da página do registo do ISBN, patente na 17ª edição), considera O Milagre Segundo Salomé “uma simples sátira, à clef, das condições do colapso da 1ª República”, minimizando-o, quanto à preocupação ideológica e social por comparação com as suas restantes obras posteriores a Saudades para Dona Genciana.

    Ora, esta avaliação, do ponto de vista da história literária, não é consonante com a fortuna que algumas obras do autor de Páscoa Feliz conheceram recentemente. Efectivamente, pelo que se pode verificar nos comentários que em diversos sítios da rede aparecem sobre o autor e a sua obra, o interesse maior tem recaído, sobretudo, em O Milagre Segundo Salomé e, logo a seguir, em Saudades para Dona Genciana.

    Pelo que se percebe dos próprios comentários, essa fortuna recente deve-se, essencialmente, às adaptações que Mário Barroso e Eduardo Geada fizeram, respectivamente, das duas obras acima citadas. Diga-se, desde já, que o primeiro título, que podemos considerar a derradeira obra publicada pelo autor (há outras, mas são póstumas), tem sido o que maiores atenções têm merecido, dos leitores e espectadores que praticam crítica e análise dessas práticas expressivas ou artísticas, da parte dos quais têm surgido mesmo abordagens que equacionam a relação entre o literário e o cinematográfico bem como a proporia questão da adaptação.

    Para arrumar com algum simplismo uma questão que, a ser tratada, teria de ser desenvolvida, especificamente, noutro discurso, seguindo outro fio de interesses e atenções, pode dizer-se que a adaptação de Geada mereceu menos atenção (e, até, acolhimento) em grande parte porque os tempos eram outros, o olhar sobre o relacionamento interartístico era menos informado e, por isso, menos tolerante, razão pela qual o filme, ao qual não falta alguma grandeza e dignidade pela perturbação artística que convoca, acabou por ir sendo esquecido e, de algum modo, eclipsando o texto literário do qual pretendeu ser, entre outras coisas, uma leitura e uma resposta na continuidade cultural.

    Sobre a fortuna cultural que o cinema veio trazer ao último romance publicado por Miguéis, pode servir-nos de exemplo o resumo que Edimara Lisboa Aguiar faz para o trabalho que realizou sobre a adaptação feita por Mário Barroso:     

    O milagre segundo Salomé, publicado em 1975, foi adaptado ao cinema por Mário Barroso, tendo como protagonistas Ana Barroso e Nicolau Breyner.

     “O presente trabalho propõe a leitura da história a partir da literatura relida pelo cinema como questão relevante para se compreender o fascínio do espectador contemporâneo pelos filmes de época. Para isso, analisaremos a ficcionalização das aparições em Fátima por José Rodrigues Miguéis em seu romance O Milagre Segundo Salomée sua reordenação pela adaptação cinematográfica realizada por Mário Barroso” (2010: 305).

    Não só o romance é lembrado a partir do filme, que se apresenta como adaptação, como se entende a prática de adaptação como leitura, prática de crítica e comentário que, duas décadas antes, não era tão comum. O que, nas observações de alguns críticos do filme de Geada, eram reservas ao modo como a obra cinematográfica perdia o texto literário, as suas referências e a sua atmosfera, transforma-se, anos mais tarde, nas apreciações de como as diferenças são culturalmente significativas, pedindo-se ao filme que seja apenas a expressão conforme das suas possibilidades e das suas vontades de compreensão, independentemente da qualidade ser ou não reconhecida à obra actualizadora.

    É o que podemos verificar, por exemplo, nas afirmações de Diana Marlene Soares do Couto, feitas na sua dissertação de mestrado, apresentada à Universidade de Aveiro em 2009, sob o título O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros entre Miguéis e Barroso:

    “Consideramos que o filme foi uma interpretação livre do romance – Mário Barroso di-lo explicitamente –. Quantas vezes, na análise do filme, não demos por nós a pensar que “esta não é a Salomé”, ou “esta atitude nunca poderia ser tomada por Gabriel”… Isto apenas significa que, como já tivemos oportunidade de referir, o romance nos envolveu mais, nos conquistou, nos despertou a imaginação, nos fez viajar, pela estrutura, pelas linhas, pelas palavras… vivemos revoltas militares e políticas, apaixonámo-nos pelas personagens, pelos espaços, pelos meios envolventes, pela intriga, pela acção… fomos cativados pela eloquência, pelo estilo, pelo pormenor, pelo sarcasmo, pela ironia de José Rodrigues Miguéis. /O filme, apesar de ter sido uma interpretação livre de Mário Barroso, permite que coloquemos rostos às personagens e houve casos em que isso foi feito com sucesso.

    Com efeito, actores como Nicolau Breyner, Paulo Pires, Ana Bandeira, Ricardo Pereira vieram enaltecer José Rodrigues Miguéis e a sua obra O Milagre Segundo Salomé. Mário Barroso diz-nos que não sabe por que enveredou por esse desenlace, que não consegue encontrar nenhuma explicação, queremos crer que a razão não tem importância, que basta ter gostado do livro e ter resolvido fazer reviver uma obra que permanecia esquecida, que pouca gente conhecia. Ler o livro e ver o filme, um cruzamento com um só objectivo: O Milagre Segundo Salomé”(2009: 174).

    Não será possível encontrar todos os motivos que terão levado Carlos Saboga, argumentista do filme, a estruturar o seu argumento ou guião literário[1], muito provavelmente em estrita colaboração com Mário Barroso, da forma que o fez. Restará saber se, do filme, existe um registo equivalente ao que, na nota anterior, designámos por guião cinematográfico, segundo a terminologia proposta pelos mestres de tal matéria. 

    Idealizado na década de 30, Miguéis apenas viria a concluir este romance, em dois volumes, na década de 70 do século XX:

    Que o realizador toma as suas liberdades em relação ao argumento, não há dúvida. Os primeiros planos do filme, que assumimos como sendo uma sequência pré-diegética, integrável ainda no discurso do genérico, colam-se à sequência proposta pelo pré-texto verbal, formando uma espécie de prolepse em relação ao incipit do argumento literário. Procurando evitar a distorção interpretativa por unilateralidade subjectivizante, preferimos apresentar a sequência segundo as palavras que Diana Couto usa na sua tese:

     “Logo depois do título, um plano de conjunto relâmpago, em plongée, de três pastorinhos num terreno ermo, em estado de veneração, de joelhos a benzerem-se e a olharem para cima. Associamos logo estas três personagens, um rapaz e duas raparigas, aos três pastorinhos de Fátima. O efeito é esmagador: imaginamos logo que quem está no plano superior é a Nossa Senhora. Ora, eis que nos aparece logo, de facto, em contre-plongée, uma figura feminina vestida de uma capa azul claro, cobrindo-lhe também a cabeça, que, por estar contra o sol, se torna quase imperceptível, não sendo, pois, possível delinear-lhe os traços do rosto. O Milagre aparece logo na abertura do filme, como se, em forma de preâmbulo, pretendesse dar já uma informação ao espectador, como se quisesse que esta imagem da Aparição não saísse mais da sua memória” (2009: 119).

    Só depois aparece o “agora” – “Lisboa, por volta de 1917” – anunciado nas primeiras linhas do argumento literário, embora o sistema audiovisual permita acrescentar o repicar do sino ao texto que não o assinala. “A procissão de Santa Maria Madalena pela paz e pela redenção das meretrizes” (Saboga, s/d: 2) é o que surge, no filme, como sinédoque, num rosto de mulher velada, num primeiro plano/enquadramento (P1) como primeiro plano da sequência (P2) que depois de desvela, em planos na linha de profundidade (P3) nos planos sequenciais posteriores[2], aparecendo, como imagem estatuária, em tamanho natural, enquadrada no conjunto de devotos, fiéis e acompanhantes.

    É claro que este começo, em que uma prolepse anuncia, quase em genérico, o acontecimento que será a grande peripécia a partir da qual a acção dramática se intensifica, arrasta consequências para a dimensão temática do filme: propõe a questão religiosa, toda a dimensão cultural, ideológica e simbólica que o milagre arrasta, para o centro dominante da acção posta em cena.

    Assim, o actuar das personagens, quer na dimensão pública do campo, da rua, do salão e doutros espaços de convívio, quer na privada, dos actos íntimos e das paixões, aparece francamente sobredeterminada pela dimensão da crença ou mesmo do arrebatamento fanático. É verdade que o título da obra, que o filme importa integralmente do livro, quase o único acto em que lhe é integralmente “fiel”, pressupunha uma tematização em que a dimensão da religiosidade se poderia entender como dominante.

    A posição retórica do título pressupõe esse predomínio macroestrutural, de facto, mas o romance de Miguéis, de algum modo, joga com o efeito resultante dessa pressuposição em oposição aos elementos da narrativa que, tendo nela uma presença semântica e ideológica muito poderosa, manifestam uma apenas uma fraca relação com o sagrado ou uma vaga dependência da crença.

    Léah integra um conjunto de contos e novelas, publicado em 1958.

    De facto, é bastante curioso que, de um modo geral, as personagens do romance de Miguéis, incluindo a própria protagonista, crismada (para não dizer “carismada”) Salomé, muito profanamente (para não dizer sacrilegamente), nunca, ou quase nunca, (Salomé tem alguns rebates de religiosidade, depois do incidente traumático que a transformou em origem do milagre, sem que disso se apercebesse), se manifestam crentes ou preocupados com o sagrado. É claro que o filme, ao dramatizar apenas uma parte da acção que o romance narra, para obter maior coesão e concentração da acção, tem de propor a sua “leitura” dessa dimensão ideológica da temática presente na narrativa literária.

    Por isso, a dimensão ritual da religião, destacada logo nas primeiras imagens, emerge como demonstração de que a crença existe muito mais pela exteriorização histriónica do que pela adesão profunda das personagens.

    No plano da organização da narrativa como sequencialidade de acções encadeadas, o filme respeita, em geral, a ordem cronológica da apresentação dos factos, em sucessividade, pela instância narradora. É claro que alguns aspectos iterativos do romance, que Miguéis apresenta como ocorrências da vivência de rotina do casal Zambujeira/Salomé, quer em privado quer em público,  nomeadamente nos convívios de que são anfitriões, de onde resulta uma das mais sumptuosas e mais bem sucedidas sequências do filme, bastante longa, contendo, ela própria várias cenas ou sequências menores, em que se apresenta uma amostra da melhor sociedade, numa recepção que Cerqueira (Zambujeira, no romance) dá, em grande parte para apresentar Salomé, sua amante inteiramente assumida.

    Concentrada a acção num reduto temporal muito menos amplo do que o que se patenteia no romance, o filme refaz a ordem segundo a qual alguns acontecimentos se desenrolam, a relação de Zambujeira com Salomé acaba por ficar menos desenvolvida, coexistindo as aproximações entre Gabriel e Salomé com a continuação da relação que a protagonista mantinha com Cerqueira, o que no romance não acontece.

    O enredo dramático adensa-se, deste modo, na obra cinematográfica, de tal modo que aí se inverte o “final feliz” presente no romance, onde se anuncia quase a idílica união interminável de Gabriel e Salomé. De facto, o desenlace em que o tenente Braz (Azaredo, no romance) abate Salomé, Gabriel e o casal amigo que se encontrava em casa dele, vem alterar completamente o tom da construção da intriga, eliminando a dimensão optimista da comédia popular (que tende a premiar uma aprendizagem positiva da vida) e introduzindo o discurso disfórico pela nota trágica a culminar o enredo melodramático.

    Assim, podemos dizer que o filme realiza duas operações macroestruturais, para introduzir o ritmo narrativo na sua dramaticidade e actualizar a avaliação ideológica na sua dimensão temática: a transformação do final feliz em patética pirueta trágica que os pregões finais dos ardinas sobre as aparições vêm reforçar; e a redução da temporalidade do romance, expandida desde a meninice de Zambujeira até à sua provecta idade, a um presente dramático em que ele, já sexagenário, (com o nome de Cerqueira), actua como amante da mulher que nunca conhecera como Dores e apenas reconhece como rameira que sobressai na “profissão” pela sua imensa beleza e uma “aura” de quase santidade.

    De algum modo, o guionista e o realizador optaram por retirar ao romance aquela dimensão que Cláudia Sousa Dias, num dos textos mais extensos e atentos que, recentemente, foram dedicados a esta obra de Miguéis, caracteriza do seguinte modo:

    “Na primeira parte, intitulada A Queda Ascensional, os Retrospectos descrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.
     Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

    Assumem assim, os cineastas, a sua opção de actualizar o discurso narrativo retirando-lhe, na dimensão retórica, a ganga directamente argumentativa e, na poética, o pendor romanesco para ser biografia (acompanhando o evoluir da personagem ao longo da vida, como Dickens faz com o seu David Copperfield, por exemplo, instituindo o modelo, ainda que em tom de paródia às estruturas do melodrama), fazendo assim funcionar, com o máximo de intensidade, a dimensão dramática em torno da qual se estrutura a segunda parte da narrativa, aquela em que Zambujeira/Cerqueira é já sexagenário e a sua amante é já, plena e assumidamente, a esplendorosa Salomé.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa:

    Miguéis, José Rodrigues, 1968, Léah, Estúdios Cor, Lisboa

    Miguéis, José Rodrigues,2000/2002, O Milagre Segundo Salomé (I e II), Estampa, Lisboa

    Passiva:

    Aguiar, Edimara Lisboa, 2010, O milagre de 1917 na pena de Miguéis e na lente de Barroso

    Chion, Michel, 2001, Como se escribe un guión, Cátedra

    Couto, Diana Marlene Soares do, 2009, O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros  entre Miguéis e Barroso

    Dias, Cláudia Sousa, 2008, O Milagre Segundo Salomé de José Rodrigues Miguéis

    Saraiva, A. J. e O. Lopes, s/d [6ª ed], História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Saraiva, A. J. e O. Lopes,1996, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Vanoye, Francis, 1996, Guiones modelo e modelos de guión, Piados, Barcelona


    [1] Mais recentemente, os estudiosos da matéria têm optado por utilizar, para designar este nível de desenvolvimento do texto pré-fílmico, o termo  continuidade dialogada que, como diz sinteticamente Vanoye, “oferece a distribuição da história em cenas e sequências, a descrição das acções e o texto completo dos diálogos” (1996: 14) –  segundo Chion, em França esta é já considerada como guião (scénario) (2001: 208), sendo também verdade que, mesmo na América, é com um modelo muito semelhante que os grandes realizadores trabalham; o guião/guião cinematográfico (shooting script, découpage técnique e, não esquecer, roteiro, em português do Brasil) é um passo, ou, atendendo à hesitação na designação, uma série de passos finais que vão das elaborações narrativo/ descritivo/ dramáticas das fases anteriores, apenas um pouco mais extensas, às expressões mais próximas, que se possam conceber, de um texto escrito reproduzindo, integralmente, o filme acabado. Porque, como lembra Vanoy, na “inversão dialéctica própria de  todas as relações entre modelo e objecto […] também o filme se converte em modelo de […] guiões”, de tal modo que nas análises de objectos fílmicos  se trabalha “não tanto sobre guiões como sobre modelos de guiões, que proporcionam as películas terminadas e as suas transcrições” (1996: 21). A planificação técnica (que seria o modelo ideal de guião – aquele que Robbe-Grillet emula nos seus ciné-romans) só se pode considerar satisfatoriamente acabada, se tudo correr bem, quando o filme estiver acabado e tiver sido incorporado, no texto, o último pormenor registado pela “anotadora”, dando conta das próprias hesitações do realizador e das suas decisões finais.

    [2] O termo plano, no léxico português relativo ao cinema, pela sua longa dependência da terminologia francesa, é ambíguo, como naquela língua (antes de se deixar marcar pelo léxico anglo-americano do cinema, tal como já vai acontecendo entre nós) aplicando-se a três ordens estruturais utilizadas pelo discurso cinematográfico: a sincrónica/paradigmática, em que, por exemplo, o grande plano pode alternar (ou evoluir, num processo que o fará jogar com a dimensão diacrónica) com o plano de conjunto, ou o plano médio, diferenças que relevam do enquadramento do que emerge no campo da imagem, jogando com o fora de campo, ou seja o que fica fora do enquadramento (que registámos como P1 — que equivale,  grosso modo, ao paradigma verbal de shot, graduando-se entre o close-up e o long shot na cinematografia anglo-americana); a diacrónica, em que o plano é parte constituinte da sequência (que registámos P2 — equivalente ao paradigma shot/take anglo americano); e a sincrónica, in præsentia, em que o primeiro plano alterna com o de fundo, ou com o intermédio, ou seja, naquela diferenciação que emerge da ilusão da profundidade de campo (que registámos como P3 — oscilação que os textos anglo-americanos americanos designam por deep/shallow focus).