Autor: Arthur Maximus

  • A jabuticaba dos juros brasileiros

    A jabuticaba dos juros brasileiros


    No Brasil e fora dele, costuma-se gracejar sobre alguma excentricidade pátria, referindo-se a ela como “jabuticaba”. Apesar de existir noutros países, corre a lenda de que a árvore que produz este fruto seria exclusividade nacional. A fruta pequena, semelhante à uva, de sabor doce e levemente ácido, incorporou-se de tal forma ao vocabulário nacional que é difícil encontrar alguém que não identifique a ironia quando se qualifica algo como sendo fruto da jabuticabeira. Atualmente, porém, nenhuma jabuticaba é maior e mais reluzente do que a taxa de juros praticada pelo Banco Central brasileiro.

    De acordo com o ranking mais recente, a taxa real de juros do Brasil – isto é, a taxa de juros em vigor, descontada a inflação projetada para os próximos doze meses – situa-se em 9% ao ano. Este patamar é superior, por exemplo, ao da Rússia (8,5% anuais), que se encontra em guerra, e quase o dobro do México (5%), a economia latino-americana mais semelhante à brasileira em dimensão.

    Na última reunião do Comité de Política Monetária (Copom), a taxa Selic – referência para transacionar títulos públicos – subiu para inacreditáveis 13,25% anuais. Como se isso não bastasse, o próprio Copom já prometeu aumentar mais 1 ponto percentual na próxima reunião, em março. Trata-se do mesmo patamar que a Selic atingiu em 2015, no auge da crise económica do governo Dilma Rousseff.

    Quais as diferenças de lá para cá, porém?

    Em 2015, a inflação terminou o ano em 10,67%, 4,17% acima do teto da meta de então (6,5%). Hoje, a inflação de 2024 fechou nos 4,83%, meros 0,33% acima do teto da meta em vigor (4,5%). Ou seja: aplica-se a mesma dose do remédio (juros de 14,25% anuais) para uma inflação que é, na métrica de desvio, doze vezes menor do que naquela época (4,17% vs. 0,33%). Para uma unha encravada, portanto, o Banco Central brasileiro receita quimioterapia.

    As razões invocadas para justificar a alta da Selic são de uma insensatez sem precedentes. Argumenta-se, por exemplo, que o “risco fiscal” brasileiro – isto é, o facto de o governo gastar mais do que arrecada – é elevado. Falta, contudo, explicar por que nos Estados Unidos, que exibem um défice orçamental superior à soma de todos os outros défices dos grandes países do mundo civilizado, o Banco Central (FED) está a reduzir a taxa de juros, em vez de a subir. Além disso, tal como no ano passado, o governo federal cumpriu a meta de défice prevista para 2024 (0,09%), apesar das previsões do mercado.

    Pior que isso, só o argumento de que a taxa de juros sobe para conter as “expectativas de inflação”. Como são aferidas essas “expectativas”? Através de um compilado a que o BC decidiu chamar “Boletim Focus”. E quem são os responsáveis pelas “previsões” compiladas neste boletim? As mesmas instituições financeiras que lucram absurdamente com a taxa de juros obscena que o BC impõe ao país. Numa espécie de profecia autorrealizada, se o Boletim Focus supõe que a inflação vai subir – ainda que não exista base factual para isso –, a taxa de juros tem de aumentar também, para produzir o que, no jargão financeiro, se chama “ancoragem das expectativas”.

    Se esta lógica circular não bastasse, o Boletim Focus – embora reverenciado como um oráculo pelo Banco Central – erra em demasia, e erra muito. Aliás, só erra. Uma reportagem recente do portal UOL apurou que, de 2021 até agora, as previsões do Boletim Focus estiveram erradas em “apenas” 95% das vezes. Ou seja: o BC brasileiro usa como parâmetro para fixar a taxa de juros um instrumento de medição que só acerta em 5% das ocasiões.

    A ineficácia da Selic na economia real

    Mesmo que puséssemos tudo isto de lado, o aumento da Selic ainda assim não seria justificável. Como qualquer pessoa pode compreender, a utilização da taxa de juros para combater a inflação pressupõe uma transmissão mecânica entre oferta e procura de dinheiro. Se a taxa de juros – ou “o preço do dinheiro” – sobe, mais capital é poupado e menos é gasto em consumo. Se o consumo cai, a procura por produtos também diminui. E, se a procura cai, aumenta consequentemente a oferta, resultando na redução dos preços.

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    Ocorre, todavia, que esta lógica deixou há muito de fazer sentido no Brasil. Aqui, quando um cidadão vai ao banco pedir um empréstimo, não é a taxa Selic que lhe vão cobrar. É a taxa do crédito pessoal da loja ou a do cartão de crédito do banco. Em média, estas taxas variam entre 200% e 400% ao ano – percentuais superiores aos dos usurários, que trabalham à margem da lei.

    De que forma um aumento de 5% na Selic influencia este tipo de crédito? Em nada. Para o bem e para o mal, o brasileiro não é conhecido por fazer contas ao comprar. A única conta que faz – quando faz – é para saber se a prestação do produto cabe no seu orçamento. Pouco importa se, no final, terá pagado duas ou quatro vezes o valor do bem.

    Além disso, aumentar de forma acrítica a taxa básica de juros revela-se absolutamente ineficaz para enfrentar choques externos. Por exemplo: se o preço do petróleo disparar, os preços da gasolina e do gasóleo sobem. Por consequência, sobem também os custos de transporte e dos produtos nos supermercados. Mas que efeito terá o aumento da Selic sobre isto? Nenhum. Sendo o petróleo uma commodity internacional, de nada adiantará subir juros para enfrentar um choque de oferta externo. O mesmo vale para quebras de safra, como está a acontecer com o café atualmente.

    Alternativas esquecidas

    Por isso mesmo, a melhor forma de combater a inflação no Brasil não é aumentar até ao infinito a taxa básica de juros, mas estabelecer medidas macroprudenciais, como o compulsório imposto aos bancos ou a limitação do parcelamento de empréstimos. É através destas medidas que se reduz efetivamente a liquidez do sistema e, consequentemente, se arrefece a atividade económica.

    Brazillian flag

    Curiosamente, o mesmo mercado que clama contra o “risco fiscal” mantém um silêncio obsequioso quanto ao efeito deletério dos juros na dinâmica da dívida pública. Por achar pouco um corte de R$ 70 mil milhões (cerca de 12 mil milhões de euros) nos orçamentos de 2025 e 2026, o mercado passou a cobrar 3% a mais na Selic. Pelo nível atual da dívida, isso implica algo como R$ 150 mil milhões (cerca de EU$ 25 mil milhões) por ano. Hoje, o défice orçamental do governo federal ronda R$ 1 bilião por ano (170 mil milhões de euros), sendo 99% deste valor composto apenas pelo pagamento de juros da dívida. Para ficarmos em um exemplo muskiano: este montante daria para comprar o Twitter por três vezes, com direito a troco. Trata-se da maior transferência de riqueza do setor produtivo para a ciranda financeira de que há registo na história do país.

    Como os únicos economistas sensatos que aqui desembarcaram foram comidos pelos caetés, ficámos reféns de uma banca alheia ao país e de um Banco Central incapaz de quebrar este círculo vicioso. Em vez de conduzir expectativas, é conduzido por elas. Triste sina deste pobre Brasil.

  • Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026

    Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026


    O ano é 2023. O começo de um sonho.

    Lula da Silva acaba de assumir, pela terceira vez, a Presidência da República. Eleito numa disputa acirradíssima contra o incumbente, Jair Bolsonaro, Lula dá-se conta do recado que as urnas mandaram-lhe. Sem se preocupar com a reeleição e desprezando as picuinhas típicas do ofidiário brasiliense, o babalorixá petista resolve governar com os olhos voltados para a História. Ao invés de promover um “governo do PT”, Lula coordena um governo de união nacional, refletindo a “frente ampla” responsável pela derrota da máquina bolsonarista. O troféu de “Getúlio Vargas do Séc. XXI” encontra-se ao alcance da mão.

    O ano é 2025. Deu tudo errado.

    Ao contrário do que se desenhava, desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Disso resultou um governo mais à sinistra do que os votos que o elegeram. Ao invés de Fernando Haddad e Simone Tebet, Gleisi Hoffman e Lindenberg Farias. Ao invés de moderação, confronto. Ao invés de Henrique Meirelles, sinais inquietantes de que os erros da tal “nova matriz macroeconómica” (que levaram à débâcle econômica de 2015-2016) não foram assimilados. Ao contrário de tornar-se o Vargas do Séc. XXI, Lula arrisca a tornar-se “Dilma II”.

    Lula da Silva

    O que aconteceu nesse intervalo de tempo?

    Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o antipetismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

    Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como é agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na antiga base do “toma-lá, dá-cá” das emendas parlamentares. Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de hoje esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União.

    Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país, de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

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    Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria a girar por aqui e Lula seguiria a fazer aquilo que mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos. O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou a viajar e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as divergências políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo à espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros.

    Como se isso não bastasse, ao caos administrativo somam-se agora dúvidas quanto à saúde de Lula. Pela segunda vez em dois meses, o Presidente foi internado para tratar de uma lesão sofrida na cabeça. Ninguém até agora entendeu direito como foi a dinâmica do acidente, mas é certo que ele atingiu a região occipital do crânio, mais popularmente conhecida como nuca. Da queda resultaram cinco pontos e uma cicatriz na cabeça.

    Se Lula fosse apenas mais um velhinho de 79 anos, não seria nada de mais. Infelizmente, as quedas em idosos dessa idade são bastante comuns e, tanto quanto problemas respiratórios ou gastrointestinais, são as maiores responsáveis pela morte nessa idade. Quando não matam directamente, por vezes as sequelas acabam resultando em agravamento posterior do quadro. É o que ocorre, por exemplo, com lesões que fraturam a cabeça do fémur, de cujo pós-operatório muitos idosos não retornam.

    Mas Lula não é somente mais um octogenário. Ele é o Presidente da República. E não qualquer Presidente da República, senão um sujeito que foi eleito três vezes para o cargo e encarna como nenhum outro a idéia de esquerda no país. Sabendo disso, parece no mínimo temerário o modo com o qual governo tratou essa segunda internação de Lula. Nesse tipo de situação, jogar aberto é sempre a melhor alternativa. Voluntariamente, escondeu-se o quadro de saúde do Presidente até que vazasse a informação de que ele havia sido transferido para o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

    Para piorar, depois de terem avisado que tudo correra bem na cirurgia de emergência, o país descobriu sobressaltado que Lula faria uma nova cirurgia. Dessa vez, para cauterizar uma artéria e impedir a recidiva de sangramento na região em que ocorrera a lesão. Segundo os próprios médicos, tal procedimento já estava previsto e não implica maiores riscos para o paciente.

    Se é assim, por que não foi informado isso logo após a primeira cirurgia? E por que, com o Presidente internado na UTI, o cargo não foi transmitido ao seu vice, Geraldo Alckmin?

    Lula da Silva com Geraldo Alckmin durante a campanha eleitoral de 2022.

    A forma atabalhoada com a qual tudo foi feito dá margem à interpretação de que o governo não confia no seu vice. Isso seria uma rematada tolice. Ainda que possa existir algum trauma pela forma através da qual Michel Temer operou para derrubar Dilma Rousseff, Alckmin definitivamente não é Temer. É um político leal, absolutamente cioso das responsabilidades que lhe incubem como substituto do titular. A última coisa que se esperaria dele seria aproveitar esse episódio para destronar Lula do posto.

    Esse episódio, todavia, força a antecipação do debate sobre o destino do país nas próximas eleições presidenciais. Se no pleito de 2022 a grande briga era garantir que Bolsonaro perdesse e que seu sucessor assumisse o cargo, em 2026 a luta vai ser impedir que vença um candidato apoiado pelos Bolsonaro ou, ainda que não seja apoiado diretamente por eles, esteja disposto a anistiar os golpistas todos em prol de uma suposta “pacificação” do país.

    Nesse sentido, o exemplo que vem dos Estados Unidos não poderia ser mais claro. Joe Biden foi, em 2020, o que Lula foi para nós em 2022. Mesmo assim, quatro anos depois, com um governo impopular e com suas faculdades mentais sob questionamento, Biden foi defenestrado da corrida presidencial na undécima hora. Sua substituta, Kamala Harris, não teve tempo hábil para construir uma plataforma de campanha que impedisse a vitória de Donald Trump.

    Lula não é Biden, nem em termos de popularidade, nem em termos de capacidade mental. Entretanto, não parece ser um risco negligenciável chegarmos a 2026 com uma economia em frangalhos – cortesia da absurda alta dos juros no ano passado -, talvez em recessão, certamente com desemprego em alta. São factores que detonam o potencial eleitoral de qualquer incumbente. Se somarmos a isso eventuais questionamentos sobre a saúde do candidato, teremos uma reprise do “cenário Biden”, por mais que Bolsonaro permaneça inelegível.

    O pior que pode acontecer nesse cenário seria Lula continuar no cargo e começar a experimentar um declínio na sua saúde, tanto física quanto mental. Por mais que se queira esconder essa circunstância, uma hora a verdade vem à tona, como aconteceu após o primeiro debate de Trump contra Biden. E aí poderá ser tarde demais para construir uma alternativa eleitoralmente viável para impedir o retorno da extrema-direita ao Planalto.

    man in black jacket standing in front of glass building

    Sabendo disso, o pessoal da cozinha do Planalto deveria começar a vacinar-se contra essa possibilidade. Caso Lula esteja de facto com a saúde em dia e as consequências da sua queda limitem-se a essa última internação, muito bem; vida que segue. Mas, se houver dúvidas sinceras sobre a evolução do seu estado de saúde daqui até 2026, a hipótese de ele renunciar em prol do seu vice deve começar a ser tomada a sério.

    Um eventual acordo de bastidores poderia girar em torno da promessa de Alckmin cumprir apenas um mandato e apoiar Fernando Haddad em 2030. Saindo de cena, Lula ainda permaneceria como grande “guru” político do seu campo, aquele a quem todos acorrem nas piores crises, mas sem carregar o ónus e o desgaste da labuta presidencial. Em suma, Lula só participaria dos lucros, não dos prejuízos.

    Evidentemente, também esse cenário envolve riscos. Ninguém sabe ao certo como seria um eventual governo Alckmin, nem muito menos como ele iria tourear os diversos interesses em conflito no governo, inclusive dentro do próprio PT. Ainda assim, esse cenário parece menos arriscado do que o cenário Biden, ainda mais se o país chegar em crise económica em 2026, como está a desenhar-se.

    an american flag flying in the wind on a cloudy day

    Seja como for, o que se coloca agora são basicamente três hipóteses:

    1) Fica tudo bem, Lula parte para a reeleição e ganha um quarto mandato do povo. Lula torna-se definitivamente o maior político brasileiro de toda a história republicana;

    2) Bem ou mal, Lula renuncia e deixa Alckmin na linha de frente do governo, passando a atuar nos bastidores pela vitória em 2026. Lula será eternamente lembrado como o sujeito com desprendimento suficiente para colocar o futuro do país acima de seus interesses pessoais;

    ou

    3) Lula permanece no governo, com a saúde física e mental deteriorada. Nessas condições, perde a eleição para um Bolsonaro ou um proxy dele. Nesse caso, Lula ficará para a posteridade como um Biden brasileiro, que permitiu o retorno do neofascismo por ego ou por mero apego ao poder.

    Aconteça o que acontecer, Lula terá garantido seu lugar na História. A questão, agora, é saber qual será esse lugar.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento

    Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento


    Promovida a redemocratização, o Brasil transformou-se numa república sui generis. Quem lê com atenção a Constituição de 1988, enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto maioritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu aval. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho. Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade à força. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.

    Ainda que a Constituição claramente tenha sido desenhada para operar sob um sistema parlamentarista, optou-se por estabelecer um sistema presidencialista, de modo a não confrontar a tradição política instituída desde a Proclamação da República. Para além disso, ainda estava muito viva na memória a campanha das “Diretas Já!”, na qual a imensa maioria da população foi às ruas pedir a volta da democracia com o lema: “Quero votar para presidente!”. Saindo de uma ditadura de 21 anos, os constituintes não tiveram muita margem de manobra para dizer que, agora com a democracia restabelecida, o povo seguiria sem escolher o mandatário máximo da Nação.

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    Os defensores do parlamentarismo, contudo, estabeleceram um artifício constitucionalmente engenhoso. A despeito de manterem o sistema presidencialista, fizeram incluir no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a obrigatoriedade da realização de um plebiscito contados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988. Nessa consulta popular, o povo escolheria tanto o regime (monarquia ou república), quanto o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). A idéia era a de que nesses cinco anos após a promulgação do texto constitucional ficassem claros os inconvenientes do sistema presidencialista, fazendo com que a própria população optasse pela mudança de sistema. Quando isso acontecesse, tudo se encaixaria. A Constituição parlamentarista seria doravante seguida por um governo parlamentarista.

    Faltou, contudo, combinar com o povo. Realizado a 21 de Abril de 1993, os parlamentaristas conseguiriam reunir pouco mais de ¼ do eleitorado, com direito a 10% de monarquistas que pretendiam abolir a República (embora não estivesse claro no plebiscito se o país seria devolvido à dinastia dos Orleans e Bragança). Ficámos, pois, condenados a um modelo político esquizofrénico, em que a maior parte do poder estava reservada ao Congresso, mas o Poder Executivo ficava a cargo do Chefe de Estado, que detinha a chave do cofre.

    Como se isso não bastasse, as excentricidades do nosso sistema eleitoral acrescentaram diversas incongruências práticas ao bom funcionamento desse modelo. Enquanto Presidente da República e os senadores são eleitos em sistema maioritário (quem tiver mais votos, leva), os deputados federais são eleitos seguindo o voto proporcional em lista aberta. Contam-se os votos e distribuem-se as cadeiras da Câmara de acordo com os votos obtidos por cada partido. E, dentro de cada partido, são escolhidos os candidatos que foram mais votados. Com mais de 30 partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral, disso resulta que, em todos os casos desde a redemocratização, nenhum Presidente eleito pelo povo contava com maioria absoluta no Congresso.

    Para contornar a circunstância de chefes de governo minoritários no Parlamento, desenvolveu-se uma espécie de “modelo de coabitação”, no qual os parlamentares faziam emendas ao orçamento da União. Indicadas como prerrogativa sua, as emendas nasceram com o propósito de destinar verbas a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Fernando Collor a Lula III, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”. Até aí, nada de mais. Politics is politics.

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    O problema, como o leitor amigo pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, seria apenas questão de tempo até que o Congresso “descobrisse” que era ele quem de facto mandava. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.

    E foi justamente isso o que aconteceu a partir de 2015. Primeiro, Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, sendo derrubada por impeachment em seguida. Depois, seu vice, Michel Temer, caiu em desgraça após a delação dos notórios irmãos Batista, tornando-se politicamente zombie até o fim de seu mandato. Por fim, tivemos a “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, preocupado apenas em formas de organizar uma ditadura que lhe permitisse governar como autocrata. Numa sequência cada vez mais voraz, os deputados e senadores resolveram assenhorar-se de parcela cada vez maior dos recursos arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Estabeleceu-se, portanto, de forma completamente anómala, um “parlamentarismo bastardo”, cevado por verbas sequestradas ao orçamento da República.

    A coisa atingiu tal nível de selvageria que, entre 2019 e 2024, nada menos do que R$ 186 mil milhões (cerca de EU$ 30 mil milhões) esvaíram-se pelos desvãos do orçamento em emendas parlamentares. Pior. Com a lógica do “orçamento secreto”, manufacturada no governo Bolsonaro, não se sabe sequer: 1) quem foram os parlamentares responsáveis por essas indicações; 2) quanto foi gasto em cada emenda.

    É bem verdade que Lula da Silva já pegou o bonde a andar, com a casa desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar de Arthur Lira, o todo-poderoso Presidente da Câmara e responsável directo pela criação do “orçamento secreto”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.

    Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez tenha achado que pudesse empurrar a situação com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. O problema é que a barriga do Planalto não está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. Maior prova disso foi o que ocorreu nesta última semana.

    Como o Planalto não fizesse nada para restaurar o mínimo de moralidade na distribuição das emendas, coube ao Supremo Tribunal Federal tentar colocar alguma ordem nessa zona. Com o voto condutor do Ministro Flávio Dino, o Supremo determinou que, doravante, os recursos para emendas somente poderiam ser liberados caso fosse apresentado um plano de trabalho previamente aprovado pelo ministério responsável pela obra. Mais: toda e qualquer emenda deveria indicar precisamente o parlamentar responsável por sua indicação. Para além disso, o STF ainda determinou que o valor total das emendas não poderia crescer além dos limites estabelecidos pelo arcabouço fiscal. Foi o que bastou para detonar uma revolta congressual.

    Acreditando que a decisão do Supremo fora combinada com o Planalto, os parlamentares interditaram a agenda legislativa, a ameaçar deixar de votar um pacote de corte de gastos enviado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para fazer frente à descrença com o compromisso fiscal do Governo. Emparedado pelo Congresso, Lula da Silva chamou ao Planalto os presidentes da Câmara e do Senado, que de lá saíram com a promessa de que, independentemente do que decidira o STF, a verba das emendas será liberada.

    Ainda que o dinheiro venha a ser liberado, o refrigério obtido pelo vendaval de emendas será apenas temporário. Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa contenda. Um debate honesto, a mostrar para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está a deixar de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.

    Se até o momento não se fez a luz sobre essa discussão, parte disso deriva do facto de que Lula não quer confrontar o Congresso (e, dentro dele, o PT) com seus próprios demónios. É um erro, porém, apostar na inércia, acreditando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.

    Deu no que deu.

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  • Brasil: entre a amnistia e a democracia

    Brasil: entre a amnistia e a democracia


    Na língua portuguesa, o vocábulo “amnistia” adquiriu ao longo do tempo feições diferentes. De inspiração divina, a noção de amnistia está de certo modo associada à idéia de perdão. Quando Pedro pergunta-lhe se deveria perdoar até sete vezes o irmão que pecasse contra si, Jesus responde-lhe: “Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete” (MT 18:21-22).

    No contexto histórico, o termo quase sempre esteve associado a transições pacíficas de poder, quando um sistema autoritário cedia passo – por pressão ou por exaustão – a regimes democráticos. Foi assim que a Espanha deu adeus ao franquismo (1977). Foi assim que o Uruguai despediu-se de quinze anos de ditadura (1986). E foi assim que a África do Sul conseguiu superar, sem enfrentar uma guerra civil, a pesada herança do Apartheid (1995).

    O Brasil, contudo, preferiu outra toada. Ou, por outra, levou ao paroxismo o conceito de amnistia. Como se quisesse dar razão à canção de Chico Buarque, o Brasil adotou o lema segundo o qual não há pecados ao sul do equador. Tudo valia para olvidar o passado, desde que não fosse necessário encarar suas cicatrizes históricas. Por pior que fosse o delito, sempre haveria uma pedra para colocar em cima do assunto.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    A “teoria da pedra” era, a um só tempo, simples e sedutora. Simples, porque resolvia numa só canetada todas os imbróglios que porventura existissem entre diferentes facções políticas. E sedutora porque, não sendo possível punir infratores, dispensavam-se os próceres do novo regime de contrariar poderosos. Daí, por exemplo, a amnistia aos golpistas de 1955, que se levantaram contra a eleição de Juscelino Kubitschek, impedidos tão-somente pelo contragolpe do Marechal Henrique Teixeira Lott. Daí, também, a amnistia aos sediciosos da Força Aérea, que tentaram derrubar o mesmo JK alguns meses depois, na Revolta de Jacareacanga, no Pará.

    Foi com esse mesmo espírito que se arquitetou o último perdão da qual se tem registro no Brasil: a amnistia de 1979. Uma vez que a ditadura não estivesse fraca o suficiente para sucumbir, nem a oposição forte o suficiente para derrubá-la, o retorno à normalidade democrática ficou vinculado a um arranjo de bastidores entre a turma da caserna e aquela liderada por Tancredo Neves. Coube a Tancredo negociar um arreglo através do qual se aceitava a autoamnistia requerida pelos militares, condicionada a uma transição pacífica de poder após o fim do governo de João Figueiredo.

    Os militares, claro, cumpriram apenas parcialmente o prometido. Dois anos depois da Lei da Amnistia, integrantes da linha dura do Exército tentaram literalmente explodir a abertura política, ao colocar uma bomba no show de 1 de Maio de 1981. Enterrado sem exéquias em um inquérito policial-militar de fancaria, o atentado do RioCentro entraria com desonras no panteão de maiores vergonhas da historiografia nacional. A morte dos incompetentes militares terroristas – que deixaram a bomba explodir ainda dentro do carro que guiavam – foi atribuída a “elementos de esquerda” e nunca mais investigada, a despeito de ser cronologicamente impossível que o crime estivesse sob o abrigo da lei de 1979.

    Obviamente, as sucessivas amnistias retiraram dos golpistas tupiniquins a percepção de perigo. Como as ações ilegais praticadas por paisanos ou militares golpistas jamais eram punidas, o risco de ir para a cadeia deixou de ser considerado nessa equação. Ao contrário da Argentina, onde os militares foram condenados em um julgamento histórico, aqui a idéia sempre foi a de colocar uma pedra em cima do assunto e simplesmente esquecê-lo. Com todas as desgraças que já se abateram sobre nuestros hermanos desde a última ditadura – e elas não foram poucas –, nunca se ouviu sequer sussurro de gente propondo golpe de Estado por aquelas bandas. Por quê? Porque Jorge Rafael Videla, o mais emblemático dos presidentes-generais portenhos, morreu aos 87 anos sozinho e esquecido na prisão, sentado em um vaso sanitário imundo e fétido, siderado por uma diarréia.

    A close up of a barbed wire with a blurry background

    Cá no Brasil, ao contrário, ao invés de ser exorcizado, o fantasma da intervenção militar ficou apenas trancado no armário. Bastava alguém disposto a abri-lo para que ele voltasse a assombrar-nos. Foi exatamente o que aconteceu com a eleição de Jair Bolsonaro, ele próprio um elemento subversivo da tropa, “expulso a convite” depois de um julgamento absolutamente bizarro do Superior Tribunal Militar, por ameaçar colocar bombas em quartéis e na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro (para quem quiser se aprofundar no assunto, recomenda-se a leitura do livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel, de Luiz Maklouf Carvalho). Tudo que se sucedeu no país após sua eleição é reflexo directo dessa “cultura do perdão” expressa na “teoria da pedra”.

    Que houve uma tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023, parece inteiramente fora de questão. O roteiro para a ação golpista – e, portanto, criminosa – é claro como água de bica: os “patriotas” invadiriam a Praça dos Três Poderes, detonariam tudo e clamariam pela “intervenção militar constitucional”. No melhor cenário (para os golpistas), os comandantes mandariam tirar seus homens dos quartéis, tomariam de assalto (literalmente) o poder e prenderiam Lula e todo o seu governo. Bolsonaro, então, faria um regresso triunfal do seu autoexílio na Disney, descendo ao campo de batalha para “matar os feridos”, isto é, iniciar o expurgo contra a ordem derrubada. O primeiro da lista, evidentemente, seria Alexandre “Xandão” de Moraes. Depois dele, Luís Roberto “Boca de Veludo” Barroso e Edson “Advogado do MST” Fachin. O resto a combinar.

    No “pior cenário”, os militares não dariam um golpe clássico, mas o governo – pego de calças curtas pela destruição das sedes dos três poderes – convocá-los-ia através de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (as famosas GLOs) para “pôr ordem na casa”. Nesse caso, depois de ver a ordem restabelecida pelos mesmos militares a quem os golpistas pediam intervenção, Lula estaria magnificamente emparedado. Ou bem seria obrigado a renunciar, em prol de uma suposta “pacificação nacional”; ou então ficaria na Presidência como um animal empalhado, sem poder algum, tutelado pelo pessoal da caserna. Felizmente, contudo, ocorreu o “pior pior cenário” para os golpistas: o golpe malogrou e a maioria foi em cana. O que se desenrola, agora, é a tentativa de saber até onde vai a responsabilidade de cada um pelo que sucedeu naquela fatídica data.

    Mesmo a saber de tudo isso, parte da mídia especializada e da classe política insiste na concessão de uma amnistia à cúpula do golpismo. Segundo essa gente, somente assim seria possível “moderar” o bolsonarismo e diminuir a temperatura da polarização política que nos aflige. É o tipo do raciocínio que só pode ser produto de tabagismo com cannabis apodrecida. A uma, porque não existe “bolsonarismo moderado”, eis que o próprio movimento depende, para sobreviver, de um estado de tensão e provocação institucional permanentes. A duas, porque o que modera golpista é cadeia. Repetindo: CADEIA. Bolsonaro não foi condenado quando capitão. Deu no que deu. Donald Trump saiu ileso da intentona golpista do 6 de Janeiro. Deu no que está dando.

    A esperança de que uma amnistia traga um futuro melhor, de calma e tranquilidade, já foi desmentida vez após vez. Ela só funciona – quando funciona – se for fruto de um pacto genuíno em que a parte amnistiada exerce um ato sincero de contrição. Isso no Brasil nunca houve. Em todos os casos, a amnistia serviu apenas de muleta jurídica para resolver sem grandes traumas nosso crônico problema de accountability.  Deixar impunes os pecados pretéritos não representa senão um convite à repetição desses mesmos pecados no futuro. Errar é humano. Insistir no erro tem outro nome.

    Por todas essas razões, se, ao final do processo, ficar comprovado que Bolsonaro e seus generais estiveram de facto envolvidos numa tentativa de golpe de Estado, que a espada da Justiça caia sobre as suas cabeças com todo o rigor que dela se pode exigir. Não se pede nada além disso. Não estamos mais em 1964. Não estamos mais em 1979.

    Amnistia?

    Nunca mais.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • O saldo das eleições municipais e o desafio político brasileiro

    O saldo das eleições municipais e o desafio político brasileiro


    Tratar das eleições municipais no Brasil pode parecer, para o leitor português, franca atitude de desperdício de tempo. A uma, porque o sistema brasileiro difere em grau e em forma do sistema político-eleitoral lusitano. A duas, porque, salvo raríssimas exceções (caso da eleição do ano 2000), não é possível inferir das eleições locais qualquer repercussão na eleição federal, que se passa dois anos depois. Apenas para exemplificar o quão estatisticamente desprezível é projectar o resultado das eleições gerais com base no das eleições municipais, basta dizer que, em 2020, o PT não conseguiu eleger um candidato seu em nenhuma prefeitura em capitais, feito inédito desde a redemocratização. Um biênio depois, Lula recebia do povo seu terceiro mandato como Presidente da República.

    Se a estatística não favorece a projecção de tendências do eleitorado, observar a fundo as particularidades de cada pleito, ao revés, pode ao menos oferecer pistas de para onde caminha o país. E este pleito de 2024 está cheio delas.

    landscape photography of mountains

    À partida, tem-se o óbvio: a esquerda perdeu, e perdeu feio. Somados, todos os partidos da ala jacobina do espectro político não alcançaram sequer 1/5 dos votos depositados nas urnas. Trata-se do mais baixo patamar da história. Enquanto isso, partidos da direita e do chamado “Centrão” (que também é maioritariamente de direita) alcançaram mais de 80% dos votos. Esse percentual é superior, por exemplo, aos melhores dias da Arena (Aliança Renovadora Nacional), o fantoche partidário de apoio à ditadura militar, que se autointitulava na altura “o maior partido do Ocidente”.

    O Brasil, pois, virou à direita?

    Não exactamente.

    Na verdade, desde sempre a população brasileira inclina-se para o conservadorismo. Em toda a República, nunca um governo de esquerda foi eleito à Presidência. João Goulart, o mais próximo que se pode chegar disso, somente ascendeu ao posto máximo da Nação após a renúncia de Jânio Quadros (1961), numa época em que Presidente e Vice concorriam em chapas separadas. Mesmo assim, Jango somente assumiu depois de uma crise militar contra sua posse redundar na chamada “solução parlamentarista”, um arremedo de emenda constitucional que transmudou o sistema de governo para um regime com primeiro-ministro. Quando um plebiscito dois anos depois devolveu-lhe as prerrogativas de Presidente (1963), os militares golpearam-no no ano subsequente (1964).

    A excepção, claro, atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Forjado no sindicalismo metalúrgico, Lula gradualmente abandonou sua condição de “radical de esquerda” para aninhar-se numa centro-esquerda de viés social-democrata. O desastre económico do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, causado em grande parte por uma política cambial insana, certamente ajudou na conjunção astral. Com o país sedento por mudanças, os planetas alinharam-se e o barbudo ex-operário do ABC paulista era eleito presidente.

    Lula da Silva, presidente do Brasil.

    Com a vitória de 2002, Lula deu início a um ciclo de hegemonia política sem precedentes em nossa história democrática. Reeleito em 2006, Lula ganharia ainda outras duas vezes (2010 e 2014) por interposta pessoa (Dilma Rousseff). Preso em 2018, o ex-líder sindical saiu do cárcere para ganhar em nome próprio, pela terceira vez, a Presidência da República. Nenhum outro político brasileiro mandou tanto e por tanto tempo.

    Os anos de sucesso, porém, ficaram no passado. Depois de atingir o auge da expressão no pleito de 2012, quando ganhou até a municipalidade paulistana com Fernando Haddad, o PT tem experimentado um processo de acentuado declínio no eleitorado nacional. Como nenhum outro partido conseguiu desafiar a sua hegemonia nesse lado do espectro, ficamos, pois, numa situação em que “ser de esquerda” praticamente virou sinónimo de “ser petista”. E o fardo desses anos todos de domínio eleitoral parece ter-se tornado demasiado pesado para o partido da estrela vermelha. Daí o desastre eleitoral de 2020, visto como reprise agora, em 2024.

    A direita, contudo, não desempenhou melhor papel. Como o PSDB não quisesse abraçar abertamente as pautas ditas “conservadoras”, o eleitor furibundo com o PT foi paulatinamente jogado para o extremo do espectro político. Quando Jair Bolsonaro lançou-se candidato em 2018 e permitiu à direita “sair do armário”, subitamente foi transformado no estuário de todas as deceções do eleitorado. O eleitor conservador tinha, enfim, um “líder” para chamar de seu.

    Todavia, esse fenómeno foi mal ou pouco compreendido pela imprensa especializada. Não é que Bolsonaro tornara-se o “Lula da Direita”. Ele apenas passou a ocupar o posto de “anti-Lula” de ocasião. Só isso explica como uma personagem caricatural, que jamais concorrera a nenhum cargo maioritário (por absoluta falta de votos), pudesse eleger-se Presidente da República justamente na primeira eleição que disputara. Querer transformar essa triste figura do baixíssimo clero congressual em um líder “popular” e “carismático” foi um dos pratos mais grotescos que o mainstream mediático quis empurrar goela abaixo dos brasileiros.

    gray concrete building under blue sky during daytime

    É essa constatação, aliás, que torna possível explicar – ao menos parcialmente – o fenómeno Pablo Marçal. Autodeclarado “coach”, o sujeito fez fama e fortuna a vender ilusões para o público incauto. Lançando-se praticamente sozinho à prefeitura do maior município do país (São Paulo), Marçal rapidamente conquistou corações e mentes e, por um momento, pareceu comandar uma onda que varreria a eleição e o conduziria à vitória no primeiro turno. Não fosse a bizarra cadeirada que levou de José Luiz Datena em um debate televisivo e a divulgação do infame laudo médico segundo o qual Guilherme Boulos teria sido internado por abuso de cocaína, talvez Marçal tivesse conseguido cavar uma vaga na segunda ronda da capital paulista.

    Bolsonaro, que apoiava o actual prefeito, Ricardo Nunes, quis fazer-lhe frente, mas foi violentamente devolvido à toca pelos mesmos extremistas das redes sociais que ele pensava comandar. Uma vez que, no entender desse eleitorado, Marçal representava “os verdadeiros valores do conservadorismo”, apoiar Nunes seria o mesmo que converter-se ao “comunismo” ou algo do género. Evidenciando a covardia típica de sua acção política, Bolsonaro colocou um pé em cada canoa (Nunes e Marçal) e deixou tudo como estava, para ver como é que ficava.

    Conseguiu, assim, a suprema façanha de sair desprezado por Marçal (que exigiu um pedido público de desculpas para reatar relações) e sem poder comemorar a passagem de Ricardo Nunes ao segundo turno, mesmo tendo indicado o vice de sua chapa. Se essa assombração denominada Pablo Marçal serviu para algo, foi para demonstrar que o eleitorado extremista não tem dono e está pronto a abraçar qualquer alternativa dita “conservadora” que se mostre eleitoralmente viável.

    Pablo Marçal

    O Brasil sai dessa eleição, portanto, com fracturas à esquerda e à direita. À esquerda, porque, com cada vez menos votos, depende cada vez mais de Lula, um septuagenário que, na melhor das hipóteses, disputará apenas mais uma eleição. E à direita porque, com Bolsonaro inelegível e em vias de ser preso, não surgiu ainda outra figura com consistência ideológica que lhe permita afastar-se de seus Marçais e quetais.

    Em resumo, o desafio brasileiro passa pela construção do pós-Lula e do pós-Bolsonaro. Quem melhor souber manejar suas forças de maneira a atrair o eleitorado flutuante do centro ditará os rumos da política brasileira pelos próximos anos.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • Elon Musk vs. Alexandre de Moraes: uma visão brasileira

    Elon Musk vs. Alexandre de Moraes: uma visão brasileira


    Reza a boa norma de convivência que os convidados a ingressar em casa alheia devem respeitar determinadas regras de conduta. Dentre elas, destaca-se a de não contrariar – ou, ao menos, não contrariar expressamente – o dono do sítio. Sendo esta a minha participação inaugural no PÁGINA UM, duas considerações me levaram a deixar de lado essa cortesia tão natural. A primeira é que, sendo este um periódico declaradamente plural, tanto melhor para o leitor ter à disposição posições conflitantes e, valendo-se da sua própria capacidade de avaliação, julgar aquela que deva prevalecer. A segunda é que, sendo o Brasil uma personagem que em regra desperta pouca curiosidade no cenário global, nem sempre o contexto dos acontecimentos que aqui têm lugar é suficientemente esclarecido para o leitor d’álém-mar. Eis, portanto, as razões pelas quais desde logo me escuso ao Pedro Almeida Vieira por discordar do seu recente editorial “Unanimismos e maniqueísmos, ou o colapso das democracias.

    Para começar a compreender melhor o imbróglio entre Elon Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, a primeira coisa a fazer é contextualizar a situação política do Brasil nos últimos dez anos.

    a white dice with a black x on it

    Desde as famosas jornadas de Junho de 2013, o panorama eleitoral tornou-se adverso à esquerda no país. Dilma Rousseff ainda logrou alcançar a reeleição em 2014, mas sua vitória dependeu de uma campanha suja contra a agora Ministra do Meio Ambiente Marina Silva e, ainda assim, deu-se por margem mínima de votos (menos de 3% do eleitorado). O “sucesso”, contudo, durou pouco, pois logo após ela viria a ser derrubada por meio de um ‘impeachment’ do Congresso.

    Seu vice, Michel Temer, experimentou aproximadamente um ano de lua de mel, quando então foi alvejado pela delação dos notórios irmãos Batista, senhores da JBS, um dos mais poderosos players globais em matéria de proteína animal. Temer sobreviveu às três denúncias apresentadas pelo então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, mas dali em diante seria apenas um zumbi político ocupando temporariamente a Presidência da República.

    Estando o país virtualmente acéfalo, a campanha presidencial de 2018 tornou-se terreno fértil para acontecimentos inesperados. Com Lula barrado pela Lei da Ficha Limpa, coube a Fernando Haddad atuar como porta-estandarte do PT naquele pleito. Do outro lado, o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, vindo do quarto mandato como governador de São Paulo, acreditava que uma coalizão majoritária de partidos da centro-direita seria capaz de conferir-lhe o posto de “anti-Lula”.

    Mas havia um Bolsonaro no meio do caminho. Personagem caricata da política nacional, tendo-se notabilizado por defender a tortura e a infeliz ditadura militar que desgraçou o país por vinte e um anos, Jair Bolsonaro lançou-se abertamente como candidato de extrema-direita. Em quase trinta anos como deputado federal, não houve registo de sequer uma atividade digna de nota de sua parte. No começo da campanha, ninguém levava a sério suas chances eleitorais. Veio a facada contra o candidato na cidade de Juiz de Fora/MG e o resto é história.

    Com Bolsonaro no poder, o Brasil viveu o maior regresso democrático de sua história pelo menos desde 1964, ano do último golpe militar no país. E aqui não pode haver margem a tergiversações: durante os quatro anos de governo Bolsonaro, o Brasil viveu em um estado de exceção. À parte os tanques nas ruas, quase todos os elementos de um regime ditatorial clássico estavam presentes, a começar pelo loteamento do governo a militares da ativa e da reserva e à constante ameaça de Bolsonaro recorrer “às minhas Forças Armadas” para resolver disputas políticas. O facto de Bolsonaro transitar impune, sem capacete, durante suas famigeradas “motociatas”, era apenas o aspeto mais grotesco dessa verdadeira ditadura de baixa intensidade à qual o Brasil foi submetido nesse período.

    Alexandre de Moraes

    A despeito de sua medíocre trajetória como político do baixíssimo clero congressual, Bolsonaro soube entender como poucos o quão susceptíveis à cooptação são algumas instituições nacionais. Manejando porretes e cenouras, Bolsonaro ora ameaçava com a força, ora seduzia com prebendas determinadas pessoas em posições de poder. Foi com essa estratégia que ex-capitão do Exército conseguiu passar incólume por quatro anos de desgoverno, sem enfrentar nenhuma acusação criminal ou responder sequer a um processo de ‘impeachment’, em que pese as dezenas de crimes comuns e de responsabilidade que praticou no exercício do cargo.

    Uma das poucas instituições que não cedeu à tática de aliciamento foi o Supremo Tribunal Federal. E aqui não se deve alimentar grandes ilusões. Se o STF não se curvou ao assédio bolsonarista, não foi – ou não foi somente – por convicções democráticas genuínas, mas pela clareza de que, numa ditadura, o Judiciário torna-se um apêndice irrelevante na estrutura estatal. Se a legalidade é posta de lado para dar lugar a um regime de exceção, ser ministro do STF torna-se menos importante do que ser ministro do STF numa democracia. O que estava em causa, também, era um jogo de poder entre Bolsonaro e o Supremo.

    Coube a Alexandre de Moraes – o “Xandão”, segundo o epíteto a um só tempo irónico e jocoso pespegado pelo ex-deputado Roberto Jefferson –, capitanear a reação da Corte ao avanço bolsonarista sobre a democracia brasileira. Senhor do “Inquérito das Fake News”, Alexandre de Moraes resolveu bater de frente com o ecossistema de desinformação arquitetado no seio do bolsonarismo. Como as redes sociais constituem o principal meio de difusão das mentiras produzidas nesse ambiente, era apenas questão de tempo até que Xandão entrasse em rota de colisão com alguma delas. E é aí que entra Elon Musk.

    Bilionário sul-africano radicado nos Estados Unidos, Musk divide seu tempo entre empreendimentos grandiloquentes (como levar o homem a Marte) e proselitismo político. A compra do Twitter – posteriormente renomeado para X, um dos piores episódios de rebranding de todos os tempos – veio justamente para conferir-lhe o poder de influenciar o debate político a nível global. Alegando que a liberdade de expressão deve ser total e imune a qualquer tipo de restrição, Musk derrubou os filtros do Twitter e restabeleceu contas que antes estavam suspensas, como a do ex-presidente norte-americano Donald Trump, responsável pela infame tentativa de golpe em 6 de janeiro de 2021.

    Deixemos de lado o facto de que Musk mantém negócios com a ditadura chinesa, onde o Twitter é proibido desde sempre. Deixemos de lado, também, o facto de que Musk cumpre obsequiosamente as ordens de exclusão de contas emitidas pelos governos da Índia e da Turquia. A grande questão é: uma corte de Justiça pode determinar a exclusão por inteiro de uma rede social utilizada por milhões de nacionais?

    Elon Musk

    Para melhor compreensão da controvérsia aos não versados nas letras jurídicas, vamos recorrer a uma metáfora futebolística:

    Imagine, por exemplo, um sujeito erguer um estádio para explorar comercialmente o que se faz nele. Se o que se passa no interior do local é apenas um inocente jogo de futebol, tudo bem; o Estado fica do lado de fora e não tem nada que se meter lá dentro. Agora, se em partes da arquibancada dessa arena existe gente defendendo abertamente o nazismo (crime), trocando conteúdo de pedofilia (crime) ou articulando contra a democracia (crime também), ou o dono do estádio toma uma providência, ou o Estado tem o dever de entrar lá para dar fim à balbúrdia.

    Foi exatamente isso que aconteceu no caso do Twitter no Brasil. Tendo verificado a existência de contas que praticavam crimes através dessa plataforma, Alexandre de Moraes notificou a empresa para que tais contas fossem removidas. Como Musk se recusasse a cumprir essas ordens, Xandão impôs multas à empresa para que as determinações fossem cumpridas. Ignorando as multas, restou a Moraes ameaçar com a prisão dos representantes legais da rede.

    Vem Elon Musk e faz o quê? Retira a representação legal do Twitter no Brasil. Ao fazê-lo, a rede social deixa de atender a uma determinação expressa do Marco Civil da Internet, segundo o qual toda empresa que comercie dados de brasileiros deve, obrigatoriamente, submeter-se à legislação brasileira e, para esse efeito, possuir representante legal no país. A menos que se queira defender a hipótese de que um bilionário qualquer possa erguer um espaço imune às leis e à jurisdição do Brasil, não há o que criticar na decisão de suspensão emitida por Alexandre de Moraes.

    Claro, a decisão do ministro não veio sem efeitos colaterais indesejados. Assim como no exemplo do estádio acima, muita gente usava o Twitter legalmente, para fins de informação e compartilhamento de pensamentos (inclusive este que vos escreve). Como não havia hipótese de a Justiça intervir diretamente para excluir somente os criminosos da rede, só lhe restou a alternativa de fechá-la por inteiro. E aí 20 milhões de usuários que não tinham nada a ver com a briga de Musk com Moraes tiveram de migrar para o BlueSky ou outro aplicativo assemelhado.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    Mas de quem foi a culpa pela suspensão da rede? Do ministro do Supremo, que teve suas ordens solenemente descumpridas? Ou do dono da plataforma, que deliberadamente perseguiu esse objectivo para fins políticos?

    Apenas para esclarecer do que exatamente se está a tratar, logo após as eleições, por exemplo, o comentarista da rede Jovem Pan, Paulo Figueiredo (neto do último ditador-general do Brasil, João Figueiredo), veio a público “denunciar” três generais do Alto-Comando do Exército por se recusarem a uma “ação mais efectiva” das Forças Armadas contra o resultado eleitoral. A idéia, por óbvio, era intimidar os estrelados a aderir ao golpe gestado nas hostes bolsonaristas. É esse tipo de “liberdade de expressão” que Elon Musk diz defender.

    Os seguidores de Voltaire ou os adeptos de uma linha mais chomskyana de pensamento sempre poderão argumentar: “mas não haverá aí censura prévia?” E a resposta a essa pergunta é um rotundo não.

    No nosso ordenamento jurídico, a regra é a liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inc. IX, da Constituição Federal). Como todo direito, este também se sujeita a limites. Do contrário, teríamos que considerar como inconstitucionais, por exemplo, os crimes de injúria, calúnia e difamação.

    Estabelecida essa premissa, resta claro que o caso de Alexandre de Moraes contra o Twitter está longe de caracterizar “censura prévia”. Não é que Xandão estabeleceu um departamento para escrutinar todo e qualquer pensamento que vai ao ar nessa rede social. Pelo contrário. Diante de reiterados abusos cometidos por indivíduos previamente determinados, o Judiciário intervém para tirar deles o megafone que a rede social lhes provê.

    Repare, leitor amigo, que nem sequer o “pensamento” dos sujeitos bloqueados está tolhido. O que lhes é suprimido é o poder de amplificar o discurso. Trata-se de medida razoabilíssima e plenamente compatível com nosso ordenamento constitucional, ainda mais quando os crimes praticados por esses cidadãos têm como alvo a própria democracia.

    woman in dress holding sword figurine

    Curioso é também observar a ironia (e também a ignorância) de ver esses mesmos sujeitos irem se socorrer do ordenamento jurídico norte-americano para defender uma liberdade de expressão “absoluta, ampla e irrestrita”. Lá, onde o sujeito pode até queimar a bandeira do próprio país como forma de protesto (Texas vs Johnson), são aplicadas rotineiramente as chamadas gag orders, que nada mais são do que “ordens de silêncio”. No julgamento em que foi condenado por fraude contábil, decorrente de pagamentos ilegais destinados a esconder o caso extraconjugal que mantivera com uma atriz pornô, Donald Trump recebeu uma. E ninguém a sério, nem aqui nem lá, veio a público reclamar pela aplicação da First Amendment da Constituição dos Estados Unidos.

    Obviamente, Alexandre de Moraes não é Deus e suas decisões nem sempre são as mais acertadas. A proibição das VPNs e o bloqueio das contas da Starlink para forçar o pagamento das multas impostas ao Twitter são juridicamente questionáveis e dão margem a justos e sinceros receios por parte de pessoas que podem ser acusadas de tudo, menos de bolsonaristas. Em outra oportunidade, para não vos cansar com um texto já deveras longo, será possível abordar onde, quando e como Xandão errou. No caso da suspensão do X, entretanto, sua determinação não poderia estar mais acertada.

    O que falta ao debate público nesse particular, tanto em relação aos embates políticos quanto aos que são retratados nos meios jurídicos, é um pouco mais de conhecimento e um pouco menos de espuma.

    Quanto à Constituição brasileira, vai bem, obrigada.

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