Autor: Ana Luísa Pereira

  • Sonho de um triângulo amoroso

    Sonho de um triângulo amoroso

    Título

    O homem sentimental

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Salvato Teles de Menezes)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Como recentemente aqui o descrevemos, Javier Marías, desaparecido no final de 2022, é considerado um dos maiores escritores contemporâneos.

    Nascido em Madrid (1951), o autor espanhol ganhou uma série de prémios e distinções pela sua vasta obra, sendo disso exemplo, o Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer, com Assim começa o mal e Os enamoramentos; Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award, com Coração tão branco; Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger, com Amanhã na batalha pensa em mim. Todos publicados, em Portugal, pela Alfaguara.

    Membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011, Javier Marías, além de escritor, foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid, e tradutor, tendo obtido o Prémio Nacional de Tradução em Espanha (1979), com a sua tradução de Tristram Shandy.

    O homem sentimental, agora reeditado, é uma viagem onírica, a descrição de um sonho, escrita de uma assentada. Um sonho sobre eventos que decorreram quatro anos antes desta redacção e cuja verosimilhança causa, no leitor, a dúvida sobre o que é sonho e o que realmente aconteceu.

    O narrador descreve, então, o sonho e/ou os acontecimentos ocorridos como se estivesse numa poltrona a assistir a um filme a preto a branco, eventualmente mudo, tendo, por isso, necessidade de incluir as falas. Um narrador autodiegético e omnisciente, narrando na primeira pessoa e como participante, que tem o domínio de todos os acontecimentos. Motivo que nos conduz à dúvida.

    Entre o sonho e a realidade de anos atrás, fica uma descrição minuciosa e profunda do que a personagem percebe, só então, ter vivido e, sobretudo, sentido. “Agora que vos conto este sonho e história, creio ter-me abstido de pensar durante quatro anos” (p. 46).

    A solidão é o primeiro e mais forte sentimento, o que um cantor lírico em ascensão sente, só comparável à de um caixeiro-viajante. Alguém que vive de cidade em cidade, tendo na mala de viagem a sua única e permanente companhia, sem criar raízes. O que talvez ajude a compreender o registo onírico. Registo que acontece como um porto seguro, como se o narrador quisesse agarrar esse reduto por intermédio da sua escrita.

    É assim mesmo que se inicia esta trama psicológica, com as semelhanças entre um e outro viajante. É de tal modo pesada que, perpassando as diversas personagens da história onírica, a solidão é, ela mesma, uma figura narrativa.

    É a mesma que permite a contemplação e observação das vidas dos outros, por parte do cantor lírico, León de Nápoles.

    A descrição do sonho começa com uma viagem de comboio, durante a qual, o narrador tem oportunidade de observar as personagens que o acompanham no sonho, aquelas que integram o triângulo amoroso, Natalia Manur, o seu marido banqueiro, Hieronimo Manur, e ainda o assistente pessoal do casal, Dato. Mas esta informação só a obteria posteriormente.

    Durante a viagem, León detém-se nas mãos das três pessoas. A partir da sua observação, imagina e cria a história de cada uma das personagens que viria a conhecer num hotel de Madrid, cidade onde se desenrola o antes e o depois de triângulo amoroso.

    Madrid, onde o cantor tem uma série de ensaios para a estreia de Otello, de Verdi, e com os quais somos confrontados com a ascensão e a queda de outro cantor lírico, numa clara alusão ao envelhecimento e à angústia que a perda de protagonismo pode conduzir.

    Ao descrever os acontecimentos passados com outro cantor, o narrador acaba por visualizar a sua própria decadência num futuro que espera longínquo. Não é este o resultado da morte e envelhecimento dos outros sobre nós? O de nos lembrar que também nós somos finitos…

    O sonho em relato também engloba a história de um outro amor passado, que integrava outros vértices de um duplo triângulo amoroso, só na aparência, mais complexo que o usual.

    Como afirma no primeiro epílogo, o escritor espanhol Juan Benet, não há nada de novo no tema, apenas e tanto, a profundidade do sentimento de um homem que paira entre o sonho e a realidade (para o leitor, também onírica).

    No segundo epílogo do livro, do próprio autor, Javier Marías, o leitor obtém mais elementos para compreender o desfecho quase inusitado que poderá, até, provocar uma espécie de ‘água na boca’, um à espera do resto. Só que não.

    A provocação sublime do autor é esta mesma, a de nos transportar ao longo de uma viagem contada por intermédio de um sonho refletido e reflexivo. De tal modo que, como na plateia, observamos o enredo sem nunca alcançar o verdadeiro acontecimento do triângulo amoroso. A imaginação será o nosso apoio e co-participação… se quisermos.

  • Do contágio à imbecilidade humana

    Do contágio à imbecilidade humana

    Título

    A psicologia das massas

    Autor

    GUSTAVE LE BON (tradução: Maria Albuquerque Caiado)

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O ensaio clínico, A psicologia das massas, finalmente publicado em português europeu pela Alma dos Livros, é um original de 1895. É, por isso, de ressalvar que, à época, os modos de escrita de Ciência eram distintos, em particular, tratando-se de um ensaio. Um tipo de publicação que tendencialmente se realiza sem a revisão dos pares.

    Não significa que esta avaliação não se concretize ou não tenha sido vivenciada pelo próprio autor. Com efeito, Gustave Le Bon (1841-1931) terá sido amplamente ignorado e até difamado por parte da academia francesa por causa da sua visão política.

    Este repúdio não impediu que tivesse obtido, em 1879, o Prémio Godard da Academia Francesa de Ciências, nem que as suas obras influenciassem uma série de figuras públicas, como por exemplo os políticos Roosevelt e Hitler e autores como Freud e Ortega y Gasset. Em relação aos primeiros, a defesa da existência de uma raça superior, a ariana, terá sido “música para os ouvidos” de Hitler.

    Quanto à influência sobre Sigmund Freud, o determinismo social, que Gustave Le Bon resgatou de Charles Darwin, foi um forte motivo para que Freud escrevesse um livro sobre a obra que aqui apreciamos: A psicologia das massas e a análise do eu.

    Mas a sua influência foi muito mais além, dado ser considerado um dos fundadores da Psicologia Social, para a qual esta A psicologia das massas muito terá contribuído – ainda hoje, esta obra é uma referência para a compreensão do funcionamento e poder dos grupos e multidões.

    Gustave Le Bon, além de apaixonado pela escrita, foi uma pessoa muito observadora e curiosa, características imprescindíveis aos cientistas. No seu caso, o interesse era vasto, e incluía a Psicologia, Medicina, Física, Sociologia e Antropologia, sendo que as viagens com fim investigativo muito colaboraram para aumentar a sua mundividência e compreensão dos modos de organização dos diferentes povos.

    A sua experiência como médico oficial do Exército francês, aquando da guerra Franco-Prussiana, também lhe proporcionou a oportunidade de observar o comportamento dos militares sob condições de forte stress e sofrimento. Valeu-lhe ainda a nomeação de Cavaleiro da Legião de Honra.

    Outras vivências terão enriquecido o seu repertório investigativo, como por exemplo, a Comuna de Paris, durante a qual não lhe faltaram situações que, posteriormente, usaria para a redacção desta obra, sobre o funcionamento psicológico das multidões.

    Neste livro, o autor começa por descrever as principais características das massas, destacando a “impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, ausência de julgamento e espírito crítico, exagero de sentimentos”. Caracteres especiais que concorreram para que Le Bon teorizasse a “Lei Psicológica da Unidade Mental das Massas”.

    É provável que o uso de certos termos e conceitos, como o de raça ariana, incomode os leitores contemporâneos, mas serviu, como referido, para a posterior reivindicação e pseudo-investigações do Instituto dirigido Heinrich Himmler, como aliás, já aqui se recenseou.

    A linguagem colide, igualmente com o que hoje temos como politicamente correcto. Com efeito, para demonstrar que a composição de um grupo ou multidão pouco ou nada influencia as decisões por si tomadas, seja o grupo constituído por ilustres intelectuais ou por básicos operários, Le Bon, afirma que “as decisões de interesse geral tomadas por uma assembleia de pessoas ilustres, mas de diferentes especialidades, não são sensivelmente superiores às que uma reunião de imbecis tomaria. Só apresentam em comum aquelas qualidades medíocres que todos possuem. Nas massas, é a estupidez e não a inteligência que se acumula” (p. 33).

    Este excerto ilustra o tom de grande parte da obra. Reitera-se, por isso, a necessidade de enquadrar o texto ao contexto sociocultural de então.

    É de reforçar, porém, que algumas das teorias formuladas pelo autor continuam a ser um recurso para a compreensão da temática, em particular a teoria do contágio: “O contágio é tão poderoso que impõe às pessoas não apenas certas opiniões, mas também certas formas de sentir (…) É sobretudo pelo contágio, nunca pelo raciocínio, que se propagam as opiniões e as crenças das massas” (p. 107).

    Este mecanismo, complementado pela afirmação e repetição é, para Le Bon, o meio de acção dos líderes, que sabendo do efeito do anonimato do indivíduo quando inserido na multidão, encontra aqui a estratégia de influência hipnótica. Isto, porque como observou Le Bon, o indivíduo perde-se, para formar a tal unidade mental das massas.

    Ainda que os termos e expressões possam ferir susceptibilidades actuais, a verdade é que esta obra é uma ferramenta deveras interessante para compreender o efeito da publicidade (quer comercial, quer de propaganda) que actua por intermédio da afirmação, repetição e contágio. O que tem como consequência que a multidão assuma vida própria que, com o exagero dos sentimentos e emoções que lhe é característico, induza à irracionalidade – outro caractere particular das massas.

  • A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    A derradeira viagem pelas letras esquecidas

    Título

    Roteiro afetivo de palavras perdidas

    Autor

    ANTÓNIO MEGA FERREIRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Outubro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Jornalista, escritor e gestor cultural, António Mega Ferreira, desaparecido há menos de dois meses, no final de Dezembro, nasceu na lisboeta Mouraria em 1949, e terá dito que “gostaria de ficar conhecido na História como um tipo que fez essas coisas todas na área da cultura”.

    Com mais ou menos polémica, alguma coisa ficou feita. Mega Ferreira coordenou a candidatura de Lisboa à Expo’98, da qual foi depois comissário executivo, tendo em seguida presidido ao Parque Expo, ao Oceanário e ao Pavilhão Multiusos de Lisboa.

    Além disso, dirigiu a Fundação do Centro Cultural de Belém entre 2006 e 2012, tendo também ocupado a liderança executiva da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC).

    Mas antes de tudo isto, foi jornalista, passando pelo Expresso, ocupou a chefia de redacção do Jornal de Letras e da RTP2, e fundou ainda as revistas Ler e Oceanos.

    Deixou também mais de 30 obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. E foi com Crónicas italianas, publicada em 2021, que receberia o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga.

    Na sua última obra em vida, Roteiro afetivo de palavras perdidas, Mega Ferreira desenha-nos um repositório de palavras em desuso ou “olvidadas”, para que possamos reviver ou reconhecer, com ele, aquelas que a sociedade portuguesa tende a dar “sumiço” do seu riquíssimo vocabulário. E é, em sentido metafórico também, um livro de viagens. Uma viagem no tempo por uma sociedade pouco cosmopolita e quase ignorante, a que vivia no “mundo salazarista”, com um mundo de “clichés” e de propaganda política: “Uma pavorosa ignorância de tudo o que se passava além da nossa fronteira”.

    O que provocava uma espécie de ressentimento por parte das chamadas elites que importavam e usurpavam, de forma faceciosa, palavras da língua francesa, como “galheta” ou “psiché”, e outras que foram substituídas por termos anglo-saxónicos, como seja “métier” (por especialista – tão em voga nos últimos três anos), ou mesmo “aeroplano”.

    Em cada palavra, assim temos uma viagem no tempo. Mega Ferreira conduz-nos, ora pelos caminhos obscuros da criação de palavras, ora pelas memórias da sua infância, ora pelos trilhos da História, ora pelas páginas de muitos livros, para nos apresentar de forma deliciosa e afectuosa algumas palavras que se vão perdendo e outras que se recuperam, mas com outros sentidos.

    “Geringonça” é disso exemplo, um neologismo, diz-nos o autor, já que o seu uso na política é algo inédito. “Nos longínquos anos 50 designava uma traquitana, um carro velho e desconjuntado pronto para ir para a sucata”. Mas Mega Ferreira vai mais atrás e recorre a outras obras para dar a conhecer as origens desta e de outras palavras no léxico português, para remeter “geringonça” para “algo mal contruído ou frágil”.   

    É muito provável que o leitor/a acima dos 40 anos se identifique e até emocione com uma série de “palavras perdidas”, como por exemplo, “desaustinado”, “telefonia” ou mesmo “inalador” – quantos de nós terão sentido o aroma fresco de Vicks VapoRub, com que nos “friccionavam o peito quando uma ponta de tosse infantil” nos assaltava.

    Muitas outras palavras são capazes de nos desfiarem sorrisos. Ao todo são oito dezenas, mas Mega Ferreira tinha uma lista de 250 entradas no seu roteiro inicial. Quem sabe fique o desafio para recuperar, ou pelo menos, registar e guardar algumas palavras e expressões que nos são caras, nos nossos cofres e cadernos, para que a elas recorramos sempre que nos apercebermos que alguns “famigerados” “estafermos” nos estão a “infernizar” com os seus “despautérios”.

    Por curiosidade, “padralhada” não está neste inventário, “mas bem poderia estar”, como confessou Mega Ferreira, que contava que o pai quase vociferava quando afirmava “é preciso afastar essa padralhada toda”. Mas este país, este Portugal, parece continuar preso ao “pecado” – esta, sim, uma palavra deste Roteiro afetivo de palavras perdidas que, apesar de não se ter “perdido”, talvez comece, finalmente, a ficar em desuso.

  • Crimes em Hollywood

    Crimes em Hollywood

    Título

    Os domínios do lobo

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Novembro de 2022)

    Cotação 

    16/20

    Recensão

    Desaparecido no ano passado, Javier Marías foi um escritor espanhol que nasceu em Madrid em 1951 e morreu sem o maior reconhecimento literário mundial – o Prémio Nobel –, apesar de integrar a lista de candidatos por várias vezes. Não obstante, prémios não faltam a um dos maiores escritores contemporâneos.

    Com efeito, prémios e distinções foram vastos para grande parte das suas obras, como por exemplo, Assim começa o mal, Os enamoramentos (Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer), Coração tão branco (Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award), Amanhã na batalha pensa em mim (Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger). Todos estão publicados em Portugal pela Alfaguara.

    O autor espanhol ganhou, ainda, diversos prémios pelo conjunto da sua obra, como o Prémio Literário Europeu em 2011. Note-se que Javier Marías chegou a rejeitar o Prémio Nacional (de Espanha) da Literatura em 2012, por considerar não ser da responsabilidade do Estado a atribuição desse tipo de galardão.

    Além de escritor, ainda foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid. Era membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011. Foi também tradutor, sendo de destacar a sua tradução de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, que lhe valeu o Prémio Nacional de Tradução em Espanha em 1979.

    Para quem é admirador e leitor habitual de Javier Marías, é provável que esta sua primeira obra de 1971, reeditada em 2007 – e, agora finalmente publicada em Portugal pela Alfaguara, com tradução de Ana Maria Pereirinha – seja, para muitos, um mero exercício de escrita, um primeiro romance, quase juvenil, tal é a inocência e dedicação.

    Porém, convém referir que este livro foi, à época, um marco pelo afastamento do realismo social de Espanha. Por ser um dos primeiros autores da sua geração a distanciar-se dos temas da ditadura de Franco, Javier Marías gerou algum desconforto, o que lhe terá valido fortes críticas e mesmo censura.

    De facto, Marías desloca-se para outros espaços, tempos e realidades. Uma ode ao cinema de Hollywood de então, poder-se-á dizer, dada a manifesta influência que o autor admite ter sentido na Cinémathèque de Henri Langlois, em Paris, para onde fugiu aos 17 anos. Foi nessas salas que passou uma temporada, “o único lugar do mundo em que podia estar em contacto permanente com esse material” (pág. 18).

    O que é de salientar é a qualidade da escrita, apesar da juventude do autor – escreveu-o com 17-18 anos (e publicou-o aos 19). A intensidade da narrativa é um vislumbre do que se seguiria. Um livro que pode ser visto como um ponto de partida para ler e conhecer a profunda obra de Javier Marías.

    Os domínios do lobo resulta de uma série de histórias que se podem ler isoladamente, mas que estão ligadas entre si, pelo desmoronamento da família Taeger, uma família abastada de Pittsburgh, na Pensilvânia. O livro começa com os primeiros problemas, em 1922, sendo possível compreender alguns dos desenlaces em diversas histórias posteriores.

    A estética da tela cinematográfica caminha a par e passo com a crueldade descritiva em alguns momentos, como cruéis foram os tempos da guerra civil estadunidense (ou da Secessão) e da escravatura e da tentativa da sua abolição, entre 1861 e 1865.

    Dos cowboys aos gangsters, da Lei Seca até à mulher fatal do cinema mudo, o livro combina o cinema negro com a tragicomédia que provoca, no leitor, um entusiasmo que só um escritor talentoso consegue transmitir.

    É, pois, uma leitura recomendada para os amantes do cinema de Hollywood, em particular da sua época áurea. Mas igualmente a todos os leitores que querem conhecer ainda melhor a vasta e excelente obra de um dos autores ibéricos mais reconhecidos.

  • A sobranceria lusitana, versão internet

    A sobranceria lusitana, versão internet

    Título

    O segredo da descoberta portuguesa das Américas

    Autor

    JOSE GOMES FERREIRA

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Novembro de 2022)

    Cotação

    9/20

    Recensão

    Nascido numa aldeia de Tomar, onde viveu até aos 14 anos, José Gomes Ferreira (JGF) é licenciado em Comunicação Social, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa.

    Fez parte da redação da rádio TSF e do jornal Público. Desde 1992, está ligado ao canal de televisão SIC, na qual assume, actualmente, o cargo de director-adjunto de Informação. Além disso, é apresentador do programa Negócios da Semana na SIC Notícias e comentador nesta estação.

    Paralelamente, é autor de vários livros, como sejam O meu Programa de Governo (2013), Carta a um bom português (2014) e A vénia de Portugal ao regime dos banqueiros (2017), publicados pelo grupo Leya. Mais recentemente, JGF voltou-se para temas históricos, tendo publicado Factos escondidos da História de Portugal (2021) e surge agora com O segredo da descoberta portuguesa das Américas – ou as provas irrefutáveis de como Portugal chegou ao Novo Mundo antes de Cristóvão Colombo, ambos pela Oficina do Livro (também do grupo Leya).

    A referência ao primeiro livro de “História” do autor, juntamente com este “O segredo…” decorre do facto de o autor tentar pôr em prática, em ambos os casos, a ideia de descobrir um “ovo de Colombo”. Num primeiro vislumbre, o leitor mais inocente fica realmente incrédulo.

    Com efeito, ante tantas “provas irrefutáveis de como Portugal chegou ao Novo Mundo antes de Cristóvão Colombo”, como é que os historiadores e outros cientistas afins nunca se chegaram à frente e questionaram a narrativa dominante? Porquê a negação de tais provas documentais?

    Para JGF, a recusa em atender a determinadas fontes – muitas, afirma, queimadas pela Santa Inquisição, outras escondidas como segredo da Monarquia – está relacionada com o Tratado de Tordesilhas. Na sua perspectiva, a Monarquia Portuguesa não queria, de todo, revelar que os portugueses andavam por mares nunca dantes navegados, desrespeitando, assim, aquele compromisso assinado com o Reino de Castela.

    Tal como JGF foi em busca de informação na Internet, a fim de conseguir “provas irrefutáveis de como Portugal chegou ao Novo Mundo antes de Cristóvão Colombo”, também nós nos perguntámos sobre como era possível que só agora se descobrisse o “ovo de Colombo”, e ainda por cima, por alguém de tão reputada experiência científica nas áreas da História, Cartografia, Náutica, entre outras…

    Além de especular sobre o que poderia ter ocorrido entre 1472 e 1520, JGF usa fontes da forma que mais lhe convém, incluindo a fotomontagem de mapas de escalas incomparáveis. Basta lembrar que a precisão dos instrumentos de medição do século XXI é totalmente diferente da dos instrumentos usados pelos navegadores de finais do século XV.

    JGF tem o mérito de, pelo menos, nos fazer pensar sobre o método mais ou menos científico. Não obstante, para que as teorias sejam substituídas, é necessário mais do que aventar hipóteses confirmadas com recurso ao uso selectivo de determinadas fontes – não só questionáveis, mas também, por vezes, descontextualizadas.

    Uma das sugestões que se pode dar a JGF é em relação à revisão crítica deste “O segredo….”. Em vez de recorrer a um engenheiro, talvez tivesse sido mais frutuoso dar a ler e discutir as suas teorias a um historiador oficial, ainda que este fosse um forte defensor de uma antítese.

    De qualquer forma, JGF pode estar descansado, porque cobertura mediática não lhe falta, já que se pode dar ao luxo de promover o seu livro em programas da sua própria SIC, como foi o caso da “Casa Feliz”.

  • Correntes de plástico

    Correntes de plástico

    Título

    Histórias bizarras

    Autora

    OLGA TOKARCZUK (tradução: Teresa Fernandes Swiatkicz)

    Editora

    Cavalo de Ferro (Setembro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Nascida na Polónia, em 1962, Olga Tokarczuk, sendo psicóloga de formação, é sobretudo escritora, ensaísta, poeta e guionista. É ainda uma forte activista social, cujos compromissos políticos terão motivado ameaças de morte no seu país.

    Foi também a primeira autora polaca a ganhar o Prémio Internacional Man Booker Prize, em 2018, com Flights (2017) – a tradução inglesa de Bieguni (2007) –, além de ter recebido outros prémios relevantes de literatura, o maior dos quais o Prémio Nobel de Literatura, de 2018, pela sua “imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida”.

    Este cruzamento de fronteiras, narrado de forma livre, como afirma a própria autora, é o que nos envolve neste conjunto de 12 Histórias bizarras – ainda que Olga Tokarczuk nos alerte que o “virar de páginas está a passar à história”.

    Em cada um dos contos desta obra, publicada em Portugal pela Cavalo de Ferro, o seu objetivo é alcançado: mais do que entreter, Olga Tokarczuk provoca o leitor, convocando-o a reflectir sobre alguns dos temas e questões prementes da humanidade ou da sua ausência.

    Com efeito, a tensão é permanente. De forma latente, o leitor é quase obrigado a posicionar-se (ou, pelo menos, a pensar) em face de determinadas situações e dilemas éticos, nomeadamente, em relação à necessidade urgente de se proteger o que ainda resta do Planeta Terra.

    Numa das histórias, As crianças verdes, a natureza é descrita como “um grande nada”. Mas não apenas. Ainda no mesmo conto, o narrador, ao reflectir sobre os acontecimentos que viveu enquanto médico de Sua Majestade em 1656, observa que uma das grandes causas da guerra é a religião, porque esta “divide mais do que une, o que não é difícil de admitir, tendo em conta a quantidade de cadáveres resultantes de motivos religiosos, incluindo as guerras hoje em dia travadas” (p. 24).

    Em Conservas, a autora concede um certo apaziguamento ao castigar um filho pelo seu “pecado” da preguiça: a mãe deixa-lhe uma série de frascos de conserva, preparados enquanto ele se dedicava “à sua ocupação preferida: esvaziar latas de cerveja sucessivas e seguir dois grupos de homens, que (…) corriam atrás de uma bola…” (p. 42).

    A verossimilhança de Uma história verdadeira é angustiante pelo modo como a autora trata a perda de identidade, a qual se constrói por intermédio de uma série de símbolos que distinguem os seres humanos uns dos outros. Num país estrangeiro, um professor perde a sua dignidade, ao ser confundido com um assassino, sem ter como provar o contrário. Ao perder os documentos, a roupa e o seu estatuto e papel, veiculados por essas mesmas garantias simbólicas fica sem chão. E se fosse o leitor? – a questão que nos inquieta. Uma história verdadeira também nos remete para a indiferença gritante e galopante ante a miséria dos outros.

    O insólito verosímil perpassa outros contos que nos conduzem pela ficção científica, a distopia e a fantasia. As realidades fragmentadas descrevem-nos a crescente desumanização e a busca pela eternidade, como acontece nos contos A montanha de Todos-os-Santos e Calendário dos feriados humanos.

    As fronteiras entre a cultura mais ancestral e a de um futuro de ficção científica esbatem-se, dando origem a catástrofes bizarras que procuram dar resposta a uma das grandes questões da humanidade: Para onde vamos?

  • A História como thriller

    A História como thriller

    Título

    O esplendor e a infâmia

    Autor

    ERIK LARSON (tradução: Miguel Diogo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Erik Larson é autor de oito livros, seis dos quais são best-sellers do New York Times. As suas duas mais recentes obras, A última viagem do Lusitânia e, este, O esplendor e a infâmia atingiram o primeiro lugar nessa lista, pouco depois do seu lançamento.

    Na capa do livro editado em Portugal, pela Publicações Dom Quixote, pode ainda ler-se que é o livro do ano para Bill Gates e Barack Obama – o que, desde logo, cria muitas expectativas. E, com efeito, a primeira coisa que se pode dizer é que o livro nos oferece um relato cativante e envolvente, que nos impele a ler esta lição de História como se de um thriller de ficção histórica se tratasse.

    Esta é uma das suas virtudes, a de contar a História, formando um mosaico de pequenas e grandes histórias de várias figuras proeminentes, como por exemplo, as de Winston Churchill, naturalmente, Frederick Lindemann (amigo e conselheiro científico de Churchill), General Pug Ismay (amigo íntimo e confidente), Lord Max Beaverbrook (chefe do Ministério da Produção Aeronáutica); mas também de figuras secundárias, como a sua filha, Mary Churchill, e John Colville (secretário particular de Churchill). Os diários destes últimos são dois dos muitos registos diarísticos a que o autor recorre.

    Este é outro dos aspectos que vale a pena destacar. Mostra-se notável o tipo e a quantidade de fontes que o autor consultou para nos narrar um dos períodos mais sangrentos para a Grã-Bretanha, durante a II Guerra Mundial, que inclui a campanha Blitz: desde o dia 10 de Maio de 1940 – dia em que Churchill é nomeado primeiro-ministro – até 10 de Maio de 1941. Foi um período marcado pelo crescente protagonismo de Churchill, até pela série de discursos que proferiu com o objetivo de dar esperança e galvanizar Inglaterra. Como é sabido, a sua oratória era magnífica.

    Além dos referidos diários, o autor teve acesso a documentos oficiais, recentemente desclassificados, a escritos íntimos e oficiosos, como cartas da mulher de Churchill, Clementine, e eminentes figuras políticas de então, bem como a diários incluídos no Mass Observation Project – um projecto iniciado em 1937, na Grã-Bretanha, e que incluía os registos diarísticos de um conjunto de escritores voluntários. O objectivo era criar uma “antropologia de nós próprios”, a fim de conhecer a vida quotidiana das pessoas comuns da Grã-Bretanha.

    O recurso a este tipo de fonte permite-nos chegar à intimidade de Churchill e da sua família, uma vez que o autor nos revela traços de personalidade e idiossincrasias de muitos dos actores e jogadores da II Guerra Mundial, nomeadamente do próprio primeiro-ministro. No final do livro, fica-se com a sensação de que se conhece o “Velho Leão” intimamente, como se se tivesse privado com Churchill, tal é o grau de detalhe do livro.

    A descrição dos muito agitados, e sempre com muitos convidados, fins-de-semana em Chequers, a casa de campo do primeiro-ministro inglês, é disso exemplo. Eram dias de trabalho e de muitas decisões, mas com jantares de gala, no fim dos quais Churchill poderia dançar nu e de charuto na boca.

    A História oficial é, assim, intercalada com a vida privada e até pensamentos e reflexões íntimas dos diversos intervenientes da II Guerra Mundial. A negociação entre Churchill e Roosevelt é bem explorada, sendo possível compreender como decorreu todo esse processo, quer oficial, quer oficiosamente.

    Note-se, porém, que os pormenores podem ser excessivos, dado que em alguns momentos sobressai uma espécie de caricatura de Churchill. Esta é uma das fraquezas do livro – o excesso de detalhe pode, inclusivamente, fazer com que o leitor se perca na História.

  • Memórias de um quase grande pianista

    Memórias de um quase grande pianista

    Título

    Lições

    Autor

    IAN McEWAN (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Setembro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A obra de Ian McEwan é internacionalmente reconhecida e aclamada pela crítica mundial. Entre muitos outros, o autor ganhou o Prémio Somerset Maugham, em 1976, pela sua primeira colecção de contos, Primeiro amor, últimos ritos; o Prémio Whitbread Novel (1987) e o Prémio Fémina Etranger (1993), para A criança no tempo. Foi seleccionado para o Man Booker Prize for Fiction inúmeras vezes, tendo ganho esse prémio com Amesterdão, em 1998. Um dos romances mais conhecidos é Expiação, adaptado para o cinema, cujo filme ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme Dramático, e o Óscar para a Melhor Banda Sonora.

    De salientar que, em 2011, foi agraciado com o Prémio Jerusalém, uma honra outorgada a escritores cujos trabalhos se destaquem por lutar pela liberdade individual na sociedade.

    Lições é o mais recente romance do autor britânico. O seu lançamento em Portugal, pela Gradiva (como toda sua obra), aconteceu em simultâneo com a edição original inglesa, como, aliás, tem sido habitual.

    Inabitual é a sua extensão, 650 páginas. Uma dimensão que resulta, como é referido pelo Sunday Times, de “uma meditação poderosa sobre a história da humanidade através do espelho da vida de um homem”.

    De facto, é uma “grande narrativa”, que incorpora outras grandes e pequenas narrativas, a da História do século XX. A guerra é a constante histórica das “pequenas narrativas” das diversas personagens. Se os ascendentes da personagem principal, Roland Baines, vivenciaram a primeira e/ou a segunda Grande Guerra, com a busca do grupo Rosa Branca, por exemplo, o próprio vivenciou a Guerra Fria, bem como a iminência de uma terceira guerra mundial, aquando da Crise dos mísseis de Cuba, e a Guerra das Malvinas. A queda do muro de Berlim e, com ele, o fim da União Soviética, a destruição das Torres Gémeas e os ataques ao metro de Londres, em 2005, são alguns dos episódios a que o autor recorre para contar a vida de Roland Baines.

    É com o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, que a narrativa de Baines se inicia. Época em que se está a adaptar à vida de pai solteiro, depois de ter sido, inesperadamente, abandonado pela sua mulher, Alissa, que lhe deixa um bilhete e vai embora para se dedicar à escrita de romances. Sozinho, com um bebé de sete meses, Roland tem de aprender a fazer tudo, inclusivamente, a proteger o filho contra as radiações provenientes de Chernobyl.

    O medo do nevoeiro provocado pelos gases e poeiras, vindos da Ucrânia, quase confundem o leitor quanto ao contexto temporal da história. Também as analepses constantes são intrigantes, remetendo-nos quer para a sua infância passada em Trípoli – onde o pai, militar britânico, estava destacado –, quer para os seus primeiros anos de estudante num colégio interno.

    Os sonhos recorrentes e essas viagens no tempo proporcionadas pela memória são o gatilho para agarrar o leitor. Miss Miriam Cornell, a professora de piano, é a protagonista desses sonhos e das suas reflexões e decisões que terão condicionado a sua vida – uma das lições que terá aprendido.

    O livro é, ele mesmo, uma grande lição. Lições de piano, de música clássica e mesmo de Jazz – o autor dá-nos a conhecer uma série de partituras e modos de as tocar, por intermédio das viagens ao tempo de aluno de Miss Cornell.

    É com estes vaivéns de memória que o enredo do livro se desenrola – sendo esta outra lição, a da percepção do tempo no corpo e a sua degenerescência. Memória que se aviva com recurso à fotografia e, sobretudo, ao diário. Como se, efetivamente, fosse fundamental criar, guardar e, claro, rever as memórias para se saber quem é, quem fica e quem vai. Memórias para a posteridade, mas sabendo que “a memória é fumo e espelhos” (pág. 469).

    A generosidade de Ian McEwan é imensa, dando-nos a conhecer obras primordiais da Humanidade. Neste Lições encontramos a sua interpretação de várias obras, como por exemplo, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e O golfinho, do poeta Robert Lowell, entre muitas outras.

    Sem dúvida que Ian McEwan é um autor/professor, daí que possamos afirmar que o título, Lições, está bem atribuído. Lições de história, de literatura, de música. Não menos importante, as lições de vida que Roland Baines foi aprendendo ao longo da sua longa vida.

    No final, num mundo carregado de incertezas, o seu maior medo é o nosso, pois “a liberdade de expressão, um privilégio cada vez menor, a desaparecer há mil anos” (p.640), poderá estar realmente em causa. A emergência deste PÁGINA UM é disso exemplo e consequência.

  • Do neo-realismo pacifista

    Do neo-realismo pacifista

    Título

    Romain Rolland: uma consciência livre

    Autor

    JORGE REIS

    Editora (Edição)

    Parsifal (Agosto de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Jorge Reis é o pseudónimo de Atilano de Reis Ambrósio, nascido em 1926, em Vila Franca de Xira, e falecido em 2005, em Paris. Alves Redol foi seu professor de Português, tendo sido, certamente, uma das pessoas a influenciar o seu percurso literário. Consta que dactilografou o romance póstumo de Redol, Os Reinegros, publicado três anos após a morte daquele escritor neo-realista.

    Outras influências terá tido, como as de Aquilino Ribeiro, de quem saiu em defesa aquando da edição do romance “Quando os lobos uivam” – obra censurada pelo Estado Novo. Aliás, uma das obras premiadas de Jorge Reis – Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Autores – é o seu Aquilino em Paris, publicado em 1987.

    Terá sido em Paris que se conheceram, cidade onde Jorge Reis se exilou, por ter sido obrigado à clandestinidade durante a ditadura. Em Paris, trabalhou no Centre Catholique Intellectuels Français e na RTF, onde era responsável e locutor de um programa para os emigrantes portugueses.

    Além de escritor, ensaísta e ativista, Jorge Reis traduziu obras de Balzac, Rabelais, Maupassant e discursos do General De Gaulle. Não é de estranhar, portanto, que se tenha encantado com a exuberância, diríamos, de Romain Rolland, Prémio Nobel da Literatura em 1915. Com efeito, a leitura do monumental Jean-Christophe, romance em 10 volumes, foi uma referência para muitos jovens da sua época.

    A publicação desta obra de Jorge Reis, sobre a vida de Romain Rolland, sucede por vontade da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, conforme afirma o seu director, António Mota Redol (filho de Alves Redol), no prefácio:

    “Este é um livro que Jorge Reis – o único dos escritores vila-franquenses que ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco da extinta, por Salazar, Sociedade Portuguesa de Escritores – deixou inédito, apesar das suas tentativas para o publicar”.

    Uma consciência livre e inconveniente, para muitos da época, por isso dizíamos exuberante. Tanto mais que a liberdade, o princípio por que Romain Rolland pautou a sua vida, não era, não é, e provavelmente nunca será, o princípio de vida mais apreciado pelas classes políticas e económicas dominantes.

    É sobre essa vida independente que o livro de Jorge Reis trata, uma obra deveras relevante para os leitores interessados pelos valores humanistas e pacifistas. Com efeito, Romain Rolland admirava profundamente Leon Tolstói e Mahatma Ghandi, grandes defensores da não-violência e dos valores pacifistas.

    Muito escreveu sobre as razões e consequências da Primeira Grande Guerra e do quão desumanizadora é toda a acção bélica. O parágrafo que se segue data de 1914, mas poderia ter sido escrito hoje mesmo, o que mais uma vez nos mostra que os europeus e a Humanidade, em geral, não terão aprendido nada com a História:

    Sei que tais ideias têm hoje poucas probabilidades de serem ouvidas. A jovem Europa, que arde na febre do combate, sorrirá de desdém, mostrando os dentes de lobacho. Mas quando descer o acesso de febre, ver-se-á mortificada e, talvez, menos orgulhosa do seu heroísmo carnífice”.

    A leitura do livro deste livro de Jorge Reis pode ser compreendida como um convite à reflexão e, sobretudo, a visitar ou revisitar a obra de Romain Rolland – na segunda parte do livro, encontramos excertos de alguns dos seus escritos –, para quem todos os seres vivos mereciam viver em liberdade e de forma digna e respeitada.

    Romain Rolland, um dos maiores representantes do neo-realismo, foi um humanista que agora valerá a pena conhecer (ou recordar, ou invocar), numa época em que a liberdade, a dignidade e o respeito pela pessoa humana parecem estar em risco crescente.

  • Os surreais dramas de Ismael

    Os surreais dramas de Ismael

    Título

    Consumidos pelo fogo

    Autor

    JAUME CABRÉ (tradução: Maria João Teixeira Moreno)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Autor do romance Eu confesso (2015), do livro de contos Quando a penumbra vem (2019) – também publicados pela Tinta-da-China – e de outros romances e guiões, Jaume Cabré é um dos escritores catalães mais conceituados e consagrados da atualidade. Terá sido com As vozes do rio Pamano (2004) que o autor terá ganhado maior visibilidade em Espanha e a nível internacional – já traduzido em 12 línguas.

    Neste Consumidos pelo fogo, Jaume Caubré conta-nos a história de Ismael, um professor de literatura e línguas, cuja existência rotineira e monótona é resultado de uma escolha. O enredo surrealista, e até metafísico, começa quando Ismael é despedido pela directora da escola, tão-só por ter tomado a liberdade de dar um poema catalão aos seus alunos, em vez de se limitar a abordar a literatura espanhola.

    O professor não se transforma na barata de Kafka, mas a sua condição é a de uma falena, borboleta nocturna, que paira numa existência absurda. A rotina, depois de quebrada, transforma-se numa viagem ziguezagueante entre o futuro ausente, um presente inverosímil e uma infância infeliz – o pai chegou a lançar-lhe gasolina.

    O retorno à infância acontece por intermédio de um encontro com uma antiga vizinha, Leo. Foi numa retrosaria, onde entrou para comprar um botão de camisa. Voltou à loja dois dias depois e, no seguinte, Leo já estava em sua casa. A felicidade parecia quase alcançada.

    Mas Ismael é como que sequestrado por um antigo aluno que lhe pede ajuda para uma tradução.

    O professor de literatura nem tempo teve para sentir o que lhe parecia uma nova existência. Acorda num hospital sem memória, após um acidente de carro, no qual é dado como morto. “Chamem-me Ismael”, assim responde a uma das muitas questões nesse estranho hospital.

    A história das peripécias de Ismael acontece, em paralelo, com as de uma família de javalis. A cria mais nova perde-se, como se perde Ismael, nos meandros dos sonhos e das memórias de infância. Caos, confusão, absurdo, são algumas das palavras-chave do enredo complexo que Jaume Cabré constrói, provocando o leitor, como que o “obrigando” ao exercício da reconstrução de uma narrativa fantástica, caracterizada pela velocidade dos acontecimentos.

    Ao resgatar alguns clássicos, uns mais explícitos, outros de forma mais subtil, o autor consegue algo original e, ao mesmo tempo, desconcertante.