Autor: Ana Luísa Pereira

  • A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    Título

    O ódio a si mesmo

    Autor

    ALAIN DE BOTTON (tradução: João Van Zeller e Leya)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Alain de Botton é um filósofo contemporâneo, nascido na Suíça, em 1969. Vive em Londres, onde fundou e é administrador da “The School of Life”, uma instituição que promove, investiga, reflecte e desenvolve novas formas de Educação que contribuam para que as pessoas vivam melhor. 

    É conhecido como “o filósofo da vida quotidiana”, pela autoria de livros de ensaios e programas de televisão que discutem temas mais ou menos prosaicos. Foi com How Proust can change your life (Como Proust pode mudar sua vida), em 1997, que Alain de Botton se viria a tornar mundialmente reconhecido. Um livro baseado na vida e obra de Marcel Proust, e a partir do qual Botton extrai de forma majestosa elementos para reflectirmos e, eventualmente, melhorarmos a nossa vida. Um livro amplamente vendido nos Estados Unidos e no Reino Unido.  

    Outros publicou, sendo de destacar A arquitectura da felicidade e A arte de viajar, ambos publicados, em Portugal, pela Dom Quixote, tal como este O ódio a si mesmo. Em cada uma destas obras, Alain de Botton convida os leitores a uma observação atenta para uma tomada de consciência de si próprios.  

    É precisamente desse modo que O ódio a si mesmo começa, com um teste em forma de questionário, que tem como objectivo avaliar a consciência da identidade de quem começou a ler este ensaio. O resultado é um ponto de partida para o leitor saber se se enquadra no conjunto de pessoas que se odeiam a si mesmas e se o grau de desprezo é ou não patológico. Razão pela qual o autor vai sugerindo, ao longo do livro, que se consulte um especialista para realizar terapia.   

    No capítulo III, o autor discorre sobre as consequências do ódio a si mesmo que, no limite, pode desencadear um processo de auto-destruição que culmina com o suicídio. Segundo Alain de Botton, “as pessoas não se matam por lhes ter acontecido coisas más; matam-se porque já sofrem de um intenso ódio a si mesmas” (pág. 63), sendo um ou outro acontecimento infeliz a demonstração dessa irrefutável justificação para o auto-extermínio. 

    O capítulo IV, “As origens do ódio a si mesmo”, é particularmente interessante, uma vez que o autor convida o leitor a uma viagem ao passado, numa espécie de terapia por regressão. O objectivo é levar o leitor a se observar, como se estivesse na plateia de um cinema, em cuja tela passam as cenas dos episódios mais marcantes da sua infância. 

    A partir dessa análise, em perspectiva e retrospectiva, o leitor terá elementos para compreender o seu modo de ser e até as razões por que se odeia – talvez, desse modo, consiga encontrar formas de aceitar as suas características e até mesmo limitações.  

    Na verdade, Alain de Botton não oferece receitas, tampouco sugere que se poderão alterar/melhorar essas características ou limitações. Aquilo que o autor propõe é que cada um se avalie de forma objectiva, começando com a recuperação das memórias, pesquisando de forma profunda os sentimentos que se terão vivenciado na infância, em especial com os respectivos progenitores e familiares mais próximos, como os irmãos.

    Os instrumentos de trabalho são, por isso, os da auto-análise, com recurso à visualização e sensorialização dos contextos iniciáticos. Desse modo, é possível que se consiga apreender a ira sentida e as respectivas causas. Nesse processo de auto-descoberta, mostra-se provável que se alcance um dos propósitos deste ensaio: a capacidade de se perdoar a si próprio, que é o primeiro passo para a auto-aceitação. 

    As estratégias que o autor propõe vão, então, no sentido de aprofundarmos a aceitação de que ninguém é perfeito, incluindo nós próprios, e que, em cada um de nós, mora um idiota adorável. Com o exemplo de David Brent, o chefe da série “O escritório”, o autor lembra-nos que são as idiossincrasias que nos tornam peculiares, e, por isso também, objecto do amor fraterno.

  • Jovem à beira de um ataque de nervos

    Jovem à beira de um ataque de nervos

    Título

    Indignação

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Desaparecido em 2018, aos 85 anos, Philip Roth é considerado o maior escritor americano do século XX. Foi reconhecido pelo seu trabalho, com vários prémios, como o Pulitzer, em 1998, pela obra Pastoral americana, e o National Book Award, em 1969, por Adeus, Columbus, entre muitos outros.

    O escritor foi várias vezes mencionado para o Nobel da Literatura, mas é provável que a crítica que lhe está associada, a de ser antissemita, tenha tido algum peso nessa ausência.

    O judaísmo era, aliás, um dos temas recorrentes do autor, o que lhe terá valido uma série de críticas por parte da comunidade judaica. Paralelamente, os temas da família e da sexualidade concorriam para as polémicas de que foi alvo ao longo da sua vida, como aconteceu com a obra O complexo de Portnoy.

    Uma das características do autor era, precisamente, a sua capacidade para conjugar diferentes temas numa mesma obra, no que alguns designam de “realismo sincrético”, tal a sua habilidade genial para entrelaçar o homem comum numa teia que envolve tanto a política norte-americana, como a família, a religião e a sexualidade. Posteriormente, acrescentou o tema do envelhecimento, de que são exemplos Humilhação e O fantasma sai de cena.

    Em Indignação, reeditado pela D. Quixote, repete-se a figura recorrente: o jovem judeu. Neste caso, o jovem Marcus Messner, filho de um talhante kosher, que vive em conflito com o pai desde que entrou na universidade. Para se afastar das preocupações, sem sentido, da figura paterna, prefere estudar noutra cidade.

    De Newark, muda-se então para Ohio, onde descobre a sexualidade, com uma jovem problemática que, logo no primeiro encontro, lhe oferece sexo oral.

    Perplexidade à parte, o seu objetivo é estudar e ser o melhor aluno, de modo a escapar à guerra da Coreia. Mas, conflito atrás de conflito com os colegas de quarto, Marcus vê-se em situações inimagináveis para a sua juventude e parca experiência. Reconhece, assim e sem compreender ainda, o peso das instituições e da política, ficando indignado com o modo como é tratado, em particular, pelo Deão da Universidade de Winesburg.

    É com o responsável máximo da Universidade que Marcus tem grandes discussões ideológicas, indo buscar a Bertrand Russel os seus argumentos para não frequentar a capela (cristã), onde todos os estudantes (em teoria) estão obrigados a assistir à missa, pelo menos quarenta vezes.

    O narrador é a personagem principal que, sob o efeito da morfina, nos conta como e porquê pediu transferência para outra universidade, bem como a cadeia de acontecimentos que o conduziram à indignação.

    Como é hábito, o autor é mestre em agarrar o leitor desde a primeira, até à última página, talvez pelo realismo que caracteriza a sua obra, sendo fácil e provável uma identificação com a personagem principal.

    Ainda que o prosaico se possa sentir, a profundidade da vida espelha-se nessa simplicidade e na angústia e medo que assalta qualquer ser humano: a morte – aqui, representada pelo medo da personagem principal em ser chamada para combater na guerra da Coreia.

  • Manual de luta contra a desinformação

    Manual de luta contra a desinformação

    Título

    Como fazer frente a um ditador

    Autora

    MARIA RESSA (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Maria Angelita Ressa é uma jornalista filipino-americana, nascida em Manila, em 1963, e que foi viver, a partir dos 10 anos, com a família para os Estados Unidos, depois de declarada a lei marcial nas Filipinas.

    Frequentou a Universidade de Princeton, onde se licenciou em inglês com um certificado em teatro e dança. Depois de se formar, em 1986, regressou às Filipinas com uma bolsa Fulbright para estudar em Manila, onde iniciou a sua carreira de jornalista.

    Em 2012, Maria Ressa fundou e lançou o sítio web Rappler, que rapidamente cresceu, tornando-se uma das maiores fontes de notícias das Filipinas. Esta empresa de comunicação social digital de jornalismo de investigação ficou internacionalmente conhecida por descrever, minuciosamente, o modo como as redes sociais se tornaram numa arma usada pelo poder dominante, bem como por expor o modus operandi corrupto do Governo abraçado por Duterte e seu sucessor , igualmente corrupto, Ferdinand Marcos Jr., filho do ex-presidente com o mesmo nome – conhecido por ter fugido de helicóptero, depois de ter feito o maior desfalque, alguma vez conhecido, a um Estado-Nação.

    Os seus “esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, uma pré-condição para a democracia e a paz duradoura”, foram reconhecidos ao mais alto nível, tendo-lhe sido atribuído o Prémio Nobel da Paz, em 2021, em conjunto com o jornalista russo, Dmitry Muratov.

    A obra agora publicada pela Ideias de Ler, intitulada Como fazer frente a um ditador: A luta pelo nosso futuro , é um relato dos anos de luta pela liberdade de imprensa, num país onde o uso da violência física, digital e até judicial está ao serviço de Governos ditatoriais e cada vez mais autoritários. 

    Com prefácio da reconhecida Amal Clooney, advogada dos direitos humanos e co-fundadora da Fundação Clooney, o livro está dividido em três partes. Num discurso na primeira pessoa, Maria Ressa narra o seu percurso de vida, desde a escola primária, expondo os seus princípios e códigos de conduta e de honra, iniciando com a sua regra de ouro. Aquele que lhe permitiu, desde sempre, discernir o que seria correto ou errado em qualquer situação na sua vida. 

    A missão do jornalismo está, igualmente, explicada, sendo, aliás, o motor para a criação de um site de notícias distinto de muitos outros, o Rappler, no sentido em que são os jornalistas (de investigação) que decidem o que noticiar e não os patrocinadores ou os governantes.

    A segunda parte é sobre o modo como o poder político usa as redes sociais para a desinformação, por intermédio de contas falsas e sobre a criação, divulgação e ocultação de notícias falsas e, consequentemente, para a destruição das democracias – a “infodemia”. como designa um jornalista.

    O poder político é o de Duterte que, logo após assumir a carga, controlou e gerou desequilíbrios nos três ramos da governação. O colapso aconteceu por meio de “um sistema de clientelismo, lealdade cega” e aquilo a que a autora denomina de “três C’s: corromper, coagir e cooptar. Se alguém recusasse o que o governo desejava ou oferecia (…) era atacado” (p. 184). Paralelamente, Maria Ressa desenvolve uma explicação detalhada sobre o funcionamento dos algoritmos e de como o Facebook tem contribuído para a manifestação do fascismo e desmoronamento das democracias.  

    Na terceira parte, a jornalista narra todo o processo de difamação contra si e contra o Rappler e os esforços de toda a equipa para se manter firme e sobreviver “à morte por mil cortes”, num contexto de novos e mutantes ecossistemas de informação. 
    Ao mesmo tempo, relata-se o crescente empobrecimento de um país alimentado pela desinformação. 

    Uma das pessoas com quem Maria Ressa trabalhou é a investigadora Shoshana Zuboff, cuja obra sobre o capitalismo de vigilância é um recurso teórico que ajuda a compreender o caso prático das Filipinas. 

    Ainda que não seja sobre a “A era do capitalismo da vigilância” que aqui se trata, esta obra, além de referenciada e usada por Maria Ressa, é indispensável para compreender todo o processo de transmissão de dados a que todos os que usam a Internet estão sujeitos, embora se saiba que o Facebook e o Google estão na primeira linha de transmissão e controle de dados, bem como na disseminação da desinformação.

  • Mistério em Downing Street

    Mistério em Downing Street

    Título

    A secretária de Churchill

    Autora

    SUSAN ELIA MACNEAL (tradução: Sónia Maia)

    Editora

    Saída de Emergência (Abril de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Susan Elia MacNeal nasceu em 1968, em Buffalo, Nova Iorque, onde também se formou na Nardin Academy. Além disso, terminou o curso de Inglês no Wellesley College, com mérito e distinção. Antes de se dedicar à escrita, trabalhou na área editorial, na Random House, na Viking Penguin e Dance Magazine.

    Mr. Churchill’s Secretary é um original de 2012 que está na génese da série de mistério Maggie Hope: uma série vendida em todo o mundo e traduzida em várias línguas e um grande êxito do The New York Times e do Washington Post, cujos direitos cinematográficos e televisivos foram obtidos pela Magnolia Productions/Warner Bros. Pictures. 

    Já na sua 22ª edição, A secretária de Churchill, recentemente publicado, em Portugal, pelas Edições Saída de Emergência, foi nomeado para o prémio “Edgar Allan Poe” e venceu o prémio de ficção policial, “Barry Award”. 

    A história começa no dia em que Winston Churchill é nomeado Primeiro-ministro, em Maio de 1941 e passa-se, em grande parte, no número 10 de Downing Street, fazendo referências aos discursos galvanizantes do político que conduziu o Reino Unido durante a Segunda Grande Guerra. É precisamente sobre a oposição à entrada na guerra e as relações com a Irlanda que o mistério se desenrola.

    O enredo começa com o assassinato de uma das dactilógrafas de serviço, ficando em suspenso o motivo desse crime. A sua substituição dá início à trama que conduz ao crescimento de Maggie Hope, que se estreia como dactilógrafa substituta de Winston Churchill, mas sem grande convicção, já que, sendo matemática de formação, muito inteligente e perspicaz, se considera mal aproveitada. O romance policial também gira em torno dessa frustração, dado que, sendo mulher, não tem acesso às funções que os homens têm. 

    A temática do feminismo está bem presente nos pensamentos da personagem principal, feita heroína ao longo da história, o que reflete numa narrativa pró-feminista. É pena que esta construção seja edificada com recurso a lugares-comuns. Em alguns momentos corre mesmo o risco de se contradizer, ao dar atenção a pormenores que mais não são que uma apologia à objetificação da mulher.

    A tensão e o mistério estão presentes, ainda que o leitor se pergunte por que motivo a autora descreva de forma tão explícita os pensamentos de alguns dos personagens, em particular da heroína. Uma das características de um bom livro é, precisamente, deixar que o leitor chegue às suas próprias conclusões. Por isso, sim, o narrador poderia ser menos óbvio. 

    É possível que esse problema se resolvesse com uma revisão mais profunda. Uma vez que o livro já vai na sua 22ª edição, pode questionar-se por que não foi revisto. O caso mais evidente é a repetição do motivo pelo qual a personagem principal, Maggie Hope, tem aversão ao Sr. Snodgrass – um dos chefes do gabinete do ministro. São várias as vezes que Maggie, ou Magster – a alcunha usada por um dos seus amigos – se refere àquela figura masculina para manifestar o feminismo que a autora quer defender, ainda que de uma forma, diríamos, superficial.

    Como mencionado, este livro está na origem da saga Maggie Hope e, como tal, é recomendável para quem tenha interesse em compreender o contexto da aparição daquela espia, tanto que, mais dia, menos dia, a série televisiva estará disponível.

  • Uma errância fecunda

    Uma errância fecunda

    Título

    A vida errante

    Autor

    GUY DE MAUPASSANT (tradução: Carlos Vaz Marques)

    Editora (edição)

    Tinta da China (Maio de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Guy de Maupassant nasceu na Normandia, em 1850, e é um dos autores mais célebres da sua época. É a partir de 1880 que se dedica fervorosamente à sua paixão, a escrita, tendo publicado desde então, e até à sua morte, cerca de 300 novelas, seis romances e contos e inúmeras crónicas para jornais. 

    A sua doença e depressão levam-no a sair de Paris, uma cidade que abomina pela confusão, para passar temporadas na Costa Azul, de França, e viajar pelos países que circundam o mar Mediterrâneo. 

    Este livro, A vida errante, agora publicado pela Tinta da China, resulta dessas mesmas viagens. 

    A escrita envolvente do autor é, em muitos momentos, a de uma prosa poética, tal a sensibilidade captada e expressa por este observador contemplativo e perscrutador exímio. Os pormenores dos lugares, a descrição e análise dos gestos e comportamentos das pessoas, originados pelos seus contextos, cativam o leitor que gosta de viajar e de conhecer outros lugares, gentes e culturas.

    A arquitectura e a decoração são os elementos mais presentes nas suas descrições. As cores exuberantes são decalcadas em cada decoração, transportando o leitor para cada um dos lugares desta viagem, diríamos, pouco errante.

    Aliás, este livro pode recomendar-se aos autores de blogs de viagens e afins, e a viajantes com intenção de partilharem e publicarem as suas experiências, quer de forma escrita, quer visual. De facto, até para se captarem imagens com história, ou que pretendam contar o fragmento de uma história, é necessário alcançar a peculiaridade de um sítio vivido e habitado.

    Nesta obra, Guy de Maupassant observa e partilha as suas cogitações contemplativas durante uma viagem que começa em Paris – justificando, então, por que se tornou insuportável permanecer nessa cidade, cheia de gente.  

    Durante a viagem de barco, somos conduzidos pelo seu olhar atento, desde o anoitecer em Cannes até ao amanhecer na costa italiana, passando pela Sicília, Argel, Tunes e terminando em Cairuão, outra cidade da Tunísia.

    Os parágrafos introdutórios que o autor escreve, aquando da sua chegada à Sicília, parecem ter, como propósito, convencer o leitor, futuro viajante, a conhecer esta ilha. A arquitectura e os odores são os argumentos, em particular, quando se demora no quarto onde Richard Wagner terá vivido no último ano da sua vida, em Palermo.

    “Mas fui abrir a porta do armário espelhado e um perfume forte e delicioso evolou-se com a carícia de uma brisa que tivesse passado por um roseiral (…). Inspirei aquele hálito a flores, fechado no móvel, esquecido dentro dele, cativo; e pareceu-me, de facto, encontrar qualquer coisa de Wagner nesse sopro que ele amava, um pouco dele, um pouco do seu desejo, um pouco da sua alma, naquele quase nada dos hábitos secretos e queridos que constituem a vida íntima de um homem” (p. 53). 

    O excerto anterior é apenas um exemplo de como o autor nos conduz ao deleite, para que, também nós, possamos apreciar cada instante percepcionado e vivenciado por Guy de Maupassant.  

    Enquanto objeto, o livro é uma peça bem conseguida. A encadernação em capa dura e o separador em fio, cosido no livro, é disso demonstrativo. Só um reparo: o mapa colado na folha de guarda e contra-guarda do livro poderia estar mais bem centrado, de maneira a ter a Península Ibérica visível.

  • Da obediência à (pretensa) liberdade

    Da obediência à (pretensa) liberdade

    Título

    Não obedeças mais

    Autor

    GUSTAVO SANTOS

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Outubro de 2022)

    Cotação

    9/20

    Recensão

    Nascido em Lisboa, em 1977, Gustavo Santos é o autor de vários livros de desenvolvimento pessoal, nomeadamente, Agarra o agora (2013, Esfera dos Livros), A força das palavras (2015, Esfera dos Livros) e O caminho (2015, Pergaminho), entre outros.

    Antes de se dedicar à escrita e ao coaching, esteve ligado ao entretenimento: foi bailarino e pertenceu a uma boys band, a Hexa Plus, participou no reality show, “Big Brother Famosos” (2002) e apresentou o programa “Querido, mudei a casa!” (entre 2010 e 2020, primeiro na SIC, depois na TVI). Como actor, entrou em várias telenovelas e outros programas de entretenimento, como por exemplo, “Floribella” e “Espírito Indomável”.

    “O livro-sensação do ano” – lê-se na capa –, Não obedeças mais, e que tem como mote “a tua verdade é a tua liberdade”, publicado pela Alma do Livros, resulta de um conjunto de 100 textos, que, nas palavras do autor, são “sem censura”, “sobre liberdade” e “pela liberdade”.

    À semelhança de outros livros de desenvolvimento pessoal, a escrita desenvolve-se num tom intimista, tratando o leitor por tu, como alguém próximo, como quem desenvolve uma conversa frente a frente. O discurso também pode ser entendido como aquele preparado para uma plateia a participar num curso de desenvolvimento pessoal ou de coaching, tão em voga, nos últimos tempos.

    É disso que se trata, de uma palestra escrita, um monólogo, em que o autor discorre sobre o que entende ser a liberdade. Para si, algo que resulta da capacidade de pensar, dizer e fazer o que bem entende, sem que os outros tenham alguma coisa que ver com o assunto.

    Os outros que, como dizia Jean Paul-Sartre, são o inferno, mas que em Gustavo são o S.I.S.T.E.M.A. – “grupo restrito de gente autora de uma Agenda perigosa que visa o fim da Liberdade do povo em prol de mais poder, mais controlo e maiores receitas” (p. 11), mais concretamente, “Soberania Idiota, Sinistra e Tirana de Egos Mercenários e Assombrados” (título do capítulo dois, p. 18).

    Para o autor, este S.I.S.T.E.M.A. é aquele a quem devemos desobedecer se queremos lutar pela liberdade. Para tal, em cada capítulo, Gustavo Santos apresenta um conjunto de ideias com o objetivo de motivar as pessoas a despertarem e a não se deixarem manipular, dado que esse é o propósito do método “C.H.O.N.É. (conversão em série de humanos em ovelhas de nádegas escancaradas)” – título do capítulo quinze (p. 56).

    De página em página, Gustavo Santos mostra-se corajoso e um homem forte, recorrendo a Jesus, Gandhi, Mandela ou Luther King, para mostrar que, como eles, ele também faz. Ele, Gustavo, também tem impacto e, provavelmente, ficará na História. Com efeito, as palavras escritas de Gustavo podem ter algum impacto, mas como ele próprio reclama, também ele se quer impor sem mostrar factos:

    Não me peçam factos, por favor.

    Não sou uma mosca para estar em reuniões secretas nem agente infiltrado de coisa nenhuma. Sou homem de coração agitado, livre por natureza, e isso basta” (p. 105).

    Só que não. Se Gustavo Santos reclama pela verdade e luta pela liberdade e quer combater a seita, então talvez seja melhor ir além do que sente e pressente e procurar, e pelo menos tentar, apresentar factos que demonstrem a sua verdade.

    Os jogos de palavras são uma constante. Além dos já mencionados, destaquem-se os títulos “Comuni«coação» social” e  “Edu«coação» escolar”, que sendo profícuos, são, em nosso entender, mal aproveitados. Tão-só pela vacuidade. Os temas da propaganda ou da liberdade poderiam ser aprofundados, mas ficam limitados à conversa de café. Pouco mais que uma série de lugares-comuns, pese embora o autor se outorgue como o salvador da pátria.

    Deixamos alguns finais de capítulo como exemplos de um discurso, na nossa opinião, estéril:

    “Não obedecer é ser diferente” (p. 55).

    “Não obedecer é marimbares-te para o que te dão à condição e trocar tudo isso, que é quase nada, por algo conquistado por ti” (p. 81).

    “Não obedecer é acreditar no bem, e contra isso não há quem” (p. 156).

    “Não obedecer é deixar de ser um brinquedo” (p. 173).

    “Não obedecer é cagar no filtro e dar o litro” (p. 198).

  • Do ócio existencial

    Do ócio existencial

    Título

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida

    Autor

    JEROME K. JEROME (tradução: Francisco Silva Pereira)

    Editora

    Alma dos Livros (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida, tendo como subtítulo “reflexões divertidas para uma vida sem preocupações é um livro de Jerome K. Jerome (1859-1927) dedicado ao amigo e companheiro das horas de ócio: o seu cachimbo! Esta dedicatória anuncia o tom humorístico, satírico e, inevitavelmente, divertido do conjunto de ensaios que compõem esta obra original de 1886, agora publicada pela Alma dos Livros.

    Com uma nota prévia no prefácio, Jerome Klapka Jerome alerta os leitores que esperam que um livro lhes eleve o espírito, que “este livro não elevaria sequer o espírito de uma vaca”. Como tal não o recomendaria (ao contrário de nós), dado não lhe reconhecer qualquer utilidade, a não ser a de passar algum tempo nesta leitura, depois de se ter cansado de ler “os cem melhores livros de sempre” (p. 7).

    Em “Tudo o que não precisa de saber sobre a vida” o autor discorre acerca de situações da vida quotidiana de uma forma que tanto nos faz sorrir, como reflectir. Os assuntos são prosaicos, mas a vida é sublimada por isso mesmo.

    A partir de temas como o ócio, o amor, a vaidade (ou a sua pretensa ausência), a timidez, o vestir e o estar, o comer e o beber, os cães e os gatos, os bebés, os apartamentos mobilados, entre outros, Jerome K. Jerome apresenta-nos, com humor, uma reflexão acutilante sobre a burguesia inglesa de finais do século XIX.

    Uma das marcas da sua ironia é o, agora compreendido como, sexismo, mas que na época era generalizadamente prevalecente. Não será estranho, por isso, que algumas leitoras se possam sentir ofendidas em algumas passagens, como quando o autor se refere aos homens como os “representantes do sexo intelectual” (p. 82).

    Outro tema do autor é a penúria, mostrando com leveza o poder que esta circunstância pode ter como estímulo à criatividade, não apenas na escrita, mas no modo de se observar e compreender os episódios mais ou menos imprevistos do quotidiano. A diferença entre uma pessoa que tem um ou dois pences no bolso e aquela que não tem qualquer pensamento sobre as questões monetárias, é disso exemplo.

    Um guarda-chuva automático é, também ele, alvo de cogitações – o insólito é outra das características deste livro. Com o tema da memória, o autor transporta-nos para a infância, relatando as conversas que tem com o seu antecessor: o rapaz de 14 anos frívolo que foi.

    Foi com esta idade que Jerome K. Jerome abandonou a escola, altura em que começou a trabalhar nos caminhos-de-ferro. Posteriormente, trabalhou como professor, actor e jornalista.

    Antes deste conjunto de reflexões escreveu peças de teatro e outros livros, sendo que este agora editado em Portugal e “Três homens num barco” têm sido continuamente traduzidos e publicados. Entre 1892 e 1897, editou a revista satírica The Idler, da qual foi um dos fundadores, e que reunia escritores da sua época, como seja Mark Twain.

  • Manifesto pela loucura

    Manifesto pela loucura

    Título

    O perigo de estar no meu perfeito juízo

    Autora

    ROSA MONTERO (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Com uma obra traduzida em mais de 20 línguas, Rosa Montero é uma reconhecida autora espanhola, natural de Madrid, onde nasceu em 1951. Aos 73 anos de idade, a autora, jornalista de formação e profissão, ainda trabalha com o El País; algo que faz desde 1976, onde foi chefe de redacção do suplemento de Domingo, entre 1980 e 1981.

    Em 1978 ganhou o primeiro prémio de jornalismo, o Prémio Mundo de Entrevistas – área em que se especializou. Outros tem ganhado como jornalista, mas também como escritora. Em 2017, por exemplo, foi galardoada com o Prémio Nacional das Letras, tendo sido em 1979 que começou a viver o seu sonho de escrever ficção – Cronica del desamor, é o seu primeiro romance.

    Em 2022, foi galardoada com a Medalha de Ouro de Mérito em Belas Artes e com o Prémio Especial dos Prémios “El Ojo Crítico” da XXXIII RNE. Em Espanha, O perigo de estar no meu perfeito juízo foi considerado o Melhor Livro de Não-Ficção pelo Sindicato dos Livreiros.

    Nesta obra, agora publicada, em Portugal, pela Porto Editora, a dimensão jornalística está muito presente, estando este ensaio muito próximo do livro de divulgação científica. Para os admiradores de Rosa Montero, que ainda não conhecem a sua vertente jornalística, pode ser uma agradável surpresa perceber como a sua escrita é tão cativante e envolvente como nos seus romances.

    A louca da casa, publicado há vinte anos, é facilmente reconhecível, estando, até, omnipresente ao longo deste livro autobiográfico. Além desse quase intertexto com A louca da casa, Rosa Montero demonstra a sua capacidade de pesquisa e de síntese no tema principal do livro: a presença de distúrbios mentais, entre muitos artistas e escritores, e de como esses desequilíbrios podem ser essenciais para as obras que aqueles e outros autores conceberam e publicaram, ou por eles foram publicadas post mortem.

    A autora retirou-se três anos para estudar psicologia e para investigar o que outros escritores considerados doidos, alcoólicos ou dependentes de outras drogas sofreram por serem estranhamente anormais, ou pior, loucos ao ponto de serem internados, como é o caso de Sylvia Plath.

    A história desta poeta é uma das biografias que Rosa Montero reconstrói para nos dar conta de como o sofrimento é um sentimento permanente, do qual se pode sair, ou pelo menos suspender, por intermédio da escrita. A escrita é uma não escolha. É a salvação de quem tem inúmeras vozes que dialogam nas cabeças, como as de muitos escritores – motivo pelo qual têm de necessidade de escrever.

    A tese de Rosa Montero é a de que a criatividade também é fruto da excentricidade, do facto de se sentir inadequada – como descreveu, também, em A louca da casa. Reconhecer essa extravagância e dar espaço e voz às alucinações é reconhecer a matéria-prima para escrever ou construir a obra.

    Neste exercício e ensaio, Rosa Montero, que “sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem”, prova a si própria que está tudo bem em ser vulnerável, diferente e ter sentimentos suicidas – que, no seu caso, ainda bem que não os concretizou.

    Mas, como Rosa afirma, “a lista é arrasadora”: Cesare Pavese, Gérard de Nerval, Jack London, Maiakovski, Anne Sexton, Mishima, Walter Benjamim, Alejandra Pizarnik, Hemingway, David Foster Wallace, Gilles Deleuze, são alguns dos que a autora refere na página 180.

    Como em muitos romances, existem várias histórias secundárias e/ou paralelas. Uma é a de uma impostora que usurpou a identidade de Rosa Montero. Este é, aliás, um dos temas do livro. A ideia de que muitos artistas e escritores se sentem impostores na sua escrita, de que não são suficientemente bons e que quando fazem e/ou escrevem algo extraordinário, não terão sido eles ou terão sido bafejados pela sorte.

    Em relação a essa história paralela, a autora vai-nos dando a conhecer pormenores, sórdidos até, que nos provocam curiosidade, desejando saber mais e como e se terminou essa usurpação, bizarra e assustadora, da sua identidade por parte de outra mulher.

    Há um zumbido que sai do interior da obra e que ecoa no local mais profundo da nossa mente. O zumbido do mundo. Há uma pulsação essencial, um ritmo embriagador. É só preciso aprender a deixar-nos levar. A não ter medo de perder o contacto com o chão. Escrever é dançar, e a música foi-me levando, com quem desenha passos no ar, até chegar a estas linhas que escrevo agora” (pp. 200-201).

  • Manual de instruções para amar

    Manual de instruções para amar

    Título

    8 regras do amor

    Autor

    JAY SHETTY

    Editora (Edição)

    Albatroz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Jay Shetty é um autor britânico de origem indiana, que ficou muito conhecido pela obra Pensa como um monge, editado em Portugal pela Albatroz, tal como este, 8 Regras do amor.

    Depois de ter vivido vários anos, na Índia, a aprender a prática védica com monges em ashrams, Shetty começou a partilhar as suas ideias e conteúdos no mundo virtual e digital.

    Actualmente, além destes dois bestsellers, Shetty tem um dos podcasts mais ouvidos no Mundo, On purpose, e é um dos life coachs mais conhecidos e seguidos na Internet.

    As 8 regras do amor, sugeridas pelo autor, dividem-se em quatro partes: Tempo a sós, Compatibilidade, Cura e Conexão.

    Jay Shetty agrupa estas etapas e descreve as regras, recorrendo às lições dos livros primordiais da tradição oriental e fazendo uma analogia com as quatro etapas de vida descritas pelos Vedas, como se cada ashram fosse uma “sala do Veda”, “uma escola de aprendizagem, crescimento e apoio” (p. 14):

    1. Brahamacharya ashram – “Preparação para o amor”, que inclui as duas primeiras regras.

    Para aprender o amor a dois, é preciso apreciar o tempo que se está a sós – a Regra 1: “Deixe-se estar sozinho”. Com a Regra 2, “Não ignorar o carma”, o autor diz-nos que: “O carma é um espelho que nos mostra onde as escolhas nos levaram…” (p. 53).

    2. Grhastha ashram – “Pôr o amor em prática”, a partir de 3 regras.

    Nesta parte, o autor ajuda a compreender que o amor é um processo contínuo e a dois, e que, antes de se tomar uma série de decisões, é preciso perceber se somos compatíveis. Ou seja, “antes de decidirmos que estamos apaixonados, de declararmos o nosso amor a alguém e de determinarmos o que significa quando essa pessoa nos diz o mesmo, devemos ter em conta a nossa definição de amor” (p. 95) – a Regra 3: “Definir o amor”.

    Regra 4: “A pessoa com quem está é o seu guru” – “Se escolhermos partilhar a vida com alguém com quem possamos crescer, então estaremos sempre a aprender” (p. 123).

    Regra 5: “O propósito vem em primeiro lugar” – Nesta parte, Shetty lembra os condicionalismos a que todos somos sujeitos desde a infância e que, por vezes, nos levam a romantizar “a ideia de fazer sacrifícios e de nos dedicarmos a outra pessoa (…). Mas conheço pessoas que deixaram de lado os seus próprios propósitos e anos depois sentiram-se perdidas ou enganadas” (p. 151). No fundo, a recordar que, na vida a dois, há duas pessoas a serem respeitadas.

    3. Vanaprastha ashram – “Proteger o amor” apresenta 2 regras, com as quais se pode aprender a resolver conflitos – Regra 6: “Sejam vencedores ou perdedores juntos” – e a terminar um relacionamento, se necessário for – Regra 7: “Ninguém morre com o fim de uma relação”.

    Nesta secção, o autor descreve o tipo de discussões que se pode travar com a pessoa com quem escolhemos viver, sendo certo que existem discussões produtivas e outras que servem apenas para aumentar ainda mais os conflitos. Uma espécie de minicurso de gestão de conflitos.

    Entretanto, todos sabemos, mas se calhar é bom lembrar que a vida continua. O dramatismo é uma forma de dar consistência às histórias que precisamos para dar sentido à nossa vida, mas há algumas, cujo ponto final, é difícil de registar.

    4. Sannyasa ashram – “Aperfeiçoar o amor”. Com a Regra 8 – “Ame uma e outra vez” –, estamos preparados para “experienciar o amor em qualquer momento com qualquer pessoa” (pp. 16-17).

    Ao longo deste guia do amor, o leitor encontra, ainda, ‘fichas de trabalho’ com uma série de exercícios individuais e a dois. Com tal, é para se ir lendo, para se ir aprendendo, exercitando, refletindo, também, e, de preferência, com tempo.

    É possível que o grande sucesso que este livro tem alcançado se deva ao facto de o autor sistematizar e congregar uma série de ensinamentos num único livro, numa escrita intimista, dando exemplos da sua própria vida e dos seus clientes – muitas celebridades entre estes, nomeadamente a Jennifer Lopez, Khloé Kardashian e Oprah Winfrey.

    A estratégia de marketing é, realmente, forte. Desde logo pelo título: “Regras”; e parece funcionar, talvez pela ideia de que existe alguém a orientar-nos. Nesta sociedade fragmentada e de mosaico, as pequenas histórias são produtivas, sobretudo quando se baseiam em grandes e clássicas narrativas, como as do livro dos Vedas – esta abordagem resulta na nossa sociedade (quase) sem referências divinas, mas sedenta de orientação.

    Também na contracapa, onde se lê que “ninguém nos ensina a amar”, “mas não tem de ser assim”, uma vez que neste livro encontramos “um guia completo para viver cada etapa do amor”.

    O livro é, com efeito, um manual muito interessante para todos aqueles que querem aprender um pouco mais sobre si próprios e sobre como manter (ou mesmo terminar) e aprofundar uma relação amorosa.

  • Verão, vestidos e bonecas

    Verão, vestidos e bonecas

    Título

    Vozdevelha

    Autora

    ELISA VICTORIA (tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Elisa Victoria nasceu em Sevilha, em 1985. Orgulha-se da sua colecção de bonecas, bem como do facto de ter usado gorro vermelho para vender pizzas e hambúrgueres. Estudou Filosofia e Ensino de Educação Infantil.

    É professora de escrita criativa e tem contribuído para diversos sites, fanzines e antologias. Antes deste Vozdevelha ser o Livro da Semana no El País, em 2019, tinha publicado dois livros: Porn & Pains, em 2013, e La sombra de los pinos, em 2018, ambos com Esto no es Berlín. Aguardamos com alguma expectativa a tradução do seu mais recente livro, El Evangelio.

    Esta história é sobre tudo ou nada do que aconteceu nos longos meses de um Verão do fim da infância de uma menina de nove anos, Marina. Cheira ao Verão seco e escaldante de Sevilha, onde o sol abrasador queima as ruas desertas na hora da siesta. Cheira a churros, asas de frango frito, algodão doce e também a cocó, xixi, e outros odores domésticos que integram a paisagem olfativa de um subúrbio da Sevilha pós-Expo’92.

    A linguagem burlesca da narradora, a menina Marina, para descrever com densidade os usos e costumes, neste caso, de um bairro dos subúrbios do início da década de 1990, deve-se à influência literária em que o livro se enquadra, o costumbrismo. Será, por isso, muito fácil que os nascidos em meados da década anterior se sintam profundamente identificados com os programas de televisão, os desenhos animados e os brinquedos da época, como a Barbie, a Chabel ou o Nenuco.

    O ritmo oscila entre os roncos sonoros da avó, também Marina, a alegria de Diana Ross e o flamenco de Rocío Jurado. Há muitas mulheres; o tema do género está bem presente, sobretudo pela ausência dos ascendentes masculinos da menina – o pai aparece apenas uma vez. Domingo, o namorado da mãe, também Marina, é a sua única influência masculina, mais pelo que deixa à disposição para ler e arregalar os olhos, como as revistas de pornografia e o livro que lê numa piscina cheia de crianças do condomínio, “A máquina de foder”.

    Neste Verão, Marina parece obcecada com o sexo e cocó e as suas reflexões mais ou menos profundas vagueiam entre a eventual morte da mãe – doente oncológica – e as possibilidades de sentir um orgasmo, seja com outras meninas da sua idade, seja pelos filmes de terror, seja ainda pelo misterioso filme pornográfico gravado numa cassete VHS com uma etiqueta, na qual se lê “Jogo do Betis”.

    Nesta história pouco infantil, o futebol e a política lutam pelo mesmo espaço da religião. No ano em que o “charmoso” Felipe González ganha as eleições, Marina aprende a importância de ser baptizada – a primeira comunhão será o passo seguinte, mas só se for obrigatório para se integrar no grupo de meninas do bairro para onde vai viver no final desse Verão.

    É disto mesmo que o livro também trata: sobre como o processo de socialização, durante a infância, contribui para que as crianças, por intermédio dos diversos agentes de socialização (desde a família, os pares, os media, até à escola e religião, neste caso, católica), aprendam os seus papéis recorrendo a guiões, nem sempre fáceis de compreender, tão-pouco passíveis de serem alcançados pelos mais velhos que pensam que controlam… o incontrolável.

    Tudo concorre para criar confusão, desordem e sobretudo, para desenvolver a personalidade forte de uma criança precoce, inteligente, curiosa e, naturalmente, cheia de dúvidas. O monólogo vívido, detalhado sobre questões existenciais e corriqueiras, agarra o leitor mais nostálgico, mas sem melodramas.  

    É um romance divertido e jovial, enquanto toca no que parecem ser os temas mais relevantes de uma criança que questiona tudo. A sua avó, a figura mais presente e influente durante o longo e quente Verão de céu esbranquiçado, responde a tudo de igual para igual, contando as histórias dos seus casamentos – é duplamente viúva.

    Um Verão preenchido de brincadeiras, quedas, dente partido, revistas de banda desenhada pornográficas, em que o rádio e a televisão, com meia dúzia de canais abertos, são os únicos meios para ludibriar os longos minutos dos dias de Verão.