Autor: Ana Luísa Pereira

  • Manual para ser feliz

    Manual para ser feliz

    Título

    Construa a vida que quer

    Autores 

    ARTHUR C. BROOKS; OPRAH WINFREY (tradução: Sofia Ribeiro)

    Editora

    Casa das Letras (Dezembro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No sítio de Arthur C. Brooks encontramos alguma informação sobre o autor, que é professor de Prática de Liderança Pública na Harvard Kennedy School e de Prática de Gestão na Harvard Business School, onde leciona cursos sobre felicidade, liderança e empreendedorismo social.

    É o criador da popular coluna “How to Build a Life” na revista The Atlantic, e autor de 13 livros, incluindo o bestseller do New York Times de 2022, “From Strength to Strength e Love Your Enemies”. É um orador reconhecido pelas palestras sobre felicidade humana, trabalhando também para aumentar o bem-estar dentro de empresas privadas, universidades, agências públicas e organizações comunitárias.

    É provável que em Portugal (e noutros países) tenha ganhado, agora, visibilidade pela parceria estabelecida com Oprah Winfrey, uma das figuras públicas mais influentes e admiradas do mundo inteiro.

    Com 70 anos feitos recentemente, Oprah tem já um legado enorme em diversas áreas do show business, nomeadamente como apresentadora, jornalista, atriz, empresária, repórter, produtora, editora e escritora. Ganhou vários Emmy pelo programa “The Oprah Winfrey Show” – provavelmente o talk show mais conhecido e visto em todo o mundo. 

    É possível acompanhar uma série de outras atividades subscrevendo o seu sítio: OprahDaily.com.

    Como se pode ler na contracapa deste “Construa a Vida que Quer – A arte e a ciência de se tornar mais feliz”, publicado pela Casa das Letras, Arthur C. Brooks e Oprah Winfrey chegaram à conclusão, durante um jantar, que aquilo que as pessoas querem é ter mais alegria, mais amor nas suas vidas e um propósito. Não querem ter muitos seguidores nas redes sociais, nem muito dinheiro; querem ser felizes.

    Se o parágrafo anterior parece transpirar alguma ironia, é provável que, no mínimo, os potenciais leitores deste livro de autoajuda se sintam curiosos quanto à desvalorização eventualmente dada às questões materiais por parte de Oprah Winfrey.

    Ironias à parte, A arte e a ciência de se tornar mais feliz pode ser um manual muito útil para as pessoas que se sentem assoberbadas pela necessidade de corresponder e mostrar as evidências materiais de sucesso da contemporaneidade. Um tempo profundamente marcado pela partilha da vida privada nas redes sociais, nas quais se dá a impressão de que são todos imensamente felizes com as coisas que compram, sejam esses objetos mais ou menos imponentes, ou a acumulação de experiências extraordinárias, como viagens para ilhas de sonho.

    O que os autores vêm lembrar é que a felicidade está muito longe dessa materialização que, de tão ostensiva, se torna vazia – como pode ser a vida de muitos dos que transportaram as suas vidas para os écrans.

    Para este curso para se ser mais feliz, o livro está dividido três partes.

    Na primeira parte, os autores procuram demonstrar que a felicidade não é o objetivo, tanto mais que a felicidade não é a ausência de infelicidade. Além disso, a infelicidade não é o inimigo – é possível ser-se feliz, vivendo com circunstâncias que causam infelicidade. Um pouco na linha de que depende muito da perspetiva com que olhamos para o que a vida nos proporciona, sendo certo que aqueles que veem o copo meio cheio estão mais perto destes princípios.

    Na segunda parte, o leitor é convidado a usar o poder da metacognição para reconhecer que a linguagem do amor e da gratidão, sobretudo se registados num diário, são imprescindíveis para compreender e gerir as emoções, sem se deixar controlar por estas.

    Em primeiro e segundo lugar, há que observar e registar as emoções; de seguida, criar uma base de memórias positivas e, em quarto lugar, dar significado e aprender com as partes difíceis da vida. A redação reflexiva está, por isso, implícita – o que significa que deve haver um trabalho contínuo e mesmo árduo.

    Uma das ideias desenvolvidas nesta segunda parte refere-se à mudança de foco, de deixarmos de nos concentrar tanto nas nossas necessidades e passarmos a olhar mais para os outros e para o que podemos fazer pelo seu bem-estar: uma fonte de felicidade.

    Na terceira e última parte do livro, os autores procuram mostrar que são, fundamentalmente quatro os pilares que sustentam uma vida mais feliz: Amigos, Família, Trabalho e Fé. É no equilíbrio destas bases de satisfação que seremos capazes de perceber que a felicidade é algo intrínseco, que deve ser de dentro para fora – e que não está no contexto ou nos bens materiais exteriores à nossa existência.

    Por isso, mais do que uma receita, é um trabalho individual para aceitar com serenidade o que não se pode mudar e de encontrar amor e coragem para construir o equilíbrio necessário para manter aqueles quatro pilares.

    É uma leitura que se pode indicar ao leitor que está disponível para se dedicar ao autoconhecimento e sem a ambição de ser milionário, como a Oprah Winfrey.

  • Há alguém que sobreviva à guerra?

    Há alguém que sobreviva à guerra?

    Título

    Libertação

    Autor

    SÁNDOR MÁRAI (tradução: Piroska Felkai)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sándor Márai nasceu em 1900, em Kassa, então parte do Reino da Hungria (actualmente Košice, na Eslováquia), sendo considerado um dos grandes escritores húngaros do século XX. Desde cedo terá demonstrado o seu talento para a escrita, tendo publicado, ainda na adolescência, os seus primeiros poemas e contos em revistas locais. Em 1920, mudou-se para a capital da Hungria, Budapeste, onde trabalhou como jornalista e crítico literário.

    A sua obra, diversa e vasta, é constituída por romances, contos, peças de teatro e ensaios, sendo reconhecida pela profundidade psicológica – ainda que ignorada e mesmo banida na Hungria, dada a sua crítica ao regime comunista de então. O descontentamento de Sándor Márai com o regime político levou-o a sair do país. 

    Viveu algum tempo em Palermo, Itália, onde terá escrito algumas das suas obras mais conhecidas, como por exemplo, As velas ardem até ao fim, publicado pela Dom Quixote, tal como este Libertação. Posteriormente, mudou-se para os Estados Unidos, onde se suicidou, em 1989. Só então, Márai voltou a ser aclamado como um dos maiores escritores húngaros de todos os tempos. Em 1990, foi-lhe concedido, postumamente, o Prémio Kossuth.

    Em Libertação, Sándor Márai conta a história de Erzsébet, uma jovem estudante húngara, que luta pela sobrevivência durante o cerco de Budapeste, no fim da Segunda Guerra Mundial. A sua experiência é um testemunho fascinante, porque intenso, e arrepiante, porque verdadeiro, sobre o período que marca o fim da ocupação de Budapeste pelos nazis e a chegada das tropas soviéticas – a salvação?

    Sem muitas informações sobre a personagem principal e o seu pai, um cientista perseguido, e o seu namorado foragido, o cenário é lúgubre – como teria de ser uma cave fétida onde estão escondidas, talvez, centenas de outras pessoas perseguidas.

    “Talvez”, pela ambivalência referida. Como é a vida dos que fugiram com uma mala e perderam quase tudo e todos, inclusivamente a sua dignidade, para se protegerem das explosões, da destruição provocada pelos combates, do genocídio dos judeus? É uma espera, inflamada pela leve esperança de sobreviver, numa co-“habitação” frágil e que fragiliza, num espaço subterrâneo sem mais nada que tantos outros também à espera da libertação – serão, os soviéticos, os salvadores?

    A sua chegada é aguardada sem saber-se quem são afinal, se amigos ou inimigos. A incerteza que corrói e pode apagar o que resta de humanidade de quem perdeu tudo e todos.

    A entrada do primeiro soldado russo na cave é intensa; como todo o romance, aliás. O realismo verosímil torna o leitor activo na leitura. É obrigado a refletir sobre os dilemas morais com os quais a humanidade continua a deparar-se: o que é a guerra? O que acontece depois da guerra? 

    Dizemos que outras guerras, numa forma contínua de destruição da humanidade, do planeta – enfim, uma autofagia que, para o comum dos mortais, continua, também, incompreensível. Até deixar de o ser, porque certamente deixaremos de existir.

  • A censura como gatilho da demência

    A censura como gatilho da demência

    Título

    Tivemos de remover este post

    Autora

    HANNA BERVOETS (tradução: Maria Leonor Raven)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    A cotação para este romance não é mais alta por causa do seu final. Além de nos deixar a ‘salivar’, ficamos mesmo com a sensação de que falta alguma coisa – portanto, mais spoiler que isto não é possível. Com certeza que os leitores compreenderão o referido, sendo igualmente certo que, só por isso, a curiosidade já estará estimulada. 

    O título é, desde logo, atractivo para os leitores interessados pela censura que se realiza aos conteúdos das redes sociais. No caso deste curto, mas intenso, romance, a rede social é a Hexa – mas poderia muito bem ser o Facebook, se se tratasse da realidade. Na verdade, a autora baseou-se na sua investigação sobre as condições de trabalho de moderadores de conteúdos a nível mundial, recorrendo a estudos, documentários e outras fontes – muitas delas referidas no final do livro.

    Sendo uma obra de ficção, a semelhança com a realidade é de tal modo profunda que a verosimilhança nos deixa estupefactos. Desengane-se, porém, quem pense que encontrará relatos minuciosos de violência das fotografias ou dos vídeos mencionados ao longo da história. Ainda que a visualização de todas essas imagens seja uma das causas dos distúrbios dos trabalhadores, o seu eventual e consequente desequilíbrio mental está associado às condições em que têm de realizar as suas tarefas de moderação dos conteúdos – e este é o âmago da história.

    Este romance psicológico narra a história, na primeira pessoa, de Kayleigh, uma jovem que trabalhava como moderadora de conteúdos de uma rede social, Hexa. É, portanto, uma versão pessoal, em modo confessional – uma carta ao seu advogado, o senhor Stitic –, sobre uma série de acontecimentos vivenciados e interpretados pela personagem, cuja lucidez é questionável, dadas as circunstâncias e pressão laboral em que vive.

    O seu trabalho, a aprovação ou não de conteúdos, decorre da questão diária:

    “Isto pode ficar na plataforma? E de contrário: Porque não? Essa última pergunta era a mais difícil. Um texto do tipo «Todos os muçulmanos são terroristas» não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma ‘categoria protegida’, tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase «Todos os terroristas são muçulmanos» já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, ‘muçulmano’ não é um termo insultuoso. (…) Se selecionássemos a categoria errada, a avaliação era considerada incorreta, mesmo que houvesse razões para esse post ser removido” (pp. 18-19).

    É a sua paixão e obsessão por uma colega que desencadeia o gatilho para o colapso, que não é exclusivo da jovem. Pelo contrário, a narrativa que nos envolve de início ao fim é só mais uma evidência da crise psicológica generalizada (também pelas muitas situações de exploração e stress laboral) que se vive actualmente.

    Lido de uma assentada, este romance é uma visão muito próxima da realidade – assustadora – que, além de nos assoberbar, nos distorce ao ponto de deixarmos de questionar quem somos, para começarmos a perguntar o que podemos e devemos esconder e censurar.

    Hanna Bervoets é uma escritora e jornalista neerlandesa. Nascida em 1984, em Amsterdão, estudou Jornalismo, tendo sido colunista do jornal De Volkskrant (2009-2014), onde escrevia sobre os perigos do digital.

    Em 2020, recebeu o prestigiado Prémio Frans Kellendonk pelo conjunto da sua obra, que inclui os títulos Of Hoe Waarom, Lieve Céline (adaptado ao cinema), Alles Wat Er Was (2013) e Ivanov (2016) – que terá recebido elogios pela exploração inovadora de temas como a inteligência artificial. 

  • Da feminilidade na pós-modernidade

    Da feminilidade na pós-modernidade

    Título

    Seios e óvulos

    Autora

    MIEKO KAWAKAMI (tradução: Renato Carreira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Apesar deste Seios e óvulos ser o seu primeiro livro traduzido para português, Mieko Kawakami, nascida em 1976 em Osaka, estreou-se na literatura como poetisa em 2006 e publicou a sua primeira novela, My ego, my teeth and the world, em 2007.  

    A autora já recebeu diversas distinções literárias no Japão, incluindo o Prémio Akutagawa, o Prémio Tanizaki e o Prémio Murasaki Shikibu. Mieko Kawakami também fez parte da lista dos autores seleccionados para o International Booker Prize em 2022, com o livro Heaven (2021). Traduzido para inglês como Breasts and eggs, tornou-se um grande êxito internacional, considerado um livro “notável” pelo New York Times, e um dos 10 melhores livros de 2020 pela revista TIME.  

    O título do livro em inglês e a respectiva tradução em português remetem directamente o/a leitor/a para os temas das duas partes da história de três mulheres japonesas: Natsu, a narradora, é uma jovem escritora de 30 anos que vive em Tóquio; Makiko, a sua irmã mais velha, é anfitriã num bar de Osaka, e a sua filha de 12 anos, Midoriko.  

    Na primeira parte do livro, mãe e filha fazem uma visita a Natsu em Tóquio, com o objectivo de Makiko fazer uma operação de implantes mamários a um preço acessível. Porquê aumentar o tamanho das mamas? O ponto de partida para uma descrição tão realista como peculiar dos mamilos de Makiko. O corpo feminino é, com efeito, um dos protagonistas do livro. A sua transformação e a sua experimentação, narrada por intermédio do diário da adolescente Midoriko, contribui para o diálogo interior da narradora sobre o papel da mulher na sociedade patriarcal japonesa.  

    Mais do que as questões de género associadas às identidades sociais que tendem a pautar as discussões contemporâneas, o que está em causa é o poder que a mulher tem para decidir sobre o seu corpo e os papéis atribuídos às mulheres, ainda de submissão, em muitos contextos, nomeadamente da pobreza, no qual as irmãs Makiko e Natsu cresceram em Osaka e do qual lutaram para sair. Sem êxito – o que percebemos na primeira parte do livro. Os ovos (de aves) parecem ser a principal fonte proteica para estas mulheres e são uma metáfora para o que se segue.

    Na segunda parte do livro, dez anos após aquela visita, Natsu continua a escrever, mas sem grande convicção – mais por falta de concentração e foco. A sua atenção está centrada, principalmente, em como ter um filho sem o acto sexual. O sexo é algo que abomina.

    A sua pesquisa pela procriação (não muito clinicamente) assistida – tema tabu no Japão – transporta-nos para outras questões éticas relacionadas com a parentalidade, nomeadamente sobre a necessidade que os filhos, com pai desconhecido, têm em saber quem é o seu progenitor biológico. 

    Estas e outras questões são as angústias vívidas da narradora, que se refugia, numa primeira parte, na descoberta da identidade feminina manifestada no diário da sobrinha adolescente. O salto para a segunda parte do livro é de tal ordem, que o contacto com a irmã e a sobrinha são apenas isso: telefonemas e mensagens. 

    É natural que esta obra seja cativante, na medida em que esta narrativa de autoficção realista permite que o/a leitor/a se identifique com os dilemas das personagens. A perspectiva feminina sobre o seu corpo não costuma ser descrita de forma tão natural como crua, levando a leitora a questionar-se sobre a sua própria feminilidade e qual a origem do seu auto-conceito. 

    Os media muito têm contribuído para essa hétero-construção, muito raramente consentânea com o modo como cada mulher observa e sente o seu próprio corpo. Além dos padrões e falsas expectativas disseminados pelos media, também os papéis da mulher, nomeadamente o da maternidade, perpassam as conversas e o quotidiano das personagens, quase todas mulheres. 

    Os ditames e normas sócio-culturais tendem a formular uma ideia de maternidade que ultrapassa a mulher, de tal modo que muitas mulheres se sentem menos mulheres por não serem mães. Isto, por um lado. Por outro, a reflexão interior da narradora sobre a ideia de maternidade ainda associada à paternidade. 

    Este ‘ainda’ é, por assim dizer, o busílis de Natsu. Este ‘ainda’ é um tema do antropocentrismo. Sem dúvida que muitas outras ‘dificuldades’ estão a ser estudadas com o objectivo de nós, humanos, ultrapassarmos esse ‘empecilho’ que é o corpo, do qual somos proprietários e em relação ao qual, cada vez menos, saberemos o que fazer. 

    Desta feita, o livro é cativante para quem aprecia as questões de género e do papel da mulher nas sociedades contemporâneas.  

    O realismo das descrições é, igualmente, envolvente, na medida em que ao contrário de outros autores japoneses, como Haruki Murakami, temos acesso à cultura e modos de vida deste país tão fascinante como longínquo.

  • Não pensar: a via para a iluminação

    Não pensar: a via para a iluminação

    Título

    O caminho do Zen

    Autor

    ALAN WATTS (tradução: Alexandra Guimarães)

    Editora (Edição)

    Albatroz (Setembro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Alan Watts foi um filósofo britânico, reconhecido por ter sido um dos primeiros a interpretar a sabedoria do Oriente, incluindo o budismo zen e o taoísmo, contribuindo para a sua divulgação no mundo ocidental. Nascido em 1915 em Chislehurst, Inglaterra, faz 50 anos, a 16 de novembro, que morreu em 1973 nos Estados Unidos.

    Em 1951 mudou-se para São Francisco, onde começou a ensinar estudos budistas, e em 1956 começou o seu popular programa de rádio, “Way Beyond the West”. No início dos anos 1960, já a viver em São Francisco, as suas palestras, na rádio, eram transmitidas a nível nacional e o movimento da contracultura adoptou-o como porta-voz espiritual. 

    A sua abordagem única à filosofia e espiritualidade fez dele um dos pensadores mais populares e amados do seu tempo, sendo este O caminho do Zen um dos seus principais contributos. Esta obra, agora publicada pela Albatroz (original de 1957), é uma leitura muito útil para quem está interessado em aprender sobre a filosofia do Zen e, porventura, a iniciar-se nesse caminho. 

    Tendo em conta que o livro foi publicado na década de 1950, poderá parecer, em alguns momentos, desactualizado. Não tanto pelo tema, ancestral, mas eventualmente pelo interesse que um leitor submerso numa vida pautada pelos valores da produtividade, o trabalho como condição humana, ou pelo flagelo do imediatismo e pragmatismo da contemporaneidade, lhe possa consignar. Nada disto tem lugar no Tao – uma das grandes influências da prática Zen, ainda que pouco ou nada se possa afirmar sobre esta filosofia, pois

    “Aqueles que sabem não falam;
    Aqueles que falam não sabem”
    (pág. 13).

    Pese embora a sua manifesta cautela, Alan Watts explora a tradição filosófica e religiosa chinesa que se concentra no entendimento e na harmonia com o Tao, ou o Caminho, com o objectivo de resgatar a sua influência na prática do Zen – uma escola de pensamento e prática budista que se desenvolveu a partir do Mahayana.

    O autor inicia este ensaio histórico-filosófico descrevendo e explicando o Taoísmo e o Budismo Mahayana. Sempre com a ressalva de que

    “O Tao é algo turvo e indistinto,
    Tão indistinto! Tão turvo! (…)

    A qualidade das fontes a que o autor recorre e o seu trabalho exaustivo sobre a filosofia e espiritualidade orientais tornam esta obra especialmente valiosa. Está bem evidente, ao longo de todo o livro, que Alan Watts tem, como principal objectivo e até mesmo como missão, o desejo de que o leitor sinta curiosidade em pesquisar e pôr em prática alguns dos preceitos do Zen.

    Antes disso, porém, é necessário que nós, leitores ocidentais, ultrapassemos um dos grandes obstáculos à nossa própria compreensão, nomeadamente o pensamento dualista e a linguagem eminentemente classificatória. É neste contexto que o autor contrasta o pensamento oriental com o ocidental, salientando que o taoísmo está relacionado com a espontaneidade e o desapego, tão difícil ao conhecimento convencional do Ocidente. 

    Watts aborda, então, a importância do paradoxo e da não dualidade no Zen, realçando que, muitas vezes, as respostas para as questões mais profundas não podem ser explicadas verbalmente, podendo ser compreendidas somente pela experiência directa.  Isto significa que o caminho do Zen não pode ser descoberto pela aquisição de conhecimento ou pelo pensamento, na medida em que é algo que está além da existência material, por isso, indizível – um dos paradoxos do Zen. 

    Assim, ter como objectivo o “despertar” ou ser iluminado é, paradoxalmente, deixar de tentar alcançar o Caminho – tão-somente por se ter pensado nisso de forma convencional. Para saber o que é o Zen e, sobretudo, o que não é, a única alternativa é a sua prática, a sua experienciação.

    É na parte final do livro que Alan Watts dá exemplos de práticas do Zen e de como a sua vivência e experiência directa – fundamental neste caminho – podem conduzir a uma certa ‘ideia’ de iluminação, independentemente das crenças religiosas. O autor enfatiza, ainda, a importância da meditação como uma prática central no Zen – uma forma de acalmar a mente e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade.

    Algumas das artes descritas pelo autor, e por intermédio das quais se pode experimentar o Zen, são o haiku, a caligrafia, a jardinagem, a cerimónia do chá, a pintura e o tiro com arco. Fica o convite.

  • Entre a ficção e a realidade

    Entre a ficção e a realidade

    Título

    Zuckerman libertado

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Zuckerman libertado, original de 1981 e, agora, publicado em Portugal pela editora Publicações Dom Quixote, é uma obra do reconhecido autor Philip Roth (de quem falámos aqui, recentemente). Este é o segundo romance da série protagonizada pelo escritor Nathan Zuckerman, seguindo a sua jornada em busca pela liberdade pessoal e criativa (O escritor fantasma e A lição de Anatomia, juntamente com Zuckerman Acorrentado completam a série). 

    Narrado na terceira pessoa, a história passa-se em 1969, um ano depois de Martin Luther King e Robert Kennedy terem sido assassinados, com os protestos contra o Vietname como pano de fundo. É o ano em que Nathan Zuckerman está a aprender a lidar com a fama depois da publicação do seu romance Carnovsky

    A sociedade e os media perseguem o protagonista com a tentativa constante de o vincular à sua obra, altamente controversa. Quem leu O complexo de Portnoy, do mesmo autor, encontrará muitas semelhanças em relação ao enredo, às consequências e às polémicas geradas pelo efeito espelho relativamente às personagens criadas em ambas as referências. 

    Esse é, aliás, um dos grandes temas do livro. O pesadelo vivido por Zuckerman pelo facto de muitos leitores, incluindo a sua família e conhecidos, confundirem a ficção com a realidade. Ou será que é Nathan (e eventualmente Philip Roth) que, ao usar tanta matéria-prima da realidade quase em bruto, conduz os leitores a, facilmente, identificarem o escritor/autor com a personagem criada?

    Com Nathan Zuckerman, Roth explora, de forma exímia, a dificuldade em separar a vida do autor das suas criações literárias. À semelhança de Philip Roth, Zuckerman é constantemente questionado sobre o quão autobiográficas são as suas obras. Os factos – autobiografia de um escritor é disso ilustrativo.  

    “A ficção não é autobiografia, mas toda a ficção, estou convencido, mergulha as suas raízes na autobiografia” (pág. 160): excerto da recensão ao livro Carnovsky, escrita por Alvin Pepler, um admirador que persegue o escritor protagonista. Esta personagem cómica é baseada num concorrente histórico, também judeu, dos programas de perguntas e respostas da televisão dos anos 1950.  

    Zuckerman também lida com problemas pessoais, como conflitos amorosos, questões de identidade e dilemas éticos. Pode, por isso, ser um livro denso, dado o mergulho profundo na mente da personagem principal – provavelmente os dilemas existenciais por que o autor terá passado aquando da publicação de O complexo de Portnoy

    Neste fascinante e provocativo Zuckerman libertado, Philip Roth faz jus ao propósito do pós-modernismo. É quase certo que o leitor se sentirá sacudido, quase agredido, uma vez que será “obrigado” a reflectir, juntamente com a personagem, sobre a função da literatura. 

    O autor usa a própria personagem para justificar aquele intento, recorrendo a Frank Kafka, que terá escrito: “Creio que só devíamos ler aqueles livros que nos mordem e nos ferram. Se um livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para quê lê-lo?” (pág. 212).

    A presença de Kafka na obra também poderá ser um indício da vontade que Philip Roth tem em explorar a natureza alienante da fama e do sucesso, bem como as consequências psicológicas e emocionais de se ser uma figura pública, um dos temas centrais do livro.

    A narrativa expõe, igualmente, a censura e os limites da liberdade de expressão, discutindo a responsabilidade de um escritor perante o seu público. De tal modo que o romance conflui para o momento em que o irmão de Nathan o confronta com a sua (ir)responsabilidade de “trazer tudo a público”, sem qualquer comedimento (pág. 229). 

    Numa era em que as distopias parecem tornar-se realidade, ler a obra deste escritor de origem judaica pode ser uma forma de nos alienarmos deliberadamente, nem que seja por algumas horas, de um mundo confuso e caótico.

  • Um manual para ter tudo sob controlo

    Um manual para ter tudo sob controlo

    Título

    Influência: a psicologia da persuasão

    Autor

    ROBERT B. CIALDINI (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Julho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Robert B. Cialdini nasceu no Estado norte-americano do Arizona em 1945, e é professor emérito de Psicologia e Marketing. Desenvolveu o seu doutoramento na Universidade da Carolina do Norte e, ao longo de uma prestigiada carreira, amealhou, por três vezes, o reconhecimento como Doutor Honoris Causa. Razões que justificam então, por si só, o “Dr.” antes do próprio nome na capa do livro, ilustrando, assim, a maneira americana de se apresentar. 

    Toda a sua formação e estatuto deste especialista na área da psicologia social conferem-lhe assim autoridade mais do que suficiente no tema da Psicologia Social que este Influência; a psicologia da persuasão, editado em Portugal pela Lua de Papel, desenvolve.  

    A autoridade é, com efeito, um dos sete princípios universais que o autor explica, sustentada e minuciosamente ao longo de mais de 600 páginas. Em cada um dos capítulos, o Robert B. Cialdini apresenta uma série de notas que remete para um anexo, no qual menciona e descreve muitos dos estudos que fundamentam as ideias destacadas. Adicionalmente, no final do livro, estão indicadas todas as referências bibliográficas a que o autor recorreu para ilustrar, demonstrar e apoiar o que afirma.

    Este Influência pode, assim, ser entendido como um compêndio revisto e aumentado das edições anteriores que contemplavam seis destes sete princípios de influência. Os princípios, a que o autor designa como armas da influência, e que são os seguintes: Reciprocidade; Gostar; Prova Social; Autoridade; Escassez; Compromisso e Coerência; e Unidade, o princípio que, entretanto, incorporou nesta edição revista e aumentada.

    Um dos muitos aspectos positivos deste manual, chamemos-lhe assim, é o modo como o autor organiza a explanação de cada um dos princípios. A contextualização é seguida de uma explicação que ajuda à compreensão da sua força, como técnica de influência. 

    Os exemplos e os estudos apresentados são casos concretos que contribuem para o entendimento dos princípios da influência. Robert B. Cialdini também divulga situações e experiências vivenciadas por leitores de edições anteriores, como forma de comprovar o que vai sendo exposto, bem como de congregar e pôr em prática alguns dos princípios que propõe como universais, nomeadamente o da reciprocidade, o da prova social e, até, o mais recente, o da unidade, como quem diz, “fazemos todos parte da mesma comunidade”.

    Antes de terminar cada um dos capítulos, o autor dedica ainda um espaço à defesa do leitor, para que este saiba como se proteger da manipulação e do mau uso destes princípios, que considera como respostas automáticas. Automatismo que, provavelmente, tenderá a exacerbar-se, dadas as características inerentes à sociedade contemporânea, designadamente a pressão do imediatismo a que estamos cada vez mais sujeitos.

    No fim de cada capítulo, o autor resume, de igual modo, as principais ideias do princípio em questão. O que se afigura como outra mais-valia, não só pela síntese recordatória, mas também pela possibilidade de se revisitar o princípio que for mais relevante para a situação prática que se prevê viver. 

    Estamos, portanto, perante  um livro vivamente recomendado para as pessoas empreendedoras, que se estão a iniciar numa carreira ligada ao marketing, ou a implementar o seu próprio negócio, qualquer que seja a área de intervenção. E além de ser um livro de referência da Psicologia Social acaba também por ser um guia antropossociológico que, seguramente, auxiliará a compreender como melhor cativar e manter clientes ou parceiros de negócios. 

    As pessoas ligadas aos recursos humanos e relações-públicas, ou aspirantes à liderança encontrarão uma significativa utilidade neste compêndio sobre o comportamento humano, nas mais diversas situações de inter-relacionamento social.

    Por outro lado, como o autor termina cada um dos princípios com sugestões sobre como nos podemos defender daqueles que nos estão a tentar manipular, também se mostra uma boa leitura para aprender a evitar a comprar ou a adquirir aquilo de que não precisamos. 

    Depois de ler este manual, o leitor pode ainda entrar no site Influence at work e testar as suas capacidades persuasivas. 

    Tendo em conta a dimensão do livro, é natural que existam algumas gralhas, que se detectaram. Mas dado o carácter didáctico da obra, sugere-se então, no caso de uma reimpressão,  nova revisão a começar, por exemplo, pela folha de rosto e o seu verso, corrigindo o título original.

  • Uma introdução à cultura milenar

    Uma introdução à cultura milenar

    Título

    Namasté: o caminho indiano para a felicidade

    Autores

    HÉCTOR GARCIA E FRANCESC MIRALLES (tradução: André Marcelo)

    Editora (Edição)

    Albatroz (Abril de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Nascido em 1981, em Espanha, Héctor García vive no Japão desde 2004. Antes de se radicar no oriente, trabalhou como engenheiro de software no CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), na Suíça. Ficou conhecido desde a publicação do livro A geek in Japan. Mas foi com o livro Ikigai, escrito com o conterrâneo Francesc Miralles, que se viria a tornar um fenómeno mundial. 

    Francesc Miralles é também um autor premiado de livros de desenvolvimento pessoal. Nascido em Barcelona em 1968, já trabalhou como editor, tradutor e ghost writer. Estudou jornalismo, literatura inglesa e alemão, e é músico. Foi, também, depois de uma longa viagem à Índia que escreveu o seu primeiro romance.

    Depois de Ikigai e outras derivações do método pelos autores desenvolvido, surge este Namasté: o caminho indiano para a felicidade, editado, em Portugal, pela Albatroz.

    Se os leitores estavam à espera de um manual – com receitas para encontrar o nirvana, o zen, ou algo semelhante, dependendo da crença religiosa de cada um –, é disso que se trata: uma introdução a diversas religiões e práticas espirituais, sobretudo as que estão ligadas ao hinduísmo, não fosse este um caminho indiano.

    O livro está divido em três partes. Na primeira, “A cultura da felicidade”, os autores começam por descrever a saudação e o significado de “Namasté”. Se dúvidas havia, quando alguém une as palmas das mãos, à altura do centro do peito, com os dedos a apontar para cima e os polegares próximos do peito, inclinando o tronco para a frente e pronunciando a palavra “Namasté”, está a dizer: “a minha alma saúda a tua”, ou “o que há de sagrado em mim reconhece o que há de sagrado em ti”.

    Os autores prosseguem apresentando cinco ideias de cinco mestres para o mundo atual. Impressionante pode ser o caminho Sadhu, o estilo de vida do viajante indiano, “baseado na renúncia para atingir a lucidez espiritual”. A renúncia e a sobriedade caminham juntas neste percurso constituído por quatro fases de vida, cuja resposta à questão “De que podemos prescindir?”, parece ser uma das opções mais práticas da existência.

    É num “ashram” que se podem encontrar as condições ideais para aprender a viver em comunidade. O exemplo de Elizabeth Gilbert também é nomeado, com o seu Comer, orar e amar.  

    Na segunda parte do livro, “A filosofia da felicidade”, os autores convidam ao leitor à auto-indagação, em que a primeira pergunta é, naturalmente, “quem sou eu?”. Apesar de ser uma formulação simples, nem sempre é fácil de responder, tão embrenhados que estamos na corrida para ter e ter e ter. É precisamente aquilo que resta, depois de tudo o que se perde num naufrágio, por exemplo, que se poderá eventualmente saber responder àquela grande questão existencial. 

    Para auxiliar à reflexão, os autores vão citando outras obras, destacando-se o livro de Don Miguel Ruiz, Os quatro acordos, aqui denominados de “os quatro desapegos”, o primeiro dos quais é sempre o “ego”.  

    Dharma, karma, samsara e nirvana são outros termos que o leitor poderá reconhecer e relembrar, estando aqui contextualizados e como introdução à terceira e última parte do livro, “A prática da felicidade”. Nesta, os autores sugerem e descrevem algumas técnicas de respiração para diversas situações do quotidiano. A prática do ioga, a medicina Ayurveda são outras sugestões dos autores. 

    Fica, por isso, patente a ideia de que é uma introdução às diversas possibilidades para o caminho espiritual. O importante é que cada pessoa percorra aquele com o qual se identifica, quer em termos de práticas meditativas, mais passivas ou ativas, como o ioga, quer em termos de aprendizagem e mesmo de alimentação. No fundo, as bases para uma vida espiritual, sendo certo que uma alimentação saudável é fundamental para uma vida globalmente saudável, onde se insere, naturalmente (para os autores, claro), a prática da meditação.

    Este é um livro de leitura curta e fácil, porque escrito de forma simples, para principiantes em meditação, ou para as pessoas curiosas pela cultura milenar indiana. 

  • Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Título

    Alegorizações

    Autora

    JAN MORRIS (tradução: Raquel Mouta)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Jan Morris nasceu em 1926, no Reino Unido, e morreu em Novembro de 2020, aos 94 anos. Uma vida longa, com muitas peripécias e viagens, tendo publicado sob o nome de James Morris até à década de 1970, época em que concluiu a transição para o sexo feminino (1972).

    O seu livro autobiográfico, Conundrum – história da minha mudança de sexo, também publicado pela Tinta da China, é um relato pungente sobre essa mesma experiência. Além de ser uma referência para a comunidade LGBTQI+, esta autobiografia é considerada, pelo The Times, como um dos “100 livros fundamentais do nosso tempo”. 

    Antes disso, a sua experiência no exército inglês, no qual entrou aos 17 anos, permitiu-lhe tomar contacto com outros países no contexto do pós-II Grande Guerra e do declínio do império britânico. Estas viagens, juntamente com o curso de História em Oxford, contribuíram não apenas para enriquecer a sua experiência e aumentar a sua matéria de escrita, mas também e, sobretudo, para expandir a sua mundividência – algo que se espelha na sua obra. A trilogia composta por Heaven’s Command, Pax Britannica e Farewell The Trumpets, que retrata a ascensão e queda do Império Britânico, é disso exemplo.

    Em 2008, o The Times incluiu Jan Morris entre os 15 maiores escritores britânicos do pós-guerra. Em 2018, foi distinguida com o Prémio Edward Stanford, pelo seu contributo para a literatura de viagens – a autora publicou ensaios sobre inúmeras cidades, entre as quais Oxford, Veneza, Trieste, Hong Kong e Sidney. 

    Além deste género, a escritora é autora de livros de história e ensaios, dois romances e uma coletânea de contos.

    Este Alegorizações é um livro (póstumo) onde Jan Morris escreve sem pretensões e sem quaisquer limitações, sem necessidade de provar o que quer que seja – com os riscos que daí possam advir. Claro que, para a autora, não havia nenhum depois da sua morte, mas para quem conhece a sua obra, este pode ser um livro aquém das expectativas. Sugere-se, por isso, que não se abram as páginas em busca da obra-prima. 

    É um livro que inclui diversos relatos de viagens, pessoas e lugares memoráveis e episódios mais ou menos caricatos, mais ou menos engraçados, marcados pelo subtil humor britânico. Um conjunto de ensaios escritos a partir das suas recordações enquanto jornalista, cuja ideia subjacente à redação dos diversos textos é lembrar que nem tudo o que parece é, e que a compreensão da realidade implica ir além do que está, literalmente, escrito e à vista. Como na Alegoria da Caverna de Platão, em que as sombras e os ecos são um reflexo distorcido da realidade.

    Uma das alegorias explicitamente consideradas pela autora diz respeito ao texto “O montanhista”. Jan Morris fez a reportagem da expedição de Edmund Hillary e Tenzing Norgayo ao Evereste, em 1953, acompanhando aqueles que terão alcançado, pela primeira vez, o cume da montanha mais alta do mundo. O texto é sobre o nepalês Tenzing Norgayo, e de como este é um símbolo e “personificação da própria vida: ágil, célebre, sempre cheio de entusiasmo e incansável” (p. 187). A lenda sherpa encarna, igualmente, a inevitável força da natureza, nomeadamente o declínio das capacidades físicas. Para Tenzing, a força e representação máxima da sua singularidade. Sui generis, assim o descreviam no Ocidente, na época dos descobrimentos verticais, digamos assim.

    O envelhecimento é um dos temas que vai perpassando o livro. O que talvez seja natural, dadas as circunstâncias da sua publicação e da percepção de uma morte mais próxima que longínqua. Mais em retrospectiva, do que em sensação de perda. Como se envelhecer fosse uma arte, em que a aceitação é a regra básica para uma vida mais leve e livre. 

    Também a bondade faz parte desta criação artística. Para a autora, a bondade é, aliás, um conceito sem qualquer alegoria, é “a única abstracção que pode orientar a nossa conduta enquanto aguardamos a revelação final (se houver alguma)” (p. 216). Para Jan Morris, “a bondade tem latente uma grande arma conceptual que está só à espera de ser usada: é mais grandiosa do que a simples religião” (p. 217), sendo facilmente compreendida por qualquer pessoa, independentemente da sua condição. 

    O ridículo, como matéria de reflexão, é outro dos atractivos do livro. O texto “Sonhar sonhos?” é o ponto de partida para uma viagem meditativa sobre o acto de meter e tirar o dedo do nariz. As indagações da autora conduzem-na a reflectir sobre a (in)discrição do acto:

    “Desde então que tenho de lhe dar uma mãozinha pelo processo pouco bonito de lá enfiar um dedo. É uma coisa tão feia de se fazer não é, mas acham que toda a gente o faz?”

    O mesmo tipo de questão é formulado pela autora em relação a Ulisses, de James Joyce: 

    “Será que todos eles leram o livro de uma ponta à outra? Duvido muito. A maioria das pessoas que afirmam tê-lo feito tornam-se evasivas quando pressionadas…” (p. 37). 

    E o/a leitor/a, estará pronto para sair da caverna e viajar com Jan Morris?

  • Estoicismo para totós

    Estoicismo para totós

    Título

    O obstáculo é o caminho

    Autor

    RYAN HOLIDAY (tradução: Maria Saraiva)

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Junho de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Ryan Holiday auto-descreve-se como escritor e estratega dos meios de comunicação social. Aos 19 anos terá abandonado a faculdade para se tornar aprendiz de Robert Greene, um dos autores do livro As 48 leis do poder

    Fundador da agência criativa Brass Check, afirma-se ainda como conselheiro de empresas como a Google, a TASER e a Complex, bem como de diversos autores como Neil Strauss (Regras do jogo), Anthony Robbins (O poder sem limites) e Tim Ferriss (4 horas por semana).  

    É também autor já de uma dezena de livros, entres os quais A quietude é a resposta (Lua de Papel), Estoico todos os dias (Lua de Papel) e O ego é o seu inimigo (em português do Brasil, pela Editora Intrínseca). Livros que se inspiram no chamado estoicismo da Antiguidade Clássica.  

    Só por isso, talvez valha a pena pegar neste O obstáculo é o caminho, também publicado pela Lua de Papel, pois, tal como o Ryan Holiday sugere, mais do que ler livros sobre os clássicos, é melhor ler o que os próprios filósofos terão escrito, nomeadamente, Meditações de Marco Aurélio, ou Sobre a brevidade da vida, de Séneca.

    Será, portanto, natural que, no decorrer da leitura, a curiosidade vá aumentando, no sentido de se querer conhecer os princípios do estoicismo, a partir dos quais também este O obstáculo é o caminho se desenvolve. 

    De salientar que, para quem não conhece o estoicismo, as suas origens e tão-pouco os seus princípios, este pode ser, efectivamente, um ponto de partida interessante, sobretudo por ser de leitura fácil, pela simplicidade da escrita. Além disso, na tradução do livro, optou-se por tratar o leitor por “tu”, o que poderá resultar numa sensação de proximidade.

    O livro está dividido em três partes: “perceção”, “ação” e “vontade”. As partes para compreender e agir sobre os obstáculos, e, finalmente, para persistir e perseverar nessa jornada. Para cada uma das secções, o autor recorre a exemplos de pessoas que ficaram famosas pelos seus feitos, identificando-as como personalidades com atitude e pensamento estoicos.

    A título de exemplo, o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, terá recorrido com frequência a Catão, o Jovem – um dos primeiros estoicos da Antiguidade Clássica – nos seus discursos para as tropas, aquando da Guerra da Independência. Steve Jobs e Margaret Thatcher são outras pessoas referenciadas, entre muitas ao longo do livro. 

    Ainda que seja incerto que essas pessoas se tenham assumido como estoicas, Ryan Holiday consegue neste livro cativar aqueles que estejam em busca de uma orientação para alcançar os seus objectivos. É assim mais um livro de auto-ajuda que poderá ser útil a quem procura mudança na sua vida profissional, em particular aqueles que acreditam que basta desejar e visualizar o sucesso, como é apanágio agora de algumas correntes ‘New Age’.

    Em todo o caso, ao invocar alguns dos princípios do estoicismo, Ryan Holiday está sim a mostrar que a vida é constituída por um conjunto interminável de obstáculos. Embora não seja nada de novo, é um bom lembrete mostrar que a ilusão é apenas e somente isso mesmo: uma ilusão. Não basta acreditar que tudo se resolverá, que os astros se vão alinhar e que tudo será possível, que basta querer e seremos famosos ou pessoas de sucesso.

    Este livro tem assim essa grande vantagem: a de lembrar, aos mais ingénuos, que a vida, o mundo e a realidade são como são e não vale a pena perder tempo a desejar que fosse de forma diferente. Nesse sentido, é um livro prático, por recordar que os obstáculos, os percalços, as vicissitudes da vida são inerentes à existência e que quanto mais rápido se aceitar que assim é, mais rápido se aprenderá a tentar ultrapassar ou a contornar cada obstáculo.  

    Além da mudança, esta pode ser outra constante da existência: nada é fácil e haverá sempre mais uma barreira antes de alcançarmos os nossos objetivos, sendo certo que depois de os atingirmos (se os atingirmos), outras adversidades se terão de enfrentar. 

    Por isso, faz sentido o conselho do autor, repetido ao longo do livro, mesmo que inicie afirmando que não tem conselhos para dar: vejam as coisas como elas são, façam o que podem e aguentem e resistam ao que for preciso. Tudo isto, cumprindo com o nosso dever: “trabalho árduo, honestidade, ajudando os outros tanto quanto podemos”. Em que a “ação certa – altruísta, dedicada, magistral, criativa – é a resposta” ao sentido da vida e é “uma maneira de transformar cada obstáculo numa oportunidade” (p. 108).  

    No caso de haver reimpressões futuras, sugere-se uma revisão para corrigir gralhas.