Autor: Ana Luísa Pereira

  • Dois olhares sobre uma cidade

    Dois olhares sobre uma cidade

    Título

    Lisboa

    Autor

    JOÃO MELO

    Editora

    Centro Atlântico (Maio de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Lisboa faz parte da colecção Portugal, publicada pela editora Centro Atlântico. Nesta colecção, os autores convidados, entre os quais João de Melo, fazem um percurso literário pelo património de um concelho, em companhia do fotógrafo Libório Manuel Silva. Um mergulho na geografia portuguesa com recurso à palavra escrita e à fotografia (com edição em capa dura e bilíngue).

    João de Melo é natural de São Miguel (Açores), onde nasceu em 1949, mas reside em Lisboa desde 1967, onde se licenciou em Filologia Românica, na Faculdade de Letras. Foi professor do ensino secundário e, mais tarde, do ensino superior. Desempenhou o cargo de conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Espanha, entre 2001 e 2010, e é um autor consagrado bastante diversificado nas áreas da ficção, ensaio, antologias, poesia, crónica e viagens. De entre os diversos prémios literários destaca-se o “Prémio Vergílio Ferreira (2016) pelo conjunto da sua obra” (conforme se pode ler no sítio da Centro Atlântico e onde se poderá encontrar o conjunto dos livros incluídos nesta colecção única). O seu romance mais conhecido continua a ser ‘Gente feliz com lágrimas‘, publicado originalmente em 1988, com o qual recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores e ainda, mais tarde, o Prémio Fernando Namora, Prémio Cidade de Lisboa/ Eça de Queiroz, Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-americanas e Prémio Livro do Ano da Antena 1.

    Quanto a Libório Manuel Silva, é um conhecido fotógrafo de Artes e Património Cultural e editor fundador da Centro Atlântico, tendo publicado inúmeros livros sobre Artes & Fotografia, Viagens, Fernando Pessoa, entre outros temas (informação disponível na sua página do LinKedIn).

    Em Lisboa, a prosa poética de João de Melo, complementada pelas imagens de Libório Manuel Silva, surge como um convite a olhar para locais conhecidos através de uma lente escrita, cuja perspectiva espoleta, no mínimo, uma enorme vontade de revisitar os lugares seleccionados pelo autor e pelo fotógrafo.

    A chegada via marítima de um menino a Lisboa é o mote para esta expedição, que começa com a intermediação do Rio Tejo. A vista desde o Rio para a Baixa Pombalina, o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, a Ponte 25 de Abril, a Rua de Alfama e a Antiquária de Campo de Ourique são outras fotografias que ilustram a viagem pela memória do autor, cujas páginas de ‘Gente Feliz com Lágrimas ainda reverberam noutras muitas memórias dos seus leitores.

    Entre a realidade e a ficção, numa espécie de autobiografia ficcionada, a história da personagem entremeia-se com a História da cidade e do País, num vaivém entre um passado de guerra colonial e a luz ofuscante que caracteriza a capital, tornando-a inesquecível e, claro está, um paraíso para os fotógrafos mais ou menos profissionais, certamente que todos amadores dessa cidade luminosa.

    Sendo uma versão bilíngue pode ser um presente ideal para cativar o estrangeiro a calcorrear as ruas de Lisboa, levando consigo um guia de luxo, João de Melo, ele próprio. Fica a sugestão, com dois excertos:

    A visão distende-se em arco sobre o corpo da cidade. Contempla, primeiro, uma por uma, as suas sete colinas, depois toda ela, paisagem urbana em abstracto, e finalmente a energia da vida que sobre ela passa” (p. 21).

    O trabalho do escritor difere da arte do fotógrafo, no ponto em que a escrita precisa de a si mesma se inventar para depois transcrever a linguagem do olhar – ao passo que a foto usa de uma subtileza criativa declarada na hora, sobre o imediato” (p. 33).

  • Batalhas de livreiros

    Batalhas de livreiros

    Título

    O destino da livraria de Kichijoji

    Autora

    KEI AONO (tradução: André Pinto Teixeira)

    Editora

    Singular (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Kei Aono é uma autora japonesa, nascida em 1959 na cidade de Nagoya. Em 2006, estreou-se como autora com o livro, The Reason Why I Won’t Quit (Yamenai Riyu) e, em 2014, ganhou notoriedade pela série de romances sobre a livraria de Kichijōji, com a qual venceu o primeiro prémio dos Shizuoka Bookstore Awards, na categoria “Livro que gostaria de ver adaptado ao cinema”.

    A sua experiência numa revista de banda desenhada foi certamente inspiradora para o enredo entretecido neste O Destino da Livraria d Kichijōji (agora publicado, em Portugal, pela Singular). Pode dizer-se que a banda desenhada (BD) é uma espécie de personagem, pelo espaço que ocupa na trama – é na secção de BD da livraria que Aki, uma das duas protagonistas, trabalha.

    É com o casamento de Aki Kitamura, com um editor em ascensão, Obata Nobumitsu, que esta novela começa. A evolução da relação conjugal é uma das histórias secundárias. Ainda que de forma superficial (e, eventualmente, incompleta) é um elemento que enquadra os modos de vida de uma cultura tão distante da nossa. Esta é uma das qualidades do livro, ao transportar o leitor para uma cidade que, porventura, gera curiosidade pela distância, não apenas espacial, mas sem dúvida, sob o ponto de vista sócio-cultural.

    Riko, a chefe de Aki, é a outra protagonista, cuja descrição revela alguns traços e estereótipos da cultura japonesa (mas não só): “Tinha 40 anos, mas ainda era solteira” (p. 6). A sua condição de solteirona é, depreende-se, uma razão para sua postura rígida e disciplinada na Livraria. Por outro lado, a sua condição de mulher é factor inibitório para progredir na carreira. Num diálogo entre Riko e um cliente difícil, a autora aproveita para demonstrar essa clivagem bem presente na cultura oriental (mais uma vez, mas não só).

    “– Sou a gerente desta livraria. Chamo-me Nishioka.

    – O quê? Uma mulher? Não gozem comigo. Chamem alguém como deve ser!” (p. 203)

    A cena prossegue neste tom, culminando com Riko Nishioka a ajoelhar-se para pedir desculpa em nome de todos os funcionários.

    As relações profissionais e laborais, neste caso, entre livreiros, editores e autores são, de igual modo descritas, sendo mesmo o elemento mais escrutinado e descrito, quase de forma explicativa – sugerindo alguma imaturidade/insegurança.

    É, ao mesmo tempo, o motivo pelo qual na capa do livro se pode ler: “Um romance obrigatório para os apaixonados pelo mundo dos livros”. Efectivamente, depois do casamento de Aki e de algumas peripécias sobre o quotidiano desta livraria de um bairro histórico de Tóquio, entramos finalmente na história principal: como ultrapassar a ameaça do encerramento iminente da Livraria Pégaso?

    As campanhas de vendas da livraria, as ligações com a empresa-mãe, assim como as ligações entre editores e autores e livreiros são, como referido, um atractivo para os curiosos sobre o mundo dos livros e de como são seleccionados e postos à venda nos escaparates das livrarias.

    A escrita simples pode ser uma percebida como outro ponto a qualificar, não obstante, para o leitor mais maduro e exigente, o enredo pode não ser suficiente para o cativar.

    Como num conto, fica a moral da história, a união (pode) faz(er) a força.

  • Banho de persuasão

    Banho de persuasão

    Título

    Como escrever

    Autor

    MIGUEL ESTEVES CARDOSO

    Editora

    Bertrand (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Miguel Esteves Cardoso (MEC) é um autor que quase todos os portugueses conhecem, quando mais não seja da televisão e das crónicas quase diárias do jornal Público. Por isso, começo já a falar sobre este Como Escrever, o livro que se debruça sobre essa prática exclusiva humana e que, provavelmente, nos permitiu ser humanos.

    A primeira vez que vi o livro, fiquei na livraria a lê-lo em pé, durante o tempo que esperava pela pessoa que acompanhava, torcendo para que se demorasse o mais possível. Queria prosseguir na leitura. O livro correspondia ao título de um outro, As primeiras cinco páginas, de Noah Lukeman. Estava agarrada, mas hesitava. Ainda há pouco lera On writing, de Stephen King e Romancista como vocação, de Haruki Murakami, cuja recensão pode ser lida aqui). Ambos confirmaram o que é sobejamente conhecido: para escrever é preciso escrever, escrever, escrever e escrever.

    São muitos os livros com técnicas de escrita criativa e afins nas prateleiras cá de casa, um dos motivos por que não comprei o livro que me estava a impelir a continuar a ler sobre como escrever. Claro que para um escritor em progresso, ou para quem tem pretensões a escrever, não basta ler e saber como escrever. É preciso escrever. Nada de novo. Não comprei.

    Mas, duas semanas depois recebi o telefonema de uma amiga, chamemos-lhe cúmplice da leitura, para usar a expressão de MEC, e companheira de viagem pela escrita, a AI: “Já leste o livro do MEC?” É delicioso, prosseguiu mais ou menos neste registo. Nessa tarde ia à Feira do Livro. “Convenceste-me!” Como todas as pessoas que se intitulam ávidas leitoras (ou outros predicados semelhantes), só há uma desculpa para não comprar mais livros, não gastar mais dinheiro em livros.

    Comprei. Num outro stand da Feira do Livro, o alfarrabista de serviço viu-me com o livro e desdenhou. Que não havia nada de especial, que o título do livro deveria ser diferente, como por exemplo, Como eu escrevo, uma vez que era muito pessoal. Nem sequer era sobre o processo de escrita propriamente dito, como é o caso do de Stephen King, ou com técnicas de escrita, como este (para mim, claro) extraordinário Criative-se – Curso Completo de Escrita Criativa, de Pedro Sena-Lino. Não, o senhor alfarrabista, que muito apreciava escutar MEC, ficara desiludo com o tom pessoal deste Como escrever, publicado recentemente pela Bertrand Editora.

    Bom, para quem estivera hesitante, perceber que afinal acabara de fazer uma compra medíocre, não fora propriamente a conversa mais encantadora. Guardei, mas não me deixei impressionar. Todavia, a AI é uma leitora em quem confio, uma cúmplice, vá.

    Comecei a ler nessa mesma noite. E não consegui parar. Sublinhei, copiei excertos e escrevi nas margens. MEC selecionou uma qualidade de papel, cuja gramagem permite escrevinhar e sublinhar a bel-prazer. Mais do que isso, tem super-margens para que os leitores que gostam de marcar os livros o façam de consciência tranquila. Além disso, com um conselho muito útil de MEC: façam-no com letra legível. O mesmo se aplica à escrita. Escrever com letra que possamos entender quando tivermos mais dez anos. Parece óbvio, mas quem, como eu, escreve à mão, sabe muito bem que é bom ter esse lembrete.

    Sim, é pessoal, mas mais do que um manual – que não o é –, Como escrever é um apelo de MEC a que todos nós nos sentemos a escrever sobre nós próprios, não apenas porque é sobre nós que mais sabemos, sobretudo, por ser a escrever que nos ficamos a conhecer melhor.

    Com efeito, para mim, este é o maior motivo para se ler este livro. Se estou aqui, neste momento é por ter imensa vontade de escrever sobre a minha leitura. E aqui ficaria por muitas mais linhas, mas creio que por ora o importante é, realmente, enaltecer MEC pela forma como me impeliu a escrever mais, e sem freios, e sem pudor sobre o que me apetece.

    Depois logo se vê o que fazer com o que resultar dessa escrita desenfreada. O que importa é escrever, o como e para quem é secundário. Porque escrever é libertador. É a possibilidade, muito esquecida, de falar sem ser interrompido e de dizer ao outro tudo o que não temos coragem de lhe dizer na cara. Melhor ainda, podemos editar o que dizemos e, depois, enviar uma carta sem erros de interpretação, tão-só dissemos exactamente o que queríamos ter dito.

    Só por isso, vale a pena ler, rabiscar e comentar este Como escrever de MEC, a quem aproveito a oportunidade para agradecer a generosidade de partilhar o que lhe apeteceu escrever sobre como escrever.

  • Uma ode à literatura japonesa

    Uma ode à literatura japonesa

    Título

    Batalhas de livreiros

    Autora

    YASUNARI KAWABA (tradução: Francisco Agarez)

    Editora

    Dom Quixote (Maio de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Yasunari Kawabata (1899-1972) foi um proeminente escritor japonês e o primeiro do seu país a ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1968. Conhecido pela sua prosa lírica e profundamente sensível, Kawabata explorou temas como a beleza da natureza, os desejos proibidos e a melancolia, frequentemente influenciados pelas tragédias pessoais que marcaram a sua juventude, incluindo a perda de vários entes queridos (ficou órfão de ambos pais aos três anos).

    Formado pela Universidade Imperial de Tóquio em 1920, Kawabata desempenhou um papel significativo no panorama literário japonês do início do século XX. Em 1921, fundou a revista Xin-Xicho [Pensamento Novo] e, juntamente com Yokomitsu Riichi, criou o jornal literário, Bungei Jidai [Anos Literários]. Por intermédio destas publicações, Kawabata impulsionou o movimento Xinkankakuha [Novas Sensações] na literatura, valorizando a arte pura como missão primordial do escritor.

    A Casa das Belas Adormecidas e Mil Grous são duas das suas obras inesquecíveis publicadas, em Portugal, pela Dom Quixote, tal como este O Arco-Íris.

    É o terceiro livro de autores japoneses que li num mês e a comparação é impossível. E não é só pela qualidade da tradução (aqui, a partir da versão inglesa, por Francisco Agarez). Com Yasunari Kawabata, a urdidura da escrita tem um propósito. Não há palavras ao acaso, não há palavras a mais. Não há explicações.

    A prosa poética de Kawabata em O Arco-Íris é marcada pela elegância e sensibilidade lírica que transmitem emoções profundas sem recorrer a excessos verbais. Cada palavra parece meticulosamente escolhida, criando uma atmosfera de contemplação, mesmo quando trata de questões sombrias e dolorosas. As descrições profundas e sentidas de um tempo e espaço são de tal modo vívidas que o leitor é transportado para o pós-guerra do Japão, para a serenidade de um povo que ultrapassa, em silêncio, os traumas insidiosos de uma época sombria.

    Publicado originalmente em 1951 sob o título Niji Ikutabi, O Arco-Íris é um exemplo do talento de Kawabata para tecer narrativas que combinam uma simplicidade aparente com a profundidade emocional.

    A história centra-se na vida de três irmãs, filhas do arquitecto Mizuhara, todas nascidas de mães diferentes. A narrativa, estruturada em capítulos que podem ser lidos como contos independentes, explora as intricadas relações familiares e pessoais no contexto do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, um período marcado por mudanças sociais profundas e reconstrução nacional. A tradição é questionada e alvo de reflexão, sendo percebida como uma forma de mimetismo e imitação.

    É um mimetismo quando seguimos as últimas tendências, mas também é um mimetismo quando nos deixamos acorrentar pela tradição ou pela convenção. É uma coisa a que não podemos fugir. Se bem que haja quem diga que a imitação diminui o valor da beleza” (p. 86).

    Asako, a segunda filha, está obcecada por encontrar uma terceira irmã. Impulsionada por um encontro fortuito num comboio entre Tóquio e Quioto, embarca numa jornada em busca da sua irmã desconhecida.

    A presença constante do pai, que esconde a existência dessa filha – Wakako, gueixa em Quioto –, adiciona uma camada de mistério e tensão à narrativa. Esta procura é também simbólica, representando, quiçá, o desejo de reconstruir laços de família fragmentados e de encontrar a sua identidade num mundo em transformação.

    Momoko, a filha mais velha, é retratada como uma personagem atormentada. Assombrada pela perda do seu namorado durante a guerra e pela morte da sua mãe por suicídio, Momoko envolve-se em relações auto-destrutivas que reflectem a sua luta interior.

    Com estas estas personagens, Kawabata explora temas universais como o luto, a culpa, o amor e a identidade. As descrições vívidas e poéticas resgatam a impermanência e a fragilidade da existência humana, frequentemente simbolizadas pela mudança das estações e pelas paisagens naturais que servem de pano de fundo à narrativa.

    Esta obra é um convite à leitura introspectiva e contemplativa, algo essencial num mundo frenético que parece aproximar-se vertiginosamente do caos, quem sabe em direcção ao arco-íris da esperança – por uma humanidade mais humana (e pacífica).

    Se nos esforçarmos por não empurrar os nossos entes queridos para o inferno acabamos nós por cair nele. Às vezes dou comigo a pensar que nenhuma das nossas dores, nenhum dos nossos pecados, é completamente original. São uma herança, uma imitação daqueles que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?” (pp. 199-200).

  • Infância centrada no telefone: que desafios?

    Infância centrada no telefone: que desafios?

    Título

    A geração ansiosa

    Autor

    JONATHAN HAIDT (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Jonathan Haidt é um psicólogo social americano e professor de Liderança Ética na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque. Nascido em 1963, Haidt é conhecido pelo seu trabalho em psicologia moral e política, e a sua investigação centra-se no modo de as pessoas formarem os seus julgamentos morais. Doutorou-se em Psicologia Social pela Universidade da Pensilvânia, em 1992, tendo leccionado na Universidade da Virgínia durante 16 anos.

    Haidt ganhou notoriedade com o seu livro The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (2012), no qual explora as raízes psicológicas das divisões políticas e religiosas. Juntamente com Greg Lukianoff, publicou outra obra relevante, The Coddling of the American Mind (2018), dedicada às mudanças culturais e educacionais que, segundo os autores, estão a fragilizar a geração mais jovem.

    Com este A Geração Ansiosa (Publicações Dom Quixote), Haidt vai além das alterações culturais, demonstrando como as redes sociais, mais do que transformarem a cultura, estão a transfigurar a humanidade, desde 2010. Esta obra apresenta uma análise profunda e crítica sobre o colapso da saúde mental entre os jovens da chamada “Geração Z” (Gen Z), os que nasceram depois de 1995.

    Esta é uma leitura obrigatória para todos os pais, educadores e responsáveis políticos pela educação e saúde na infância, adolescência e juventude. Deste modo, todos serão confrontados com o seu papel no aumento dos distúrbios mentais (mas não apenas) dos jovens nascidos depois de 1995 e, sobretudo, dos que, desde 2010, têm acesso às redes sociais.

    A hipótese do autor é a de que, desde a década de 1980, temos vindo a assistir à reconfiguração da infância por duas ordens de razões: a super-protecção do mundo real por parte dos pais, devido ao que o autor designa de ‘safetism’; e a sub-protecção no mundo virtual.

    Esta grande reconfiguração da infância, transformou esta fase da vida, primordial sob o ponto de vista da socialização – enquanto processo de aquisição, aprendizagem e interiorização das normas, valores, comportamentos e atitudes da sociedade (enquanto processo de integração nos grupos sociais de que fazemos parte) –, a partir da combinação daquelas duas grandes tendências: o medo de deixar as crianças brincarem sem vigilância parental (dito de outro modo: parentalidade excessivamente protectora) e a permissão para navegarem no mundo virtual sem qualquer limitação e protecção. Desde então, passou-se de uma infância centrada na brincadeira para uma infância centrada no telemóvel (smartphone).

    O declínio da infância baseada na brincadeira tem provocado quatro danos fundamentais nas crianças e jovens: privação social, privação do sono, atenção fragmentada e dependência. Não é estranho, por isso, que a Gen Z, a primeira a crescer inteiramente na era digital, se tenha tornado, segundo Haidt, uma “geração ansiosa”, marcada por altos índices de ansiedade, depressão, auto-mutilação e suicídio.

    O autor descreve a génese e fundamenta todos aqueles danos, demonstrando, também, como as redes sociais prejudicam mais as meninas e raparigas do que os rapazes. O livro está pejado de estudos que comprovam tudo e mais alguma coisa, sendo certo que só quem não quer é que não verá o que está à frente dos nossos olhos, tão-só porque os adultos da geração de 1970 e 1980 não querem reconhecer os pais helicópteros em que se converteram. Se é de provas que precisam, basta folhear a 150 páginas de notas e referências bibliográficas, onde se encontram todos os estudos, dados e afins sobre o estado mental, as suas causas e consequências.

    A “onda gigante de sofrimento” da ‘geração ansiosa’ tem causas e estão estudadas e documentadas. Apesar do cenário preocupante, Haidt é generoso e sugere um plano de acção para reverter o marasmo em que vivemos, propondo quatro medidas fundamentais: adiar o uso de smartphones até o ensino secundário, proibir o acesso às redes sociais antes dos 16 anos, criar escolas livres de dispositivos móveis e incentivar as brincadeiras não supervisionadas durante a infância. Haidt defende que estas acções são essenciais para restaurar uma infância mais saudável e equilibrada na era digital.

    Para isso, é primordial que a acção seja colectiva. Importa que pais, educadores e responsáveis políticos se unam e coloquem em prática aquelas e outras medidas. Caso contrário, de uma infância centrada no telemóvel passaremos a ter adultos extra-terrestres, cuja ‘vida’ virtual será, provavelmente, a única que saberão ‘viver’.

    Um curto excerto (p. 187):
    Assim que os adolescentes passaram dos telefones básicos para os smartphones, tanto a quantidade como a qualidade do seu sono diminuíram em todos os países desenvolvidos. Os estudos longitudinais demonstram que o uso do smartphone antecedeu a privação de sono (…) os seus efeitos são vastos. Incluem depressão, ansiedade, irritabilidade, défices cognitivos, problemas de aprendizagem, pobre desempenho académico, mais acidentes, mais mortes por acidente”.

  • A queda de um jovem discípulo

    A queda de um jovem discípulo

    Título

    Hans: sob o peso das rodas

    Autor

    HERMANN HESSE (tradução: Paulo Rêgo)

    Editora

    Dom Quixote (Abril, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nascido a 2 de julho de 1877, em Calw, Alemanha, o romancista e poeta, Hermann Hesse, viria a morrer em Montagnola, Suíça, em 1962. Em 1946 foi laureado com o Prémio Nobel da Literatura pela sua obra, cujo tema principal está associado ao esforço que é necessário para romper com os modos e padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade, a fim de se encontrar e construir um caminho próprio e a identidade individual.

    Esse foi, aliás, um dos seus desideratos existenciais, bem plasmado em diversas obras que refletem a sua própria jornada. Razão por que parte delas se reveste de um carácter autobiográfico, como é o caso de Siddhartha (Editora Bis) e O lobo das estepes (Publicações Dom Quixote). 

    Hans: sob o peso das rodas  é claramente um romance autobiográfico, baseando-se na sua experiência enquanto aluno no seminário de Maulbronn. Como descendente de uma família de missionários pietistas, desde cedo foi preparado para seguir o mesmo caminho. Embora fosse um aluno exemplar, não conseguiu adaptar-se e abandonou o seminário menos de um ano depois – tal como Hans Giebenrath, o jovem de quem este livro narra a história.

    Hans é um jovem talentoso e dedicado que é pressionado para alcançar a excelência académica num ambiente escolar rigoroso e desumanizador – uma das críticas e lutas de Herman Hesse ao longo da sua vida. Assim é a trajetória de Hans, marcada pelo esforço para corresponder às expectativas impostas pelo seu pai, professores e pela sociedade.

    O pai, o Sr. Giebenrath, admirava toda esta aplicação, cheio de orgulho. Na sua cabeça lerda morava o ideal de muitas pessoas limitadas e insignificantes: ver crescer um ramo que, a partir do seu tronco, suba e atinja uma altura digna de ser olhada com um respeito quase inconsciente” (p. 63).

    Hans é um jovem sonhador e ambicioso, ao mesmo tempo vulnerável e sensível que acaba por ceder à tensão de um sistema de ensino exigente e elitista. Depois de ingressar no seminário, no qual muito poucos conseguem entrar após um exame para o qual se preparou abdicando da sua infância e adolescência, torna-se amigo íntimo de Hermann Heilner.

    Este Heilner era mesmo um tipo esquisito. Um entusiasta, um poeta. Já antes se admirara com o comportamento dele. Era do conhecimento geral que Heilner trabalhava muito pouco, e, no, entanto, sabia bastante; era capaz de dar boas respostas, embora sempre mostrasse desprezo por tais conhecimentos” (p. 87).

    A amizade de Hans com Heilner, um jovem rebelde, é o princípio do fim da vida académica de Hans, que se vê dividido entre a completa dedicação a uma vida exigente e, eventualmente, desenxabida, e a possibilidade de vivenciar outras experiências que lhe permitam explorar o mundo de forma mais livre e solta.

    Ao longo desta narrativa reflexiva e contemplativa, o leitor fica agarrado à transformação de Hans, um rapaz talentoso e de futuro académico promissor, que se perde e desorienta num espaço opressivo.

    Estamos perante uma narrativa poderosa e trágica que ressoará, em particular, nos leitores que alguma vez tenham vivenciado e/ou sucumbido às expectativas sociais. É um lembrete sombrio, mas necessário, das consequências de uma vida vivida sob a constante pressão para cumprir padrões externos.

    Por intermédio da sua prosa notável e introspetiva, Hesse convida a refletir sobre os valores que realmente importam na busca de uma vida plena e autêntica. As obras que se seguem como que demonstram essa busca do autor.

  • Autobiografia de um romancista singular

    Autobiografia de um romancista singular

    Título

    Romancista como vocação

    Autor

    HARUKI MURAKAMI (tradução: Inês Rocha e Maria João Lourenço)

    Editora

    Casa das Letras (Março, 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Haruki Murakami nasceu em 1949, na cidade de Quioto, Japão. Cresceu em Kobe e estudou teatro na Universidade Waseda em Tóquio. Começou a escrever aos 29 anos, tornando-se, ao longo das décadas seguintes, num dos mais aclamados e populares romancistas contemporâneos. Ouve a canção do vento foi o seu primeiro romance, com o qual ganhou o Prémio Gunzou de Literatura para novos escritores, em 1979. A este, seguiu-se Flíper, 1973. Estes dois curtos romances foram publicados, em Portugal, em conjunto pela Casa das Letras (2016), a editora que nos trouxe a maior parte das suas obras.

    O seu reconhecimento internacional viria acontecer com obras como Norwegian wood (1987) [2016, Civilização Editora], Kafka à beira-mar (2002) [2006, Casa das Letras] e 1Q84 (2009) [2011, Casa das Letras].

    São vários os prémios internacionais de literatura que Murakami ganhou, como por exemplo, o Prémio Tanizaki (1985), com O impiedoso país das maravilhas e o fim do Mundo [2013, Casa das Letras], o Prémio Franz Kafka (2006), com Crónica do pássaro de corda (Casa das Letras), o Athens Prize for Literatureem 2014, com a trilogia 1Q84. Em 2009, venceu o Prémio Jerusalém pela sua obra.

    Murakami também é tradutor e escreveu várias obras de não-ficção, de entre as quais se destacam Música, só música (de que se falou aqui), e Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo, de 2009 – um livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. A importância da corrida, como elemento da sua rotina diária, é, aliás, um dos temas deste Romancista como Vocação, original de 2015.

    Nesta obra, constituída por 12 capítulos, o autor japonês conta-nos, de forma aberta, simples e honesta, a sua trajetória como escritor, dando a sua perspetiva sobre a arte de escrever, que, no seu caso, é marcada pela fusão do realismo mágico com referências à cultura pop, explorando temas como a solidão e a alienação nas sociedades contemporâneas. A banda sonora é, com frequência, a música jazz.

    Esta leitura concede ao leitor uma perspetiva intimista de como o autor desenvolveu o seu estilo único, influenciado pela sua paixão pela música e pela experiência de escrever noutra língua. Além dos aspetos técnicos da escrita, Murakami também dedica espaço ao propósito da literatura, ao papel do escritor na sociedade e à relação entre a vida pessoal e a escrita.

    Outro motivo que me levou a publicar estes «registos de discursos por fazer» prende-se com o desejo de reunir sistematicamente todas as reflexões que partilhei em diferentes lugares. Ficaria satisfeito se os leitores as encarassem como uma compilação abrangente (à data) das minhas opiniões sobre a arte de escrever romances” (p. 11).

    O primeiro capítulo é sobre esse ofício de escritor, “aquele que tem necessidade de fazer o que é desnecessário” (p. 26). É o seu ponto de vista, como é pessoal a perspetiva que perpassa todo o livro. Não é, por isso, desengane-se o leitor, um manual de escrita de ficção. Se é verdade que Murakami descreve o seu processo criativo, também reforça aquilo que é sobejamente sabido: trabalho, trabalho, trabalho e rotinas, rotinas, rotinas. A sua persistência e perseverança estão aliadas ao seu estilo de vida ativo e regrado, no qual a corrida diária é obrigatória. O autor enfatiza, assim, que a escrita além de ser uma vocação, é um trabalho árduo que exige muita disciplina e profunda dedicação. Ainda que seja interessante enquanto autobiografia, este livro fica aquém do já citado “Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo”.

    No capítulo 2, Murakami discorre sobre como deixou a sua atividade anterior – era proprietário de um bar de jazz, em Tóquio – para se tornar escritor a tempo inteiro.

    Para cada romance seleciona matéria-prima de uma das suas, por si designadas, gavetas mentais de ideias, memórias, personagens. Os capítulos 4 e 5 desvendam um pouco esse processo criativo e original. Na verdade, é provável que os que procuram receitas (não há, já se sabe) se sintam dececionados. Talvez não sejam os únicos.

    No capítulo 7 – Uma ocupação infinitamente física e individual – reforça a importância, para si, de manter o corpo saudável e em boa condição física para ser capaz de se sentar durante horas e horas a escutar o que tem guardado nas suas gavetas mentais. Murakami descreve o processo de trabalho exaustivo por que cada obra passa, implicando, pelo menos, quatro revisões. A primeira versão é escrita livremente, sem um roteiro definido. Na segunda, elimina as eventuais contradições das personagens; na terceira, adiciona detalhes aos cenários e ajusta os diálogos; e, na quarta, faz correções gerais antes de deixar o texto “descansar” e fazer a última revisão.

    O tema do capítulo 3 – A propósito dos prémios literários – é o principal motivo para a classificação atribuída. Arrisco a dizer que, para a maioria dos fãs (em que me incluo) acaba por ser irónico que, juntamente com Philip Roth, Murakami seja visto como um eterno candidato ao Nobel de Literatura.

    Desde Sputnik, meu amor (2005, Casa das Letras) que a sua escrita envolvente me impele a ler de uma assentada a maior parte dos livros que me chegam às mãos. Agora, ao ler as técnicas a que o autor recorre fica, de certa forma, justificado o sentimento ambivalente que alguns dos livros me causaram. Com efeito, livros houve em que me questionei se a fraca qualidade do texto em português se devia à tradução se à redação original. Mas como reconhece o autor, isso nunca impediu que continuasse a ler as suas histórias fantásticas, com enredos originais e repletos de personagens fantásticas, excêntricas e solitárias.

    Por isso, os leitores que são muitos e também eternos admiradores do escritor não precisavam de um tão extenso relambório de alusões sobre pertencer ou não aos círculos literários, ou sobre o porquê de ser ou não ser nomeado para mais prémios. Bastava, talvez, ficar a ideia de que sim, senhor, se sente frustrado pelas críticas que recebeu, em especial no Japão, e por não ser reconhecido como escritor de primeira linha no seu país – que justificam o capítulo 11 – Ir para o estrangeiro: novas fronteiras. Nós, os leitores não japoneses, agradecemos essas opções por viver além-mar e ansiamos por mais e novos romances.

    No final, talvez apenas reste a este, e a outros grandes romancistas:

    Against criticism we can neither protect nor defend ourselves; we must act in despite of it, and gradually it resigns itself to this” (frase atribuída a Goethe).

  • De quantos fragmentos se vive uma vida?

    De quantos fragmentos se vive uma vida?

    Título

    Os detalhes

    Autor

    IA GENBERG (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Maio, 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Ia Genberg nasceu em Estocolmo, Suécia, em 1967, e começou a sua carreira como jornalista. Publicou o seu romance de estreia em 2012, Söta fredag [Doce sexta-feira]. Seguiram-se outros livros: Belated farewell [Adeus tardio] (2013) e a coletânea de contos Small comfort [Pequeno conforto] (2018).

    Os detalhes, de 2022 agora publicado em Portugal pelas Edições Dom Quixote, é o seu terceiro romance, e foi um bestseller instantâneo na Suécia, com o qual ganhou o Prémio August para melhor livro de ficção, em 2022, e o Prémio Literário Aftonbladet, em 2023. A tradução inglesa de Kira Josefsson foi selecionada para o International Booker Prize 2024.

    Este romance, elaborado a partir de quatro memórias não lineares, enquadra-se nesta sociedade pós-moderna, caracterizada pela crescente fragmentação da(s) vida(s) – para usar o conceito de Zygmunt Bauman –, cuja compreensão, ou procura desse entendimento, passa, também, por juntar os pedaços de mosaicos mais ou menos estilhaçados. É até provável que esse seja um dos motivos por que terá agradado e continua a agradar os leitores que, pese embora não encontrem um fio condutor na história, não têm como parar a leitura que se desejaria mais lenta. Pelo menos para atentar aos detalhes de cada uma das quatro personagens que a autora constrói e a partir das quais se poderia, eventualmente, compreender a essência e identidade, também, fragmentada da narradora.

    Poderia, na medida em que tal como a questão que se formula no final – “Quem é o sujeito real do retrato, a pessoa que está a ser pintada ou a pessoa que segura o pincel?” –, a dúvida persiste.

    E perdurará, possivelmente, uma vez que é por referência ao outro que nos habita, ou nos habitou, que conseguimos construir a nossa identidade, mesmo que de forma precária. A busca identitária é um dos temas latentes deste romance. O convite que a autora nos formula é, no limite, o de procurarmos, nas nossas memórias, os outros que nos fizeram ser o que somos hoje.

    O poder da memória e a sua valorização estão inerentes à condição humana. São as histórias e estórias que contamos a nós próprios que nos auxiliam a compreender e, quem sabe, a responder às grandes questões: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?

    Ia Genberg aventura-se a escavar esse artefacto humano, relembrando que a memória é volátil (como é a natureza humana) e que é, profundamente, influenciada pelo ângulo de onde observamos o passado. Neste caso, é a partir de um estado febril, recorrendo a livros oferecidos, trocados e até esquecidos.

    A evocação do passado pode, com certeza, espoletar a necessidade de o explicar ou compreender. Não obstante, a pessoa do presente reconhece que as emoções que afloram decorrem de lembranças mais ou menos imperfeitas e fragmentadas. O leito febril em que narradora se situa é, por isso e desde logo, um jogo incerto de verdade e consequência. Assim, sob o efeito da febre e da nostalgia, a narradora, uma mulher de meia-idade, revisita as suas histórias vividas com quatro pessoas/referentes que ficaram impregnadas na sua pele identitária.

    Johanna é o primeiro amor da narradora que deixa uma marca indelével na sua vida. A relação com Johanna é marcada pelo gosto divergente de autores, fomentando discussões e reflexões que acabam por gerar uma profunda ligação literária. A troca de livros, em particular, “A trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, simboliza o vínculo intelectual e emocional que partilhavam. O facto de Johanna ser uma apresentadora famosa torna a memória ainda mais vívida, pela presença constante de uma ausência.

    Niki, a excêntrica companheira de casa da narradora durante a faculdade, desapareceu sem deixar rasto, mas as marcas subsistem, tal a sua profundidade. A convivência com Niki é retratada como uma caça interminável a objetos perdidos, simbolizando a busca por algo mais profundo na vida. A sua amizade forte, mas frágil, é ilustrada pela lembrança de um exemplar desgastado de A filha do Rei do Pântano, de Birgitta Trotzig, que restou como um vestígio da relação desfeita.

    Alejandro, um dançarino chileno-alemão, é descrito como uma tempestade que varreu a vida da narradora com um caso de amor ardente e breve. A relação com Alejandro é caracterizada por uma gravidade emocional que assusta e fascina a narradora. Embora de curta duração, a força das memórias das experiências vividas continua a moldar a perspetiva da narradora sobre o amor e as relações íntimas.

    Birgitte, a mãe da narradora, é uma figura complexa e evasiva, moldada por traumas de infância. Descrita como uma mulher à deriva, Birgitte deu à luz a narradora durante um surto psicótico, influenciando a abordagem cautelosa da narradora no que se refere à confiança e à intimidade. A narrativa de Birgitte é, talvez, a mais pungente, pelo modo como explora a dinâmica mãe-filha pela lente do perdão e compreensão tardia.

    A estrutura fragmentada do livro reflete, assim, a natureza complexa e dispersa da memória, resgatando momentos que se transformam numa prosa lírica e precisa, ao mesmo tempo introspetiva e reflexiva.

    “Os Detalhes” é um romance que requer uma leitura atenta e paciente, oferecendo aos leitores uma exploração rica e complexa das emoções humanas e das interações prosaicas da vida quotidiana. Mosaicos feitos histórias para dar substância a cada uma das vidas da nossa existência.

    “Vivemos muitas vidas ao longo da nossa vida – vidas mais breves, vidas secundárias, vidas «mais pequenas» com pessoas que aparecem e desaparecem, com amigos que nunca mais revemos, com filhos que crescem e saem de casa – e nunca sei qual das vidas minhas deve, supostamente, servir de moldura” (p. 127).

  • Da monotonia à liberdade

    Da monotonia à liberdade

    Título

    Caminhar, uma filosofia

    Autor

    FRÉDÉRIC GROS (tradução: Inês Fraga)

    Editora (Edição)

    Antígona (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascido em 1965, Frédéric Gros é professor de Filosofia na Universidade de Paris-XII e no Instituto de Estudos Políticos (Sciences-Po) de Paris, sendo também conhecido por ser editor das últimas palestras que Foucault proferiu no Collège de France. Trabalhou extensivamente sobre a História da Psiquiatria (Création et folie, PUF, 1998), a filosofia da punição (Et ce sera justice, Odile Jacob, 2001), o pensamento ocidental sobre a guerra (États de violence. Essai sur la fin de la guerre, Gallimard, 2006) e a noção de segurança (Le principe sécurité, Gallimard, 2012).

    Caminhar, uma filosofia é um seu original de 2009, tendo sido recentemente traduzido para português e publicado pela Antígona. Frédéric Gros começa logo com uma provocação ao afirmar que “Caminhar não é um desporto (…) não há resultados, não há números”, por mais que se queira associar o acto de caminhar ao consumo, caminhar é, tão-somente, “pôr um pé diante do outro”, “uma brincadeira de crianças”, “um só desempenho conta: a intensidade do céu, a magnificência das paisagens” (pp. 7-8).

    Portanto, o leitor fica, de imediato, esclarecido quanto ao que o livro não é. Não é um manual de caminhada, não é um livro de auto-ajuda sobre os benefícios da caminhada, não é um roteiro com os melhores locais para empreender caminhadas, ainda que seja instrutivo em relação à origem do sucesso dos Caminhos de Santiago, num dos cerca de 30 capítulos, “Peregrinação”.

    É, sim, um convite à contemplação e à lentidão, numa espécie de transgressão aos ditames do quotidiano citadino. Por um lado, por se realizar “lá fora, ao ‘ar livre’”; por outro, somente “a aproximação lenta das paisagens” as torna familiares. “Quando caminhamos, a presença instala-se (…), o mundo persiste no corpo” (pp. 9-15).

    Nesta presença, que quase implica uma ausência de nós, há espaço para reflectir, para escutar, para escrever, para ser, para a liberdade, para fugir, para viver e morrer, também. Ou, tão-só, para nos cansarmos – para sentir o cansaço que liberta, tanto mais que a caminhada é, provavelmente, a mais monótona das actividades humanas.

    Em oposição à apologia da velocidade e da pressa contemporâneas, só a repetição monótona, numa cadência constante de uma longa caminhada, permite que experienciemos de forma vívida e intensa cada passo, cada instante, cada metro do caminho.

    Entre este convite à lentidão e à procura do cansaço são muitas as histórias de escritores, filósofos, artistas e outras personalidades com que Frédéric Gros nos deleita.

    Começa com “A paixão pela fuga” de Arthur Rimbaud, “um viandante, nada mais” que também caminhava para “fugir da ignóbil estupidez dos sentados”.

    Vamos, a capa, o chapéu, as mãos nos bolsos, e partamos!

    Para a frente é o caminho.

    Vamos!” (p. 25).

    Vamos, mas devagar, um pé depois do outro. Página a página para, lentamente, absorver o mundo que se impregna no caminhante, sozinho, de preferência. Como Nietzsche, Thoureau e Rousseau.

    “Walden, ou a vida nos bosques” de Henry David Thoreau é uma das grandes referências deste Caminhar, cuja época é fortemente marcada pelo nascimento do capitalismo. O autor norte-americano pressentia que o, então, emergente capitalismo seria um perigo para a Natureza. Propunha, por isso, uma economia que se baseasse em dar um preço a uma coisa em função do tempo de vida pura implicado. A apologia de uma vida simples, tão simples quanto caminhar.

    Para Nietzsche, caminhando oito horas por dia pelas montanhas, esta foi a condição da sua obra, defendendo que o pensamento “nasce de um movimento, de um impulso” (p. 105).

    Com Gandhi, a caminhada fez-se luta política em desobediência à ocupação britânica. A “Marcha do sal” foi concebida como uma epopeia coletiva, contando com a disciplina e sacrifício de todos quantos a integraram. “Algo de orgulhoso permanece na caminhada: estamos de pé. A humildade manifesta a nossa dignidade” (p. 158). 

    As caminhadas urbanas também são invocadas, por intermédio de Walter Benjamin que, socorrendo-se de Baudelaire, deslizou, qual fláneur, por entre a multidão, mostrando como a cidade se fez paisagem. Também Kant tinha a sua caminhada diária, numa disciplina que o libertava, numa repetição obstinada que lhe dava a oportunidade de estabelecer mais um raciocínio estético para a sua ética.

    A caminhada pode, então, ser entendida como uma atitude filosófica, desde os peripatéticos na Antiguidade até à atualidade, como é o caso do autor, Frédéric Gros, que caminha para se encontrar, para se perder e para se cansar.

  • Amor proibido em tempos de guerra

    Amor proibido em tempos de guerra

    Título

    In memoriam

    Autora

    ALICE WINN (tradução: Sebastião B. Cerqueira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    In memoriam, escrito por Alice Winn e publicado pela Casa da Letras, é um romance emocionante que nos transporta para os horrores e complexidades da Primeira Guerra Mundial, enquanto entrelaça uma história de amor ilícito entre os protagonistas, Gaunt e Ellwood.

    A narrativa desenrola-se entre os acontecimentos da guerra, começando em 1914, num colégio interno na Inglaterra rural. Gaunt e Ellwood são dois jovens estudantes que lidam com as suas próprias lutas internas num espaço de masculinidade latente, sendo ambos confrontados, por razões distintas, com as realidades cruéis do conflito iminente. 

    A autora retrata habilmente o contexto histórico, mergulhando-nos em paisagens vívidas e caóticas que nos transportam para o mundo sombrio da guerra, ao mesmo tempo que explora temas como o patriotismo, o sacrifício e o trauma da guerra. 

    Alice Winn consegue como que apaziguar-nos, ao alternar todos aqueles horrores com a beleza poética e algum humor. A inclusão de excertos de poemas da obra de Lord Tennyson, e de outros poetas, contribui para serenar o leitor. Como se houvesse camadas sobrepostas entre a humanidade que é e a humanidade possível.

    A autora também recorre às pausas na narrativa para integrar a página do jornal de Prehshutian, adicionando uma camada de realismo à história e destacando a tragédia dos jovens soldados que perderam a vida na guerra.

    A inclusão do Preshutian baseia-se no jornal do colégio onde a autora estudou, Marlborough College de 1913-1919, e no qual se pode verificar a idade dos jovens mortos em guerra e que ficaram nos memoriais e nos quadros de honra. O que quer que isso signifique… importa, sim, relevar que se torna, mais uma vez e infelizmente, premente refletir sobre o passado. Tanto mais que vivemos num tempo em que acontecem várias guerras em simultâneo – lembrando que, afinal, continuamos a cometer os mesmos erros.

    Somos levados a virar a página atrás de página, pela narrativa envolvente que se enquadra na ficção histórica e cuja pesquisa se reflete na verosimilhança dos confrontos. O romance dá-nos, então, uma visão detalhada e realista da época da Primeira Guerra Mundial, destacando a brutalidade das trincheiras e os efeitos devastadores das batalhas na vida das pessoas. 

    É, sem dúvida, de elogiar a escrita de Alice Winn, particularmente se se tiver em consideração que é o seu romance de estreia.

    Não obstante, em alguns momentos parece um pouco previsível no que à ideologia de género concerne, podendo mesmo ser criticada por aqueles que se revejam num retrato mais ou menos violento dos relacionamentos homossexuais. O sentimentalismo pode ser, igualmente, considerado um pouco excessivo, sobretudo pelo uso de alguns clichés. Reforça-se, porém, que isso não retira qualidade a este romance histórico que expõe as atrocidades cometidas então e que, mais uma vez, se repetem.

    Numa entrevista ao The Guardian, a autora, de 30 anos, revela que era disléxica e que só aprendeu a ler aos nove anos, tendo sido fortemente influenciada pelas leituras que a sua mãe lhe fazia. Alice Winn estudou literatura inglesa em Oxford, depois de viver em Paris e ter estudado no Colégio interno de Marlborough, também no Reino Unido.