O mau vinho do David Marçal, os maus fígados do Público e a má vontade contra o PÁGINA UM

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Há quem confunda ciência com religião, e divulgação científica com catequese. David Marçal, com crónica residente do Público, é um desses casos paradigmáticos — um personagem que, nos últimos anos, foi entronizado por certa comunicação social como uma espécie de sumo-sacerdote da “boa ciência”. Não se sabe bem por que méritos — talvez por ubiquidade mediática, talvez por conveniência ideológica —, mas o estatuto de “voz da razão” que lhe atribuíram sempre me pareceu suspeito. E digo “suspeito” porque a ciência, quando é ciência, é essencialmente dinâmica, provisória e contestável. Aquilo que é dogmático não é ciência: é fé travestida de método.

Assisti de perto a essa ascensão mediática de David Marçal, sobretudo durante a pandemia. O seu discurso moralizador sobre a desinformação — que confundia divergência com heresia — encontrou paralelo apenas no seu próprio dogmatismo e na sua ânsia persecutória contra qualquer visão que não seguisse o catecismo sanitário dominante.

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Foi ele um dos zeladores do pensamento único, caricaturando posições racionais e prudentes sobre o impacto social e económico da pandemia, como se só houvesse uma forma legítima de pensar em tempos de crise de saúde pública. Esqueceu-se de que uma crise de saúde pública — ao contrário de uma emergência sanitária — exige complexidade, ponderação e, acima de tudo, debate que não se restringe à ciência do momento.

Não foi por acaso que, ao longo deste ano, voltei a cruzar-me com o “paradigma Marçal”. Em Março, escrevi O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta, onde mostrei como a sua análise sobre o sarampo nos Estados Unidos era um exercício de viés ideológico: apontava o dedo ao “negacionismo” americano, ignorando olimpicamente que surtos mais graves ocorriam na Europa — em países como a Roménia, a França, a Itália ou a Holanda. Era a velha arte de escolher os factos que servem a tese e de omitir os que a desmentem.

Meses depois, em Julho, publiquei O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal, porque, numa nova crónica no Público, ele voltou a exibir a mesma rigidez moral: denunciava as falhas do cidadão comum, mas calava os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis. Essa omissão não é inocente: é uma forma subtil de manipulação. A meia-verdade, como se sabe, é sempre mais perigosa do que a mentira.

David Marçal

Mas o clímax desta história chegou há duas semanas. Depois de publicar, no Público, uma crónica intitulada Beber vinho é dar cancro a muitos portugueses — um texto que é um monumento de sensacionalismo sob a capa de cientificidade —, decidi analisá-lo linha por linha, desmontando os exageros, as simplificações e a retórica alarmista. O resultado foi o meu artigo Não andar a beber vinho (provavelmente) transformou o David Marçal num mau divulgador de ciência, publicado no PÁGINA UM no passado dia 19. A minha crítica, sustentada com referências científicas, teve mais de 50 mil leituras, segundo o Google Analytics. Para que o confronto de ideias fosse leal – ou seja, os leitores do PÁGINA UM conhecessem o texto visado –, não apenas coloquei a ligação para o site do Público como, por ser artigo pago, disponibilizei o texto integral em pdf.

Além de leal, o meu procedimento foi perfeitamente legítimo e encontra amparo directo no artigo 75.º, n.º 2, alínea c) e h) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, lei portuguesa que regula a protecção das obras intelectuais, a qual admite expressamente a seleção regular de artigos de imprensa periódica, que não tenha por objectivo a obtenção de vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta, ou ainda de trechos para serem usados “com fins de crítica, discussão ou ensino, e na medida justificada pelo objectivo a atingir”.

A transcrição integral pareceu-me, portanto, justificada e necessária – e mesmo adequada para protecção das posições de David Marçal. Se transcrevesse apenas trechos, colocar-se-ia em dúvida se eu não teria apagado alguns por conveniência. Seria impossível discutir com rigor o conteúdo sem o reproduzir na íntegra. A crítica, para ser honesta, precisa de todo o contexto — e o contexto, neste caso, era o texto completo. Os visados deveriam ser os primeiros a reconhecer tal propósito.

Além disso, não houve qualquer exploração comercial — directa ou indirecta. O PÁGINA UM é, como se sabe, de acesso livre, não tem publicidade, nem paywall, nem assinaturas. Incluir o texto do David Marçal não gerou qualquer vantagem económica e aquilo que sempre esteve em causa foi o exercício da liberdade de imprensa e de crítica, garantido pelos artigos 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa.

Presumo que isto tenha incomodado — e muito — o Público e o Dr. Marçal.

Aquilo que para mim era um confronto legítimo de ideias, um exercício de crítica jornalística com base em factos, passou, para o Público (e presumo para o próprio Marçal), a ser tratado como uma “usurpação de direitos de autor”. E nem sequer se deram ao trabalho de pedir esclarecimento, mandaram logo uma ‘bazuca’: recorreram à Visapress — uma cooperativa de defesa de direitos autorais cujo conselho de administração inclui, curiosamente, uma administradora do próprio Público.

Alegaram que a reprodução integral do texto de Marçal violava direitos de autor – e pacientemente expliquei o meu entendimento e, depois da troca de diversas longas mensagens, pedi que me fornecessem os documentos que transmitiam os direitos de autor de David Marçal ao Público no pressuposto que este os tivesse transmitido. E colocava à consideração dirimir esta questão nas instâncias legais.

Não respondeu a Visapress, mas agiu extrajucialmente por uma via soez. A Visapress não tem sequer uma qualquer validação da sua interpretação por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, nem da Sociedade Portuguesa de Autores, nem da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, que é quem detém competência de fiscalização nesta matéria.

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Não tem, mas o Público, através da Visapress, tem outros mecanismos mais capciosos, e assim identificou e contactou a empresa (estrangeira) que aloja o site do PÁGINA UM, que, de forma cega e burocrática, ameaça agora suspender o PÁGINA UM se não for retirado o texto — como se estivéssemos num regime de censura preventiva.

Independentemente da resposta jurídica que já fizemos chegar à empresa que aloja o PÁGINA UM, aquilo que mais se lamenta neste episódio é o sinal de intolerância. O Público, e provavelmente o próprio David Marçal, parecem incapazes de lidar com o escrutínio. Confundem crítica com ofensa, confronto de ideias com afronta pessoal. E usa uma questão de lana caprina – que deve ser esclarecida no local próprio, sem ameaças de suspensão de serviços do site do PÁGINA UM – para silenciar um jornal incómodo.

‘Ameaça’ da empresa de web hosting de suspender os serviços do PÁGINA UM após a queixa da Visapress.

A ironia maior é que o Público — esse mesmo que diz defender o “debate público informado” — reaja como uma instituição clerical ferida no dogma. A mesma direcção editorial que, poucos dias antes, sentiu necessidade de apor uma nota final à crónica de Marçal — provavelmente para acalmar os patrocinadores da sua secção de vinhos, Terroir —, não hesita usar uma cooperativa a que preside e a recorrer a meios extrajudiciais e moralmente questionáveis para tentar silenciar um contraditório legítimo.

Por mim, continuarei a escrever — com liberdade, com documentos e com argumentos. Porque o jornalismo independente – mesmo quando exercido com a aparência de um ‘one man show’ (como depreciativamente escreveu há dias Bárbara Reis, ex-directora do Público Bárbara Reis, sobre o PÁGINA UM) – não existe para confortar os dogmas, mas para os testar até ao limite. E para denunciar deslealdades.

N.D. Independentemente da resposta da empresa de alojamento do PÁGINA UM, ponderamos mudar o servidor para outra empresa, mesmo com custos mais elevados, porque inaceitável que uma empresa desta natureza, sem sequer auscultar previamente um jornal, e aparentemente sem conhecer a legislação nacional, ameace suspender um serviço que afectaria toda a divulgação do jornal. Este exemplo mostra também como se podem exercer pressões extra-judiciais sobre um órgão de comunicação social independente.