Uma democracia que até na música desafina

people watching band performing on stage

Como os velhos rezingões ou as senhoras de missa diária que confundem rotina com virtude, aos 51 anos a democracia portuguesa julga-se amadurecida, mas está apenas apodrecida. Vive de pose e de liturgia, convencida da sua própria perfeição, enquanto o cheiro do bolor se entranha nos alicerces do Estado.

Temos orientações, leis, regulamentos, decretos e portarias – e, vejam lá, até uma Constituição –, tudo redigido com a solenidade de quem acredita no mito da exemplaridade democrática. Fala-se de princípios de grande democraticidade, de transparência, de escrutínio e de direitos fundamentais. Mas, na prática, tudo se empata, tudo se obstaculiza, tudo se arrasta até ao esquecimento — ou até aos tribunais, que são, por cá, apenas uma forma de esquecimento judicializado.

people watching band performing on stage

A lentidão da Justiça é apenas uma parte do problema. A outra, mais grave, é a indiferença com que o próprio Estado — ou melhor, aqueles que vivem da máquina do Estado — desrespeitam as decisões dos tribunais. A cultura de impunidade está tão enraizada que as instituições públicas já não se sentem obrigadas a cumprir sentenças. É o “Estado de direito” a gozar consigo mesmo.

No campo da comunicação social, o retrato não é mais animador. Relatórios internacionais repetem, ano após ano, que Portugal é um dos bastiões da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Tirando o facto de não se fazerem prender jornalistas, tudo o resto é balelas. Não há lápis azul porque seria demasiado vistoso. Hoje, são poucos os jornalistas que se podem dizer verdadeiramente livres. A autocensura tornou-se hábito, o silêncio é moeda corrente e a ginástica argumentativa para contornar temas incómodos já é parte do treino diário das redacções.

Porém, aquilo que mais me impressiona é o desrespeito institucional pela figura do jornalista. Multiplicam-se os casos em que ministérios, autarquias e entidades públicas recusam prestar esclarecimentos, negar documentos ou simplesmente ignorar perguntas. Como se a função política, uma vez conquistada, se transformasse em propriedade privada, imune a qualquer forma de escrutínio.

grayscale photo of person holding guitar neck and strings

E quando, como faz o PÁGINA UM, os casos chegam aos tribunais administrativos, o cenário não melhora. As instituições mentem, distorcem factos, recorrem a manobras dilatórias e, não raras vezes, incumprirem sentenças com total impunidade. Que o digam a Administração Central do Sistema de Saúde e o Infarmed, exemplos paradigmáticos de como o poder público se protege, contornando a lei e desprezando o dever democrático de transparência. E depois há também os juízes que, a pretexto do excesso de trabalho, empatam processos e aguardam que o tempo passe — e podem ser 34 meses — até serem transferidos, deixando a sua incompetência a salvo do escrutínio.

Contudo, nos últimos meses deparei-me com outro campo, aparentemente inócuo, onde se expõe a mesma lógica de arbitrariedade: o mundo da música.

Quando decidi introduzir no PÁGINA UM uma secção de crónicas musicais — note-se, crónicas e não crítica musical, porque os meus dotes não vão além de tocar campainhas —, encontrei um universo de convivências promíscuas e amiguismos que parecem ser regra na esfera cultural portuguesa: os produtores de espectáculos são amigos dos jornalistas, e vice-versa, esforçando-se por agradar mutuamente. Um espelho daquilo que sucede em outros sectores da sociedade, mas aqui feito sem sequer disfarçar. E, portanto, alguns produtores sentem-se livres, perante os órgãos de comunicação social, para concederem ofertas e obterem dividendos.

gold bell on brown wooden table

Clarifique-se um aspecto essencial sobre a relação entre os jornalistas e qualquer entidade pública e privada no acesso a eventos com público. O Estatuto do Jornalista, diploma aprovado pela Assembleia da República, confere direitos especiais — acima dos do cidadão comum — em matéria de acesso àquilo que se classifica como eventos públicos. Por princípio, tudo o que for público, no sentido de ser disponibilizado às pessoas, é acessível a um jornalista em funções, sem que sejam colocados obstáculos, incluindo os de natureza financeira. Ou seja, um jornalista não deve pagar para noticiar um evento, nem deve contribuir activamente para que um terceiro beneficie directamente daquilo que escreve.

Nessa linha, as produtoras e promotoras de espectáculos musicais são obrigadas a conceder acreditação a jornalistas com fins informativos, salvo critérios objectivos de limitação de acesso, devidamente fundamentados. Essa obrigação decorre do mesmo princípio que impõe regras de segurança ou licenciamento — o de garantir o exercício livre da actividade jornalística.

Iron Maiden: só após uma deliberação da ERC, sob a ameaça de dois crimes (contra a liberdade de imprensa e de desobediência) a produtora Prime Artist permitiu o acesso ao concerto em Julho passado, no Meo Arena.

Pois bem: em cerca de uma dezena de pedidos de acreditação apresentados pelo PÁGINA UM, duas produtoras recusaram de forma ostensiva o acesso, invocando — directa ou subtilmente — o facto de o jornal não ter publicado notícias prévias sobre os respectivos espectáculos. Ou seja, o PÁGINA UM não servia de plataforma de promoção, logo não merecia entrar.

Esta visão utilitária da imprensa é, em si mesma, um sintoma grave de degradação democrática. Os promotores culturais tratam os jornais como parceiros de marketing e os jornalistas como influenciadores ao serviço do negócio. E o mais preocupante é o silêncio cúmplice dos órgãos de comunicação social, que aceitam o jogo, beneficiam dele e o reproduzem.

Por mim, recuso-me a compactuar. E, mais do que denunciar, jdecidi agir. Assim, pela segunda vez em cinco meses, depois de já o ter feito em Junho contra a Prime Artist, apresentei queixa contra a Free Musica na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a quem cabe fiscalizar o cumprimento desta obrigação legal. Em ambos os casos, as deliberações (aqui, em Junho, e ontem, aqui) confirmaram o óbvio: as produtoras violaram o direito de acesso dos jornalistas e incorrem, se mantiverem a recusa, na prática de dois crimes — um contra a liberdade de imprensa e outro de desobediência.

Haverá quem diga que tudo isto é uma tempestade num copo de água, que não se justifica tanto zelo por causa de um simples espectáculo musical, que bastaria comprar um bilhete e resolver o assunto. Mas enganam-se. Aquilo que está em causa não é o acesso gratuito a um concerto; é o respeito pelos direitos fundamentais que estruturam uma democracia. Uma sociedade que se habitua a aceitar pequenas arbitrariedades acaba, inevitavelmente, por normalizar as grandes.

Leprous, uma banda norueguesa de metal progressivo, com concerto marcada para dia 2 em Lisboa e no dia seguinte no Porto: a promotora Free Music acha que pode recusar arbitrariamente o acesso a jornalistas.

Além disso, o jornalismo nunca pode ser visto como entretenimento. Exerce uma função pública essencial à vitalidade democrática. E quando se começa a condicionar o trabalho de um jornalista — seja num ministério, numa câmara ou numa sala de concertos —, o que se está a corroer é a base do próprio Estado de direito.

Portugal vive hoje uma democracia de fachada, cheia de normas e relatórios, mas incapaz de garantir o cumprimento das leis mais simples. Uma democracia desafinada, onde os solistas do poder tocam para si mesmos e quem ousa pedir partitura é expulso da orquestra.