Polígrafo: relações espúrias para conclusões estúpidas


Sou gato velho, sim, mas não perdi o faro nem me tornei cínico — apenas selectivo. Já vi muitos jornalistas escorregarem em estatísticas como ratos inchados a meter a cabeça numa ratoeira coberta de queijo ideológico. Mas há miados que me fazem arquear o lombo e cravar as garras no estofo do bom senso. Esta, por exemplo: um fact-checking a ronronar que o Chega teve maus resultados nas freguesias com mais licenciados. Pois claro, foi o Polígrafo — esse jornal que… bem, deixemos o resto à vossa imaginação — que tratou logo de abanar o rabo com entusiasmo e pôr-lhe o carimbo de “Verdadeiro”, como quem encontra o Santo Graal da inteligência democrática entre os restos do lixo estatístico.

Li o texto. Com olhos semicerrados, orelhas em alerta e o instinto de quem já viu muitos canários travestidos de águias. A autora chama-se Salomé Leal — uma jornalista que, segundo me consta (embora esteja sujeito a pimenta na língua), cultivará doutoramentos imaginários em estatística, mas que, por comedimento, se apresenta apenas como licenciada em Comunicação pela Universidade do Minho. Três anos, possivelmente sem chumbos — ou com equivalências em retórica criativa.

E foi esta Salomé que decidiu iluminar o mundo com a seguinte revelação: nas 11 freguesias onde mais de metade dos residentes têm ensino superior, o Chega não chega sequer aos 10% dos votos. E pronto, bastou-lhe essa (nem) dúzia mística de freguesias para decretar — com a subtileza de um rinoceronte num trampolim — que existe uma relação sagrada entre possuir um canudo e votar com decência. A implicação, para quem lê nas entrelinhas com lentes de aumento, é clara: os esclarecidos votam bem; os ignorantes, mal. E assim se acaricia o ego do eleitor do Bloco Central — esse devoto da moderação, com cartão multibanco prateado e nariz treinado para o Moët & Chandon.

É esta a grande verdade revelada pelo oráculo do fact-checking? Um decalque preguiçoso de preconceitos urbanos, embrulhado numa análise simplória que confunde correlação com causalidade, método com militância e jornalismo com doutrina de salão?

A simplicidade da verificação de factos do Polígrafo… existe e até dá lucro.

Ora, façamos um intervalo para a razão, que ainda há por aqui alguém de pensamento livre, como se andasse de telhado em telhado.

Primeiro: usar 11 freguesias e uma só variável, num país com mais de três mil, para tirar conclusões sobre o padrão nacional de voto num partido é como provar uma sardinha grelhada e concluir sobre a safra de toda a costa. E nem são freguesias comuns — são redutos gourmet do Portugal urbano, onde se bebe café sem açúcar, se adopta o pronome neutro e se reciclam emoções nos ecopontos da virtude progressista.

Segundo: admitir que o Chega tem menos votos onde há mais diplomas pendurados na parede não implica que haja mais inteligência política. Aquilo que pode haver é mais conforto material, e conforto não costuma votar com raiva — protesta-se pouco quando se tem carro eléctrico, vinho biológico e férias marcadas. Quem está bem na vida revolta-se no Twitter, com filtros, sem sujar as mãos de boletim.

Terceiro: fazer um fact-checking com apenas uma variável dependente (voto no Chega) e uma independente (nível de escolaridade) é estatisticamente indigente. Mesmo que houvesse uma correlação — e não basta meia dúzia de freguesias para isso — seria sempre necessário provar que não se trata de uma relação espúria. Mas a ânsia em confirmar preconceitos é tanta que já se perdeu a prudência científica.

Acredito, depois disto, que qualquer dia o Polígrafo ainda descobre que as cidades com mais padres também têm mais prostitutas — e, por analogia criativa, concluem que o clero promove o meretrício. Ou que os municípios com mais bibliotecas geram mais casos de miopia, o que levaria a proibir a leitura por razões oftalmológicas. Ou que onde há mais pistas de atletismo há mais obesos — e logo se sugere fechar os estádios para combater a gula. Ou ainda que nos períodos em que se vendem mais gelados há mais afogamentos, o que levará à proibição de gelatarias nas praias.

A estatística, caros leitores, não é um palito com que se pesca o argumento do dia. É uma Ciência — e exige método, contexto e honestidade intelectual. Três coisas que, em certas redacções, são mais raras do que um gato a votar no Parlamento.

O Polígrafo, como sucedeu na pandemia, pratica a indigência moral e intelectual com esta forma de fact-checking, que veste a beca da ciência para concluir o que já trazia escrito no bolso de trás: que quem não segue o “partido do cherne” ou os clássicos fá-lo por ignorância; que o eleitor sem diploma é, por inerência, menos esclarecido, mais manipulável e, no fundo, um simplório incapaz de decisões políticas válidas.

Ora, isto não é apenas uma falácia estatística nem chega a ser pseudociência — é uma condescendência ordinária, quase uma forma de eugenia do voto, onde os títulos académicos servem de filtro higiénico para separar os “bons eleitores” dos “outros”. Uma espécie de purificador democrático com selo poligráfico. É o velho elitismo remisturado com verniz de jornalismo de retrete — e, pior ainda, produzido por uma pobre licenciada em Comunicação da Universidade do Minho, sem noção de aritmética básica, quanto mais de estatística inferencial, de modelos probabilísticos ou de análise de séries temporais, que são as disciplinas que se ensinam a quem quer realmente perceber relações causais sem tropeçar em correlações espúrias como quem escorrega numa casca de lugar-comum.

Enfim, eu aqui só vejo, na análise do Polígrafo, um verdadeiro burro — ou, sendo rigoroso no género e no caso em apreço, uma senhora burra.

E agora, se me dão licença, vou até à janela contemplar os 1.345.689 portugueses que votaram no Chega. Nenhum deles é meu dono, garanto-vos. Mas mesmo que o fosse, não o absolveria. Talvez procurasse compreendê-lo — o que, ao contrário de um fact-checker de pacotilha, exige escutar, sair da bolha e pôr as patas no terreno. Literalmente.


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