Será já na próxima quinta-feira, dia 20, no Campus da Justiça de Lisboa, que se inicia o julgamento em que a Ordem dos Médicos e três dos seus mais mediáticos rostos durante a pandemia – Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas – procuram receber 60 mil euros do director do PÁGINA UM, acusando-o de os ter difamado quando, em 2021, divulgou artigos sobre as ligações financeiras entre médicos influentes e várias farmacêuticas envolvidas em contratos com o Estado durante a covid-19.
No mesmo julgamento foi apenso outro processo, este pelo actual candidato à Presidência da República, Gouveia e Melo, que apresentou também uma participação criminal por artigos de investigação jornalística sobre a sua acção enquanto líder da task force da vacinação contra a covid-19.

O caso chega agora a tribunal após a apresentação de duas queixas-crime distintas – a primeira pela Ordem e pelos três médicos; a segunda pelo então coordenador da Task Force, o almirante Gouveia e Melo – ambas acolhidas integralmente pelo Ministério Público, que transformou investigações jornalísticas baseadas em dados oficiais em alegadas ofensas de honra e “ataques pessoais”. Já estão marcadas sete audiências até Dezembro (vd. agenda no final do texto)
No processo movido pela Ordem dos Médicos, o Ministério Público adoptou uma posição particularmente opaca: não explica, em lado nenhum, por que razão considera que críticas fundamentadas, baseadas na Plataforma de Transparência do INFARMED, constituem um crime. A acusação limita-se a repetir as expressões dos queixosos, sem uma única linha de enquadramento, sem uma única demonstração factual de falsidade das informações publicadas e sem um único esforço para diferenciar investigação jornalística de insulto pessoal.
No caso da queixa individual de Gouveia e Melo – que será ouvido como assistente, apesar de o seu pedido de indemnização ter sido rejeitado por intempestivo –, a procuradora segue o mesmo trilho acrítico: revela desconhecimento sobre o próprio jornal, afirmando que o PÁGINA UM é “um jornal digital” e, simultaneamente, que tem venda em banca, o que não corresponde ao facto mas que é revelador da qualidade do trabalho da magistrada Silvana Andrade.

Mais grave, porém, está no facto de a procuradora do Miistério Público nada ter investigado – ou seja, não analisa os artigos publicados, não verifica fontes, não confronta dados, não solicita documentos –, limitando-se a presumir intenção difamatória a partir da mera existência de investigação incómoda.
Este comportamento contrasta radicalmente com o adoptado pelo Ministério Público num outro processo, apresentado em 2023, no qual a ministra da Saúde, o então deputado social-democrata Miguel Guimarães, a APIFARMA, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos também acusaram o director do PÁGINA UM de difamação por causa da investigação sobre a gestão financeira da campanha “Todos Por Quem Cuida”.
Aí, o procurador Nuno Morna de Oliveira, responsável pelo processo, dedicou 72 páginas a analisar detalhadamente cada afirmação publicada, contextualizando, verificando e ponderando cada elemento. E concluiu – de forma cristalina e fundamentada – que não havia qualquer matéria criminal, que a investigação se inseria na liberdade de imprensa e que o escrutínio público da campanha, financiada com mais de 1,3 milhões de euros de doações das farmacêuticas, era não apenas legítimo, mas necessário. O processo foi, portato, arquivado.

Agora, quanto aos processos de Gouveia e Melo e da Ordem dos Médicos, segundo o despacho do tribunal judicial de Lisboa, o julgamento arranca com a audição de Pedro Almeida Vieira e da Ordem dos Médicos no dia 20 de Novembro, prosseguindo com as declarações de Filipe Froes, Luís Varandas e Gouveia e Melo no dia 25, e continuando nos dias 27 de Novembro, e ainda nos dias 2, 4, 9 e 11 de Dezembro, datas reservadas às testemunhas de acusação e de defesa.
Nos autos está um longo historial de publicações efectuadas durante Agosto e Setembro de 2021 – quando o PÁGINA UM, então ainda apenas um projecto em preparação –, em que Pedro Almeida Vieira analisava dados públicos sobre relações financeiras entre médicos e farmacêuticas, descrevendo valores concretos, pagamentos regulares, patrocínios a palestras, avenças mensais, contratos de colaboração e discrepâncias contabilísticas evidentes entre o que era declarado ao INFARMED e o que era facturado através de empresas privadas.
Esses dados eram – e continuam a ser – oficiais, disponibilizados na Plataforma de Transparência do regulador do medicamento. E foi precisamente no período em que estas relações começaram a ser escrutinadas que o PÁGINA UM, já depois da sua criação em Dezembro de 2021, avançou para os tribunais administrativos com pedidos de acesso aos documentos ocultados da campanha “Todos Por Quem Cuida”.

A campanha, apresentada como operação solidária conjunta da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos, movimentou mais de 1,3 milhões de euros, mas essas verbas foram geridas fora da contabilidade oficial das ordens e canalizadas para uma conta partilhada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e Eurico Castro Alves.
O PÁGINA UM conseguiu aceder a toda a documentação desta campanha por via de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, e detectou assim um vasto conjunto de irregularidades significativas: ausência de pagamento de impostos e declarações falsas com efeitos fiscais, facturas falsas, contabilidade paralela e falta de transparência financeira.
Foi também no âmbito dessa documentação que se detectaram combinações entre Miguel Guimarães e o então vice-almirante Gouveia e Melo para se vacinarem médicos não-prioritários, em violação da norma em vigor da Direcção-Geral da Saúde e extravasando competências da task force, sendo que houve ainda um pagamento de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas.

A queixa da Ordem dos Médicos – que está a suportar os custos de advogados de Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas –, apresentada em 2022, surgiu precisamente nesse contexto de tensão: na altura em que o PÁGINA UM requereu judicialmente o acesso integral à documentação, e quando começavam a surgir as primeiras provas da gestão paralela da campanha. A acusação do Ministério Público repete esta narrativa dos queixosos, chegando ao ponto de sustentar que o arguido terá publicado factos verdadeiros com o objectivo de “atrair leitores” – uma lógica que, aplicada a qualquer jornalista, transformaria a actividade profissional em crime sempre que fosse incómoda.
No processo de Gouveia e Melo, a acusação vai mais longe na superficialidade: presume intenção difamatória sem demonstrar um único erro factual, e sem dedicar um minuto que fosse a investigar o trabalho jornalístico. E fá-lo precisamente quando o PÁGINA UM investigava o papel do almirante no alinhamento entre a Task Force e os sectores dirigentes da Ordem dos Médicos – incluindo figuras que geriam a campanha “Todos Por Quem Cuida” e que beneficiaram directamente dos donativos das farmacêuticas.
Neste caso, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) ainda abriu um procedimento, mas acabou por nem sequer ouvir Gouveia e Melo nem investigar detalhes relevantes como a vacinação de um político à margem da lei. Além disso, a inspectora da IGAS alterou a data da norma da DGS para assumir que os médicos não-prioritários afinal podiam ser vacinados, o que se mostra falso. Em todo o caso, a IGAS enviou a questão do pagamento ao Hospital das Forças Armadas para o Ministério Público, mas desconhece-se a evolução.

Agora, será um tribunal criminal a avaliar se investigações e revelações de um jornalista devem ser reprimidas como difamação ou protegidas como jornalismo. O contraste com o processo arquivado – onde o Ministério Público reconheceu de forma explícita que o PÁGINA UM actuou no exercício legítimo da liberdade de imprensa – torna esta acção particularmente relevante para a transparência institucional e para o futuro da fiscalização pública em Portugal.
A partir do dia 20, e ao longo de sete sessões já marcadas até 11 de Dezembro, o tribunal ouvirá dezenas de testemunhas. O director do PÁGINA UM será defendido pelo advogado Miguel Santos Pereira. E poderá assim finalmente perceber-se se os tribunais portugueses decidem de acordo com a lei de um país democrático, que protege a liberdade de imprensa, ou se ajustam a sua sensibilidade consoante o incómodo provocado pelas investigações jornalísticas e o peso institucional dos queixosos.
AGENDA DO JULGAMENTO
1) 20 de Novembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações do arguido Pedro Almeida Vieira
– Declarações dos Assistentes da Ordem dos Médicos:
• Bastonário Carlos Cortes
• José Miguel Ribeiro de Castro Guimarães
2) 25 de Novembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações dos Assistentes:
• Luís Filipe Froes
• Luís Manuel Varandas
• Henrique Gouveia e Melo
3) 27 de Novembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de acusação
(processо 144/23.0T9LSB)
4) 2 de Dezembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das primeiras oito testemunhas do PIC
(processо 1076/22.5T9LSB)
5) 4 de Dezembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das restantes sete testemunhas do PIC
(processо 1076/22.5T9LSB)
6) 9 de Dezembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de defesa
(processо 144/23.0T9LSB)
– Inquirição de duas testemunhas de defesa
(processо 1076/22.5T9LSB)
7) 11 de Dezembro – 09h00
(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das últimas cinco testemunhas de defesa
(processо 1076/22.5T9LSB)
– Demais actos da audiência
