Futuros magistrados: CEJ borrifou-se para o código dos contratos públicos e Ordem dos Psicólogos andou a ‘jogar às sortes’

black car stuck on mud

Em casa de ferreiro, espeto de pau. O Centro de Estudos Judiciários (CEJ) — a escola por excelência dos futuros juízes e procuradores, guardiã teórica do rigor, da legalidade e da boa administração — decidiu fazer tábua rasa do Código dos Contratos Públicos, conduzindo um processo de contratação tão irregular quanto opaco para seleccionar a empresa de psicólogos responsável pela primeira avaliação dos candidatos aos cursos de ingresso na magistratura.

Sem concurso público, sem consulta prévia formal, sem caderno de encargos, sem júri, e com a particularidade de ter recorrido à Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) para uma espécie de divulgação e pré-selecção dos potenciais prestadores de serviços, o CEJ acabou por adjudicar o trabalho à Talking About – uma empresa com dois empregados, sendo um deles o seu gerente, o psicólogo e comentador da SIC Mauro Paulino –, numa ‘nomeação’ final feita pela própria ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice.

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A governante, entretanto, já se escudou desta escolha numa nota enviada pelo seu gabinete de comunicação ao PÁGINA UM, argumentando tratar-se apenas de uma formalidade por o processo ser conduzido pelo CEJ, que tem autonomia administrativa.

Segundo apurou o PÁGINA UM – já que o CEJ continua a não responder directamente às questões enviadas, remetendo apenas para explicações vagas publicadas num comunicado após as nossas primeiras notícias –, em vez de lançar um concurso público ou promover uma consulta prévia formal, como determina o Código dos Contratos Públicos, a direcção desta “escola de magistrados”, tradicionalmente liderada por desembargadores ou conselheiros, recorreu à OPP.

E esta associação profissional – que, apesar de estatuto público, não é entidade adjudicante nem tem qualquer função na contratação pública – terá enviado, em 16 de Maio deste ano, uma comunicação interna aos seus membros para recolher manifestações de interesse de entidades interessadas em prestar serviços ao CEJ.

Fernando Vaz Ventura esteve entre 2012 e 2021 no Tribunal Constitucional e transitou no ano seguinte para a liderança do Centro de Estudos Judiciários, em ambos os cargos por indicação do Partido Socialista. Não foi reconduzido pela ministra social-democrata e encontra-se agora colocado no Supremo Tribunal de Justiça.

Após essa recolha informal — que não encontra qualquer base no Código dos Contratos Públicos, sendo aliás proibida, por retirar ao CEJ a integral responsabilidade procedimental —, o CEJ enviou, no início de Junho, um convite à Talking About para apresentar proposta. O PÁGINA UM sabe que terão sido mais de três dezenas as entidades a manifestar interesse – informação que nem o CEJ nem a OPP quiseram confirmar –, mas nem isso levou à abertura de qualquer procedimento concursal.

Em vez disso, a escolha final recaiu sobre a empresa de Mauro Paulino sem que se conheça quem analisou as propostas, quem decidiu, quais eram os critérios ou sequer se existiu contrato formal. Em todo o caso, o despacho de confirmação da ministra da Justiça foi assinado em 22 de Julho.

Ignora-se igualmente se os pagamentos foram efectuados directamente à empresa, mediante factura, ou se foram feitos pagamentos avulsos através de recibos verdes dos psicólogos recrutados por Mauro Paulino. Apenas se sabe que por cada avaliação psicológica – mais de 250 na primeira fase –, o CEJ pagou 83 euros, ao abrigo de um despacho de 2008 que fixa apenas um limite de preço, nunca o método ou procedimento de contratação. Ou seja, o despacho não isentava o CEJ de cumprir obrigatoriamente o Código dos Contratos Públicos. Suceder isso numa ‘escola’ que forma futuros juízes de tribunais administrativos é “coisa de pasmar”, confidenciou um jurista sob anonimato ao PÁGINA UM.

Mauro Paulino, psicólogo e comentador da SIC: nove em cada 10 ‘chumbos’ que decretou foram depois revertidos numa segunda avaliação externa. Também é vogal do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Psicólogos.

A Ordem dos Psicólogos também não respondeu a outras perguntas enviadas pelo PÁGINA UM, neste caso num segundo procedimentos que chega a ser ainda mais absurdo: a escolha dos peritos responsáveis pela segunda avaliação psicológica, após a primeira análise realizada pela Talking About ter “chumbado” mais de metade dos candidatos previamente aprovados em duras provas escritas e orais.

Neste caso, é verdade que, por força de uma alteração legislativa deste ano, a segunda avaliação – e só esta – já previa a intervenção da OPP a quem caberia a selecção de um colégio de psicólogos sorteado de uma lista. Mas o processo montado pela Ordem oscila perigosamente entre a comédia e a caricatura.

Com efeito, a nova lei determinava que os psicólogos seriam sorteados de uma lista indicada pela Ordem dos Psicólogos, com um mínimo de sete elementos. Porém, a OPP decidiu ainda inovar, introduzindo uma engenharia classificativa quase barroca: abriu convite aos seus membros, estabeleceu critérios de especialidade, experiência e formação, e criou uma grelha de pontuação onde, por exemplo, um psicólogo da especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações recebia 35 pontos, um de Psicologia Vocacional 20, e um de Psicologia da Justiça 15. A isto somavam-se 30 pontos atribuídos a quem tivesse certificações avançadas em técnicas de recrutamento e selecção.

Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos.

O resultado desta triagem produziu uma lista de 52 psicólogos avaliados. Até aqui, tudo pareceria alinhado com boas práticas de mérito. Não fosse o pormenor absolutamente extraordinário de 14 desses 52 terem obtido zero valores – zero formação relevante, zero experiência relevante, zero pontos em critérios que a própria OPP definira como essenciais. Mas mesmo assim entraram, alegremente, no sorteio final.

E que sorteio. Como se se tratasse da Liga dos Campeões, a OPP dividiu os 52 psicólogos em “jarras”, de onde eram retirados, de cada grupo de sete, três nomes à sorte. Resultado: dos 10 psicólogos mais bem classificados – aqueles que, segundo os critérios da própria Ordem, tinham mais mérito para avaliar candidatos a juízes – apenas quatro foram escolhidos. Os restantes seis ficaram de fora simplesmente porque a bola… não saiu. Ao invés, vários psicólogos com pontuação irrelevante ou até nula foram agraciados com um papel decisivo na avaliação do futuro corpo de magistrados.

Ou seja: a OPP não escolheu os peritos pelo mérito, pela competência ou pela experiência. Escolheu-os ao acaso. Jogou à sorte – literalmente – para determinar quem avaliaria futuros juízes, incluindo profissionais que a própria Ordem tinha classificado com zero pontos. Tudo isto seria delicioso, dado tratar-se de psicólogos, se não fosse trágico: a sorte venceu o mérito. E nem sequer se sabe quem tirou as bolas — ou se havia “bolas quentes”.

Sede do Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa. / Foto: D.R.

Num ano marcado por polémicas sucessivas na avaliação psicológica do CEJ, e depois de uma primeira fase em que mais mais de metade dos candidatos foi excluída pela Talking About, apenas para que a segunda avaliação revertesse nove em cada dez desses “chumbos”, tanto o processo de contratação da empresa como o método de selecção dos peritos responsáveis pelo parecer final levantam dúvidas profundas sobre a seriedade, a legalidade e a credibilidade de todo o modelo.

Depois de tudo isto, poucos podem estranhar que a Justiça em Portugal ande pelas ruas da amargura. Ou melhor dizendo, por sendeiros esburacados – leia-se, verendas esventradas – por onde só passam sendeiros escanzelados – leia-se, cavalgaduras velhas e ruins.