Há coisas que nem um gato com nove vidas entende, e olhem que eu já vi de tudo — desde a queda do Lehman Brothers até à ascensão da CMTV. Pois bem, os senhores da SIC e do Expresso decidiram fazer notícia de uma suposta notícia da The Times, como se fosse a descoberta da Atlântida. Mas a TheTimes, essa velha senhora inglesa que já foi bíblia do jornalismo, anda hoje metida em turismo de pacote, E decidiu vender Portugal aos pedaços: hoje é o Algarve Selvagem com sete noites e transporte de bagagens incluído, amanhã é o Porto, com hotéis reluzentes – e até que deu em descobrir a “the underrated Portugueses town” onde se pode passar uma semana inteira por menos de £350. Só nos últimos dois meses são mais de uma dezena de supostas reportagens com ligações comerciais descaradas a hotéis, restaurante e o mais que houver.
Mas, perguntam bem, e que cidade portuguesa é essa, subestimada e a merecer visita recomendada pela The Times? Eu ajudo, porque não aprecio suspense: Estarreja!

Sim, Estarreja! Aquela terra cuja glória não são praias nem azulejos, mas a produção épica de resinas de PVC, clorobenzeno e poliestireno extrudido — um verdadeiro paraíso aromático onde o gás fosgénio é o perfume da manhã e o demetil-di-iso-cianato o incenso do progresso.
Quando o vento é generoso, ainda traz o aroma da celulose de Cacia, como um toque de assinatura olfactiva do Baixo Vouga. Mas a The Times não quis saber. Enfiou uma foto da ria de Aveiro — que não é Estarreja, mas lá para os lados do Tamisa deve ser tudo a mesma coisa — e escreveu o seguinte, que cito, traduzindo, porque o delírio merece:
“Sete noites de hospedagem no Tulip Inn Estarreja Hotel & Spa, incluindo voos de Stansted com a Ryanair, custam £323 por pessoa. Uma pequena mala para colocar debaixo do assento está incluída no preço, e você pode despachar uma mala de 20 kg por um adicional de £56 (ida e volta). O hotel fica a 45 minutos de carro ao sul do aeroporto do Porto e os táxis custam cerca de £58 (ida e volta) (city-airport-taxis.com). Alugar um carro pode ser mais barato e facilita passar a semana explorando a cidade (a partir de cerca de £60 por semana).”

Notável, não é? Temos agora jornalismo de viagens com preços de avião, de táxis, de extras de bagagem, de alojamento, de refeições – de tudo menos do que verdadeiramente interessa numa viagem. Isto não é reportagem: é folheto turístico com assinatura jornalística. E nem sequer é particularmente bom: qualquer rato do campo sabe que, com £60, mais vale alugar um burro e ir de Estarreja a Aveiro pela linha férrea — pelo menos tem vistas pitorescas e emoção ferroviária.
Mas ainda mais impressionante, sim, é ver o grupo Impresa a dar cobertura a isto como se fosse notícia. Referindo a ‘descoberta da The Times, o Expresso titula “Cidade portuguesa ‘subestimada’ ganha destaque internacional como ‘destino ideal’” e a SIC quase repete o título com um ar de quem descobriu o petróleo no Baixo Vouga.
Para completar a farsa, o Expresso ilustra a peça com uma fotografia falsa: a imagem é a da maquete de um projecto de reabilitação urbana apresentado em 2023 — ou seja, nada melhor do que mostrar aos leitores portugueses uma cidade que ainda nem existe, apenas sonhada em powerpoints camarários.

Querem saber o que eu acho que virá a seguir? Talvez um suplemento turístico sobre Paio Pires, com uma visita guiada ao parque siderúrgico. Ou uma escapadinha de fim-de-semana ao Barreiro, com brinde de passeio pelos estaleiros desactivados. Quem sabe, uma edição especial “Urgeiriça Experience”, com rota pelo passivo radioactivo. Panasqueira também merece, porque minas de volfrâmio são património, e podiam incluir um tour pelos serranias de Arganil e arredores, porque sempre há agora uma superfície de 65 mil hectares fresquinhos dizimados pelas chamas de Agosto, para assim se terminar com “vista deslumbrante sobre o renascer da Natureza”.
Por fim, para os mais sofisticados, tudo isto será incluída numa edição premium “Boa Cama Boa Merda”, integrando ainda uma passagem pelo pólo industrial de Sines, com aromas incluídos, pela Setúbal industrial e uma selfie junto a um qualquer parque de contentores.
Enfim, tudo tresanda (literalmente) a jornalismo de secretária. Ninguém foi a Estarreja confirmar se a “incrível cena artística” existe — talvez exista, mas nem a The Times, nem a SIC, nem o Expresso dizem qual, onde e quando.

Limitaram-se a fazer copy-paste da The Times, que por sua vez fez copy-paste do press release do hotel. Isto é uma cadeia alimentar perfeita: o turismo vende ao jornal inglês, o jornal inglês vende ao bife papalvo e ao jornal português, o jornal português vende ao leitor português. No fim, alguém vende um pacote de sete noites com voo da Ryanair, e todos ficam felizes.
Só que isto não é jornalismo, e a minha cauda arrepia-se. Isto é publicidade descarada e mal disfarçada – e publicidade feita notícia é ultraje. Pior: engano com selo de qualidade SIC/Expresso, que ainda se dizem os paladinos da informação. No dia em que Estarreja for o oásis turístico de Inglaterra, prometo atirar-me da estátua da Liberdade sem para-quedas.
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