Há, na vida humana, uma tendência muito particular para provocar mal-entendidos, que seão amiúde o motor das tragédias. Não falo aqui do mal-entendido ontológico entre o Ser e o Parecer, como dissertaria um qualquer existencialista entediado, mas sim do tropeço literal — aquele gesto desastrado, involuntário, quase sempre insignificante — que, por obra de uma cadeia de reacções desgovernadas, culmina em facas voadoras, em pontapés desgvernados, em mísseis teleguiados e em notícias com títulos que desafiam as leis da narrativa e da prudência.
Veja-se o exemplo concreto que me trouxe hoje à escrita, numa terça-feira de contemplação sobre o parapeito da janela: “Mulher tropeça ao sair de viatura e irmão atinge homem à facada em Torres Vedras”. Um título que poderia ter sido criado por um papagaio com acesso a uma base de dados criminal e uma roleta sintáctica. O Correio da Manhã, com o seu habitual talento para a síntese do absurdo, não explicou de início: apenas enunciou, embora depois até tenha mudado o título, mantendo a hiperligação original. E ao enunciar, faz com que o mundo aceite. O leitor lê, encolhe os ombros e pensa: “Sim, claro, porque é sábado à noite em Torres Vedras.”

Mas eis que lendo a notícia original na íntegra e se percebe que, afinal, o tropeção acidental foi interpretado pelo irmão como um acto de agressão de outrém, o que o levou, num gesto medieval e prestativo, a atirar uma faca de cozinha — que trouxera de casa, como quem leva um tupperware — contra o alegado (e não confirmado) atacante da irmã. Afinal, há lógica, sim: é a lógica do desentendimento elevado à categoria de defesa da honra instantânea. Mas essa lógica, ao ser revelada, não resolve o absurdo — apenas o estrutura melhor.
Enfim, vou passará frente da actualização da notícia… ou é melhor não. Porque afinal, houve uma nova versão dos factos, “por [novas] testemunhas ao CM”, a saber: “não é a mesma. “Segundo as mesmas, um motociclo com três ocupantes embateu num veículo que estava estacionado junto a um café, na aldeia de Paúl, concelho de Torres Vedras. O dono do carro reparou que a mota provocou um risco nessa mesma viatura. Os ocupantes da mota negaram terem feito os danos ao carro. Entretanto, gerou-se uma grande confusão no local, após uma mulher ter desferido um soco ao proprietário do carro. Pouco depois, o motociclista abandonou o local e regressou com um outro homem que ameaçou várias pessoas com duas armas brancas. O CM sabe uma das facas tinha uma lâmina de 20 centímetros e que a outra era de menores dimensões. A dada altura, um dos suspeitos desferiu um golpe ao filho do dono do carro danificado.”

Confesso-vos que não me consigo decidir sobre qual a melhor das versões — tal como nunca soube se prefiro mais peru ou fiambre.
Ora, independentemente disto, não sendo eu um gato facilmente impressionável, confesso que estas pequenas catástrofes com ar de anedota me intrigam. Porque, no fundo, dizem muito sobre o modo como a realidade dos humanos se organiza e decorre: através de equívocos, extrapolações e reacções fora de escala.
Fascinante se apresenta aqui o velho conceito do non sequitur, essa elegante expressão latina que significa, literalmente, “não se segue”. No mundo lógico, designa uma conclusão que não decorre das premissas. Mas no mundo real — sobretudo no mundo português — o non sequitur tornou-se método, estilo de vida e critério jornalístico. Tudo parece ser consequência de algo, mesmo que esse algo seja apenas um tropeção, uma piada mal interpretada, ou um espirro num contexto simbólico.

É por isso que me dediquei, com o zelo de um bibliotecário do disparate, a recolher hipotéticos casos do absurdo causal com aparência de lógica. Eis aqui uma dezena:
Mulher entorna café em pastelaria e padre de Borba cancela baptismos por tempo indeterminado
Após o incidente com o café, a dona do estabelecimento comentou nas redes sociais que “a vida é um líquido imprevisível”. O padre interpretou a frase como ataque espiritual e decidiu suspender os sacramentos por discernimento teológico.
Rapaz troca cromo repetido e INEM é chamado para socorrer três turistas escoceses em Albufeira
A troca deu-se num quiosque ao lado de um bar onde se discutia futebol. O cromo trocado envolvia um jogador escocês que, acaso e coincidência, entrou em polémica com os turistas. Os ânimos exaltaram-se.
Criança engole berlinde por engano e autarquia de Vila do Conde aprova isenção de IMI para ginásios
Durante uma sessão da assembleia municipal, o pai da criança relatou o caso como metáfora para a “confusão dos contribuintes com a burocracia”. A analogia convenceu vários eleitos a votar a favor da isenção.

Turista belga pede direcções para a Sé de Braga e GNR apreende jiboia em carro estacionado em Loulé
A pergunta feita num posto de turismo foi mal traduzida por um software automático. Um subsequente alerta infundado enviado à GNR de Loulé activou uma operação equivocada, mas que culminou com a descoberta fortuita da gigantesca serpente num Renault Clio.
Idosa abre guarda-chuva dentro de casa e trovoada encerra festival gótico em Vilar das Perdizes
O neto publicou o acto supersticioso nas redes sociais. Milhares de seguidores interpretaram como mau presságio e, quando se ouviram os primeiros trovões, a organização suspendeu o concerto por precaução e mística ancestral.
Mulher compra fiambre em promoção e governo angolano suspende exportações de banana para Portugal
A compra foi referida num blogue alimentar com ligações lusófonas. Uma passageira angolana comentou que “o fiambre europeu sabe a sabão”. O comentário viralizou e causou uma crise diplomática.

Menina faz castelo de areia na praia da Nazaré e queda de servidor informático paralisa hospital de Leiria
O pai, engenheiro informático, viu-se obrigado a usar o telemóvel como hotspot para enviar fotos do castelo à avó. Esqueceu-se que isso interromperia a gestão remota aos servidores hospitalares.
Mulher despe-se em parque de estacionamento e quatro jarros de compota explodem em fábrica da Golegã
A senhora terá feito uma “performance” artística junto a um Lidl. O vídeo viralizou, e um funcionário da fábrica vizinha, ao rir-se descontroladamente, deixou cair uma caixa sobre a linha de esterilização.
Jovem tira selfie com cisne em Aveiro e Conselho de Ministros altera lei das rendas
A fotografia foi acidentalmente usada como imagem de capa num relatório do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. Um ministro, ao ver o documento, interpretou o cisne como símbolo de “resiliência urbana” e decidiu propor uma reformulação da lei para “acompanhar os sinais do território”.

Reformado derruba embalagem de arroz integral numa mercearia biológica e festival internacional de teatro em Almada altera repertório
A queda provocou uma cascata sonora captada por um artista sonoplasta presente. O som, amplificado e reinterpretado, foi considerado mais “existencialmente cru” do que um texto previsto de Beckett. A direcção artística, inspirada pelo acidente, substituiu À Espera de Godot por uma performance sonora com grãos ao vivo.
E agora, se me permitem, vou perseguir uma borboleta imaginária com ar de secretário de Estado. Nunca se sabe o que ela vai assinar.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.