Dizem que o Chega é de extrema-direita, fascista e o Diabo a quatro. Eu cá acho que é mais um Gato das Botas da política portuguesa — aquele personagem de olhos grandes, voz sedutora e botas polidas, que encanta os incautos com promessas de justiça infalível enquanto salta de telhado em telhado à procura do ângulo ideal para cair de pé no poleiro do poder.
Não lhe nego o talento cénico: o seu chefe, Ventura, sabe onde pôr as vírgulas, onde subir o tom e, mais recentemente, o seu partido até sabe fingir que faz jornalismo. Falo, claro, do Folha Nacional, convenientemente registada como órgão de comunicação social doutrinário na Entidade Reguladora para a Comunicação Social — que, aliás, lhe concede um tratamento de favor —, embora funcione, na prática, como panfleto partidário com QR Code.

Ora, o Folha Nacional — tal como a Acção Socialista do PS, o Povo Livre do PSD, o Avante! do PCP e o Esquerda.net do BE — é, na verdade, uma folha domesticada que abana o rabo ao dono como se fosse um jornal, mas que mais não é do que um espelho onde o partido se admira a si próprio.
Uma prosa recente — sobre os incêndios florestais — é um exemplo tão nítido dessa arte de fingir que quase merece aplauso. Não pela lucidez, que não tem, mas pela coerência felina com que se treina, passo a passo, um discurso de poder envolto em indignação moral, números criativos e uma retórica que mistura o justiceiro com o justiceiro em fúria.
Li com um olho aberto e outro semicerrado — típico de gato céptico — essa peça relevante de um país que arde quando faz calor, sobretudo depois de uns anos em que arde pouco porque já tinha ardido muito antes. A ladainha é cíclica. Começa o Folha Nacional, sempre sem nome de redactor, com uma daquelas frases dramáticas de cartaz político: “Portugal arde mais do que todos os outros países da Europa.” E como se não bastasse essa liderança incendiária, somos também os que mais perdoamos. Vai daí, o tom acelera: “85% dos incêndios são criminosos”, dizem eles — embora o número surja do ar ou, mais apropriadamente, da cartola onde se guardam as estatísticas que servem ao argumento.

O leitor é empurrado para a conclusão inevitável: o país precisa de punir com mais força. Prisão obrigatória para todos. Prisão perpétua para alguns. E, se possível, trabalho comunitário forçado para replantar a floresta enquanto se cumpre pena. No limite, o incendiário vira terrorista e o debate político transforma-se em argumento de série policial da Netflix.
Mas o mais hilariante, confesso, está no estilo do texto. O Folha Nacional escreve como se estivesse a investigar pela calada… o próprio Chega. Há ali pérolas como “o Folha Nacional sabe que o partido defende também…”, como se os redactores tivessem espreitado por acaso um caderno de Ventura esquecido num banco do Parlamento. É uma encenação deliciosa. Imaginem se eu dissesse: “O Serafim sabe que o Serafim prefere frango a atum.” Revelação espantosa. Assim se faz jornalismo partidário com pose de isenção — como um espelho que finge ser janela.
E há ainda situações nesta notícia em que o Folha Nacional recorre a fontes indirectas — como o Observador ou a SIC — para citar o próprio André Ventura, como se não lhe bastasse bater à porta ao lado para ouvir directamente o chefe. Imaginem, portanto, eu a escrever: “O Serafim apurou que o Batty [o meu jovem e irrequieto companheiro de casa] tem conhecimento de que o Serafim aprecia lamber pratos com molho de frango assado com limão e alho.” Uma revelação de alto jornalismo doméstico.

Enfim, tudo misturado, aparecem então as propostas legislativas, todas com aquele aroma de urgência moral que pede punição antes de reflexão. Querem queimar os pirómanos com as chamas que causaram, mas sem pensar se as leis actuais falham na aplicação ou na concepção. Para eles, tudo é simples: se há fogos, é porque há criminosos impunes. E se há criminosos impunes, é porque o sistema é mole. E se o sistema é mole, mudem-se as leis. E, se possível, endureçam-se até ao osso — mesmo que se misturem os negligentes com os incendiários reincidentes, ou os distraídos com os sociopatas. O que interessa é mostrar força, mesmo que se legisle a partir da raiva e não da razão.
O mais curioso é que esta peça parece menos preocupada com os incêndios do que com a própria construção de um discurso de governo. É um ensaio disfarçado de notícia, um treino de como apresentar uma ideia extrema como se fosse razoável. Como repetir uma indignação até ela parecer óbvia. Como manipular a linguagem para transformar crimes em cruzadas morais. E, claro, como vestir tudo isto com o manto da informação, para que ninguém diga que se está a fazer propaganda.
Ora, eu conheço bem esse jogo. Já vi muitos a prometer justiça inflexível e a acabarem enredados na teia das suas próprias exigências. Porque o populismo punitivo tem um problema: uma vez aceso, não apaga fácil. Precisa sempre de mais lenha, mais culpados, mais escândalos. Hoje são os incendiários. Amanhã talvez os juízes que lhes aplicaram penas leves. Depois os jornalistas que escreveram contra as novas leis. É um caminho que não conhece retorno.

E se há coisa que um gato sabe é que nem todas as árvores servem para subir — e algumas têm demasiada resina para quem promete justiça com as mãos sujas de urgência.
No fundo, o Chega — com a sua Folha Nacional em riste — está a construir uma espécie de estufa legislativa: aquece os temas até eles se inflamarem, rega-os com frases sonoras, e depois colhe os frutos políticos no mercado da indignação, onde até o fumo é fogo.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.