A indignação é, afinal, coisa de macho?


Com a altivez que uma vida de observação discreta me permite, ainda mais comodamente estendido sobre mantas de lã viradas ao sol, confesso-vos que me espanta a versatilidade dos humanos no que toca à indignação. Não a uma indignação prática, que leva alguém a fechar a porta de casa com um estrondo, mas à nova indignação higienizada, tornada protocolo. Nas indignações, há agora um aroma institucional a repúdio — uma espécie de bouquet técnico de ressentimento moral bem destilado, servido à temperatura ambiente com frases compostas e duplicações virtuosas.

Vi isso esta semana, por exemplo, numa comunicação da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que denuncia o grave atentado verbal de um certo criador de conteúdos digitais. O comunicado, que se pretende galope retórico em defesa da honra feminina, ofereceu-nos esta pepita sintáctica: “denúncias de cidadãs e cidadãos indignados”.

Ora, esta combinação não me escapou, tanto mais que ainda não vi — nem mesmo da parte do PAN, esses zelotas da moral doméstica — qualquer defesa do uso de “gatos e gatas”, quando se referem à minha espécie, ou de “cães e cadelas”, quando se referem aos tontos e babejantes canídeos.

Adiante. Vamos ao foco. Não me surpreendeu, pois, que se colocassem as “cidadãs” em primeiro lugar — um hábito moderno, cavalheiresco, correctíssimo segundo as boas intenções da época, que tem algo de ternurento, como pôr uma criança a cortar a fita, e, no fundo, de condescendente, como quem diz: deixemo-las ir à frente, coitadas, que sozinhas talvez não cheguem lá.

O problema está em que, depois, o adjectivo escorrega subtilmente para o masculino plural — “indignados” — como quem tropeça ao sair do elevador com um cartaz pela igualdade. Não estou a dizer que seja erro, não. Mas é daqueles acasos deliciosos que, como a mosca sobre o pudim, estragam a fotografia da virtude.

E o mais curioso é isto: por entre tanto zelo, esquecem que a frase parece dizer que as cidadãs foram nomeadas com rigor de paridade, mas o sentimento colectivo da indignação ficou gramaticalmente masculino. Talvez porque, no fundo, até a indignação institucional obedece à velha norma da gramática, essa matriarca teimosa que não se deixa seduzir por ofícios em papel timbrado.

O caso leva-me a reflectir sobre o uso doméstico da indignação, que observo com ciência empírica cá em casa. Porque, vejam bem, quando me deito de barriga no teclado, ou resolvo experimentar a consistência das persianas às quatro da manhã, não é a minha dona que se indigna. Ela, serena, resignada, encolhe os ombros, murmura algo sobre “o Serafim é como é” — e volta ao livro. Já o meu dono — esse, sim — transforma cada deslize meu numa revolução que exige a tomada da Bastilha. A sua voz sobe meio tom e meio, as sobrancelhas desenham parábolas revolucionárias, e há um vago tom de manifesto em cada exasperação: “Isto já não se aguenta!”.

Vêem a analogia? Na CIG, como cá por casa, a indignação tende a instalar-se com mais frequência no lado masculino da frase. Coincidência? Talvez. Ou talvez a própria indignação, quando exposta em público, seja um produto mais viril do que se imagina — não por desígnio, mas por vício de estrutura. Porque, se fosse verdadeiramente feminista, talvez dissesse “cidadãs e cidadãos indignadas”, assumindo a ruptura com a norma em nome de uma nova gramática política.

Ou então, para se ser genuinamente democrático, o correcto seria escrever “cidadãs indignadas e cidadãos indignados”, mas apenas após um sorteio rigorosamente aleatório que determinasse qual dos géneros mereceria a primazia nessa noite.

a large group of people holding up signs

Mas isso não interessa agora. Aquilo que me diverte — e aqui ronrono com gosto — é que a linguagem da indignação se tornou tão previsível, tão estilisticamente ensaiada, que já não morde. Lê-se, consome-se, esquece-se. E, enquanto os comunicados se repetem com indignação certificada, o mundo gira, os gatos dormem, e a verdade escorrega como um rato entre frases pomposas.

Pior ainda: quando tudo é indignação, nada o é. Como nas casas onde o dono grita por tudo e por nada, mas é a dona quem, sem palavras, nos dá o verdadeiro tom da justiça — com um olhar de lado, um afago na cabeça ou um prato de atum às escondidas.

Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.